You are on page 1of 315
Operas na otigem da cultura artistica moderna Se nn Cte Ren eC ra ee ee Cee encom eC cen ACRES aR em Pa estes) oe nn een ee ee cot oes Seo eee rent OR ORCS COOLS COLL PORTE MOR: Com Rent ORO n Oe Ur cur See cee ere er co jd nao podia ser compreendido segundo pardmetros pura- te eee RCC oS Ceo eee ee ec) Peete ee ener oe eee ee Pare ee ee ence Cee cama ae eee ee gem e persuasdo, a anilise erudita ¢ sempre clara do autor de ee ree ee ct comuns em toro do barroco e restitui sua forga e atualidade na hist6ria da arte européia. Ora analisando o panorama artis- Fees een ee ace CRC Rees ROCR are rer Rie Tan On ener onan MCT eae RO MCR Ce rere Cate ar quitetos ¢ gravuristas como Caravaggio, Rafael, Guido Reni, POCO mA Con ee Cece Pen Cee ee Ge eC an e crea) eritico Lorenzo Mammi —, Imagem ¢ persuasao cobre as di- Ree oe eee en cd cL) Se eee ee cee mais complexas, intrigantes e belas dos tiltimos séculos. Do mesmo autor de Arte moderna GIULIO CARLO ARGAN: IMAGEM E PERSUASAO Ensaios sobre o barroco auRiCo SANTANA DAs fica U.F.M.G. - BIBLIOTECA UNIVERSITARIA HU 80970907 NAO DANIFIQUE ESTAETIQUETA on Rte copii ©1985 by Giangiacomo Fein Eltore MiB 1986 Inmagine epersuasone— Saget sul baroceo cope Maret erp saree da Badri, Gi orn Beri Yao Indice remisio ca univ Dania deandré e re wet B84. Prepamgo: BIBLIOTECA UNIVERSITARIA "=a" I/ 02 / 09 Revsto _— sya indo Moa inesas tris rbona > Poet Andrus “70 Federat de ain Np prin Gena yl sei esi in vie Hide mm Todos 0s direitos desta ecto reservados ua Bandera Pauls 702 ch 32 04532-002— sio Paslo— Telefone (1) 3707-3500 Fax ib sa3501 ‘wwoccompanhiaasletras com SUMARIO PReFECIO. essen Cultura artistica do final do século xv1 (© valor eritico da “gravura de tradugio’ As artes figurativas no Renascimento tardio no primeiro barroco e a poesia de Tasso ACret6rica” e a arte barroca .... Ret6rica e arquitetura .. A Europa das capitais. ‘Uma hipotese caravaggesca. (0 “realismo” na poética de Caravaggio Caravaggio e Rafael Guido Reni / A arquitetura barroca na Ilia Aaarquitetura romana do inicio do século xv. Borromini, Francesco Borromini A reforma de San Giovanni in Laterano Borromini e Bernini Bernini e Roma, Santa Maria in Campitelli Pietro da Cortona As "Vite" de Bellor “ Renascimento tardio e barroco em Florencia © barroco na Franga, na Inglaterra e nos Paises Baixos Las meninas. 7 05 primeiros criticos de Rembrandt “Theatrum Novum Pedemontii® Para uma histévia da arquitetura piemontesa Atécnica de Guarini, Filippo Juvarra Bernardo Vitone Benedetto Alfieri Um bosqueje inédito de G. B Tiepolo, teatro plastico de Serpotta Napoles na Buropa das capitis... Indice dos nomes e das obras 441 54 464 472 482 491 495 501 508 515 525 529 533, 545, 587 PREFACIO (Os historiadores da arte de minha geracio viram a questao do barroco nascer precisamente no momento de sua formago, Ble a levaram consigo durante a vida inteia, e ela ainda nao se exgotou! hoje se reapresenta, ma rnuangada, como aspecto particular de um problema mais amplo e de extre~ ‘ma atualidade, De fato foi o barroco que inventou a modernidade como atri- buto primeiro ¢ essencial de qualquer produto de cultura, ¢ € exatamente ‘esse valor que tem sido contestadlo por uma cultura que se define pos- moderna e quet a crise de todo o sistema, alts da iéia mesma de sistema, dla cultura humanistica Por volta de 1930, 0 mal-afamado e quase esquecido barroco voltou a se tornar um problema. Roberto Longhi havia apenas comecado 0 seu pacien- te e genial trabalho filol6gico de reconstruczo do tecido hist6rico da pint- ra do século xvi quando surgiu a Storia delfeta barocca in lalia (1929), cle Croce, que trinsformava em cura condenagao 0 difuso descrédito que pai- rava, desde 0 neoclassicismo, sobre a arte do século xvi. O interesse desper- tado pelos artistas ¢ pelas obras qque Longhi trazia a luz nos compensava, porém, da sumiria excomunhao feita por Croce, que ademais revelava um pobre conhecimento ca arte figurativa; no entanto, mesmo no seu quadio fosco havia um lampejo de luz. A arte e a literatura do século xvn nao eram poesia, mas artificio ¢ calculada ret6rica; tinham um fim pratico, politico € religioso — ou melhor, como a religiio desaguava na politica, o fim era sim- plesmente politico. Com 0 conflito religioso aberto e cada vez mais entrela- ado nas atividades politicas, o poder nao podia abrir mao do consenso, € para obté-o era preciso recorrer a persuasao, 4 propaganda, A anise long- hriana evitava as perspectivas unitarias, mas a rede cerrada de relagoes que ele recosturava entre a Ilia, a Franga, a Espanha ¢ os Paises Baixos corres Pondia aquela que, entre guetras ¢ aliangas, estava dando forma a Europa politica moderna, Fé nao se tratava de irradiagao e difustio do gosto, mas de relacdes complexas, dialéticas ¢ freqlientemente polémicas. Embora a arte ‘nunca tenba defendido tanto como naquele periodo a sua propria autono- ‘mia, a axialidade politica do sistema a tornava direta ou indietamente sen- sivel as situagdes: mais do que qualquer compromisso ocasional com uma u outa corte europea, esse Fato constituia o aspecto intrinsecamente poli- tico e internacionalista da arte do século xvi. Eisso era justamente 0 que nos fascinava, jovens estudiosos que um regime mais provinciano do que nacio- nalistaisolava do debate cultural europeu. Mas esse nao era o tinico motivo. Na arte do século xv11 nés viamnos um confronto — sem que todavia se che- sgusse a uma contraposicao frontal — entre um forte principio de autoridade eum nascente