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FUNDAGAO PARA O DESENVOLVIMENTO DA UNESP Praidete de Co ‘Arthur Roquete de Macedo Carader Dirtor-Breidente ‘Amilton Ferccina Dintera de Fomeuto 3 Prguisa Hermione Elly Melara de Campos Bicudo Dinter de Pabiases José Catili Marques Neto EDITORA UNESP Dindor Jos Castitho Marques Neto Conta Batra Academica Aguinaldo José Goncalves ‘Anna Matia Martinge Coté ‘Aatonio Catlos Massari Antonio Clo Wagner Zanin Antonio Manoel dos Santos Silva (Cacos Erivany Fantinat Fausto Fore Jost Ribeiro Jénior Roberto Kraenet Balto Aint José Aluysia Reis de Andrade Matin ApposecidaF.M. Busolotti Talio ¥. Kawata GILLES-GASTON GRANGER A CIENCIA E AS CIENCIAS ROBERTO LEAL FERREIRA Meas Copyright © 1993 by Preses Universitaires de Ponce ‘Titulo original em francs: La ieee le wens Copyright © 1994 da traducio brasileia: Editors UNESP ds Fundagao pars 0 Desenvolvimento sls Universidade Estadual Paulista (FUNDUNESP) ‘Av. Rio Branco, 1210 (01206-904 - Sdo Paulo~sP ‘TeldFax: (011) 223-9560 Dados Internacionais de Catalogagao na Pablicagio(C1P) (Cara Beasilcta do Livo, SP, Brasil) Granger, Gilles Gusto, 1920- ‘Acincia a8 cgacias /Gille- Gaston Granger; trad Roberta Leal Fercera ~ Sho Paulo Editors da Universidade Fytadual Paulista, 1994. — (Arado), DBibliogras ISBN 85-7139-064-9, 1, Ciéngia 2 Cigncia— losin 1 Titulo, I. Sétie. 94.2565 cpp301 Indices para catéogo sstemstico: 1, Citi Filosofia 501 [ononoe Si | Neha Biles iA Bie SS cM-o0067 ‘SUMARIO Preficio a edigdo brasileiea 7 Preimbulo 9 1, Os problemas de uma “Idade da ci€neia” 11 1. Odesenvolvimento explosive da citncia 11 I, Acitnciaea vida quotidian 16 TL, A vulgatizagio de uma ida da citacia 17 IV. Os novos problemas étices 19 2. Deve-se confundir conhecimento cientifico esaberes técnicos? 23 1, Uma idéia antiga sobre as relages entre as ciéncias os saberes técnicos: Aristételes 23, H, Das técnicas empiric is téenicas cientices 25 II, Ciencia, técnica e produgio de massa 36 3. Diversidade dos métodos ¢ unidade de visio 41 I. Pluralidace dos métodos e anarquisuo metodolégico 42 IL Tris teagos caracterfsticos da visio cientifica, 45 IIL Astinguagens da cigncis 51 4, Citas formaise citncias da empiria 59 1 Os abjetos matemdticos 59 1, Demonstragioe vedade nas matemiticas 66 TIL, Os objetos das ciéncias da empiria 70 IV. Asteorias 76 LV. A validagio dos enunciados das cigncias empiicas 78 5. Cigncias da natureza e cigncias do homem — 85 1, Ocasollimite da histéria 86 II, Conceitualizagio eobservasio 87 UL, O emprego das mateméticas 92 IV. A validagio dos enuncisdos 97 6. A evolugio das verdades cientificas 101 1, Continuidade e descontinuidade da histéria ds cidacias 101 IL As descontinuidades internas da historia das citncias 105 IK, A idéia de progeesso cientifico 108 Conclusio 113 Léxico de alguns termos cientificos 125 Bibliogtafia 123 PREFACIO A EDIGAO BRASILEIRA Este pequeno livro, apés quarenta anos de intervalo, serve, pot assim dizer, de pendant ao manual que, joven professor da Universidade de So Paulo, publique! com 0 titulo de Légica ¢ filosofia das cifuias e, na. colegio Que sais-je?, como La raison, pouco depois traduzido pata 0 portugues. Pottanto, € para mim, cujos lagos com 0 Brasil sio tio antigos ¢ tio fortes, uma satisfagio imensa ver também, traduzido em portugues A cifecia eas céncas, Nele se encontrario, numa forma resumida ¢, creio, acessivel até ao leitor no fildsofo, as rellexdes sobre a rnaturcza, 0 valor eo alcance do saber cientifico que uma caminhada jd longa me inspirou. Alegro-me, pois, em pen sar que 0s leitores brasileiros poderio Ié-lo em sua lingua € Ihes sou antecipadamente geato pela atengIo que terio a gentileza de Ihe prestar. Cassiopée, 20 de maio de 1994. PREAMBULO 1. Hoje, no teatro desmedidamente extenso das repre sentagies de nosso mundo oferecidas a todos pelos textos © plas imagens, a cineia certamente aparece como uma petsonagem essencial. Misteriosa, porque o pormenor de sua figura nao esté a0 alcance dos préprios cientistas; tutelar, porque dela dependem as maravithosas miquinas que po- ‘yoam os lugares em que vivemos; inquietante, porque esta- mos conscientes dos poderes antinaturaise aparentemente ilimitados que um tal saber foie serécapaz de desencadear Informar-se sobrea natureza ca extensio doque muitas vezes se chamou de “conquistas” da cifncia parece realmente set, na proporcio das aptidées c da cultura de cada um, 0 interesse de todos, Este pequeno livro seri consagrado a esbogar uma tl reflexi9, dcixando, porém, deliberadamente de lado, na medida do possivel, as consideracBes mais t&- nicas a que, em outzas obras, seu autor se dedicou, 2. No Capitulo primero, recensearemos os problemas de-uma Idade da ciéncia que, justamente, se colocam na me- ddida em que a citncia hoje faz parte, a titulos diversos, da vida quotidiana dos individuos ¢ das sociedades. Observe-se aque a8 coisas no eram assim algum tempo atris, Sem daivida, é preciso datar este fenémeno do inicio do pés- Segunda Guerta Mundial. Ele aparentemente oi provoca~ do, primeizo, pela penettagio brutal das aplicagbes da. cia nas técnicas militares, com o golpe de teatro da bomba atdmica; depois, pela invasio generalizada das méquinas audiovisuais; mais recentemente ainda, pelas tentativas de ‘manipulagio da intimidade mesma da vida. (© Capitulo segundo tentaré elucidac a otigem de um ‘erro hoje bastante caracteristico desta Idade da cigncia, que consiste em confundir 0 saber f&enico com 0 conhecimento ientifico, Resulta daf uma cegucira que, em alguns, leva a ‘uma espécie de idolatria do que acreditam ser a cigncia e, ‘em outros, inversamente, a um desprezo por um conheci- mento