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Colegao Filosofia e Ciéncias Humanas Ontologia e Psicanalise: dialogos possiveis Caroline Vasconcelos Ribeiro (Org.) Caroline Vasconcelos Ribeiro (Org.) Ontologia e Psicandlise: didlogos posstveis Sao Paulo DWWe 2018 Capitulo I A ontologia fenomenoldgica ante o desafio clinico Irene Borges-Duarte 1. Enquadramento A vocasao pratica de filosofia vem atestada ao longo de toda a sua historia, nao 6 pela constante meditacao sobre a pélise o politico, mas também pela reflexao sobre a vida humana na sua cotidianidade e sobre o caminho para a realizacao da felicidade. O “sdbio” grego, primeiro, ¢ 0 “filésofo”, depois, nao s6 sentiam 0 assombro ante a desmesura césmica, como procuravam compreender a condigdo humana e encontrar forma de aconselhar acerca de como racionalizar a vida ea ago. Naromanitas, essa vocagao pratica até se acentuou especialmente. Séneca, nas cartas a Lucilio, indicava expressamente que “a filosofia ensina a agir, nao a falar”, 0 que, sem contradizer 0 compromisso com a pélis, parece desinvestir 0 discurso politico e acentuar a importincia da racionalizagio da conduta humana, nos mais diferentes aspectos da atuagao vital Na modernidade, esta vocagio pritica nao se perde, mas a atencio preferente & ciéncia - matematica, fisica ou juridica ~ relega para segundo plano a compreensio do agir cotidiano na sua manifestagéo e singularidade, tendendo a consideré-lo apenas do ponto de vista universal, tanto na reflexao ética como politica, ¢ tratando o humano - para utilizar a metéfora de Spinoza - more geometrico. A filosofia transforma-se, indelevelmente, numa meta-ciéncia: num pensar com a ciéncia e dela subsidiério, que se ocupa do que a cién da a pensar e do modo como trabalha os seus diferentes ambitos + Esta atencio filoséfica as questdes da pratica de cuidado de si, na antiguidade clissica, tem sido objeto de importantes estudos que, deste a década de oitenta do século XX, foram adquirindo cada ver. maior notoriedade, sobretudo a partir da publicacio das obras de Pierre Hadot (1981) ¢ Michel Foucault (1984), embora as célebres licdes deste iltimo no Collége de France, de 1981 a 1982, s6 tenham visto a luz vinte anos mais tarde (Foucault, 2001). 10 tematicos. A reflexio sobre a condicio humana, de fato, quase fica restringida a literatura, mesmo que esta guarde em si muito de filoséfico, pois muitos dos filésofos que “fazem ciéncia”, escrevem também romances (vejam-se os enciclopedistas) ou recolhem em coletineas os seus “pensamentos” (baste recordar Pascal). © sabio passa a ser 0 douto, cada vez mais “cientista” e mais afastado da realidade vivida. Ja nao tem motivo para rir as criadas trécias, porque o Thales moderno, encerrado entre livros ¢ instrumentos de observacio e medida, jé nao se aventura a passear na realidade, em que poderia tropesar ou cair, antes a constréi com esmero, como se fosse um jardim. E a emogao, que se desperta nele ante o espetaculo do jardim-universo, transforma-se em “estética”. Mesmo Kant, que manifesta o seu maravilhar-se ante “o céu estrelado” e a “lei moral”, vé, no primeiro, a imagem sublime da desmesura ~ uma categoria estética, portant, e, na segunda, que ressoa “em mim”, a expresso do imperativo universal, que nenhum esquema permite imaginar e singularizar. Nao 4 invulgar, por outro lado, ler a filosofia kantiana fundamentalmente como uma interpretagio filosdfica da mecinica newtoniana, nem podemos esquecer-nos que, numa imagem honrosa, o proprio Kant se referiu a Rousseau como o “Newton do mundo moral”, A abordagem filoséfica revela, com Kant, ter adquirido, decidida e definitivamente, 0 cunho mediador da ciéncia, que constitui seu perfil desde a modernidade. Perfil que se mantém e até se incrementa na atualidade. 