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Entre o dizer e o mostrar: a transcri¢ao como modalidade de enunciacao Valdir do Nascimento Flores RESUMO: Selon les présupposés théoriques de auteur, Panalyse des rela- tions énonciatives est développée avec le propos de montrer comment la lin- guistique de l’énonciation peut étudier la singularité de la transcription. Cet article propose une forme d’ approche de la transcription. PALAVRAS-CHAVE: Enunciagao; Transcrigio; Corpus. 1. INTRODUGAO E fato comum que a lingiiistica, em suas mais distintas versdes, quando trabalha com corpus de natureza falada, utiliza recursos de transcri¢io, normalmente, entendidos como formas de representagao grafica, mesmo que parcial, dos sons da lingua. Tais recursos sao variados e constituidos por sistemas de simbolos especiais que, em tese, representam 0 quadro te- 6rico no qual a pesquisa esta inserida. Assim é que hé diferentes sistemas de transcrigéo que atendem a necessidades especificas (fonéticas, fonol6gicas, sintaticas, conversacionais, variacionais etc.) e diferentes ex- pectativas a respeito do que deve ser preservado na passagem da fala ao transcrito. Esse tema nao tem recebido atencao por parte dos autores do campo da Enunciagao. O que se percebe é que, por um lado, as pesquisas concernentes ‘@ esse campo, com raras exce¢des, nao explicitam aspectos metodolégicos relativos aos mecanismos de tratamento dos dados. Por outro lado, isso se faz acompanhar de certa vagueza na compreensao, por parte de alguns, a Valdir do Nascimento Flores é professor de Lingua Portuguesa do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador do CNPq. Organon, Porto Alegre, n® 40/41, janeiro-dezembro, 2006, p. 61-75 61 FLORES, Valdir do Nascimento respeito de aspectos epistemoldgicos e metodologicos referentes a anilises enunciativas da linguagem. Assim, tem sido comum, no meio especializa- do, encontrar quem indague: como se faz uma andlise enunciativa da lin- guagem? Como ¢a metodologia da teoria da enunciagao? © queé um dado na perspectiva enunciativa? Como se fazem transcrigoes compativeis com a visio enunciativa acerca da linguagem? ‘A explicitacao desses pontos impde-se como necessidade tedrica. Evi- dentemente, este trabalho nao tem a pretensao de trata-los integralmen- te, O interesse aqui é apenas em um ponto: a transcrigao. Os demais topi- cos nao serao mais do que tangenciados na medida em que isso se fizer necessdrio para abordar o tema em foco. Dessa forma, este trabalho, a partir do referencial da Lingitistica da Enunciagao (cf. Floress Teixeira, 2005) estuda a transcrigao como um ato de enunciagao, portanto, como algo da ordem da singularidade. Vale lembrar, contudo, que, quando se trabalha no escopo da Enunciago, necessariamente deve-se tomar uma posicao a respeito do su- jeito que enuncia. Pode-se estudé-lo, no minimo, em duas diresdes: a) como marcas delimitadas no sistema lingiiistico (¢ 0 shifter de Roman Jakobson, €0 aparelho formal da enunciagéo de Emile Benveniste, sio as operagdes de ‘Antoine Culioli); b) como instancia de fala - nao redutivel as marcas lingitisticas mesmo que nao prescinda delas - cuja abordagem transcende os limites da lingiifstica e imp6e recurso a exterioridades tedricas a Linguistica. Este trabalho alinha-se a esta segunda diregao. Logo, versa so- bre transcricao por um viés enunciativo e convoca exterioridades teéricas a lingiifstica, qual seja, a psicandlise lacaniana. Em suma, considerando-se que a enunciagao é um ato que no pode ser visto desvinculadamente do sujeito que a produz e considerando-se a clivagem estrutural do sujeito, cabe dizer que a transcrigao é, nesse caso, um ato de enunciacaio em que 0 “dado” a ser transcrito tem seu estatuto enunciativo alterado. A