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Temas IMESC. Soe. Di. Sade. S40 Paulo, 212): 151-158, 198 O normal e o patolégico Paula MONTERO* RESUMO: Este artigo procurou avaliar os pressupostos que esto na base do debate sobre o normale 0 patolégico nas ciéncias humanas. Preocupou-nos fundamentaimente 0 problema da loucura @ 2 sua apreensto particular polas mais diversas sociedades. A defini¢éo da loucura e de seu complemento an- tegonista — @ normalidade — & sem dtivida uma luta essencialmente politica. Por um lado, ela orienta uma certa prética terapéutica em detrimento de autras poss/veis: por outro lado, estabelece 0 leque de valores a serem legitimamente aceitos pela sociedade. Antropélogos, cientistas polfticos, filésofos € psiquiatras se debrucam sobre a questéo, ora para relativizar os critérios culturalmente adotados na de- finigg® do patologico, ora para defender a universalidade dos fendmenos mérbidos. No entanto, toda andlise que se quer proveitose deve abandonar a disputa pelos critérios e deter-se na determinac&o dos agentes que detém o poder de detini¢o do patolégico, bem como na gama de interesses que eles re- presentam. Somente assim seré possivel compreender 0 significado da loucura numa sociedade como a nossa, que erige @ razio, a técnica e @ produtividade como paradigma de normalidade. UNITERMOS: normalidade, patolégico, medicalizacio, loucura/doen¢a mental, normas, empirismo universalista, relativismo cultural A questo do normal e do patolagico é um leitmotiv constante no ambito das preo- cupacées das ciéncias sociais. Pela natureza das implicacdes que o tema levanta, esse pro- blema se tornou o ponto de encontro da reflexdo de varias ciéncias. Preocupa uma socio- logia que pretenda evitar as facilidades das evidencias e das certezas pré-fabricadas do em- pirismo ing&nuo; interessa uma filosofia que se debruce sobre o problema das técnicas da restauragfo do normal e que retome a reflexao sobre a natureza das relagdes entre o nor- mal @ as normas sociais; interessa uma antropologia évida de reconhecer a normalidade no que nossa cultura ocidental define como patoldgico; interessa, finalmente, uma psi- guiatria preocupada em repensar os pressupostos metadolégicos e as implicacées sociais de sua pratica. A reflexo sobre 0 que € 0 normal ou sobre os critérios que o definem nos coloca no centro de um debate que opbe, grosso modo, socidlogos e psiquiatras. Repensar o esta- tuto da loucura e das instituicdes criadas para abrigé-la nos permite romper com a visio apaziguadora da existéncia de um patolégico dado @ priori, objetivo, independente das, relacbes sociais que 0 engendram. A abordagem sociolégica tenta, pois, arrancar a loucu- rada ordem natural do mundo dentro do qual a concebe uma certa psiquiatria, e repen- séla enquanto uma reconstrugao social. O “ser louco” transcende o ambito da observa. * Antropbloga © Pesquisadora. Departamento de Ciéncias Sociais, FFLCH. Universidade de Sao Paulo. 151 MONTERO, P.O normal 60 patciogico. Temas IMESC Sor. Ox. Swice Sto Paulo, 22) 151-158, 1986. go puramente médica; as ciéncias sociais cabe perceber de que maneira a loucura concer- ne a sociedade como um todo, nela se engendrando e por ela ganhando sentido. A partir desta perspectiva, inimeros trabalhos foram realizados, no sentido de elu- cidar as correlagSes existentes entre, por exemplo, a situacdo de classe, etnia, grupo reli- gioso e as diferentes doencas mentais. Multiplicam-se as monografias que tentam por em evidéncia a importancia do status social na etiologia das doengas. Na Franca temos, por exemplo, as anélises de H. Baruk e J. Guilhot, que pretendem mostrar o efeito da buro- cratizag4o e das praticas administrativas sobre a satide mental e a presenga de psicoaler- gias no meio dos grupos administrativos — BARUK e GUILHOT, (2); 0 trabalho de |. Berger e R. Benjamin, que mostra a influéncia