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a africa de arthur bispo do rosario n1975 sconeceno levante de Soweto, uma manifestagao de milhares de estudantes negros que reivindicavam mais direitos na educagao na Africa do Sul dominada pelo Apartheid, regime oficial de segregacao racial, Dezenas de mani- festantes foram mortos pela policia e 0 evento tornou-se um simbolo ‘mundial da luta contra o racismo. Naquele ano, Tim Maia langou um LP que continha a miisica “Rodésia”: “Em Guiné Bissau, nao esta le- _gal/muito menos na Rodésia/Africa do Sul pegue o sangue azul/mande para as cucuias” A letra ainda chama para a luta “meu irmao de cor/ pegue o que é seu/ Viva livre em paz/ Pois a sua terra é esta” A misica tocou no rédio, virou clipe do Fantéstico com cenas das lutas na Africa, chegou aos coragées. Maia se juntava a um grande movimento da difs- pora africana que cada vez mais sentia os problemas que os negros de todas as Américas, Europa e do continente africano compartilhavam. Nessa época, Arthur Bispo do Rosério, ex-pugilista, ex-marujo, ‘extrabalhador de companhia de transporte urbano, ex-empregado doméstico vivia de sua arte (no sentido existencial) e morava na Col6- nia Juliano Moreira, um asilo psiquidtrico no subuirbio carioca, onde passou 0s tiltimos 25 anos de sua vida, finda em 1989, Ele nasceu em 1909 ou 1911 numa drea antiga de cana de agiicar em Sergipe, que antes fora um aldeamento indigena, frequentou a escola de aprendizes ma- rinheiros em Aracajii e migrou para o Rio de Janeiro com cerca de 15 anos para sentar praca. Bispo condensa a histéria do Brasil. Na década de 1970, ele aos poucos transformou em atelié de Ali, ele principalmente bordava, mas também pintava, fazia objetos a par- tir de todo material disponivel que Ihe doavam ou que ele mesmo encontrava no espaco gigantesco da colénia, entre eles o fio azul de velhos uniformes dos internos. © artista nos legou centenas de obras hoje em dia consagradas na hist6ria da arte nacional. Dentre elas a série de faixas de misses, tanto internacionais como dos es- tados brasileiros. Em 1980, disse numa entrevista ao Fantdstico que lia os jornais todos os dias, anotava fatos de interesse e os guardava em pilhas, Na imagem, onde se vé a pitha de jornais, ele esta bordando a faixa da Miss do Afeganistio, pais que havia sido recentemente invadido pela Unido Soviética. Bordados nas faixas, esto os nomes de cenrios dos combates da primeira fase da guerra. Bispo no seu inventério do mun- do, registrava o tempo que viveu, ainda que vivesse confinado. As noticias das lutas na Africa contra 0 colonialismo e a segrega- 20 racial também estavam nos jornais. Entre as trés faixas de misses de paises africanos bordadas pelo Bispo, duas so da Africa do Sul € da Rodésia, Eram os dois tinicos paises, que a despeito de serem independentes da Europa, ainda nio haviam se livrado do governo dos brancos, que mantinham um regime de segregacHo racial oficial. Na faixa da Africa do Sul aparece o “subtirbio segregado de Sowet” em meio a virias localidades. A tradugo de Apartheid é regi me de segregagao. Na faixa, Bispo esti atento a esse trago do pais a0 usar precisamente a expresso *subiirbio segregado” No verso da faixa da Rodésia aparecem as expresses “subiir- bios brancos” e “subiirbios negros de Salisbury” Bispo borda essa arte, celas de uma ala que estava em desuso na Coléni: 28 silvana jena Faizas das misses ‘Arica do Sule Rodéia, Mapa da ‘Aiea sem data Colegio atasew Diop do Resirio/ Prefiture de Cidade do Ria de Janeiro. Aolador Bispo, marsjo ugilista. Gazeta de Noticias 22 dee 1929 faixa no periodo em que a Rodésia se transforma em Zimbabwe depois de uma longa luta dos negros contra o governo de minoria branca. No segundo semestre de 1979 o pais chegou a ser chamado de Rodésia-Zimbabwe. Eleigdes presidenciais foram promovidas, 0 partido negro ganhou e em abril de 1980 o pais passou a se chamar oficialmente Zimbabwe. Era um mapa politico dificil de desenhar. Bispo nomeou o pais de Rodésia, no entanto escreveu na lista de lu gares “estado do Zimbabwe” Imagino que essa faixa deve ter sido bordada entre 1979 1980. Um outro olhar que ele dirige & Africa é a reprodu- io fiel de um mapa datado, provavelmente entre 1980 a 1982, Era provavelmente um desenho de estudo, as divisdes politicas esto precisas e podemos ler escrito a mao todos os nomes de paises e capitais. & justamente Zimbabwe que data a obra. 0 nome do pais aparece, no entanto a sua capital ainda é Salisbury. A mudanea de nome da capital ocorreria em 1982, para Harare. A Africa de Bispo & aquela dos processos de descolonizagio e conffitos raciais. Ele é um artista negro cuja obra é marcada por seu confinamento/marginalizacio no hospicio de onde ele borda a sua meméria e visio de mundo. Bispo foi marinheiro, num tempo que os oficiais eram brancos e os marujos pretos e pardos. Quando lutou no boxe profissional, a cor da pele era evidenciada. Muitas vezes os cro- nistas nos jornais copiaram os americanos e chamavam os pugilistas negros de coloured, assim como faziam com os jogadores de futebol. Foi empregado doméstico de uma familia branca. Assim como a Ro- désia e a Africa do Sul daquela época, o Brasil era (e é) um pais no qual a maioria da populacao é de pretos e pardos, mas governado por brancos. E como disse Lima Barreto, igualmente internado num hos- no hospicio todo so negros ‘Go pobres” diz Caetano Veloso na cangao Halt Se essas obras de Bispo nao expressam um engajamento expli cito do artista como o de Tim Maia, elas sugerem, no entanto, um sentimento, uma petcepgio que a segregacao racial na Rodésia e na Africa do Sul vai ao encontro de sua experién: o artista genial estd na vanguarda do espirito da época. 0 olhar para a Africa dos negros brasileiros na década de 1970 tinha a ver com a revolta contra o racismo vivido pelos negros daqui e dali. 1978 é 0 ano da criagio do Movimento Negro Unificado em Sio Paulo du- Fante um protesto contra a discriminagio de quatro atletas num clube e a morte de um operério negro torturado numa delega- cia. Um dos integrantes desse movimento, o professor Abdias do Nascimento, militante negro fundamental na histéria da luta contra a discriminagao racial no pais e no mundo, afir- ‘ma com todas as letras no seu livro O genoeidio do negro no Brasil. Processo de um racismo mascarado (1978): “0 apartheid é uma politica que é separada, mas, igual a “democracia racial” no Brasil, Separaclas na geogra- fia enos respectivos métodos, porém iguais em seus pital psiquiétrico em 1920 Negros de brasileira. De novo, efeitos funestos 29

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