espitito de liberdade: Reni ¢ Poussin nos pareciam mais obe. dientes; Caravaggio ¢ Rembrandt, mais rebeldes do que de fato eran. EF havia Bernini, para quem a autoricade era tao universal que permitia e encorajava todas as liberdades. A cultura figurativa da época tinha portanto dois los: 0 classicismo idealizante € 0 realismo testemunhal, que se traduvriam numa escolha de direc3o no interior da disciplina artistica e numa garan- ia de profissionalisma, De resto, Arist6teles e Cicero, fontes primyatias da cul- (ura barroca, ensinavam que ¢ possivel persuadir por varios meios; a serena argumentacao, o silogismo ¢ o entimema; a exaltacla peroracao; e a fria exposicio das provas, Previa-se até a persuasio mediante uma silenciosa arte ds gestos, ¢ certamente seria interessante estudar nos textos @ geste: lidade nada casual cla pintura barroca, Persuadir significa solicitar e acreditar em algo que nao esta presente, mas que, apesar disso, se coloca no horizon- te do possivel. Por seu aspecto intrinsecamente politico, a arte do século xvi € toda feita de imaginacio, E mais: ela demonstrou as potencialidades ¢ os processos do pensamento imaginativo no mesmo periodo em que Descartes descrevia as potencialidades os provessos do pensamento racional com 0 ‘mesmo propésito de influir nos comportamentos humanos. © tealismo foi visto com certa suspeita pela critica oficial, mas ninguém pode negar que ele estivesse incluido —talvez como grau zero — na poética-politica do barro- Co: sem divide Caravaggio nao foi mais espontaneo nem menos elaborado ‘que Annibale Carracei © motivo do extraotdinario fascinio do barzoco nao foi certamente a irracionalidade, transformada em categoria estética supra-histérica por DOrs em 1943; s artistas bartocos sempre souberam medi a distancia entre 0 Pensamento imaginativo ¢ 0 racional, Compreencleram que a arte era cultu- «nada mais que culcura, e que 0 depreciaclo culturalismo era para eles um estrito dever profissional & arte era filha da arte, nao da natureza nem da autoridacle da hist6ria. Assim como a razao légica era o fundamento da cién- ia imaginacao era o dominio mental da arte. A propria tet6rica aristotel ca, que foi o meu fio de Ariadne no labirinto do bartoco, nao era outa coisa seniio uma primeira teoria da imaginac3o; e nilo me causava surpresa que, ‘20 desviar seu curso do religioso para o politic, elt se colorisse de infinitos s existenciais ron Gada vez mais eu estava comvenciclo da intrinseca“poltckdade” da arte barroca, sobretudo quiindo refletia sobre 0 papel que ela desempenhou na construgao da cidade: nao apenas na sua estivel figura arquitetOnica, mas zo efémero das festas, das cerimOnias, dos espetaiculos. E a cidade no era ‘mais 0 municipio fechado no circulo das muralhas, mas a capital, o centro do Estado, a imagem da sua autoridade carismatica. Mais que modelo, o ponte de referencia foi Roma, tal como a projetaram Bernini ¢ Borromini, capital ‘nao apenas de um Estadio, mas também de uma ectimena, Ou seja,sea idade Média havia sido a Europa das catedrais, o barroco foi a Europa das capitais, ‘Além disso, ui atraido pela nova organizacao da producao antstica, que cera um sinal da profundidacle da mudanga; ¢ nao s6 pelo carder oficial d attibuigdes da corte, mas pela especializagao profissional dos generos arti ticos, pela nova pedagogia das academias, pelo nascimento de um merc do, pela vastissima divulgaco da arte por meio da gravura. Entre os muitos escritos recolhidos neste volume, aprecio particularmente o breve ensaio em homenagem ao querido amigo Rudolf Wittkower, grande exegeta da arte barroca: dedicado a entao e ainda hoje desprezaca gravura cle reprodu esse ensaio deveria ter tido um desenvolvimento cemonstrativo que até hoje nao pude empreender A gravura de reproducao desempenhou um papel extremamente importante: preservou a arte figurativa da condicao de in rioridade e isolamento que Ihe teria sido imposta pela difusao universal do livro impresso; separou o valor ca imagem do valor do objeto; demonstrou a reprochutibilicade da obra de arte; ensinou que nao basta admiré-la, mas que ela deve ser lida como um livro; tomou-se 0 texto de base ca educa- ho artistica E realmente estranho que, apesar de a historia da critica de arte ter sido elevada a0 grau de disciplina aut6noma com as suas muitas € abundantes citedras universitérias, nenhum ce seus tantos titulares tenha pensaclo que © primeiro capitulo de sua dlisciplina fora escrito por aqueles modestos gra valores, que nao criavam nada mas entendiam tudo — 0 que as vezes é melhor. Nao eram simples copistas: seu trabalho era semelhante ao do ms co que transcreve para canto e piano uma complexa partitura de Orquestra Foreciam o equivalente 20 original numa outra dimensao, com outro mate- Tia, rechuziam os acordes cromaticos a relagdes de preto ¢ branco. Os c6di- 205 grificos de que se serviam eram interpretativos e explicativos: recondu- zindo © quadro a um estado prOximo xo do desenho, sublinhavam a forca de invencio que havia nele, Era, em suma, uma eritca de arte feita com os .