transcricao é, por esse viés, uma enunciagao sobre outra enunciagao.F, portanto, ato submetido a efemeridade da enunciagao que, por sua vez, est na dependéncia da impossibilidade de que tudo se diga, constitutiva da clivagem do sujeito! . a eeeeeeee Pee ‘Jean Allouch, em Letra a letra: transcrever, traducir, transliterar, também reflete sobre a trans- crigio no escopo da psicanslise lacaniana. No entanto, 0 caminho aqui sugerido (como Se ven trata-se de Ludwig Wittgenstein e de Emile Benveniste) embora nao oposto ao de Allouch, hao pode ser a ele aribuido. A partir da reflexio de Allouch e na relagio com enunciagio, ¢ importante ver o proposto em: SURREAUX, L. M. Linguagem, sintoma e clinica em clinica de linguagem. Tese de doutorado, Porto Alegre, IL/UFRGS, 2006. 62 Organon, Porto Alegre, 40/41, janciro-dezembro, 2006, p. 61-75 Entre o dizer e o mostrar: transcrigao como... Para dar consisténcia a passagem de uma instancia enunciativa a outra tal como definida na obra de Emile Benveniste - recorre-se aqui a distin- go entre dizer e mostrar presente no Wittgenstein do Tractatus Logico- Philosophicus, eretomada por Jacques Lacan, em especial, a partir do Semi- ndrio XX, mais ainda. Enfim, sugere-se que a transcri¢ao compée dois tempos na enunciagio que envolve a passagem do mostrar ao dizer: a) sen- do, de um lado, da ordem do mostrar, a transcricao da cena e, b) de outro, da ordem do dizer, a transcrig¢ao como uma outra enunciacao. ; Para facilitar 0 entendimento do que se pretende, em primeiro lugar, serao apresentados alguns pontos da distingdo entre dizer e mostrar estabelecida por Ludwig Wittgenstein (cf. 1); em segundo lugar, far-se-4 mengao a forma com Jacques Lacan opera com a distingao (cf. 2); em ter- ceiro lugar, busca-se explicitar 0 funcionamento enunciativo da distingao quanto aos aspectos da transcrigao (cf. 3). _Cabe ainda uma recomendagio: pode-se evitar a leitura das duas primeiras partes do texto - uma vez que nada mais é que uma retoma- da macante para aqueles que nao desconhecem 0 percurso — e passar- se de imediato a terceira parte, onde é formulada a proposta da trans- cris4o como uma modalidade de enunciagao obtida a partir da dis- tingdo dizer/mostrar. 2. DIZER E MOSTRAR A filosofia de Wittgenstein, em especial, no Tractatus busca, na andlise da linguagem, uma forma de realizacao da filosofia, através do estudo se- mantico da proposi¢ao. Um de seus objetivos’ € propor uma anélise da linguagem que permita compreendé-la a partir de uma légica interna, na relacdo desta com os fatos. Diz o filésofo: : O fim da filosofia & 0 esclarecimento légico dos pensamentos. A filosofia nao é uma teoria, mas uma atividade. Uma obra filoséfica consiste essencialmente em elucidagdes. O resultado nao sto ‘pro- posigoes filosdficas’, mas é tornar proposi¢ées claras. Cumpre a fi- losofia tornar claros e delimitar precisamente os pensamentos, an- tes como que turvos e indistintos. (Tractatus, 4.112). ? 0 leitor interessado nos detalhes do si: i it S istema tedrico de Wittgenstein pode reportar-s ‘textos de Russell (1993), Giannotti (1995), LLH.L. San ioedih nna 5 ), LHL. tos (1993) s, ri Bie cof (1599 s (1993) e outros, referidos em nota e ‘Organon, Porto Alegre, n° 40/41, janeiro-dezembro, 2006, p. 61-75 63 FLORES, Valdir do Nascimento Hé uma primazia da andlise imanente da linguagem, ou seja, ela mes- ma conteria suias propriedades e fungbes. A conseqiténcia da imanéncia da ogica da linguagem ¢ evitar que se diga do que nao se pode dizer. As condi- ges de possibilidade do dizer sio elas mesmas inexprimiveis. © Tractatus Logico-Philosophicus (1921/1993) trata das condigoes ge- rais que possibilitam que uma linguagem (seja ela qual for) fale do mundo, independentemente da natureza