2. Lugar da Fenomenologia e da Hermenéutica neste quadro E hem neste contexta que Husserl, no apiiseula de 1911, ajusta a sua visio da fenomenologia ao ideal da “ciéncia estrita” (strenge Wissenschaft), @ polemiza contra Dilthey, que procurava desenhar um modelo alternativo ao das ciéncias “exatas” ou “naturais”, baseado na imediatez da relagdo (1) ao mundo, na configuracio de mundividéncias que marcam os processos culturais, e (2) aos outros seres humanos, na empatia com um autor, que prenuncia os contornos duma interpretacio fidvel. nao delirante, metodicamente desenvolvida a partir dos seus textos. Ambos os filésofos, préximos na investigago dum saber filosdfico rigoroso, centrado no fenémeno, mas a alheio ao método experimental imperante, desembocam, contudo, por separado, numa metodologia descritiva do psiquico, que Husserl funda no a priori da referéncia ou correlacio intencional, constituinte de toda a vivéncia, enquanto Dilthey concebe como uma unidade viva, experienciada, origindria e imediatamente na vivéncia, em que se articulam ¢ inter-relacionam em simultneo o mundo exterior e a experiéncia interior. 0 resultado de cada uma destas vias, metodologicamente to préximas, é, contudo, muito diferente. Em Husserl, 0 “rigor” do método fenomenoligico, ancorado na “redugio”, condu-lo a necessidade de um polo fundante, que, em iltima anélise, dentro da tradigao ocidental, sera oego puro, sujeito singular do “mundo da vida”. Dilthey, em contrapartida, alheio & ansia de fundamentagio, apesar da sua formagao idealista, encontra no conceito de Weltanschauung esse ponto-chave em que mundo exterior experiéncia interna manifestam a sua indissociével unidade. Em Husserl, impera a infengdo, que une distinguindo 0 polo noético do noematico. Em Dilthey, descobre-se 0 homem inteiro que, a0 mesmo tempo, “quer, sente ¢ representa”, vitalmente e em unissono, a realidade exterior (Dilthey, 1890). ncontramos, pois, desde o inicio da filosofia fenomenoldgica — isto é, da pritica filosdfica ligada A investigagio das “coisas elas _mesmas” segundo 0 método fenomenol6gico, & maneira husserliana ~ uma preocupagio de tipo epistemolégico, coerente com a que se afirmou ao longo da Idade Moderna. Essa preocupacio é de dois tipos: procura-se, por um lado, fundamentar a “cientificidade” da filosofia e, por outro, encontrar 0 seu lugar estrutural no compéndio das ciéncias, justificando a sua relevancia como saber dos fundamentos (veja-se, por exemplo, o artigo “Fenomenologia” da Encyclopaedia Britannica (Husserl, 1927), na sua versao husserliana) ou até como “ciéncia originaria” (como aparece no primeirissimo Heidegger, nas suas Ligdes de 1919 (Heidegger, 1987). Na “pritica filoséfica”, assim entendida, nada parece restar daquilo a que chamavamos de sua vocagio “pritica” inicial. J4 Kant distinguira na filosofia 0 que corresponde ao seu Schulbegriff, enquanto “sistema de conhecimento, procurado meramente como ciéncia”, do que designa 0 seu Weltbegriff, “que diz respeito a0 que 2 interessa necessariamente a todos” (Kant, 1781/1787, A 840/B 868) e consiste na ideia de uma “ciéncia da relagdo de todo o conhecimento aos fins essenciais da razio humana (teleologia rationis humanae)” (Kant, 1781/1787, A 839/ B 867), isto é, uma sabedoria dos seus fins iltimos e do caminho para lé chegar’, que, & maneira da “doutrina da sabedoria” na antiguidade, é o ideal incansavelmente perseguido pelo filésofo. Embora acentuando 08 requisitos do que “deva poder ser considerado como ciéncia”, Kant nao esquece, pois, esse saber pritico primevo, que aconselha acerca do caminho para 0 supremo bem, de que considera que a ciéncia, “buscada criticamente e introduzida metodicamente, é 0 estreito portal” que “conduz a doutrina da sabedoria”® A questo que quero colocar tem que ver com a complementaridade destes dois, conceitos de filosofia e com a possibilidade de uma pritica filoséfica fenomenol6gica que, procurando agir e compreender o agir na realizacao vital cotidiana, nao descuide na sua aplicabilidade ao fatico a exigéncia de cientificidade que constitui o seu perfil moderno. E € neste ponto de interseccdo entre a conceitualidade cientifica e a casuistica da sua aplicabilidade que situo a importancia do desafio que a pratica clinica da psicoterapia, nas suas diferentes vias, constitui para a filosofia fenomenolégica. Procederei, com parciménia, em dois momentos: primeiro, procurando definir e