€ no com os recursos da palavra, ¢ justamente isso deveria interessar nos dias de hoje, quando se consicera a linguagem como um meio interdisciplinar, importante quando se buscava a unificagio, agora suspeito quando se visa a especificidade das disciplinas isoladas. Como critica encl6- sgena, a gravura influit na evolucio da arte: do século xvii ao XIX, a pintura ‘européia foi uma "peinture des valeurs’, que derivava 0 seu tonalismo da experiéneia da reproducao monocromatica e, por sua vez, almejava ser reproduzivel. Foi assim que, desde que se comegou a fazer arte sobre a arte, aquiela critica endégena ajucdou a entender o que, na cultura do tluminismo, devia ser a critica intetna e estrutural de todo o saber ¢ naturalmente também a propria arte, Foi precisamente um grande pintor do lluminismo inglés, Reynolds, que teve pela primeira vez a coragem de declarar que a arte nde desce do ¢éu como uma iluminacao divina, mas €o produto de uma série de confrontos ¢ de opgdes, portanto 6 resultado de um processo exitico, Isso quer dizer que a arte bartoca, 140 freqiientemente acusad de ser conformista ¢ hipocritamente devota, foi uma arte laica? Foi laica mesmo ten- do servido & Igreja: jé naquela época era possivel que o zelo devoto encora- jasse a religiao a converter-se em politi Giulio Carlo Argan Outubro de 1986 ey CULTURA ARTISTICA DO FINAL DO SECULO XVI © conceito de barroco, como qualificagao genericamente aplicada a todos os fatos da cultura seiscentista, constitu’ ainda um limite para uma ava- liagdo livre de preconceitos, pois alinha-os 2 forca num plano anti-histérico de uma decadéncia da qual se excetuam, quase por reacao, os valores inquestionavelmente positivos: exatamente acqueles para os quais a conside- racao do historiador deveria dirigi-se em primeiro lugar para uma definiga0 conereta da arte e da cultura artistica do século xvn. A propria tentativa de ‘Wolfflin de tracar a profunda articulagao hist6rica entre Renascimento e bar- roco terminou por remeter fase extrema da arte de Michelangelo as razdes hist6ricas do movimento sucessivo,iluminando certamente aspectos essen- ‘dials da continuidade hist6rica dos dois periods, mas deixando na sombra justo aquilo que, tradicionalmente, é considerado o problema central do século xv: 0 contraste entre carraccismo ¢ caravaggismo. Mas esse mesmo contraste, que a recente revalorizagto de Caravaggio acentuou em prejuizo dos Carracci, obviamente nao esgota, na sua ficticia oposicao dialética de realismo ¢ intelectualismo, as razbes historicas das duas correntes. De resto, em Bellori, o mais autorizado critico do século xv, a idéia de uma reacao seiscentista& tradigao do final do século xv1 vale tan- ‘0 para o realismo intransigente de Caravaggio quanto para o intelectualismo historico dos Carracci. E somente no interior da face comum antimaneitrista que as posigdes se dlferenciam e se qualificam em sua particular funcao his- Arica Nao se pode entender o processo da cultura artistica do século xvi na sua complexidade se nao se levar em conta a determinacao paralela de unta critica de arte, nao mais comentaclora ou narrativa ou teorética, mas aut6no- ‘ma e interpretativa: uma critica que tem seus atos iniciais na propria obra pic~ {rica dos Carraeci e a sua mais clara expresso nas vidas de Beliori, Como a VD pintura dos Carracci é a experiéncia hist6rica fundamental da critica de Bel- lori e além disso se identifica, as olhos de Bellori, com a perfeicio ou a idéia mesma dla arte, 0 juizo sobte as obras carraccescas se reduz a consiatagao da aderéncia do fato poética, da pratica a teoria, explicando-se portanto numa cexata ¢ fil tanscricao literdria das proprias obras. Ora, esse processo re duz pontualmente aquele por meio do qual 05 Carracei passavarn de uma ideia da natureza & invencao artistica, ou postica, através de uma descrici0 «que explora a “verossimilhanga’ da linguagem formal da tradig2o quinhen- lista. Bssa coincidéncia absoluta de critica e de pintura documenta certamen- tea formagao daquela “consciéncia visual” que Schlosser indica como carsi- ter essencial da critica de Bellori. Mas, pressupondo a condiaio de uma arte intelectualista que jd se tenha abstraido dos coneretos fins expressivos, iss0 indiretamente ajudaria a confirmar a tese de Ragghianti, ou seja, que a ativi- dade astistica dos Carracci € mais critica do que artistica. objetivo tltimo dos Camracei € um esclarecimento da ordem ctitica € se © meio para conseguir esse fim é um exercicio que parte da pintura, nao pode- ‘mos «@ priort isolar essa crise essencial da andlise da cultura figurativa do século xv para relegi-la a um problema externo e colateral de historia da estética, ibe-se que na Itélia o pensamento sobre a arte nasce diretamente do fazer artistico como consciéncia mesma do ato, e nasce no momento em que 4 arte italiana, adquirindo uma consciéncia mais precisa dos préprios ante- cedentes histGricos, se destaca da tradi¢a0 comum a arte européia: isto €, no info do Renascimento, que se distingue da Idade Média exatamente por esse acréscimo de um ato de consciéncia, reflexivo, a0 ato expressive: E-Ver- dade que, sem 0 corespondente ato de consciéncia, 0 ato expressive nto seria ato; Mas Men intencdo, ireRistravel na historia: porém o fato novo é lie daquela simuttaneidade de “ato” ¢ “atitude” os artistas tenham pela pri- meira vez alcancado uma consciéncia tao clara que Ihes permitiu constituir © proprio agit artistico em fim tedrico do esclarecimento da natureza mesma a arte: Esses artistas de fato escrevem tratados, reconhecem a prépria meta riuma perfeicdo que pode ser identificada em Vitriivio ou na arte clissica, como para Alberti, ou numa abstracio geométrica, como para Piero della Francesca, mas isso dé alguiml modo obscurece a certeza de ma universali= dade imanente, ¢ portanto humana e racionalmente atingjvel, da arte. Na con- Cepcio realmente humanista da-arte, todo ato exige uma justificacao na his. Gra, isto €, na cultura do artista; pois aquele