da desvalorizacao da profisséo de pro- fessor primario na origem das frustragdes e das perturbagées psiquidtricas dessa catego- ria profissional — BERGER e BENJAMIN, (6); temos, finalmente, a “sociologia da loucu- ra’, de R. Bastide, que se lanca na compreeris4o dos laos de complementaridade que se estabelecem entre os dois papéis sociais — 0 normal e 0 patolégico —, tentando entrever, nesse didlogo cambiante entre razao e loucura, os critérios que presidem a delimitacdo das fronteiras entre uma e outra. BASTIDE, (3). Dizer que @ loucura nao é um dado da natureza é colocar o problema do ponto de vista da Historia. Toda sociedade, nos diferentes momentos de sua organizagao, pensa a loucura e define seus loucos; esta defini¢&o faz parte do sistema de concepgdes de mundo dominantes em cada época e responde, de certo modo, &s necessidades politico-sociais que Ihe so especificas. Robert Castel, em seu trabalho sobre o apogeu do Alienismo no século XIX, mostra muito bem como a medicalizagao do louco, isto é, a transformagao da loucura em objeto de uma pratica médica, vem responder a necessidades jur(dico-pol ticas engendradas no bojo da Revoluggo Francesa, Cabe aqui retomarmos rapidamente sua analise. No come¢o do século XIX, 0 problema especifico da loucura passa a inquietar os po- deres publicos, apesar do nimero relativamente pequeno de loucos, quando comparado 2 massa crescente de indigentes e vagabundos. Como explicar este stibito interesse pelo louco e a conseqiiente necessidade que se experimentou em distingui-lo da massa amorfa dos marginalizados de toda sorte? Na verdade, a loucura passa a colocar para a sociedade burguesa pos-revolucionaria um problema fundamental. Se 6 somente a partir da Revolu- go Francesa que a figura do louco se torna um problema institucional e jur{dico, ¢ por- que 0 que est em jogo para a Franca dos fins do século XVIII é um novo reequilfbrio ou rearranjo dos aparelhos estatais de poder. Antes da Revolugao Francesa, o aparelho judi- ci6rio e a policia real eram as duas grandes instancias que se ocupavam da questo da lou- cura. O louco nao colocava, portanto, problemas de. ordem jurfdiea; sua priséo ndo con- tradizia a ordem legal, posto que estava fundamentada no poder real, de quem emanava toda justica. Com a revolugao e a crftica ao absolutismo, que Ihe era inerente, a propria base de legitimidade do sistema de internamento se rompe: 0 poder real, fundamento das praticas de julgamento do louco, se esfacela; a justica revolucionéria, reconstituida em torno da nogao de responsabilidade, no é capaz de encarregar-se da tarefa de tutelar 2 loucura; 0 louco, enquanto ser irresponsavel, nZio pode ser por ela sancionado. A medicalizacao da loucura visa, portanto, atribuir um estatuto definido a uma faixa 152 VONTERO, P. @ normale o patoldaico. Temas IMESC. Soo. Dic Sade, Sto Peulo, (2 151-158, 1906 da populago que no pode mais ficar sob o encargo do poder judiciario, mas que deve ainda, de algum modo, ser controlada. Esta solugao, fazer do louco um objeto de inter- vengao médica, torna possivel resolver a contradi¢o em que se achava merguihada a so- ciedade burguesa do século XIX: por um lado, era preciso isolar 0 louco, posto que ele, de todo modo, representava uma ameaca a ordem estabelecida; por outro lado, ndo se po- dia usurpar seu direito a liberdade individual, pois assim se colocaria em xeque uma con- quista fundamental da revolugo. A medicalizago isola 0 louco, retira-o do convivio so- cial, sem confessar que 0 est privando de sua liberdade. A ideologia psiquiatrica, 20 pos tular 0 internamento como regra numero um da terapia, faz coincidir “isolamento”’ e "bem-estar” do doente. Assim, o médico, imbufdo de sua autoridade de especialista, se torna 0 agente desinteressado e competente, que tem o poder de privar legitimamente o louco de sua liberdade individual. Este passa a ser