identificar aquilo que penso que a clinica pode oferecer & meditagao filosdfica; depois, referindo e identificando alguns conceitos operatérios nascidos no contexto da pritica clinica, que possam ser usados na abordagem fenomenologica de questdes filoséficas. Kant, 24: "a Filosofia como conceito geral (ix sensu cosmico) também se Ihe pode chamar uma ciéncia acerca das méximas supremas do emprego da nossa razo, na medida em que se entender por maxima 0 principio interno da escolha entre varios fins’. } Ver Kant: “Wissenschaft (Kritisch gesucht und methodisch eingeleitet) ist die enge Pforte, die zur Weisheitslehre fabrt, wenn unter dieser nicht blo8 verstanden wird, was man tun, sondern was Lehrern zur Richtschnur dienen soll, um den Weg zur Weisheit, den jedermann gehen soll, gut und kenntlich zu bahnen und andere vor Irrwegen zu sichern: eine Wissenschaft, deren Aufvewahrerin jederzeit die Philosophie bleiben mus”. 2B 3. Da clinica a filosofia Voltarei, transitoriamente, a Kant, para comegar. Por trés razdes: em primeiro lugar, porque a edificaco do sistema critico como investigagao do processo de conhecer € pensar segundo principios é exemplar do que pode ser o rigor cientifico do filosofar. Como “filésofo newtoniano”, para empregar a expressio que da titulo ao excelente estudo exaustivo de Fabien Capeilléres (2004), Kant realiza uma “revolugio da maneira de pensar” que culmina numa arquiteténica do saber segundo principios transcendentais, simultaneamente émulo e rival do sistema e estilo newtonianos, que Ihe servem de espelho. Mas, nessa empresa filoséfica, a sua auténtica motivagao é sondar os limites da construgdo racional do saber e, em definitiva, da realidade que esperamos conhecer racionalmente, para que, nela, racionalmente, também possamos viver. Ora, em segundo lugar, na origem dessa pesquisa dos limites da razio humana esté também uma interrogagio prévia sobre “o que se toma como verdadeiro” (Wahrnehmung), que, entre 0s anos 1764-1766, pée em questdo a percepgdo e os juizos acerca da realidade, através da consideracao de diferentes tipos de “doengas da cabega” e da fantasia visiondria de um estranho personagem no panorama cultural iluminista europeu. E, vinte anos mais tarde (1786), Kant radicou ainda a nossa aventura metafisica pelo “oceano sem margens” do suprassensivel, no que descreveu como um “sentimento de necessidade da nossa razio, que quer ser satisfeita” e designou por “fé” (racional)* Nao é, decerto, aqui o momento de aprofundar estas referéncias kantianas. Mas convém ter em conta que o pensador que mais claramente antecedeu as linhas de rumo da fenomenologia’ langou a preocupagao “ No Ensaio sobre as doengas da cabega, 1764, Kant distingue e tenta classficar as diferentes formas de Toucura ou desvario; nos Sonhos de um Visiondric, 1766, compara as projegdes fantasiosas de Swedenborg, as vis especulagoes da metafisicas em Que significa orientar-se no pensamento?, define como uma “fe racional” a seguranga com que o ser humano é capaz de dar sentido & sua atuagao vital. Veja-se Kants Werke, 5 Ao iniciar com Kant a sua investigagdo das “figuras do ideal de cientificidade em metafisica’, Fabien Capeiléres justifica-se recorrendo, entre outras razdes, ao seguinte argumento; “o periodo contemporineo nasce de duas correntes, a partida interligadas ~ 0 neo-kantismo e a fenomenologia -, as quais relangaram, cada uma a sua maneira, a instauracio kantiana” (Capeilléres, 2004, p. 15). 14 filosdfica na perseguigio do que esté na origem das inevitiveis “ilusdes” das nossas expectativas de sentido e deteve-se a pensar 0 que constitui a nossa “confiabilidade” no mundo. Investigadores do foro psicoldgico ou psiquidtrico como Blankenburg ou Winnicott consideraram estar, justamente, nesta confiabilidade, o patamar da seguranga vital, que ligamos, inequivocamente, & sanidade mental, ao sentir-se a vontade no mundo real. Considero, portanto, em terceiro lugar, que esta preocupacao kantiana pouco recordada é fundamental e, a0 nivel filos6fico, muito original no fildsofo que soube vincar como caracteristica da filosofia 0 seu ser