ato inicial de consciéncia e a propria rentincia a um fim transcendente implicam um interesse efetivo do artista pela hist6ria humana, por aquela tradicao que, nao mais dogmética ‘nem normativa, é interior ao espirito ¢, com ele, permanentemente ativa, se desenvolve, cresce e se empenha na aco, Disso depende o cariter histéri- s,s realmente © 1D co, 86 aparentemente preceptista, dos tratados; entretanto, sem que se pos- St pensar a associagio de urn finn teGrico a um fim artistico senio fa rela {io condicionante da norma interior com a pritxis da expressio, devémos feconhecer 0 carater essencialmente ético daquela coexist@ncia de ate-e pensamento sobre a arte, de teoria e pritica, de norma € aco. "A fase extrema e culminante dessa identidade entre arte ¢ acho moral e a0 mesmo tempo, o ponto dle ruptura da sistematicidade da relacio € arte de Michelangelo: artista que deliberadamente réconduz a propria cultura as {tes mais arcaicas e no entanto passa, como ‘pal incorrompido ce corrom- pidos filhos’, por iniciador do barroco, Em Michelangelo, de fato, a medida * de consciéncia e de Sentimento € levada a um limite insuportavel, & impos- sibilidade de conter 0 sentimento na forma idealmente aceita ¢ escolhica, ‘superacio do “finito” formal, & Ansia de uma forma que continuamente se ‘ranscende; assim, 0 problema ético se recoloca pela primeira vez apés a dade Média no plano da transcendéncia, resolvendo-se ora em um platonis- mo abstrato, ora em um cristianismo exaltado, mas afastando-se de uma for- ‘ma racionalmente justificavel — que era, na declaracaio explicta de Miche- la ecisamente a forma plastica dango menoe nico de una iminente ropa da ident cisica 60 puro calturalisiio de Rafiel, que de cada fato formal determina sobretu= doi historicidade, 0 valor de conhecimento efetuado, concluido, preestabe- lee; estranho, em certo sentido, 20 artista, que mais 0 descobre ou revela dsque oa, ‘A dissociago jé € total no maneirismo florentino, nascido da extrema cexasperacaio formal de Michelangelo ¢ voltado & elaboracao dos dados for- mas aceitos na solidao desértica da alma insatsfeita, numa nostalgia moral desesperada, reformista, impossivel; no anedotismo das vidas de Vasari, igualmente incapaz de teoria ¢ de hist6ria concreta; na regra cle Vignola, ‘mera norma gramatical destacada da arte, alheia até aos concretos interesses formais do autor; no moralismo programitico de Borghini ¢ dle Armenini “Todos sinais de uma tensao renunciada, de uma aplicacao inquieta sobre a dialética, das classificagées, de uma perda da seguranca ética que havia st tentado no plano da realidade a fantasia dos homens do século xv, de uma incipiente dnsia moral que busca apoio na moralidade constituida pelo cato- smo, mas que nao consegue mais se interiorizar, renovar o compromisso moral na acao. Dissolvendo-se a unidade ética de arte ¢ pensamento sobre @ arte, para- lelamente a um moralismo catdlico, ganka determinacao um estetismo do ‘monumental’ O ideal de monumentalicade, bem mais reconhecivel no equilibrio rafielesco e nas simetrias de Bramante que na hipérbole tigica dle Michelangelo, resolve de fato na fixidez de uma poética aquela relacto de 13 atureza e expresstio que realizava de modlos sempre diversos ¢ originais a moralidade dos artistas do século x¥.Nas leis do monumental, cada fato pli tico contém uma relacao dirigida & natureza como espaco. A sintese de natu: reza e idéia, de pratica € teoria esta implicitamente atualizada na cultura do artista, e nao pode ulteriormente se atualizar na praxis da expresso. Se cada dado formal, na sua qualidade gndstica de beleza, contém resolvida, in nce, & propria referéncia a uma realidade extema e nao mais problematica,o pro- blema se desloca da invengio da forma para a invengao da histéria, relag geométrica ou dramatica ou narrativa entre as partes. O problema no muda- va substancialmente passando, através dla cerrada rede de relagdes ¢ de influéncias reciprocas, de Roma a Veneza: onde se resolvera finalmente na proporcionalidacle do tom— como em Roma, na proporcionalidade das for- mas plisticas — 0 problema da monumentalidade, a representacao total do espaco, ‘Mas o fato de que se substitua uma natureza como realidad eterna por ‘uma natureza como fendmeno, e © modo de contato seja o sentimento em vez do raciocinio — ow a magia em vez da légica —, no modifica substan- ialmente a diade homem-natureza como sujeito e objeto, nem muda o obje: tivo do processo mental, que é sempre um conhecimento positive, uma assungao do objeto no sujeito: posigdes seguramente distintas, mas nao ‘opostas als prontas para a dialética cle uma integracao reciproca, como de resto eram as doutrinas platOnica e aristotélica, que as justficavam historica- ‘mente. Para além desse realizado ¢ estabelecido equilibrio de natureza e forma ‘nao era evidentemente possivel um empenho ulterior na realidade, enten da como realidade a conhecer, a ser inventada pela arte, E quando, impelido Por uma humanidade superior, esse passo para além do conhecimento ja hist6rico e cumprido € tentado, ele se resolve — para ‘Ticiano, Tintoretto & ‘Veronese nao menos que para Rafael ou Michelangelo — numa desespera- da aspiracao 2 transcendéncia, no importa se paga ou crist@, que arranque artista de uma imanéneia para a qual ja estava despreparado, passive. Nem se pode aduzir a excecdo de Bassano, cujo naturalismo nada convicto © no fundo ingénuo assinala apenas o desvio diante cle uma cultura muito eleva- da, como era a de um Tintoretto, para. um classicismo agreste, escandindo a ret6rica iminente de um Palma Giovine, mas evitando repropor 0 confronto cdaquela cultura — como tenta desesperadamente El Greco —, 0 problema «a realidad O fim da monumentalidade quinhentista, ou seja, a sistematica e bir- bara destruic2o dos seus motivos amplamente culturais e humanos ¢ de suas justificacdes cognitivas, se reduz. 