tido por eles como terra a terra ¢ dotado de um, aleance apenas material © Capitulo terceiro examinaré o problema colocado pela pluralidade dos métodos adaptados aos diversos objetos da cincia, A questio principal sera a da sigoificagio de uma snide do pensamento centifico, apesar de sua flexibilidade. © Capitulo quarto, o mais longo, descreverd dois gran- des tipos de conhecimento cientifico, suas diferengas de ebjetos, de métodos eas relagdes que tém entre si: as ciéncias ‘matemiticas eas cigncias da empiria © Capitulo quinto colocars, no prolongamento do pre- cedente, 0s problemas especfficos de um conhecimento ientifico dos fatos humanos, No Capitulo sexto, finalmente, interpretaremos a evo- lusto das verdes cientificas enquanto ela é realmente um progtesso, apesar do paradoxo que provoca, Pois © que era admitido pela ciéncia de ontem pocle muito bem ser, em certo sentido, recusado pela cigncia de hoje ou de amanhi. Besse “certo sentido” que teremos de explicar, ustificando, assim, a solidez fundamental desse conhecimento evolutivo Concluiremos tentando responder a uma intetrogagio: tem limites a ciéncia? Existem drcas reservadas que cla no seria capaz de abordar? Que relagio deve ela manter com outras formas de saber? As palavras assinaladas por um asterisco so definidas e explicadas no “Léxico de alguns termos cient OS PROBLEMAS DE UMA “IDADE DA CIENCIA” 1. 0 desenvolvimento explosivo da ciéncia Podemos certamente qualificaresta segunda metade do século XX como a Idade da ciéncia.' Isto, por certo, significa menosprezar o papel e a impottincia do conheci ‘mento cientifico no século XIX, que assistiu ao nascimento, entre outros, da termodinamica e da teoria dos fendmenos étticos, com suas promessas de conseqiiéncias extraordi- niirias para a explicagio dos fendmenos da natuteza ¢ suas primeiras aplicagées& indistria, Mas 0 perfodo que vivemos no 56 6 0 herdeiro dessas conquistas fundamentais, mas também oferece o espeticulo de renovagies ¢ de desenvolvi- ‘mentos sem precedentes na histéria da ciéncia, pelo ntimero ce pela diversidade. Além disso, acontece que um tio prodi- -ioso desabrochar de novos saberes tem repercuss6es nunca antes atestadas na vida individual e social dos homens, ‘As recentes conquistas das ci€ncias ora constituem © desenvolvimento, a exploragio € a maturaglo de idcias essenciais jd aventadas no inicio deste século ou no fim do T Este €e titulo dado a uma efémera revista filosfia,fundads em 1968 por Jules Vuillemin ¢ por mim (Ed, Dune ttularetomado por ngs em 1988 (Ed. Odile Jacob século passado, como, por exemplo, as duas teorias da telatividade, ora sio inovagées aparentemente mais radicais, como nas éreas da bioquimica e da estrutura do genoma. Evidentemente, uma descoberta cientifiea nunca aparece a ppattic de um nada de conhecimento, ¢ pata cada uma das mais espetaculares inovagées de nossa época poderfamos encontrar nio propriamente precuriors, mas idéias mais ou ‘menos precisas que prepararam 0 scu advento em épocas anteriores. E esta segunda metade do século talvez nio seja particularmente fértil em novidades fandamentais, cient camente revolucionirias. Sem divida, ela € grandemente ributgtia dos avangos corridos no inicio do século ou n0 final do século passado. Mas ela 6excepcionalmente rica em desenvolvimento ¢ em aplicagées, e € esta riqueza que Ihe pode valer, com todo 0 direito, o epiteto de “dade da cién- cia”, Ressaltemos em meio a desordem,e sem pretendermos, ‘de modo algum, a exaustio, alguns fatos de primeira gran deza, muito significativos nesta histria recente da citncia, 1. Comecemos com um fato ainda faturo, mas cuja realizasio jd estitem ampla medida iniciada, com um éxito sem divida longinguo mas garantido:a producto de energia utilizével por fusio nuclear, que seria uma fonte pratica mente inesgotivel, jf que a sua matétia é o hidrogénio, cembora, € verdade, sob formas natuealmente ratas, 2. Um acontecimento ocorrido em 1969, a alunissa- ‘gem dos americanos, seguida em 1970 do envio da sonda sovigtica Luna 3 Lua, Assim comecava uma era de exploracio espacial tica em descobertas acerca da estrutura do universo ¢, também, em subprodutos técnicos mais terta a terra 3. A descoberta, fortuita, em 1965, do “ruido de fun- do” universal e estivel, correspondente a uma radiagio de ondas centimétricas de um espectro idéntico ao que seria emitido pelo “corpo negro”* a 2,75 °K. Uma das interpre- tugdes possiveis desta descoberta confirmaria com certa plausibilidade a teoria formulada por Gamow (1948-1954) de uma expansio do universo a partir de um ponto singular, de altissima densidade e elevadissima temperatura, “ori- ‘gem’ de sua hist6ria, caracterizada por leis da fisica desco- anhecidas, provavelmente diferentes das que aplicamos com sucesso ao universo atual. Descoberta € conjectura que abrem no s6 todo um campo de hipsteses matemiticas, ‘mas também, para a vulgarizagio, um universo de especu- lagdes que dé vida nova aos vethos Sonos sobre a origem do universo. 4, Em 1948, a invencio do transistor, derivado de uma teoria dos semicondutores,* cujas conseqiiéncias priticas io extraordinétias, jf que, aperfeicoado sem cessar em suas, caracteristicas © em sua produgio industrial, o transistor permitiu, por exemplo, a criagio das diversas téenicas mé- dlicas por imagens, revolucionou as técnicas de radiotelevi- slo ¢ desenvolveu de mancira formidivel a técnica dos, computadores ¢ dos robas de toda espécie. 5. A descoberta dos antibiéticos, j feita para a pe lina de Fleming em 1928, & confirmada ¢ amplamente desenvolvida a partir da descoberta da cloromicctina, em. 1947. 