objeto da intervengo de um poder mé- dico que se distancia do reino da lei para mergulhar no ambito da norma, CASTEL, (a). Vemos, portanto, que a loucura enquanto objeto de um saber psi rico é muito tardia na historia das instituig6es asilares. A sociedade medieval a concebe fendmeno de or- dem moral, 0 século XVIII a transforma em fendmeno animal —os loucos eram enjaulados € os curiosos Ihes langavam alimentos; somente no século XIX vamos ver a loucura tornar-se objeto de um saber médico. Neste movimento historico das concepsées sociais da loucu- re, as técnicas de intervencao sobre ela também se modificam — passamos de um momen- to em que 0 louco vagabundeava livre pelas cidades para uma época de grande repressio policial, onde se dava o internamento em massa de todo tipo de ociosos e vagabundos. Jano século XIX, 0 internamento indiscriminado torna-se seletivo e espectfico: nasce 0 asilo psiquidtrico, instituicdo responsavel pela educagZo e normalizagZo deste ser livre e imesponsdvel que é 0 louco tornado doente. que vai presidir, portanto, a necessidade de delimitaao do campo da loucura, no século XIX, no so tanto os avangos obtidos por uma observac&o médica e cientIfica, isto é, a elaboragao de um conhecimento novo e cientifico da loucura e de seus limites, mas todo um movimento econdmice-ideolégico que vé no internamento macigo um desper- dicio de forga de trabalho, por um lado, mas que, por outro lado, percebe que a “priséo” seletiva e médica do louco tem a vantagem de retiré-lo legitimamente do convivio social, para eliminar a possibilidade de que sua normalidade seja efetiva e de que ele possa voltar, quando necessario, as atividades produtivas. Assim, no bojo das contradigdes politico- sociais de cada momento historico, a sociedade vai pouco a pouco construindo sua defi nigdo de loucura: nZo é porque a medicina progrediu que se comecou a perceber a diferen- gaentre 0 louco e 0 criminoso; ¢ no confronto de varios interesses que essa distingao se tornou necesséria. FOUCAULT, (10). A loucura medicalizada se torna, em nossa sociedade contemporanea, uma peca im- portante na gesto dos antagonismos sociais. Sua integracao no aparelho de Estado res- ponde a um problema de governo, que é justamente o do controle de uma certa camada da populago que até entio, por no ter status social definido, parecia escapar & compe- téncia controladora dos poderes constituidos — 0 executivo e 0 judiciario. O psiquiatra T. Szaczs chama a atencdo para o papel normalizador das instituicdes psiquidtricas, ao me- 153 MONTERO, P. O normal eo patolégice. Tomas IMESC. Soc. Di. Sade, S40 Paulo, 3(2) 161-158, 1986. dicalizarem os comportamentos que nao se coadunam com as normas socialmente aceitas. Nao existe, observa ele, comportamento algum que um psiquiatra contemporaneo nao Possa, com verossimilhanga, diagnosticar como anormal ou doentio; os objetivos e resul- tados de varios métodos modernos de psicodiagnéstico (como o Rorscharch ou o Teste de Apercepcao Temédtica) sempre indicam a existéncia de uma patologia. SZACZS, (13). Neste sentido, a doenga mental seria simplesmente uma fabricagdo ideolégica de uma pré- tica institucional, interessada em excluir do convivio social certos grupos heréticos ou di- vergentes, A sociedade teme a desordem e a violéncia que o louco encarna; para proteger- se, volta contra ele sua propria violéncia. A concepgao de loucura que sustenta, no caso, as praticas asilares 6 a que identifica o patolégico a idéia da transgressdo: 0 comportamen: to normal é aquele que se conforma as normas sociais e o anormal é o comportamento desviante. Reencontramos aqui o debate que opds, nos anos 40, antropdlogos e psiquiatras. A partir dos trabalhos de BENEDICT (5), que criticavam a universalizacaio indevida das cate- gorias psiquidtricas para culturas ndo-ocidentais, langou-se a idéia, bastante polémica, de que cada sociedade