4 versio cescritiva € narrativa —e 56 ext riormente formalista — que the dao os tikimos maneiristas romanos, os Zuc- 14 ‘cari e © Cavalier 'Arpino, nos quais 0 estilo de Rafael e de Michelangelo se degrada até se fazer maneira de amplificaco e de acloro cla narra. Foge- se assim a0 inquietante problema da verlacle pela aproximacao ilus6ria da yerossimilhanca, escapa-se a0 compromisso moral no moralismo divulgado pela Contra-Reforma: retSrica apagada e postica, pois, na qual a forma tradi- ‘ionalmente aceita se humilha na funcao pratica e utlitéria, perdendo todo valor origindrio de linguagem para se tornar orat6ria oficial ‘A-essas tardias deduces maneiristas, que subtraem 2 tradic2o figurati- va as suas grandes premissas elassicas para substitulas por objetivos ime: dliatos da Contra-Reforma, € certamente legitimo contrapor, com Bellori, os ? Carracei ¢ Caravaggio. Mas nio se pode alcancar uma distineao precisa de suas posigdes historicas senao ultrapassando 0 habitual proposito polémico recuperando nas fontes de sua cultura diversa as raz6es de uma histéria que reencontra neles, depois da pausa maneitista, 0 seu percurso € 0 seu desenvolvimento. Assim, 0 dissenso Carracei-Caravaggio, embora na realida: de nio to absoluto quanto a recente historiografia quis configuré-lo, no reside apenas na moralicade distinta de uma reacao coum, mas numa con- ‘cepeo distinta da cultura, numa opcio decisiva pelo rigor moral da arte ou pela largueza intelectual da critica, proclimada no instante mesmo em que terminava a secular coexisténcia de critica e arte 15 O VALOR CRITICO DA “GRAVURA DE TRADUCAO” Nos séculos xvi ¢ xvi, até a descoberta da fotografia, a cultura arti ca européia desenvolveu-se em grande parte através das reprodugdes de obras de arte por meio da gravura em cobre. E, pois, necessirio estabelecer ‘que tipo de experiéncia ¢ de ensinamento figurativo era comunicado e difun- ido por esse meio. A reprodug2o por gravura nao é, de fato, uma subespé- ie da réplica ov da cépia, mas implica uma problemtica bastante diferen- te, que tem a sua importincia para a hist6ria ca teoria e da critica de arte. A réplica ea copia pressupdem simplesmente a idéia cle que determinado pro- cedimento operativo que produziu certo resultado possa ser repetido dando Jugar a um resultaclo idéntico; se, no entanto, a qualidade da réplica ou da copia parecer inferior aquela da invencao inicial, esse fato € imputado & escassa habilidade ou preciso do executante, e nao ao principio de que @ ‘obra de arte seja, por sua propria natureza,irrepetivel. 0 conceito segundo ‘o qual a repeticao, mesmo se feita pelo proprio artista, seria sempre e neces- sariamente inferior 3 inveneo primeira surge apenas no século xvi, na teo- tia da critica de Richardson, e como defesa contra as falsificagdes que inv diam o mercado de arte inglés. Na reproduce por gravura, 0 procedimento técnico € completamente dlistinto dos procedimentos do original, e 0 seu resultado € uma figuragio iconograficamente semelhante a do original, mas em dimensées reduzidas e desprovida daquele elemento visual fundamental que é cor Admite-se, evi dentemente, pelo menos em principio, que o valor ou alguns componentes lo valor artistico sejam inclependentes ca dimensio, do posicionamento, da finalidacle € até ca cor; ou entao se considera que o valor intrinseco da obra possa ser conservaclo € transmitilo integralmente, se bem que numa escala dliversa, pelo papel impresso. E, como no final do século xvt, com os Carrac- especialmente com Agostino, a gravura assume a dignidade de uma téc 16 rr. nica artistica autnoma, € claro que a segunda hipétese ¢ a que vale: admi- te-se que a gravura nao transmite apenas a imagem ou o tema, mas também, ‘mesmo operandlo em um nivel distinto e através de umta série de mediacées, (valor integral da obra original. Essa conviccao pode em parte ser explica- da pelo conceito de “desenho’, tal como foi formulado pelos tedricos do ‘maneirismo: nogentido de que a gravura possa reconstruir e reproczir uma “dia” formal precedente 8 sua realizagio mediante a técnica da pintura ¢, por seu cariter universal, igualmente realizavel mediante outros procedi- mentos técnicos, Mas & um fato que o estilo de gravura catraccesco forma todo um outro Ambito de cultura, especialmente através do estudo de Cot. reggio e dos artistas vénetos, ou seja, de obras em que o elemento desenho € inseparavel da cor Na verdade, quando Agostino reproduz obras de Tin- toretto ou de Veronese, ele no apenas despreza a distingao tradicional entre ‘ desenho romano € 0 colorido veneziano, mas também tenta captar 6 dese- rho daqueles artistas na medida em que este se expressa por meio da cor Sobre esse ponto especifico, Malvasia fornece indicacdes preciosas. Ele niio considera Agostino um artista inferiora Annibale por causa de seu oficio pre- dominante de gravurista. Ha dliferenca de carter ‘Agostino, timido na arte precavido; Annibale, corajoso e destemido”), mas se trata de uma “grance diferenca de génio em relacio a escolhas nao menos dliversas de estudo € profissao”, Nao exclui que o “papel impresso” possa ser até “mais acurado € preciso” que 0 original pintaclo. As obras