6. Adescoberta da estrutura em dupla hélice do DNA, cm 1953, ea “explicagio” de seus mecanismos, em 1961, seguidas de continuos progressos na “decifragio” do cédigo genético, 7. ff impossfvel apontar acontecimentos mateméticos rmaiores no periodo atual, pois a expressio de tais aconteci- mentos exige, na maior parte dos casos, que se aprofunde ‘muito exposicio das teorias, sem o que os proprios termos dda exposigio ficam sem sentido. De resto, a especializagio na abstracio € hoje tal, que € muito dificil, mesmo para 08, ‘poucos matematicos mais universais © mais cruditos de hoje, descobrie os caminhos de passagem 0s fios condutores. Eu tentarei, porém, escolher, bascado em meu proprio gosto, tras fatos significativos ocorridos desde 1950, 8) Uma ctiagZo conceitual, as distribuigBes, que genera- lizam em certo sentido e unificam as noges de funcio e de medida (alécada de 1960) . b) Uma demonsteagio a respeito da estrutura légica _geral das matemiticas: a da independéncia da “hipétese do contfauo" edo.axioma deesclha relativamente aos axiomas 7. Vemnos nesses trés exemplos que as relagdes entre a técnica ea ciénciararamente se apresentam como projetos deliberados de aplicagio de um conhecimento. E bem ver- dade que 3 medida que nos vamos aproximando de nosso 5, Sobre esta bela histéria, deve-se le o estudio de Jean Cazenobe, “De Maxwell A Marconi, 198 tempo 0 acoplamento da invengio técnica & cigacia vai ficando cada vez mais apertado, ¢ hoje mal podemos conce- ber um progresso técnico notivel que nio sc bascie nos dados da cifncia, No entanto, a histéria das técnicas aio deixa de ser, em ampla medida, aut6noma. De fato, ela depende da realizacio progressiva de projtes priprios, cuja, execuglo €simplesmente tornada possfvel, num determina. do momento, pelos avangos da ciéncia. Essa histéria é portanto, neste sentido, uma hist6ria finalizada: uma neces- sidade social, ou um sono individual, se manifesta (lem- bremo-nos do mito do vo humano, da conservagio das “palavras geladas” em Rabelais, da transmissio das ima- ens...) As diversas condigdes, pelo menos parciais, de sua realizagio aparecem ento, geralmente numa ordem disper sa, em razio do. progresso da ciéncia, O inventor ~ or inventores ~ reconhece essas condigaes, delas se apodera, adaptando-as. reunindo-as, etodoum capitulo de evolugio técnica se constitu, orientado. unificado por esse designio. Alls, € cada vez mais claramente, os progressos técnicos dependem de contextos globais que 0s condicionem: a radioeletricidade, por exemplo, ou a televisio se desenvol- veram nio unicamente pelo aperfeicoamento de um objeto técnicoisolado, aparetho de rédio ou de televisio, sim pelo cstabelecimento, em grande escala, de redes complexas de cemissores e pela organizacio de grandes conjuntos de peo- dugio de sons e de imagens. Donde se vé que o progresso técnico nio depende apenas do progresso dos conhecimen- tos, mas também de circunstancias econdmicas¢ sociais de otra ordem. Enfim, corpos especificos de conhecimentos técnicos se constituiram atualmente, de modo paralelo aos corpos de conhecimentos cientificos e de maneira parcialmente inde- pendente, sobretudoa partir do momentoem que se formou uma classe de engenbeiros. Péde-se falar, por metifora, dos standes “engenheiros” do Renascimento, a scrvigo dos pria- Cipes italianos, que concebiam e dirigiam a exccucio de standes trabalhos de interesse pablico, construindo fortifi- cagdes ¢ apetfeigoando miquinas de guerra’ Mas foi na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII, que apare- ceu realmente como uma classe novao grupo dos engenbei- ros, estabilizado ¢ fortalecido na Franga pela criago de um ensinamento nas Grandes Escolas. ff somente nessa época aque se desenvolve por si mesmo e se perpetua um saber técnico, fundamentado, evidentemente, nos conhecimentos propriamente cientificos assimilados por uma época, mas ditetamente implicado nas condicies concretas de aplicagio da ciéncia, A tal ponto que alguns membros do corpo de engenheiros se afastam de sua fungio primitiva para se tornazem cheles de empresa ou administradores. Ill. Ciencia, técnica e produgio de massa 1, Quando 0s saberes téenicos ainda nao estio impreg- nados de conhecimento cientifico,o trabalho artesanal que ‘os descnvolve leva’ produgio de obras muito individuadss. Isso porque esses saberes comportam nio 36 esquemas co- uns de producto, tGcnicas basicas indispensive’s d reali- zacio de um determinado efeito, a criagio de um determi- nado tipo de objeto, mas também receitas e manhas cuja posse nio é estritamente necessiria, mas dio ao artesio a possibilidade de singularizar seu produto, nele exprimindo, porassim dizer, alguma coisa de si mesmo. b esta utilizagio ddos aspectos © dos clementos & primeira vista supérfluos, com vista a tornat significative o produto de um trabalho, que chamo de efio desstilo* Ora, 0 progresso das técnicas, nna maioria das vezes, leva, pelo contririo, a uma normali- zagio cada vee mais rigorosa das ages ¢ dos produtos, condigao indispensivel da baixa dos custos ¢ da producio de massa, O ator técnico js aio 6, entdo, 0 artesio, sim, pot uum lado, 0 engenheiro €, por outro, 0 exccutante, operirio ou “téenico". 4 Para uma anslise mais minuciosn deste conceito eral de “estilo”, vide G, Granger, Eas fame pbilmphied se, 1988. 