deste? H4. uma tese central‘ no Tractatus, segundo a qual “o que se pode em geral dizer, pode-se claramentes ¢ sobre aquilo de que nao se pode falar, deve-se calar” (Tractatus, p. 131). Com referéncia as condigdes do dizer essa tese constitui um inefavel. Bertrand Russell, na introdugao que faz ao Tractatus, parece ratificar esta interpretacao ao afirmar que “,.importam ao Sr. Wi ittgenstein as con- digdes de uma linguagem logicamente perfeita..” (Russel, 1993, p. 114). Fundamenta-se Russell naquilo que considera uma importante tese de Wittgenstein, qual seja, 0 caso de uma sentenga poder afirmar alguma coi- sa sobre um fato decorre de algo comum que haveria entre eles. Nao po- dendo este “comum” ser dito, mas apenas mostrado, pois qualquer coisa que se queira dizer precisa ter a mesma estrutura: “Portanto, tudo que esta envolvido na propria idéia da expressividade da linguagem nao deve admi- tir expressao na linguagem e ¢, portanto, num sentido perfeitamente preci- so, inexprimivel.” (p.126). ‘Assim, as condigdes de possibilidade do dizer nao podem, elas mesmas, serem ditas. Para chegar a essa sintese, Wittgenstein parte do seguinte raciocinio: denomina de afiguragao 0 modelo da realidade que representa a existéncia ‘ou nao de um estado de coisas (Tractatus, 2.11, 2.12, 2.13 e 2.14), sendo a figuragao (0 ato de afigurar) também um fato (Tractatus, 2.141). Assim, tem-se a seqiiéncia, adaptada do Tractatus, de forma a visualizar como cada principio lida com o que nele esté implicado: 1. figura-se 0 fatos A feeeeasase esa > Ducrot (1984) enfatiza que as pesquisas de Wittgenstein, indiretamente, dizem respeito 3 linguagem vulgar. Wittgenstein, a exemplo dos neopositivistas do Cireulo de Viena (entre cles Carnap), desconsidera, nesse momento, a linguagem vulgar, devide & impossibilidade dde dizer o mando de forma rigorosa, Estudar as condigées de possibilidade do dizer nao implica o estudo da linguagem vulgar, entretanto, a ela pode ser estendido jé ques lingua gem logica nd € indiferente a vulgar. Conseqentemente, ‘refletir sobre a8 condigdes que permitem as linguas légicas dizer o mundo é, pois, indiretamente refletir sobre a lingua- gem vulgar.” (Ducrot, 1984:471). Na verdade, os Tractatus € organizado em proposicdes, 7 20 todo, constitufdas por propost: bes subseqtientes, numeradas em decimal. 64 Organon, Porto Alegre, 1# 40/41, janeito-dezembro,2006, p.61-75 Entre o dizer e 0 mostrar. a transcrigao como... 1.1 a figuragdo representa logicamente a situagao (existéncia e inexisténcia de estados de coisas); 1.2.a figuracao é um modelo da realidade; 1.3 na figura¢ao, os objetos correspondem aos elementos da figura¢ao; 1.3.1 na figuragao os elementos substituem os objetos; 1.4A figuragao é um fato. Considerando-se que tanto as sentengas verdadeiras como as falsas (as proposi¢ées) dizem um estado de coisas (afiguragiio dos fatos) e tém algo os CORNET entre si e delas com o fato que elas afiguram, conclui-se pela a de que ambas compartilham algo com 0 fato. Wittgenstein chama de forma de afiguracao*” a este elemento comum: “O que a figuragado deve ter em comum coma realidade para poder afiguré-la 4 sua maneira - correta ou falsamente - é sua forma de afiguragao” (Tractatus, 2.17). Qualquer que seja a forma de afiguragdo, ela sempre deve ter uma for- ma légica comum com a realidade, isto é, a forma da realidade (Tractatus 2.18). Essa forma da realidade geral, independentemente do ponto de vista do qual o objeto é afigurado, é 0 minimo necessario para que haja afiguragao. Nesse sentido qualquer afiguragao (entre elas as proposigées) € ume afiguragao légica, sendo que a estrutura légica é a forma mais geral de afiguracao, logo, condigao de qualquer dizer. Russell diz, em sua Introdugao, que a representacao