uma antropologia, em sentido eminente, A breve referéncia a Kant permite-me, assim, unir na culminagao da modernidade a preocupagao filoséfica pela cientificidade do seu fazer e a ineréncia da questo dos “limites” & investigagio da dinamica estrutural do ser 4 maneira do humano. Deste ponto de vista, a sua heranca na fenomenologia aparece claramente cindida: enquanto Husserl, alheio a0 cerne do pensamenta kantiano, se acupa de nova da question do rigor e cientificidade, que conecta com a ~ uma e outra ver retomada ~ da “redugio”; Heidegger, émulo aqui de Dilthey, centra-se nos abismos da relagdo set-homem que se manifesta na imediatez. do afeto compreendente e da sua articulagio fitica em palavra, gesto, ato, obra. E, nesta imediatez, acentua o lado obscuro ~ pré-légico, pré-verbal - da relagdo, 0 qual aparece sobretudo na experiéncia do insio, do doloroso alerta para a falta: a angustia, o tédio, 0 fracasso da mediania cotidiana. Binswanger, Boss, Blankenburg, Maldiney - para citar apenas alguns dos nomes que me parecem especialmente importantes na recepgio desta leitura - do continuidade e aprofundam as potencialidades desta abordagem do irromper do sentido no seu ai humano, Mas esta forma de fazer filosofia aproxima-se, assim, indelevelmente, do que, cientificamente, teve um desenvolvimento extraordinario ao longo dos duzentos anos que nos separam de Kant: a consideragio médica e cientifica das perturbagdes do comportamento humano, tanto na sua manifestacdo somatica como psiquica. Mais que a psicologia, que optou por uma metodologia préxima das ciéncias experimentais e exatas, a psicandlise e a psiquiatria oferecem continuamente & meditagia filoséfica problemas que se conectam, por outro lado, com aquilo que, desde a antiguidade, era a vocagao 15, pritica do sdbio que estuda a tantas vezes infrutifera busca da felicidade entre os humanos, Hoje, haveria de integrar nestas interrogagées 0 trabalho das chamadas neurociéncias, mas permanecendo o ductus problemitico no que tem que ver com a génese € 0 desenvolvimento sadio e insio dos processos mentais, mais do que nos abundantes resultados de investigagoes laboratoriais. A dlinica psicolégica e psicanalitica, com a sua atengao a singularidade e novidade de cada caso e com a sua busca de uma conceitualidade compreensiva, mais abrangente e diictil do que da mera teoria, constitui, assim, penso eu, um desafio aberto ao pensar filosdfico. Nao s6 no sentido da cientificidade de processos ¢ casos irredutiveis & “exatidao” da norma e da matemtica, mas também no sentido de poder aprender da operatoriedade de conceitos nascidos da prética clinica, sempre atuante mediante a relagdo entre terapeuta e paciente ~ 0 que é muito diferente de uma investigagao ou construsao “metapsicologica” -, conceitas que permitem aceder a aspectos estruturais, enriquecedores da compreensio filosfica propriamente dita, E aqui vou voltar a Kant. 4, Instrumentos conceptuais transversais FE. bem sabido que a grandeza e novidade da revolugao dita “copernicana” de Kant consistiu, fundamentalmente, na inverséo da perspectiva na consideracao do processo cognitivo: a atengao nao tanto ao que provém do objeto, mas sobretudo ao que é posto no objeto, no préprio ato de conhecimento, fazendo dele isso mesmo: ob-jectum - aquilo que apenas concebose e sé seo lango para o horizonte do que esté ante mim. Ao que nao lango para esse “ante” mim, apercebo-o como 0 que subjaz a todos os atos de langamento: sub- jectum, identificando-o com 0 que é a primeira pessoa verbal do(s) ato(s) de pensar, que se dé dessa maneira, numa relagdo constituinte quer do objeto, quer do sujeito. Esta descrigio, talver demasiado abreviada, do essencial da perspectiva transcendental kantiana constata ¢ regista o que, posteriormente, os pensadores da fenomenologia analisaram exaustivamente. As “coisas elas mesmas” da fenomenologia nio 36 slo “fen6menos” em sentido husserliano, cunhados noético-noematicamente, mas também, 16 de maneira indelével e incontornavel, em sentido kantiano. Nao ha “coisas em si”: 0 que 6 tio vilido para o que se apresenta como