2, Nao ha divida de que essa normalizagio seja a0 mesmo tempo a conseqiiéncia € o sinal de uma penetragio das técnicas pelo conhecimento cientifico. Pois é a ciéncia que, primeiro, exige uma tedugio de seus objetos a esque~ mas abstratos, em teoria perfeitamente substituiveis,¢, por exemplo, na quimica, introduz a nogio de corpo puro. Para ‘poder aplicar conhecimentos estabelecidos pela cigncia, os ‘écnicos devem selecionar cada vee mais os materiais de acordo com normas estrtas, codificar os procedimentos, ‘ordenar os ciclos de execugio, Sem divide, também aqui um motor poderoso dessa tendéncia € de natureza econdmica, cextefnseca, por conseguinte, is consideragées tanto técnicas ‘quanto cientificas: ganhar tempo, produit cada vee mais Mas a necessidade de normalizagio no deixa de set, em primeito lugar, uma condigio da aplicagio das ci Hd de se observar que uma das primeiras consequéncias essa situagio foi taylorismo, doutrina de racionalizagio das prodigies mediante uma fragmentagio ¢ uma especia- lizagio extremas das tarefas, uma cronometragem rigorosa de seu encadeamento, sendo tudo concebido e planificado de antemio, com vistas a obter as melhores condigies possiveis de rendimento, (Frederick W. Taylor, Principios de organizagéocientffica, 191, trad, francesa, 1927). Trata-se, portanto, de suprimir toda opcragio, todo gesto nko estri- tamente necessirio, e de negar toda iniciativa aos executan- tes: "Vocés niio esto aqui para pensar", costumava dizer- thes Taylor, Essa formulagio extremista da normalizagio representa, evidentemente, 0 exato oposto das ténicas artesanais, ¢ se pretendia a realizagio mais perfeita do assédio da técnica pela cigneia, 3. A evolugio posterior das téenicas, porém, demons- trou, especialmente em nosso periccio bem contemporsinco,, {que uma tal concepsio era, pelo menos parcialmente, ina- daptada a uma Idade da ciéncia, Além dos grandes incon- venientes que cla comporta no planohumano,a taylorizagio jf n3o corresponde corretamente as condigéeg de func mento timo das méguinas, Sea caracteristica mais evidente a técnica impregnada de ciéncia € universal extensio do emprego de méquinas cada vez mais poderosas, complexas, e refinadas, € Gbvio que o progresso técnico recente consis tiu, em primeiro lugar, numa verdadeira mutagio de sua espécie, Podemos dizer, simplificando muito, quea méqui- na foi primeiramente um instramento de transformagio dos, ‘movimentos: aalavanca, a roldana, méquinas “simples” por excelncia, ¢ até a maquina de tecer, Depois cla se tornou. meio de produgio, ou seja, também de transformagio, de cnergia: a méquina a vapor, o motor elétrico ou a explosio. Mais recentemente, enfim, apareceram as maquinas de pro- cessar informagao, cujo antepassado € a méquina de calcular de Pascal, ¢ 0 primeito exemplar maderno, 0 computador monstruoso Eniac, da Filadélfia, que em 1946 ainda ocupa- vva toda uma sala, com suas 18 mil vilvulas e sua magea meméria ativa de 200 bits... Hoje, fantasticamente aperfei~ soadas © miniaturizadas, essas miquinas estio associadas cada vez mais intimamente is outras méquinas “energéti- cas", de que garantem a regulagio ¢o funcionamento diver~ sificado, Cada vez mais, maquina ganha espaco nas fungies cenas tarefas do executante, Gragas is aplicagies da ciéncia em diferentes freas, ela se torna, num sentido sem dtivida muito modesto, “inteligente”, ou seja, capaz de discernie posigGes ¢ formas no espaco, de manipular ¢ deslocar ade- quadamente objetos, palpar ¢ reconhecer certas propricda- des fisicas, descobrir anomalias, De modo que oaspecto mais repetitive das tarefas, hi pouco justamente codificado pelo taylorismo, &em grande parte transferido pars a miquina, 0 papel do executante consiste cada vez mais no exercicio de uma lencidade de segundo gran: wm saber de supervisio, dde manutengio do bom andamento, de reconhecimento das falhas ¢ dos incidentes de funcionamento, de conserto das maquinas. No limite, ocorre até uma comunicagzo catre 0 homem ea maquina que ele utiliza. A parte informacional desta Gltima € dotada de uma fung3 de simbolizagio que The permite fornecer a0 operador informagdes sobre seu ipedpeio fancionamento, Bo caso do pilatn de ayito moderna: com seu corkpit, do usurio de um computador diante do seu equipamento, O exccutante técnico deve, assim, ser capaz de interpretaressas mensagens ¢ responder a clas, tomando decisbes. Decorte desta nova tecnicidade uma tensio, presente na sociedade atual, entre uma exigéncia de espcializapo teni~ a, resultante do cada vez maior refinamento das méquinas, uma exigéncia aparentemente oposta de polivaléncia, de competéncia generalizada, ou antes de capuacidade de adapta~ do dos executantes técnicos, conseqtiéncia da rapidez evo- lutiva das técnicas existentes eda criagio de técnicas novas.. ‘Assinalaremos aqui, apenas para registro, o problema assim proposto aos politicos pela formacio dos jovens. Limitar- nos-emos a observar que a relagio do técnico com as miqui- nas, cada vez mais aperfeigoadas, embora stja conseqiiéncia de ura cigncia, culta, no entanto, o conhecimento cienti= fico, dispensando, de certa mancira, que se recorraa ele, Por cetto, isso no ocorte no nivel mais alto da hierarquia técnica, onde, pelo contritio, tendem a se unir ocientistae 0 engenheiro. Mas nos niveis de execugio, mesmo muito altos na hierarquia téenica, o espirito cientifico corre o risco de se apagac ante um espitito estritamente téenico, que daria preferéncia a0 suceso em detrimento da explicagio “Assim, pars contrabslangar esse efeito negative, convém, sem dvida, responder ao problema de formagio que acaba ‘mos de mencionat, aceitando dar um lugar importante n0 ensino a uma cultura cientiica geral, aparentemente desin- teressada e ito diretamente cficiente, eaté, sem vida, a ‘uma cultura humanista,& cultura em sentido estrito 3 DIVERSIDADE DOS METoDos E UNIDADE DE Visio ‘Acabamos de pir em evidéncia as estreitas relagBes de apoio mtituo e de complementaridade que existem atual- mente entre a cifncia e as téenieas, ao mesmo tempo que ressaltamos que as duas formas