define para si, de maneira absoluta, o que é sua normalidade. Assim, a parandia dos Dobu ou a megalomania dos Kwataiutl seriam comportamentos normais, pos to que eram aprovados enquanto tais pela coletividade nativa. E interessante notar que a autora n&o rompe, no caso, com as categorias psiquiatricas de percep¢do do patolégico, mas apenas as relativiza: anormal é todo comportamento que foge a norma. Cada cultura, organizando-se segundo normas especificas, redefine de modo original as fronteiras entre sanidade e doenca. Mas as préprias definigdes psiquiatricas, “‘megalomania”, “paranoia”, no so nelas mesmas postas em questo; observa-se simplesmente que, numa cultura, a “parandia” é patologica, enquanto noutra ela no o é. A pertinéncia do coneeito “pare noia” como elemento classificador do real néo é, portanto, sequer questionada. Definir a normalidade através das normas socialmente estabelecidas faz deparar, a0 nosso ver, com duas dificuldades fundamentais: a) Se dissermos que a norma é 0 comportamento mais comum de uma populaco, isto 6, aquele comportamento que tem maior porcentagem de presenca, € aceitarmos que a diferenca entre o normal e o patolégico é de natureza meramente quantitati- va; neste caso, pode-se dizer de uma pessoa apenas que ela é mais ou menos parandi- ca, que ela se encontra mais ou menos proxima da média dos comportamentos ob- servados numa cultura, 0 normal e o patolégico sendo reduzidos a variagdes numa mesma escala. Sao evidentes as dificuldades subjacentes a esta colocagao do proble- ma. Tratar 0 patolégico enquanto variagdo quantitativa do normal implica em afir- mar que todos sio doentes em maior ou menor grau ou, 0 que da no mesmo, que ninguém é doente. Paradoxalmente, em sua tentativa de relativizar a psiquiatria, R. Benedict reencontra a opiniao do decano da psiquiatria norte-americana, Karl Men- ninger, para quem “ja n&o se aceita a nogdo de que a pessoa mentalmente doente ¢ uma excegiio. Hoje se admite que quase todas as pessoas tém, em algum momento, certo grau de doenga e muitos tém certo grau de doenca mental na maior parte do tempo”. MENNINGER, (11, 12). b) Ao definirmos o normal pela conformidade com a norma, supomos implicitamente 154 VONTERO. P © noimat 0 patclogico Temas IMESC Soe. OW. Saude, Sto Paulo, 912): 181-158, 1906, que somente 0 tipo médico do conformista é mentalmente sadio. Ao identificarmos comportamento desviante a comportamento patoldgico, tornamos a sade uma nor- ma psiquiatricamente definida e imposta. Mais do que nunca, a psiquiatria se des- venda como instrumento de poder que visa a reproducdo de uma certa ordem social. Cada vez que ela cria um critério novo para a definigo de doenga, multiplica (ou desloca) a abrangéncia das classes de individuos mentalmente doentes. As vicissitu- des do alienista de Itaguaf, personage de Machado de Assis, ASSIS (1), i fina ironia do que ha de normativo nesse processo: 0 cioso doutor Simao Bacamar- te, preocupado em descobrir as causas da loucura, nada mais fazia senéo ampliar, a cada dia, 0 numero de critérios que poderiam defini-la. Em pouco tempo, toda |ta- quai recebia os bons tratos de Simao Bacamarte, confinada atras das grades do asilo Casa Verde. Mas se a loucura se torna norma, o equil fbrio no pode mais ser critério da razao. O nico cidadao desviante que ndo peca por nenhum dos excessos erigidos como critério de loucura ¢ 0 proprio Siméo Bacamarte, moralista exemplar. Assim, numa inversdo que deixa clara a precariedade da norma como critério de satide, Ma- chado de Assis decreta a normalidade da loucura da raz4o. Vemos, portanto, que a questo da norma nos introduz diretamente no mundo dos valores e da ideologia. A norma 6, na verdade, uma definigSo arbitraria — 0 objeto da normalidade nao é nor- mal nele mesmo; ela é conseqiiéncia de uma esco/ha exterior e independente do ob- jeto qualificado como normal. Por