objeto, como o que irrompe como sujeito. Tudo 6 ficcionado: resultado da projegio de estruturas que, dando forma, decerto, deformam 0 que, dessa forma, conhecem. © “eu”, que possa existir para I4 da mera primeira pessoa verbal e ser ele préprio objeto do (meu) conhecimento, integra elementos eles mesmos ja estruturalmente a priori configurados. Tao ficcional é 0 mundo, como aquele a quem chamo “eu”, Ha, pois, sem diivida, um perigo imanente e constante nesse exercicio projetivo: nao se dar conta de que a fic¢ao é ficgao. E o que se passa com “os sonhos da metafisica”, que Kant interroga continuamente e a que dé um nome préprio: Plato. “O anseio de alargar os conhecimentos é tao forte, que sé uma clara contradigo com que se esbarre pode impedir 0 seu avango” e “foi precisamente assim que Platio abandonou o mundo dos sentidos, porque esse mundo opunha ao entendimento limites to estreitos”, No entanto, esta “contradicio pode ser evitada se procedermos cautelosamente na claboragio das nossas ficgdes, sem qu por isso deixem de ser meras ficgdes” (Kant, 1781/1787, B 8- 9), Esta cautela “critica” aparece em diversos niveis e momentos do edificio kantiano, Na Critica da faculdade de julgar, teve 0 mérito de retomar um fio aparentemente perdido desde aqueles anos 64-66, a que ja fizemos referéncia: a atengao & loucura, chamando agora a ficcdo do louco aquela que “privada” e nao contrastada com o que é “sentido” como “comum” (Gemeinsinn)’. Desse modo, Kant estende a cautela critica a regiao mais intima dos afetos e oferece uma via importante para abordar as patologias da experiéncia, sempre ficcional, do mundo e do si-mesmo. © momento kantiano desenha um quadro em que gostaria de integrar, mesmo se s6 embrionariamente, a consideracao de trés fendmenos, bem descritos pela psicanilise. O primeiro, detectado e descrito por Freud, consiste nas deformagées da realidade tal como aparecem nos sonhos. Freud considera-as de origem “inconsciente” e reveladoras do recalcado, © segundo fendmeno é cunhado conceitualmente por Melanie Klein, ° Tratei disto no texto de Homenagem a Zeljko Loparic, “Realidade e Senso Comum, Kant e os limites da ‘mente humana’ (Reis & Faggion, 2010, pp. 167-177). 7 reinterpretando Freud, como “identificagio projetiva” e seré, posteriormente, reelaborado por Bion, O terceiro foi sugerido por Winnicott no contexto do que chamou “fenémenos transicionais”. Gostaria de, muito brevemente, reencontrar nestes diferentes contextos manifestagdes do que Kant, sem experiéncia clinica, descobrira na sua reflexio sobre a raz4o humana. Nao procuro, com isso, falar de influéncias ou prentincios, nem roubar originalidade ou desvirtuar a operatividade contextual dos conceitos. Pretendo simplesmente identificar estruturas mentais (de pensar e de perceber) a que Kant chegou refletindo teoricamente, mas a que, hoje, a experiéncia clinica do singular oferece uma explicitagao especifica, embora num horizonte mais restringido. Os conceitos nio sio equivalentes, mas denotam uma forma de articulago produtiva, que me parece um quasi- transcendental da mente humana. Duas magnas obras esto no limiar do século XX filoséfico: as Investigagdes ldgicas de Husserl e a Interpretagio dos sonhos de Freud (2001), ambas com data de publicagao em 1900. A primeira inaugura a batalha da fenomenologia contra 0 “psicologismo”, a segunda introduz uma chave hermenéutica para aceder A racionalidade de uma atividade mental essencial & condi¢ao humana. Aquilo que Freud descobre na produgao onirica é por um lado, a repetigao de simhologi marcadas pela inicial introjeccao pré-verbal de contetidos imagéticos ligados quer ao pulsional quer ao aprendido na primeira infincia; por outro, e mais importante tanto para Freud como para o que aqui nos interessa, a dupla estruturagdo dos contetidos oniricos na forma pré-verbal do que hoje chamariamos icOnico, durante o sono, e a~ muitas vezes infecunda - tentativa de tradugio em discurso verbal inteligivel do assim percebido. A primeira forma corresponde a0 sonho propriamente dito na sua forma “latente”, sempre mais rica do que