de conhecimento pertencem a duas diferentes orientades do pensamento, Tentaremos, ~e name espe pins ets © Pore do éa grande diversidade de ramos do saber reconhecidos hoje em diacomo citnciase, por outro lado, a facilidade com ‘que em toda parte se vé a palavra ciéncia sendo usiea no singular ste tema foi desenvolvido algum tempo atras pel tal ponto que uma das realizagies d ‘com Carnap, ehlicke von Neumann =, associado a0 grupo de Beelim (Reichenbach), tem 0 nome de Encilopidia Internacional da Unidade da Giéncia, Essa unidade era na época compreendida, pelo menos por alguns membros do Circulo, como 0 joven Carnap, num sentido muito forte. Com efeito, ela diz respeito, ao mesmo tempo, a uma uniforme estruturacio 6gico-matemitica do conhecimento cientificoe & possibi- lidade de exprimir numa linguagem dnica seus contetidos, empiricos, em qualquer drea, Nés entenderemos a unidade da cigncia num sentido mais fraco, que fan justiga de 2 1. Pluralidade dos métodos e anarquismo metodol6gico 1. Comegaremos apresentando € discutindo uma tese provocadora muito recente, de Paul Feyerabend, que tend ‘em sua forma mais excessiva—ao ressaltar a multiplicidad dos métodos, as lacunas das explicagbes cientficas ¢ a p ‘eariedade das teorias — a colocar a cincia no mesmo plant {que 0 mitos, as rcligides ¢ as ideologias, enquanto mei deconhecera realidade, Antes de esbogar sua argumentagi cconvém, sem dtivida, notar que o préprio Feyerabend sugere que nio se tome muito ao pé da letra essa atitude radical- mente cética e negativa: “O leitor ha de se lembrarde mim”, escreve ele (Contra 0 méiado, p. 18), “como de um dadaista! travesso, € no como um anarquista sério”. Ele também aproxima sua atitude da dos Sofistas, como Protéigoras, admitindo que péde, com teclo diteito, defender sucessiva- mente pontos de vista contririos, Seria justo, portanto, ‘tomar as suas posigdes mais exageradas cam grano sas, tanto mais, aids, que cle fez. contribuigdes sérias © cruditas & historia e 2 epistemologia da fisica contemporinca, 2. Uma das teses chaves desse filésofo ¢ seu “prinetpi de proliferagio”, segundo 0 qual xe deve encorajar “a inve Glo ea elaboragio de teorias que scjam incompativeis cor 0s pontos de vista admitidos, ainda que estes se veja solidamente confirmados ¢ sejam universalmente aceit (Philosophical papers, 1, p. 105). Isso significa que a critic® 1, Omovimento didsfsta, asco em Zurique vem Nows Vorkdursnte 2 Primeita Guerra Mundial er urs empreendimento de derssio e de nio-conformismo esttico. Feyerabend 0 contrapde, aqui, 30 snarquisma conscerade coma doutrina deal, também negativs, maseventualmente violenta deve ser refreada, mesmo a respeito das especulagdes mal cextravagantes: “A Ginicaregra que sobrevive € Tudo ¢ bom| (Contra 0 métado, p. 333). As orientagies prévias sio fet pata serem desrespeitadas, as exigéncias para serem dribl as, os programas para aio serem seguidos. Teorias que contradizem podem ~ ¢ devem — ser simultancament reconhecidas. Feyerabend dé exemplos tomados da hist das cigncias, mas que ndo io totalmente convincentes, uma ‘vez que essas incoeréncias ¢essas disparidades sempre foram vividas — pelo menos desde a tomada de consciéncia do ez digamos desde Galileu, Des- ‘cartes ¢ Newton no caso das cigncias da natureza —como se fossem situagées deplorsveis, provisérias € que justumente exigem 08 progressos que as resolvam ou mudem seus sermos. O aspecto pasitivo deste anarquismo consiste, se vida, numa critica violenta ao conservadorismo ¢ dogmatism, sublinhando a mobilidade do conliecimen| cientifico esua sberturaas novidades, Seu aspecto negat vem da insisténcia em considerar a diversidade, ou até incoeréncia, como um valor em si, € a indiferenga ¢ pprocurae ctitérios de decisio e de escolha entre as teori exagero este que,a meu ver, desqualifica a doutrina 3. A scgunda caracteristica que reteremos aqui da filo sofia de Feyerabend € sua identificagio provocadora d citncia a uma espécie de crenga mitica, “A ciéncia estd ma perto do mito do que poderiamos esperar depois dle um Uiscussio filoséfica” (Contra 9 méiado, p. 334). Ele a aprox ma, por exemplo, das mitologias afticanas tradicionais, porque estas, comoa cigncia, “procuram uma unidade ocul- ta sob uma aparente complexidade” num contexto causal “mais amplo do que 0 contexto causiloferecido pelo senso comum" (ibid.). Nestas condigbes, Feyerabend prope u centre o Estado ea ciéncia”. “Nao petmitiremos separa diz ele, “que os cientistas, esses ‘escravos voluntsrios, im ponham sia ideologia a nossos filles". Ho de nos deixar livres para substituirmos, se quisermos, uma educag tifica “pela magia, pela astrologia ou pelo estudo das len- skit diittin meta — crengas de base, como a tcoria da evolugio ou a teoria dos quanta” (ibid, in fine). SEED pn ee refutadas por um discurso légico, pois imediatamente in- vvocam contra o refutador a impossibilidade de fundamentar por clas. Nem por isso elas deixam de ser claramente cegas as realidades. Certamente, hi diferengas irredutfveis entre eae healer elton cexistem —quem nio.as ve?