outro lado, a norma, ao se instaurar, define vo- lorativamente o que foge dela — tudo o que a referéncia a ela propria a impede de considerar como normal & depreciado. A norma supée, portanto, a idéia de infragao, transgresso, posto que ao normatizar ela define a preferéncia por uma certa ordem, em detrimento de outras possiveis e, o que é mais importante, supée a aversao da or- dem inversa, que passa a ser considerada como desordem. O normativo néo é, por- tanto, indiferente ao que o contraria; ele valoriza, positiva ou negativamente, o real. Assim, definir a sadde pela conformidade com a norma é sempre defini-la como con- formidade com uma certa ordem social considerada desejavel. Podem-se descrever objetivamente comportamentos, observa Canguilhem, mas nado se podem afirmar que eles sdo patolégicos a partir de nenhum critério objetivo. CANGUILHEM, (7). A coneepeio psiquidtrica do normal, subjacente & tentativa critica de R. Benedict, ¢ a que define satide enquanto capacidade de adapta¢ao a0 meio. O conceito de adaptago enquanto critério de normalidade sofreu, entretanto, varias eriticas e restrig6es, vindas do préprio campo da psiquiatria. Em primeiro lugar, a doenca também pode ser considerada uma forma especifica de adaptag%o 2 vida; 0 organismo doente tenta, de modo qualitati- vamente distinto, preservar as fungdes vitais. Em segundo lugar, porque pensar a normali- dade como capacidade de adaptacao pressupde que a adaptacao social é sempre desejavel. Como bem observa Devereux, muitas vezes, dependendo do tipo de sociedade a que per- tence 0 individuo, a propria adaptacdo a ela pode ser um fendmeno patoldgico. O pressu- posto do relativismo cultural, diz ele, ¢ de que, se os individuos podem estar doentes, a sociedade é sempre necessariamente normal. Para Devereux, é possivel pensar, em certos casos, em “‘sociedades doentes”, de que a sociedade nazista seria o paradigma exemplar. Nesses casos, a introje¢o das normas estabelecidas, ao constituirem uma introjecao de "normas morbidas", torna-se a propria fonte de problemas mentais. Desse ponto de vista, 155 MONTERO. P.O normal € 0 patclogico, Temas IMESC. Soe. Dir Satide, S40 Paulo, 342) 151-158 1986. R. Benedict, ao identificar normalidade e satide, estaria confundindo, na verdade, dois fendmenos distintos — a normalidade, que é um fendmeno social e cultural, e a satide, que € um fendmeno biolégico. DEVEREUX, (9). O epilético divinizado de certas cultu- ras nao deixa de ser, por causa disso, biologicamente doente. Ao fazer a critica ao culturalismo, Devereux no consegue evitar, entretanto, as armadilhas que o postulado da existéncia de uma normalidade puramente biolégica, uni versal e independente das variagdes culturais encerra. Delimitar as fronteiras que separam © bioldgico do social é tarefa plena de controvérsias, que no nos cabe aqui retomar. Afir- mar que as sindromes so culturais, porque podem revestir aspectos diferentes, segundo as sociedades, e que o mal primeiro é constante e universal, deixa em aberto a questo de quem € 0 detentor legitimo da definico desse mal originario e quais os critérios que per- mitiriam identificar essa normalidade bioldgica. As tentativas da psiquiatria no consegui ram resolver satisfatoriamente essa questo. Critérios tais como “unidade da personalide de", “percepgdo correta da realidade psicolgica e objetiva”, “‘adequagdo 20 meio’ so todos neles mesmos criticdveis: a “/percepgdo correta da realidade”, além de ser dificilmen- te definivel, coloca o problema de que nem mesmo as pessoas consideradas normais po- dem ter certeza de té-la efetivamente alcancado; quanto & “unidade da personalidade”, ela pode ser encontrada em certos estados morbidos, como, por exemplo, a catatonia, em bora seja uma unidade empobrecida; vimos, finalmente, as razdes que nao fazem da “ade quac%o ao meio” um critério satisfat6rio de definig¢go da