de Tintoretto foram gravadas poe Agostino ‘com mais dligéncia, para nao dizer com superioridade"; ¢ Dtiter ‘nao hesitara em reconhecer as gravuras ce Marcantonio Raimond como "tio boas ou melhores que seus originais’, Tratava-se, neste ultimo caso, de uma correcao da dureza “gotica’; mas sem a experiéneia viva das gravuras de Agostino dificilmente Malvasia chegaria a afirmar que uma teproducao impressa pocle ser melhor que 0 original Por outro lado, o mérito que Mal- vvasia reconhece em Marcantonio € definitivamente o fato cle ele ter tradzi doas obras de Diirer do alemao para o italiano, o que demonstra quanto ele considerava a reproclugo por gravura equivalente a uma traducio ou trans cricio, e nao uma simples copia ou repeticao, A raza pritica da difussio medliante a reproducao por gravura cle obras de tema religioso é conhecida: 4 lgreja cat6lica revalorizou as imagens que a Reforma depreciara € proibira; encorajou a formacao € @ difusao de uma Nova iconografia sacra, que fornecesse a todos os fiéis os mesmos objetos € (5 mesmos simbolos para uma clevocio de massa; € serviu-se das gravuras Fguradas como um meio poderoso de propaganda religiosa, Mas 0 procedi- mento de transcricio é obviamente © mesmo quando se trata de obras cle tema profano ou até erética. © que interessa, pois, nto é tanto © novo meio de divulgacao de um repert6rio religioso, mas o desenvolvimento cle uma a7 técnica de comunicagao cultural em uma drea muito ampla, Hit o propésito de que a educacao para a vida religiosa seja antes de tudo uma educac dos sentimentos, Nao se visa 3 expresso de um sentimento religioso popu Jar, mas 3 difusio, entre o povo, de uma religiao culta que tenha (e também esse ponto ela se distingue da religito reformada e de sua espera pela graca) um fundamento na hist6rla, Se a reproducio por gravura de obras de assunto religioso tem uma eficacia educativa, esta se da precisamente na medida em que a gravura comunica, junto com a imagem, o valor estético que Ihe € correlato, ou seja, a grandliosa concepeio do mundo que 0s artis- tas expressam em imagens, Malvasia pOe nas palavras de Annibale que este deseja copiar Corteggio para “fizer com ele um pao do qual cacka um possa Fadissemos, porém, que a obra reproduzidla pela gravura se mostra bas- tante diversa clo original, ¢ isso evidentemente implica um modo distinto de fruigo ou de consumo. Um alresco ov uma grancle tela de altar so redhzi- dos 3 dimenstio de uma folha de papel, que pode ser manuseacla e obser- vida de perto. © seu aspecto, em preto-e-branco, € semelhante ao de uma Pagina escrita; a téenica com que a imagem é realizada esta mais proxima da impressio tipogrifica do que da pintura;freqlentemente a figuracio € acompanhada por um texto a margem ou entao € inserica, como ilustracao, ‘em um livro. A rigor a reproduclo por gravura das obras cle arte poderia ter provocado no campo das artes figurativas a mesma revolucao que a inven- ‘cao de Gutenberg provocara no campo da cultura literaria ¢ cientilica; e nao ha dtivida de que a significativa clifusao das reproducées por gravura é um fendmeno que est subsumido no grande plano seiscentista de uma profun: da reforma social funclada sobre uma cultura da imagem e no desenvolvi- mento das tecnologias relativas. No entanto, 0 fato mais importante € que o alfresco ou 0 grande quadro so contemplados e admirados por qualidades que inevitavelmente desaparecem na reprodugao por gravura: a relacdo.com, ‘uma arquitetura "monumental, as dimensdes imponentes, o esplendor das; cores. A reprodugao por gravura, 20 contririo, no tem nenbum carter ‘monumental, a sua forca dle apelo visual é bastante limita, Mais que con- templada € admirada, a gravura é lida e relida, sua mensagem se dirige a0 individuo singular, ¢ 0 fato culturalmente importante & que a propria men- sagem é recebida singularmente por cada um. principio da “leitura’ da obra figurativa € tipicamente seiscentista. As pinturas “de género” sio muito mais objetos de leitura do que elementos decorativos. Nas colecoes de principes e cardeais, 05 quadros sao alinhados na pared como os livros na estante, prontos para a consulta. Agucchi, Gits- {iniani, Mancini — mas especialmente Bellori— léem e descrever as obras de seus contemporineos, em vez. de celebré-los em discursos panegiricos, be ce sem diivida a reptoducao por gravura tende a tornaras obras figurativas legi- eis, oferecendo-as a leitura — e nesse sentido ela se associa ao fundamen- tal tema barroco da equivaléncia, em termos de valor, entre a obra figurativa ea obra literaria. Ut pictera poesia poesia € tal qual a pintural: no s6 no Sentido de uma mesma faculdade imaginativa concedida ao pintor € a0 poeta, mas também po de uma conversao textual da obra figurativa “a ser Contemplada’ numa obra figurativa "a ser lide?” Qual 0 provesso de transfor- ‘macao do valor a ser contemplado em um valor a ser lido? Posto que o gra- ‘vurista, mediante a propria técnica, procede a uma leitura analitica do origi- nal ea neprodugo é oferecida como um "modelo de leitura’, existem canones ‘ou regras para a leitura exemplar? Como se explica que a leitura ripida € vvivaz de Annibale seja considerada diferente mas ao mesmo tempo to vil: da quanto a leitura estudiosa e aplicada de Agostino? ‘JA notavel que, reconhecendo-se na leitura © melhor modo de apro- ximar-se da obra de arte e de entencler 0 seu valor, se recorra a "modelos de leitura: isso significa que a justa interpretacao da arte € aqueta que € dada pelo artista, e que, portanto, a reproducao