—diferencasentre os eves de uns principio, o direito de escalher um séncro de vida depen natureza, Na realidade, essa liberdade de principio dificil- ambiente, que exerce sua pressio sobre nds, mas também, ‘sem diivida, em raziio da educagiio mais ou menos racional, dos, Em todo caso, a identificacio do conhecimento cient ficocom um mito ou com uma ideologia parece uma pi cagio que nio poderia bastar para justificaraidéia simplis 4, “A multiplicidade e sobretudo a heterogencidal dos modos de conhecimento dos fendmenos caracterizamy de fato, ndo 0 periodo atual da cigncia, ¢ sim Ji mencionamos divers. no século XVII, de uma forma de conhecimento considerada ainda hoje como cien- tifica. Na verdade, existem dus desenvolvido, muito antes, conhecimentos que ainda hoje esignamos como ciéacias: 0 das matemiticas ¢ 0 da astro- vvezes uma tomada de conscignci as em que se haviam rnomia, Mas a exploragio dos fendmenos da naturcza que nfo (05 movimentos regulares dos astros, embora muito ativa, cefetuava-se na Antigiiidade e na Idade Média de maneira, por assim dizer, anérquica e dispersa, Faltava um quadro tunificador, nfo 6 unificador dos meios e dos métocos, mas sobretudo, ¢ mais profundamente, da propria idéia do “ob- jeto a ser descrito", do tipo de explicacio esperada dos fendmenos observads. IL. Trés tracos caracteristicos da visio cientifica 1, De fato, € como mania de visae seus objetos que © fico se diferencia essencialmente de qual- pensamento cient ‘quer outra expécie de conhecimento (por exemplo, do co- nhecimento perceptive, mas sobretudo de conhecimentos que envolvem elementos préprios do sujeito que conhece,, como conhecimento que temos, ou cremos ter, de outrem € de seus estados de espitito). A posigio caracteristica assumida ante seus objetos nio acarrcta de modo algum, alis, para 0 pensamento cientffico, « unicidade de wm me todo, se dermos a esta palavra o sentido estrito de um conjunto de procedimentos ordenados, amplamente inde- pendentes da natuteza dos objetos a conhecer. Exister alguns métodos cientificos, mas um espitito € um 6 tipo de visio propriamente cientifica. Assinalarci trés tragos deste tipo de visto, bastante gerais para revelarem a unidade da ciéncia, bastante especificos para a diferenciarem nitida- mente das atitudes no cientificas. 2, Pee ST A = certo, a nogio de realidade @um conceito Hiosalico que seria ‘vio, ¢ errdneo, querer defini antecipadamente, por exem= plo, em termas cientificos. Ela € 0 que chamo um “met conceito", que se aplica nao diretamente a experigncia sim a reptesentagSes da experiéncia. Contudo, a expres (GGRGTAIED tc, sim, um sentido. la ontrape8 visio que ciéncia quer mantertoaatitude que no comporte a busca constante ¢ laboriosa de uma demat- cago dos produtos clo devancio eda imaginacio, Nio que a imaginagio iaventiva nio desempenhe um papel esencil ‘na invengio dos conceitos cientificos. Muito pelo contréti a criagio cientifica &, nesse sentido, uma espécie de poesia. ‘Mas 0 poder imaginativo exerce-se, eno, na produgdo de concte que devem sempre estar orientados pata a descriglo ot past a organizacio de datos que resistam ts nosis fantasias. Certamente, aciéncia é uma representacio abstr| ta, mas eapresenta, com rai, como representagio dor 3. © segundo trago que gostariamos de sublinhar remete-nos is observagdesfeitas no Capitulo segundo acerca dda técnica ‘Ja citamos a famosa frase de Descartes no Discurss do métade: “tornat-nos como que se ores. proprietirios da naturcza” (6*patte, p. 168). Ecerto {que naquele tempo (1673), em que um conhecimento cin tifico da natureza comecava a se separar de especulagies, incapaues de qualquer aplicagio ¢ até, muitas vezes, de ‘qualquer controle, a idéia de uma “utilidade” da ciéncia aparece como a revelagio de um cariter novo eessencial, Mas ‘no poderfamos calar-nos sobre a prioridade que éconcedida pelo pipe Des cc Io” Aegis de Gatun ae tes ce ex inicialmente (ibid., 3* parte, p. 144), E 0 que pensou fazer, ao publicar seu Méado, com os seguidores dos antigos fildsofos foi como “abrir janclas c fazer entrar luz nesse porto conde scram pare Sig Ghats & gate pooh Ae maravilhas que Descartes espera realmente da aplicagio das felicidade dos homens, pela “invengio de uma infinidade de artificios...principalmente paraaconservasio da sade..." (ibid,, p. 168), 20 uma conseqiiéncia da busca da verdade € da satisfagio propria que cla proporciona Assim, nio identificatemos, em scu nome, as invengbes técnicas, cuja proliferagio ele previa, ¢ 0 desenvolvimento das cigncias, ao mesmo tempo que reconheceremos, como fizemos no capitulo anterior, a signifca;io (eo CGRRIOENONIAD 00 9 cnc to ene deserdesinteresada eaté, de certa mancira, Idica: a busca do saber pelo cientsta € um trabalho intenso, mas também wgo. De qualquer forma, 4. O iiltimo trago de uma visio cientifica de conheci- mento que gostaiamos de assinalar 64 preacupagio conse tant or ARRAS salves aceca cs experi cin $6 € cientfico se contiver indicagBcs sobre a mani como foi obtido, suficientes para que as suas condig ossam see reproduzidas, Se st tratar da avaliagio de unl frandeza empiriea, serio fornecidos limites de aproximacto car apto- co, devern {que permitam julgaro significado de uma veri ximada. Se se tratar de um enunciado matem: sempre estar associadas ao teorema proposto is hipoteses, 3s definigdes € ao conjunto de regras aemitidas de demonstra~ Glo, Assim, 0 conhecimento cientifico € necessariamen piiblico, ou seja, exposto ao controle ~ competente — ‘qugm quer que seia, crdade que, entlo, seja preciso levar em conta um duplo fato cpistemolégico essencial: a saber, que earamente um enunciado cientifico tomado isoladamente tem um sentido completo eque, por outro lado, a verificagio de uma teoria considerada como um todo levanta dificuldades de prinefpio, No que diz eespeite ao primeito ponto, observa remos que uima proposigio cientifica é uma combinacio de conccitos cujo sentido pode ser determinado por operastes materiais determinadas, que podem clas mesmas depend secundariamente de uma teoria geralmente mais elements (por exemplo, o valor de um peso depende de uma teoria da alavanca, se for estimado em uma balanca). Mas 0 sentido esses onceitos 6, na maioria das vezes, determinado igual- ‘mente pot suas