normalidade. A discussdo sobre o normal e 0 patolégico, que opde categorias psiquiatricas univer- sais, de um lado, e normas culturais cambiantes, de outro, encerra o debate num circulo vicioso recorrente e empobrecedor. Se tomarmos as colacagées do relativismo cultura sob um outro prisma, veremos que elas ainda podem dar margem a reflexes interessantes. Quando numa rteflexéo antropolégica se chama a atengdo para a variedade das culturas, esta-se colocando, na verdade, a existéncia de fatos psiquicos “‘brutos’’, que poderiam ser agenciados de forma espectfica e original pelas mais diversas sociedades. O que o cultura lismo, no entanto, nao percebe é que as proprias categorias classificadoras da psiquiatria sao socialmente construidas, nao podendo, portanto, constituir uma ‘‘grelha’’ universal de compreenséo dos comportamentos, posto que nJo existe um conjunto de comporta mentos exterior ao sistema de apreenstio que os produz e estrutura. Dizer que 0 que é patoldgico para nossa cultura pode ser normal para outras é pressupor a existéncia de con dutas patoldgicas anteriores 20 pensamento que as classifica. Na verdade, os sistemas in terpretativos do comportamento sao, em qualquer cultura, ao mesmo tempo sistemas explicativos e principios estruturadores das condutas globais; as relagdes de familia, as crencas, a educagao das criangas etc. so determinadas pelo proprio sistema explicativo que as apreende. A verdade da psiquiatria nao esta, portanto, nela mesma ou no doen qualquer construcdo tedrica que pretenda ser explicativa dos fatos psfquicos ndo se baseia em si propria. E preciso ainda perceber como essa explicardo se constr6i socialmente ou, ‘© que da no mesmo, como o discurso explicativo se integra numa relac3o que articula trés termos: o doente que faz a demanda, o médico que a interpreta e o publico portador do consenso. E este ultimo termo — 0 consenso social — que delimita o campo da raz3o e da loucura; 6 ele quem define o doente e sua cura. E isso se torna evidente nos casos em que 156 MONTERO. P © normal eo pattogico, Temas IMESC. Soc, Di, Sade. Sao Pavlo, 312) 181-158, 1986 se dé 0 confronto de culturas distintas: a psiquiatria francesa, por exemplo, muitas vezes chamada para resolver problemas de imigrantes africanos revelou-se inoperante. Isso por- que todo diagnéstico e toda intervengao se referem sempre a um esquema tedrico que se constrdi em func&o de horizontes antropoldgicos especificos: toda classificagdo supde uma certa definigao social de doenga mental, uma certa maneira de articular os sintomas para torné-los intelegfveis, uma certa doutrina da personalidade etc. Esses elementos esca- pam ao Ambito puramente psiquidtrico e se referem ao modo de organizago da cultura. Na verdade, o “'louco”’ € 0 aspecto menos importante do sistema da loucura: 0 consenso social define 0 doente e sua cura; 0 médico aceita a definicao social da doenga e procura refinéla, explicité-la e expandir sua abrangéncia. Nesse sentido, o psiquiatra nao atende o paciente que a sociedade the designa. Atende, na verdade, aqueles que interpretam os “sintomas” como sinais de perturbac3o (policia, clero, famflia etc.), pois nao basta uma alteracao fisiolégica para que exista doenca; é preciso que, por um lado, o doente assuma 05 comportamentos socialmente definidos como ““comportamentos de doente’’ e que, por ‘outro, a sociedade reconhega nessas condutas os sinais da doenca. Retirar a discusséo do normal e patolégico dos limites em que a encerram o empiris- mo universalista e o relativismo cultural nos permite sair do terreno enganoso das falsas questées. O que importa saber ndo é se esta ou aquela conduta ¢ “realmente’’ patolgica ‘ou quais os critérios objetivos que definem a normalidade. Alias, @ propria colocaco do problema nesses termos tem implicagdes ideoldgicas cujo alcance nem sempre é correta- mente percebido. Na verdade, a