por gravura nos dia obra repro- duzida como arte vista pelo artista, isto é, pelo espedialista, Mas 0 método dla boa leitura ou da justa interpretacio deve ser buscado nia metodologia ope- racional do gravurista, Gu seja, na sua técnica. A primeira dificuldade que se presenta ao gravurista éa da dimensio, Para que uma grande composi¢io, 0 ser reduzida as dimens6es de uma folha de papel, nd0 se torne mesqui- nnha e tediosamente acanhada, é preciso compensar 0 fator dimensional com a precisio das proporcoes e, portanto,elaborarum complexo sistema ce rela- {Goes dos valores. A reclucao das cores ao preto € branco € suas gracdages intermediérias € sem diivida um limite inerente & técnica da gravura, um limite que incide fortemente sobre a fidelidade da reproducao. Mas € tam ‘bém uma condigao especial para a reducao da obra a um sistema de rela ‘ges de valores ou & proporcao: uma reproducdo colorida, de pequenas dimens6es, reduziria 0 original sem compensar a granceza perdida, sem Ihe dar um equivalente proporcional. Mas para obter a equivalencia ou 0 equi brio dos valores nao basta apenas operar uma simples reducao ao claro- ‘escuto. Isso talvez, pudesse valer (e mesmo assim com muitas reservas) p: uma pintura da escola romana, cujo moxlelo estrutural fosse 0 claro-escuro, mas nao poderia valer para uma pintura veneziana, cujo modelo estrutural tonal e baseadlo na cor. Nesse caso, a propria estrutura formal seria grave ‘mente alterada, e a pintura seria lida numa chave falsa, Portanto, © que Se coloca 6 0 problema de traduzir em valores de clato € de escuro as quealida- dles especificas clas cores, percebiclas como elementos construtivos da forma (Os meios de que o gravurista dispée, pelo menos na primeira fase da hist6~ Fa da reprodugao por gravura, sio limitados: 0 traco e as possibilidades de 19 re 0 fundo branco do dos planos, menos evidente — ele entre ‘gravura, de maneira até mai da cor se tomna mais grav ide universal, Nao resta, pois, seno transformar a gradagao continua de claro-escuro numa gama de qualida bastante isto 6, tra- za que Vai do franco ao preto numa série de que se fiz :n6s signos (pontos de empas- ico corresponclem as diferenicas i, dos dliversos tipos de yente Como © pintor se serve das cores dispost 10 da chapacle cobre) feitos por © pintor faz depois de ter “Yrata-se, porém, ce diversas quuantidacles tonais ladles de cor, No entanto, a partir da gravure nu 2 real qualictade das cores do origi © freqlente retomo a zonas permanecem visiveis como Ihante as sucessivas barroca pode ser definida como 86 em que medida a gravura “de ‘t6rico, mas tam ‘como o primeiro esforco da da arte. 21 AS ARTES FIGURATIVAS NO RENASCIMENTO TARDIO E NO PRIMEIRO BARROCO EA POESIA DE TASSO Uipictura poésis: assim os we6ricos do barroco sancionama tese de que arte €0 produto da imaginacao, de que a mesma liberdade de imaginar € concedida 10 poeta e ao pintor, de que entre as imagens figuradas ¢ as ima- gens verbulizadas nao ha diferenea senao no meio de comunicacao. O tini- co limite é a obrigacio da verossimilhanca ou da possibilidade, e€ isso que idistingue a positividade da imaginacao do arbitrio da fantasia. Em termos aristotélicos, écrivel aquilo que € possivel, € € possivel aquilo que j4 aconte- ‘ceu. Tendo as suas raizes na experiencia do passado e produzindo algo que seja crivel a todos, a imaginagao é uma atividacle comunicativa,dirigida 20 exterior. © problema do'contetido e da finalidade da comunicagao clo ima- ginario foi posto, antes que pelos te6ricos do barroco, como Agucchi e Bel- lori, por Basso. E de fato 20 teorizar a imaginagao, a sua tegitimidade e finali- dade, os seus meios de comunicagdo, ou a linguagem postica, que Tasso justifica a sua propria poética em relacao a de Ariosto, ravando uma pole- mica com os lingtistas da Crusca (© principio ut pictur poésis implica a superacao do principio classico la identidade entre a estrutura da ideacao artistica ea estrutura da técnica ccorrelata, Sea ideacio é a mesma para o poeta e para o artista figurative, mas as técnicas sto obviamente diferentes, 0 conceito de forma como represen- taco da realidade entra em crise: a técnica pode até continuar sendo um. processo de imitagao, mas @ imitac’ da idéia, e nao mais da natureza. As diversas técnicas no comespondem mais diversos campos mods de experiéncia ou de conhecimento,a prixis nao é mais a aplicacio de uma teoria, Ao detxarem de ser concebidas como processos cognitivos, a8 téenicas adquirem em extensio € em liberdacle de movimento aquilo que perdem na ordem intelectiva: 0 artista est livte para imaginar a técnica est i &: apta a manifestar€ comunicar qualquer coisa que ele imagine. Poesia ¢ pin- ura — mas se poderia dizer © mesmo para todas as artes — no sto mais © modo eatético do conhecimento, mesmo porque jf nao se acredita que 0 Gonhecimento se dé por meio de representagdes: as artes no periodo barro~ fo. no mais ligadas & natureza como objeto de conhecimento,formann um Sistema Gnico de;comunicicao, tanto mais ramificado, penetrante ¢ eficaz Guanto mais se cré que a comunicagdo, a persuasao e a inluéneia sobre 0 ‘omportamento moral Sio to — ou mais — importantes para o fim iltimo, da lelicidade ou da salvacio quanto 4 representacao das verdades universais em formas exemplares 4 'Na historiografia da arte figurativa ainda é muito aceito o esquema da sucessaio de agdes e reagdes: A certeza classica do Renascimento (entenden- ido certeza da natureza e da hist6ria como provas da ordem divina da cr (Glo) sobrevém a crise