relagdes miituas num sistema de objetos ¢ de operagdes tedricas (por exemplo,a nagio deentropia na termodinimica). O controle de um fato cientifico, portanto, ‘lo se reduz quase nunca 3 meta observagio de um aconte- cimento clementar, embora ele sempre comporte necessa rlamente uma tal fase, como o balizamento de uma agulha um mostrador. A verificagio de um fato cientifico depen- le, pois, de uma interpretapZo, mas de uma interpretagio }denada, no interior de uma teoria explicita Assim, somos levados de volta 4 questio da verificagio da teoria, Precisemos logo de safda o sentido que convém -aesta palavra, Chamo “teoria” um conjuntode enuncia- » atualmente formulados ow potencialmente formulié- is, Este conjunto deve ser fichado pata cettos procedimen- 3s de cledugio que Ihe sio préprios, ou seja, toda sentenga sduzida de sentencas pertencentes & teoria deve ser tam- im uma sentenca da teoria. Deve-se considerat que a predigio de fatos € uma condigio nevessdria e suficiente de validagio de uma tcotia? O exame das vicissitudes da his t6ria das cigncias mostra que uma tal posigio € brutal demais, Sem davida, uma teoria que nada predissesse, ou redissesse uparentemente ao acaso, s6 poderia ser suspeita, Jas se quisermos sustentar que 0 poder de predigao € uma nclisio neesdria de validacle, €importante considerar que «8 teoria cientifica em geral ni trata clizetamentede fatos fais, c sim do que chamarei de fatos virtuais, ox seja, de 0 esquiemiticos, completamente determinadds ma rede decon- os da prptia tcotia, mas incompletanente deerminadesen- ino redlizdveis aqui eagora numa experiencia. Para tomat um exemple muito simples, 0 tempo ¢ a velocidade de queda de um corpo pesado num campo de gtavidade de intensidade conhecida sio perfcitamente determinados ‘numa teoria mecinica elementar, como fut virtuais. Essa {coria, porém, nio determina completamente 0 fato tual da ‘queda, ¢ de modo algum pretende determini-lo, Escapam- Ihe citcunstincias, de que eventualmente dari conta uma tcoria mais completa (por exemplo, a resisténcia do ar, a variagio da intensidade do peso em fangio do quadrado da distincia do centro da Terra ete.); mas também, ¢ mais radicalmente, o fato virtual da teoria foi voluntariamente despojado de condigdes histércas singulares que co-determi- ‘nam, com uma influéncia maior ou menor, 0s fatos atuais, obscrvados. © poder preditivo de uma tcoria é, portant realmente um critério de validade, mas apenas dentro imites atribuidos a essa predigio pelo cardter parcial ment indeterminado do fato virtual, gran de indeterminagio est que varia muito conforme as teorias, Mas, reciprocamente, deve-se considerar que a predigio de fatos atuais seja uma condicio snficione de validagio de uma teoria? A questio foi debatida sobretudo a propés dda nogio de “experi¢ncia crucial”, introduzida jé por Roger Bacon, 0 “doutor admirivel”, no século XII, ¢ criticada por Pierre Duhem (A teoria fisica, 1906). Existem realmente experiéncias cujo resultado autorize rejeitar uma teoria € admitira sua rival? As doutrinas “holistas” (do grego bolas todo) recusam-se a admiti-lo, pois objetam que sempre é possivel modificar parcialmente a teoria em dificuldade, de ‘mancira que ela admita e se possfvel predigao resultadoem, questo, Alguns (Quine) chegam até a reconheccr a legiti- midade de uma eventual modificagio dos fandamentos, matemiticos ¢ légicos de uma teoria, recusando-se, assim, ‘a conceder um estatuto privilegiado a esses quadros consi- derados normalmente a priori e, por conseguinte, imunes as acasos da experiéncia. ~ 5. Essas trés caracteristicas, que acabamos de obseevar, de toda visio cientifica do mundo nio constituem, porém, como se vé, um mééado propriamente dito. Sabemos, no entanto, que Descartes, querendo determinar as regras de todo conhecimento cientitico, intitula sua obra: Do méiado, Gostarfamos, agora, de explicar © uso que ele fee dessa palavra, Lembremo-nos, inicialmente, destes quaitco céle= byes preceitos, traduzidos diretamente do admirivel origi- nal de seu autor: *°O primeiro era nunca admiticalguma coisa como verda- deira sem que a conhecesse evidentemente como tal *°O segundo, dividir cada uma das dificuldades que exa- ‘minasse em tantas parcelas quantas pudesse¢ fosse preciso para melhor resolvé-las." : +O terceizo, conduzir por ordem meus pensamentos, co- megando pelos objetos mais simples ¢ mais Ficeis de conhecer, pata clevar-me pouco a pouco, como que por degraus, até 0 conhecimento dos mais compostos, supon- do até certa ordem entre aqueles que ndo se precedem naturalmente uns 20s outros. © dltimo, fazer sempre enumeragdes tio completas € revisbes tio gerais, que ficasse certo de nada omitir. ‘Trata-se, aqui, realmente de regras, , por conseguinte, parece que podemos legitimamente filar de método. Po- 6m, embora esse método tena provavelmente inspirado a Descartes sua invengio matemiitica da solugio das equagbes algébricas, ele €apresentado como um método muito geral, rio s6 pata “procurar a verdade nas citncias", mas também para “bem conduzir a razio". Hoje, esperariamas que um método fornecesse instrugdes mais pormenorizadlas, € ja € isso o que Leibniz pede quando, numa carta a Jean Gallois (outubro de 1682), censura Descartes por estabelecer como principio que “tudo o que se concebe clara ¢ distintamente 6 verdadeiro”, mas sem “dar marcas para reconhec®-lo". A chave desta divergéncia sobre a concepgio do métoco nos é, alids, dada por uma observagio do préprio Leibniz, numa carta a Conring (19 de margode 1678), que nota de descobertas feitas, até agora, através dos princtpios car- tesianos, nas ciéncias da natureza ou nas artes mecinicas” fi gue'se deve