questo assim colocada obscurece a compreensio do jogo ue preside a construg%o dessas definigées. A reflexo sobre o normal e 0 patoldgico deve, pois, deter-se na analise dos agentes que detém o poder de defini¢o do patologico e na gama de interesses que eles representam. Somente assim sera possivel compreender o ver- dadeiro significado da loucura numa sociedade como a nossa, que erige a razo, a técnica € a produtividade como paradigmas de normalidade. Partem daf as anélises de outros, como R. Bastide, que percebem o fendmeno da loucura como “resposta”, como a tinica “’salda” possivel numa sociedade dominada pela técnica: ilha de resisténcia do afetivo e da poesia, refugio do delirio mitico contra o impé- tio da razo, dentro de um sistema dominante que no sabe mais conviver com a loucura e que, sendo incapaz de observar a libertagao do imaginario, s6 pode exclu/-lo e reprimi-lo. BASTIDE (4). N&o & por acaso que certos socidlogos tentaram compreender 0 movi- mento de maio de 68, na Franca, como uma explosio da “loucura coletiva”, onde o ho- memtrabalho e o homemprodutividade dio lugar a outras de suas dimensées, que foram relegadas e esquecidas — Limagination au pouvoir e 0 jogo, 0 sonho e a festa nas rues . 157 MONTERO, P.O normal @o patologica, Temas IMESC. Soe. Dir Savd0. S40 Paulo, 3[2) 161-186, 1986, MONTERO, P. The normal and the pathological. Temas IMESC, Soc. Dir. Saiide, Séo Paulo, 3(2): 151-158, 1986. ABSTRACT: The article tries to assess the basic assumptions behind the debate over the normal and the pathological carried out by the social sciences, We have been specially concerned with the question of madness and the specific way it is perceived in different societies. The definition of madness and its complementary opposite — normality — is without any doubt an essentially political struggle. On one hand it determines certain therapeutical practices at the expense of others, while on the ather hand it establishes the range of values to be accepted by society as legitimate. Anthropologists, political scientists, philosophers and psychiatrists pore over the question either to relativize the culturally given criteria for defining the pathological or to defend the universality of morbity phenomena. However, in order to be useful, the analysis must abandon the dispute over criteria and concentrate on establishing the agents who hold the power to define what is pathological as well as the range of interests they represent. Only this way will it be possible to understand the meaning of madness ina sociaty such as ours that elects reason, technique and productivity as paradigms of normality. KEY WORDS: normality, pathological, medicalization, madness mental iliness, norms, universalist ‘empiricism, cultural relativism, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS (1) ASSIS, M, O alienista. Sao Paulo: Atica, 1976. (2) BARUK, H. et GUILHOT, J. Essai sur le role de la psychiatrie sociale dans le déve- loppement des sciences administratives: le cas des '’psycallergies administratives”. Ann. méd. psychologique, (120): 235-278. s.d. (3) BASTIDE, R. Sociologies des maladies mentales. Paris: Flammarion, 1975. (4) . Les sciences de la folie. Paris: Mouton, 1972. (5) BENEDICT, R. Padrdes de cultura. Lisboa: Livros do Brasil, 1934. (6) BERGER, |. et BENJAMIN, R. Maladies mentales et professions. Contribution & etude sociologique des troubles mentaux dans le milieu des enseignants in univers des instituteurs. s.1.p.: Minuit, 1964, (7) CANGUILHEM, G. O normal e o patolégico. Rio de Janeiro: Forense, 1978. (8) CASTEL, R. A ordem psiquiatrica: a idade do ouro do alienismo. Rio de Janeir Graal, 1978. (9) DEVEREUX, G, Essais d'ethnopsychiatrie générale, Paris: Gallimard, 1970. (10) FOUCAULT, M. Historie de la folie a I'age Classique. Paris, 1964. (11) MENNINGER, W.C. 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