maneirista correspondente 2 crise religiosa da Refor- ima; & crise maneirista sucede e reage, como uma recuperada confianga naqueles grandes valores, a representatividade grandiosa e espetacular do ‘barroco, Afora o absurclo de considerar a problemiitica religiosa da Reforma ‘uma crise raipida e felizmente superada, nao € mais aceitével, sendo dentro de limites muito restritos, a antitese entre maneirismo e barroco. Assim como, no Ambito literirio, desde o infcio do século xv, se coloca © problema da lin- ‘gua — que em Tasso se tornara problema de estilo —, também na arte figu- Tativa, especialmente na arquitetura, se debate o problema da técnica e da relacio entre teoria e priixis;¢ ¢ ficil constatar que o esforco dos tratadistas, de Sertio a Palladio, nao pretende de modo algum subordinar a praxis’ estru- tura I6gica da teoria, mas sim teorizar a priixis,tommando-a disponivel diante das ilimitadas possibilidades da imaginagao. Nao ha dvida de que o desen- volvimento impetuoso das técnicas barrocas dependeu precisamente da crise maneirista dos grandes modelos.a natureza ¢ a hist6ria, isto & da trans- posicido da atividade artistica da esfera clo intelecto para a esfera da imagi- nagio— ou da substituicao da idéia de forma pela idéia de imagem. A Ansia religiosa de Michelangelo e de ‘Tasso se explica justamente pela crise dos modelos e pela conseqiiente crise da forma. Mas, se Michelangelo tende a sublimar a imagem numa idéia, chegando ao ponto da dissolucao da form, a.aspira¢loa um sincretismo de neoplatonisme aristotelismo permite a Tas- so estabelecer a correlacio, fundamental para todas as posticas barrocas, centre idéia, imagem e palavra. ‘Aimagem, nao tendo mais 0 contetido intelectivo da forma, nao tem em simesma sua propria jusificacao: vale na meclida em que é verossimil ¢ por tanto comunicavel & comunicada. Assim, € a comunicacao que a justifica; 'mas o que a imagem comunicara, se ela nao tem um contericlo objetivo de verclide? Comunica a propria possibilidade; mas a esfera do possivel nao € a esfera do intelecto,¢ sim a esfera da acto, moral, Implica, pois, a responsa- bilidadt; também com a imaginacao pode-se estar no justo ou 0 equivoca- do, mas o acerto da imaginacao s6 pode ser verificado pelos efeitos que ela produz no momento em que, se comunicando, influi no comportamento de quem recebe a comunicacio. Os tratadlistas da Contra-Reformna sio oboeca: los pela problernitica daquele fato novo que a imagem: discute-se sobre sna natureza ¢ sua hist6ria (Molano), sobre sua eficécia positiva ou negativa Gili, Paleotti, Comanini). Até um grande eclesistico, Federico Borromeu, se preocupa menos com a forma significativa, ao mesmo tempo simbolica & construtiva, da Igreja do que com a sua imagem ¢ a influéncia que ela pos sa exercer sobre a devorao. O deleite que acompanhava a contemplagio da forma, ¢ que em substincia nao era mais que o prazer da constatacdo da sua significdncia, jé nto basta: para além do delete, € preciso buscar o itil Por isso a contemplacio nao pode mais ser desinteressada, ¢, para que nao 0 seja, € necessario que 0 objeto contemplado interesse, suscite uma reagio afetiva, aja sobre os movimentos do agi. A passagem do deleitoso ao util, ou seja, de um interesse sensorial a um, interesse moral, consta de dois momentos: 0 apelo aos sentidos (o deleite) «¢, logo depois, 0 seu abrandamento para dar lugar a um juizo de valor que tenha por fim a utilidade espiritual. Tem-se desse modo um processo de extingao da evidéncia estrutural da forma e de designagao de uma finalida- dle, em relagdo a qual a imagem & somente um tramite e, portanto, mais que ‘uma imagem, uma sucessao ou transmutacao de imagens, O processo apa- rece claramente na reelaboracao da Liberata na Conquistata,* em que a imagem, nao descendendo de um conceito, tende a elevarse ao nivel de conceito, O momento da desagregacao estrutural da forma é, pois, o momen- to genético da imagem, mas a imagem se apresenta imediatamente como instavel e cambiante, do mesmo modo que a forma era forma por ser Fixa € imutavel. Isso explica por que a conquista da imagem, que implica a trans- formaco da estrutura demonstrativa em estrutura dle comunicaco, no pro- uz, 29 menos a principio, uma revolugo nas morfologias tradicionais. Em ‘outras pakavras, a imagem 6 ainda a forma, mas privada de suas estruturas intelectivas. © modelo natural se trackuz numa tipologia dos aspectos natu- tais; a perspectiva deixa de ser construcdo positiva € se toma esquema ic6- nico do espaco; o modelo hist6rico, a antigidade, se transforma numa ico- nografia profana que se poe ao lado da iconogralia sacra © processo que st concluird com a instituicio do principio ut pictura _podsis desenvolvew-se durante todo o século xv, como se pode constatar (©) Amman se refere aos dois maior poemas de Tasso, “Jerusam libertad e“Jerusaéen conquistad’, publicados respectivamente em I55 ©1595 (N.T) oy pelos freqiientes confrontos e comparagoes entre as peculiaridades e afini- Fiades das diversas partes. O principio atingira a sua clamorosa verificaczio tos primeiros anos do século xv1, na indiscutivelafinidade entre a poética fiterdria de Giambatista Marino e a poética figurativa de Annibale Catracci e, jpauico depois, na pintura clecorativa ce Pietro da Cortona, No entanto,o fator determinante dy convergéncia de poesia ¢ pintura naquilo que poderiamos ‘Ghamar de uma poética unitéria da imagem continua sendo pensamento de Tasso. E not6ria a influéncia que Tasso exerceu sobre Marino

You might also like