distingiile o'qiie os epistemologae anglo- saxies contemporineos chamaram de “contexto de desco- berta” e“contexto de justificagio”, ¢ que um deles, N. R. Hanson, designa respectivamente, de mancira pitoresca,, como as “técnicas que permitem ir pescar as hipéteses cientificas” eas “reccitas de cozinha com as quaisasseevimos a mesa’? As regras cartesianas pertencem, pelo menos no ao contexto de dos que diz respeito as cigncias da empitia, justificagto, que estd mais relacionado com a valie YY acti une logiqee de ls découverte scientifique’, in P. Jacob (Org, De Vie Cambridge, Pris, 1980, 424 ‘enunciados cientficos do que com sua descoberta, O obje- tivo de Leibniz era, pelo contritio, constituis uma “arte de inventar", que ele acreditou poder ser estritamente “légica", 3. AA propriedade « € facilmente compreendida e relacio- nada com objetos que se oferecem aos senticos. Contudo,, importa observar que a verificagio de no pode ser reali- ada de mancita satisfat6ria no espaco intuitivo explorado ‘pelos nossos sentidos da visio do tato. que o matemitico dquet dizer por « nfo & apenas que as tes Linbas puxaadas a réguia dos tes vrtices de um igulo, efetivamente dese- tnhadlo, até que os meios dos lados opostos parecam cortar-se ‘num s6 ponto. Ele nos garante que objetos “ideais” (retas, ‘sem espessura ¢ pontos sem dimensio) satis riamente o enunciado. fazem necessa- CO enunciadod, que no € senio.a proposiglo 20 do livro 9 dos Elementns, de Euclides, aparentemente nfo desper ‘nenhum assentimentoou dissentimento intuitive. Um nie mero primo é um inteico natural que s6 € divistvel por mesmo ¢ pela unidade. Por que a lista desses timeros se deteria na seqiiéncia dos niimeros inteiros? Por que nio se deteria? A demonstragio de Euclides, muito simples, e por isso mesmo exemplarmente bela, t#sz-nos, portanto, 0 ¢o- tihecimento de uma propriedacle imprevi cl desses obje- tos, ideais, mas facilmente manipuliveis, embora resisten- tes 3 nossa fantasia, que sio os nimeros, Quanto a proposigio , ela tem naturalmente com que intrigar, peimeiro, quem ignora o que é um corpo,* nogio,, porém, de que hé exemplos familiares a quem sabe operat algebricamente com as fragdes, que formam 0 corpo dos racionais, Outro exemplo muito conhecido de corpo seria 0 conjunto dos chamados niimeros “reais”, dotado das oper bes al gébricas usuais de adicio e de subtragao, de multipl cago e de divisto, Um exemplo de corto finite, um pouco ‘menos imediato: 0 conjunto das classes de inteiros milo lum niimero primo p, onde sio considerados idénticos os ntimeros que tém © mesmo resto na divisio por p, e sobre 0 qual incidem as operagbes algébricas ordiniias, tomando, como resultado também médilo p (0), (1), (2) representario as classes nda 3, ¢ teremos, por exemplo, (0) + (1) = (1) €(1) + (2) = (0). A explicitagio de conceito de corpo, para a qual cvitaremos supor que as operagies sejam necessaria- mente comutativas (quea xb eu + bsejam obrigatoriamen- te iguais a 6x ae 6 + a), nao é, porém, de modo algum imediata, Este objeto matematico, jf muito abstrato, foi ‘uma das principais conquistas da algebra do século XIX, Quanto a propriedade enunciada por «claro que cla no deriva direramente dessa definigio do corpo, sendo totalmen- te inesperada; sua demonstragio, aligs, envolve um meca~ rnismo muito complexo, apesar da simplicidade da formu- lagio dee A proposigio d é 0 famoso “iltimo teorema de Fermat", cuja demonstragio ele nio nos deixou, do qual nio se conhece nenhum contra-exemplo, ¢ que até hoje vem lesa fiando 0 genio das maiores aritméticos. Assim, no s6 no sabemos se ele € verdadeiro, como também se ¢ decidivel, ‘ou seja, demonstrivel ou refutivel 2. Treqtientemente se contrapiem duas concepges a tama concepeo dita "plat€nica” do objeto matemitico: uma “empirista”, outta “nominalista”. Segundo a primeira, ele seria simplesmente titado da experiéncia por abstragio; de acordo com a segunda, ele se reduziria a convengées ¢ a consteugdes lingilistcas, a jogos de simbolos wazios de qualquer tealidade. A tese empirista, que pareceria estar de acordo com os primeiros deseavolvimentos de uma geome- ‘tia, parcce-nos, porém, diffcil de defender, dada a extrema abstragio de alguns dos conceitos mais mocernos das mate- miticas, cada vez mais rebcldes a uma apreensio intuitiva, a no ser em vista de uma longingua ¢ aproximativa ilus- traci, A tese nominalista, que afitma o carter puramente simbélico dos objetos matemsiticos, depara-se com o fato ‘consiclerivel do sucesso de Sua aplicago ao mundo empitico, assim como com o reconhecimento de propriedacles nao demonstradas (talvez indemonstriveis) de alguns objetos, no entanto, perfeitamente bem definidos. A ttse “platdni- ca", que afirma a realidade especifica e, por assim dizer, supra-sensivel dos seres matematicos, péc certamente em cevidencia um aspecto incontestavel desses objctos:a saber, sta consisténcia, a resisténcia que eles opem ao pensamen- to, Ninguém poderia, sem contradigio, recusar uma pro- priedade dos niimeros primos se, relacionando-se com um rndmero finito de casos, ela pudesse ser verificada ou se, no «aso contri, ela pudesse ser demonsteada, Mas coloca-se «a questiio de interpretar essa realidade, essa aparente exte- tioridade relativamente ao pensamento ¢ sua dupla relagio com o mundo empitico e com o simbolismo. A hist6ria das matemsticas parece apresentar uma clas- sifieacio por assim dizer natural dos objetos. Os antigos distinguizam nitidamente, primeiro, objetos geométricos, (65 mais claborados € notiveis, dos quais foram, durante muito tempo, a5 secgdes cOnicas e os poliedeos regulares;

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