conseguimos aperceber-nos, quer em “pensamentos”, quer em emogdes, embora seja a presenga destas que nos permite encontrar o fio da meada do que, neles, é mais importante para compreender 0 que preocupa ou perturba o sonhante. A segunda forma ou “contetido manifesto” corresponde ao que 0 sonhante, ao despertar-se, consegue reunir e perceber do sonhado, traduzido em discurso-texto, isto é, j4 convertido numa incipiente interpretagio, que As vezes se iniciou ainda na iiltima fase do sonho. Para Freud, este 18 momento pertence ainda ao que designa pelo “trabalho do sonho” e que descreve como um processo de deformagao e encriptagdo. Ea descoberta deste processo imanente que me importa aqui Freud concebe-c como “deformante”: no sonho, desconfigura-se 0 nosso mundo vigil mediante “condensagao”, “deslocamento” e “dramatizagao” (ver Freud, 1900 e 1901). Para o compreendermos, racionalizamos sobre essa base (inevitvel) e isso potencia a deformagio. Movido pelos desejos inconscientes, o mundo onirico expressa, como diz Freud, a nossa alucinag’o de cada noite, numa linguagem privada que nio sé nao pretende fazer-se entender fora do. proprio ato de sonhar, como até procura, inconscientemente, guardar ocultos os seus conteiidos, enquanto sintomas do recalcado. Ora, abordando interpretativamente esta fenomenologia freudiana do sonho, que ele exemplifica superabundantemente, encontramo-nos com os seguintes aspectos que gostaria de ressaltar. Comecarei pelo final: a linguagem “privada” que articula, segundo ele, “deformando” os conteiidos, procede, afinal, de forma comum em todos os sonhantes ao “condensar”, “deslacar”, “dramatizar”. Ao mencionar estes fendmenos caracteristicos do trabalho onirico, Freud descreve fenomenologicamente estruturas a. priori configuradoras de um pré-texto, que nao correspondem as estruturas l6gicas do discurso vigil, marcada pela lingnagem verhal, mas que cnmprem naquele a mesma fungin — que chamarei “categorial”, a maneira kantiana - que as categorias aristotélico-kantianas desempenham no discurso dito racional. Se assim fosse, Freud teria descoberto nao tanto um processo de “desfiguragao” (inconscientemente determinado), mas uma dinfmica configuradora mais origindria, decerto, que a Kant descreveu, mas igualmente ficcional A linguagem onirica que Freud interpreta como encriptadora, seria provavelmente a linguagem mais primitiva, que o bebé talvez até jé possua no ventre materno, mas em que, depois, na infincia e restantes etapas de crescimento, se irio entrelagando elementos formais de tipo verbal-légico e materiais de diferentes procedéncias. Essa linguagem primeva esté feita de sobreposicdes ¢ associagées que expressam imageticamente os nexos que, depois, se traduzirio gramaticalmente no idioma em que o bebé cresce e que aprender rapidamente, 19 A hipétese hermenéutica que acabo de desenhar com um minimo de meios necessitaria, naturalmente, de contraste com os fatos e hipsteses cientificos, quer por via das neurociéncias, quer da pediatria e pedopsiquiatria, o que nao é possivel fazer aqui. Mas foi no contexto clinico que Freud realizou a descoberta desse proceso, justamente quando falha 0 acesso do individuo a si mesmo e sé mediante a relagao € possivel recuperar algo do processo. O segundo exemplo que gostaria de expor &, decerto, mais camplexa ¢ en von ter de enuncié-lo de maneira ainda mais suméria que o anterior. Trata-se do conceito introduzido por Melanie Klein para compreender a relagio da crianga com a mie, quando, em uma fase de agressividade, desenvolve um mecanismo esquizoide, primitive e inconsciente, a que chama “identificagao projetiva”. Ao contrério de Freud, Klein usa 0 conceito de identificagao nao no sentido de apropriagao do objeto, mas de projegio no objeto de caracteristicas proprias, que rejeita como “mas” ou odiosas e que, assim, passa a ver como se nao fossem propriamente suas, embora mantendo-as sob o seu dominio, 0 que Ihe permite ir construindo a sua identidade, mediante 0 colocar no objeto-mae o que rejeita de si”, O “mecanismo” pode reaparecer em situagdes regressivas esquizo- paranoides