do fato pela sen- tenga depende dos sinais que nela estao, entretanto, as formas légicas nao sio tepresentadas por sinais “... mas estao presentes elas préprias, tanto na proposi¢ao como no fato.” (p.116), ndo podendo, contudo, represen- tarem-se. A esse respeito diz Wittgenstein: “Sua forma de afiguracao, po- rém, a figuragdo nao pode afigurar; ela a exibe.” (Tractatus, 2.172) [subli- di $ 2 te be aie ( , 2.172) [subli 2. A figuragao tem em comum coma realidade a forma de afiguragiio; 2.1 a afiguragao afigura toda a realidade cuja forma ela tenhas 2.2.a forma de afiguragao nao pode ela ser afigurada, somente exibida’; ¥ ee im algun momentos 0s Tractatus fala em “forma de representagio” para referit 0 que pode frente como form de aiguaso""s grate porén, no pode colon fora de ia forma de representacao” (Tractatus 2.174) Apenas uma observagioexpicatva o termo“exbido’ wtlizado no pardgrao anterios tem Hlesrio sentido de “mostrado’, neste. Conforme as tradugbes que consultei, “exibido” € lizado por Wittgenstein no cor po do Tractatus, mas na introdugao fei s peepee Wine Gao feita por Russel o termo non, Porto Alegre, n° 40/41, janeiro-dezembro, 2006, p. 61-75 65 | FLORES, Valdir do Nascimento 2.3 a figuragdo representa 0 objeto correta ou incorretamentes 2.4 A figuragao nao esta fora de sua forma de Tepresentagdo; 3, Se a forma de afiguragao é a forma logica, a figuragao ¢ figuracao logica. Russell, no final da Introdugao, formula uma objecao ao Tractatus nos seguintes termos: a atitude mistica de Wittgenstein relativamente a0 que nao pode ser dito deriva da doutrina logica, segundo a qual a proposis0 seria uma figuragao (verdadeira ou falsa) do fato e entre eles haveria uma estrutura comum. Tal estrutura possibilita a figuragao do fato, mas nao pode ser expressa em palavras, j que € uma estrutura de palavras da a ma forma que é a dos fatos aos quais ela se refere. A conclusao de Bertran Russell é formulada com extrema elegancia e mesmo genialidade: “o que provoca hesitagao € 0 fato de que o Sr. Wittgenstein, no final das contas, consegue dizer uma porgio de coisas sobre 0 que nao pode ser dito, suse. indo assim a um leitor cético que possivelmente haja escapatéria através de uma hierarquia de linguagens ou alguma outra saida.” (Russell, In: 3: 127). ae Raeae See Ecc para pontuar que a forma légica constitu ° que nao pode ser dito. A atitude mistica a que se refere Russell diz respeito ao fato de a tese de Wittgenstein conduzi-lo a negar que a forma logica ei afiguragao possa ela mesma ser afigurada. Fis 0 elemento mistico do gual fala Russell. Para chegar a esse ponto, Wittgenstein faz uma distingao fun- damental entre dois modos dea proposi¢ao representar a realidade. De um lado, 0 mostrado, de outro 0 dito. Em outros termos: 4. A proposigao pode representar a realidade, mas nao pode representar a forma légica que tem em comum com ela para poder representa-la; 4.1 O que se exprime na linguagem nao pode ser representado por meio dela; ; / 4.1.1 A proposigao mostra a forma légica da realidade. Se nao ha como a forma légica ser expressa em proposicoes, mas apenas mostrada, entao a formula “O que pode ser mostrado nao Pode ser dito” (Tractatus, 4.121) €a sintese da oposigao dito/mostrado. a por certo 0 inefavel. Isso se mostra, é 0 Mistico’ (Tractatus, 6.522) i Tr}. 7 eae tal paradoxo como a possibilidade de pensar numa hi- erarquia de linguagens. O proprio Russell adianta a contra argumentaga0 de Wittgenstein, dizendo que 0 mistico pode ser mostrado, embora Ee possa ser dito. Mas, mesmo assim, Russell confessa seu desconforto. or isso, sugere que a estrutura da linguagem possa ser dita através de outra 66 Organon, Porto Alegre, 40/41, janeiro-

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