no adulto. A este conceito, Bion acrescentou um matiz notavel, ao descobrir neste procedimento uma forma de comunicagdo que transcendea mera relagao agressiva e pode permitir 4 crianga elaborar positivamente, com a ajuda da mae, a sua propria experiéncia e transformar o material bruto da relagio em matéria onirica e consciente (Bion, 1962). A esta funcdo, que pressupée a identificacao projetiva, mas encaminhada para o desenvolvimento positive, chamou Bion a “fungio alfa”. Se extrairmos este instrumento conceitual da relacdo primitiva e prototipica da crianga com a mae ou mesmo das situagdes patologicas, despindo-o do que caracteriza 0 seu contexto de uso estrito, encontramo-nos nao tanto com um “mecanismo” (termo que evoca automatismos técnicos) como com uma estrutura relacional que revela, em outro 7 Klein (1987, p. 8): "Much of the hatred against parts of the self is now directed towards the mother. This leads toa particular form of identification which establishes the prototype of an aggressive object-relation. I suggest for these processes the term ‘projective identification”. 20 contexto, o que Kant estabelecera como construcio do objeto, na qual se produz, simultaneamente, a “identificagio” do sujeito (da subsungio), cujos tragos identitérios reais aparecem eles préprios ficcionalmente em um objeto. Curiosamente, pois, Klein descobre, num quadro especifico de anilise, um morfema, que a critica kantiana do conhecimento tinha desenhado como procedimento transcendental, e que, hoje, podemos considerar uma estrutura_hermenéutica constativel_ em muitos comportamentos tanto normais como patolégicos. E certo que a projegio kantiana é formal, é projegao da forma de objeto, enquanto a Kleiniana é material, é expulsio de contetidos representacionais. No entanto, em ambos os casos aquilo de que se trata é da constituigdo de um espago em que tém lugar representagdes do que, a0 mesmo tempo que se “me” ope, me pertence como tal oposto. Objeto e sujeito aparecem na sua relagao constituinte e estruturante. Também é certo que Kant nio tinha em mente um proceso que se instaura numa determinada fase de desenvolvimento humano, mas uma fungio universal e necessaria de todo 0 conhecit jento humano. Hoje nao podemos, contudo, prescindir da consideragio do préprio crescimento humano e das suas etapas, que, como Piaget mostrou cabalmente, ndo contradiz a validade da concep¢io kantiana, antes permitindo compreender como chega a instaurar-se. A nogio de “objeto potencial” de Winnicott contribui igualmente & compreensio do que esté aqui em jogo. Do ponto de vista estritamente psicanalitico, oferece uma compreensio, que ¢ diferente das anteriores, do processo de amadurecimento, isto & do desabrochar da relagio do ser humano com a realidade exterior (habitualmente designada como “objetiva”) e interior. Mas, em um enfoque filoséfico, pode ser considerada uma forma de entender a prépria construgao do lugar do objeto, capaz de, em modulagoes crescentes, instituir-se como uma esfera universal de encontro com o real, em que a vida humana possa desenvolver-se relacionalmente, Esse lugar nao 6, nesta perspectiva, imediatamente “exterior”, nfo se situa fora do que o infante esta a aprender ser “seu”, isto é experimentado de forma imediata como estando sob 0 seu dominio. Antes, como diz Winnicott, “de forma universal”, surgem “fendmenos 21 transi nais™, pensamentos e fantasias. que investem “algum objeto mole” (entre a crianca e a mée-ambiente) de um sentido intermédio, capaz de atenuar a angiistia do exterior indspito, inquietante ao proporcionar uma esfera objetual “de transi¢ao”, em que se adivinha a inseguranga ante o mundo externo e a necessidade de confiar numa esfera ainda fusional, ainda prediferenciada do que, em filosofia, chamariamos um sujeito- objeto ainda indistintos. Esta fase intermédia, que com o tempo chegard a ser 0 mundo da cultura, longe de desmentir a fungéo objetivante, parece-me chamar a atengio, justamente, para o nascer da projecdo construtiva do objeto, mediante a introdugao nele daquilo que o torna confidvel. £ nesse espago confidvel que se constitui o mundo da vida, Esta é, pois, uma terceira abordagem, surgida da experiéncia clinica, que alerta para a primordial estrutura relacional que constitui a maneira de ser (de chegar a ser) humana e que institui, isto é, da lugar ao “objeto” como tal. 5. Concluo Tracei uma aproximagin canceitual entre o que Kant oferecen a filosafia e algumas contribuigées importantes da clinica psicanalitica, na evocagao do que chamei “instrumentos conceituais transversais”. Considero que no trabalho filos6fico, habituado a mover-se na teoria, mas sem renunciar & sua origindria vocagio pritica, as descobertas realizadas pela pratica clinica e muito especialmente psicoterapéutica sio enormemente enriquecedoras e desafiantes, pelo que revelam dos processos mentais ¢ comportamentais que caracterizam © nosso viver e conviver cotidiano. Nem toda a filosofia tem que se ocupar destes temas. A filosofia fenomenoldgica, centrada nas “vivéncias intencionais”, & Winnicott (1971/2016, pp. 40-41 tradugdo nossa): “Para mim, 0 significado do jogo adquiriu uma nova coloracio a partir do momento em que segui o tema dos fendmenos transicionais e procureio seu rasto em todas os sutisdesenvolvimentos, desde a primeira utilizagao do objeto ou técnica transicionais atéas tims etapas da capacidade de um ser humano para a experiéncia cultural. [...]. © que eu chamo fendmenos. transicionais sio universais[...].O espaco potencial entre o bebé ea mae varia, em grande medida, segundo as experiéncias vitais daquel potencial (a) com o mundo interior (que se relaciona com a associagao psicossomatica) ¢(b) com arealidade exterior (que tem as suas propriasrealidades, que se pode estudar de forma objetiva e, por muito que parega variar segundo o estado do individuo que a observa, mantém-se, na verdade, constante.” em relagdo com esta ou com a figura materna e eu contrasto este espago 2 maneira husserliana, ou no “ser-no-mundo-uns-com-os-cutros”, 4 maneira heideggeriana, nao pode, penso, prescindir de os ter em considerago como um elemento fundamental, que oferece & teoria 0 campo da necessiria experiéncia sem a qual se pensaria em vazio. Nao s6 as grandes linhas de investigacao cientifica, mas também as priticas sao suscetiveis de elucidar, de sugerir e de reafirmar algumas hipoteses, a que 0 pensamento filosdfico acedeu por via da mera reflexao. O rigor filos6fico nao se comprova pelos procedimentos das ciéncias exatas, mas requer o contraste das descobertas cientificas e das préticas investigativas que se ligam aos casos singulares, com base nos quais cresce o saber acerca das formas de vida e da realizagio da existéncia, na sua precariedade, seja malograda ou em plenitude. A pritica clinica, quer diretamente pelo seu exercicio, quer indiretamente pela via da narrativa de casos e pela sua interpretacao, como antes as experiéncias transmitidas pela literatura, independentemente do estilo e linguagem literaria de cada escritor, sio, do meu ponto de vista, uma das bases mais importantes para a pesquisa fenomenolégica do ser maneira humana. Fique, portanto, a presente reflexio a titulo de uma breve introdugio, sem diivida merecedora de uma anilise mais detalhada, a uma das vias de investigacao filosdfica que constituem, no meu entender, um desafio incontornavel para a ontologia, nos nossos tempos. Referéncias Bion, W. (1962). A Theory of Thinking, International Journal of Psycho-Analysis, 43. Capeilléres, Fabien. (2004). Kant Philosophe newtonien. Figures d lIdéal de scientificité en Métaphysique. Paris: Cerf. Dilthey, W. (1890). Beitriige cur Lisung der Frage vom Ursprung unseres Glaubens na die Realitat der Aussenwelt und seinem Recht (Sitzungsbericht der kénigliche preu®ige Akademie der Wissenschten zu Berlin). In F. Volpi, (2005). Enciclopedia de obras filosdficas (Vol. 1). Barcelona: Herder. Foucault, M. (1984). Histoire de la Sexualité (vol. Il: Le souci de soi). Paris: Gallimard. Foucault, M. (2001). L’Herméneutique du sujet, Paris: Gallimard/Seuil. 23 Freud, S, (1900). ‘The Interpretation of Dreams. In §. 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