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pretativa”,*®, podendo entio substituf-la — para contrariedade do experimentador — por outra melhor, a cuja Iuz sua teoria original- mente “refutada” recebe uma avaliagdo positiva.t9 Mesmo esse apelo, porém, nao pode fazer mais do que adiar a decisdio convencional. Pois a sentenca do tribunal de apelagdo tam- bém néo é infalivel. Quando decidimos se é a substituicao da teoria “interpretativa” ou a substituico da teoria “explanatéria” que pro- uz fatos novos, precisamos decidir outra vez acerca da aceitagio ou rejeicdo de enunciados basicos. Nesse caso, porém, teremos ape- nas adiado — e possivelmente melhorado — a decisio; nao a tere- mos evitado.'54 As dificuldades que dizem respeito a base empfrica com as quais se defrontou o falseacionismo “ingénuo” também nao podem ser evitadas pelo falseacionismo “sofisticado”. Mesmo que consideremos “fatual” uma teoria, isto 6, se a nossa imaginagdo limi- tada, de moyimentos lentos, nao puder oferecer uma alternativa para ela (como Feyerabend costumava dizé-lo), precisamos tomar, pelo ‘menos ocasional e temporariamente, decisdes a respeito do seu valor -de-verdade. Mesmo assim, a experiéncia continua sendo, num senti do importante, o “drbitro imparcial” > da controvérsia cientifica. 152. A critica n80 presume uma estrutura dedutiva plenamente inteli- givel: criaa, (A propésito, esia é a tese principal do meu ensaio de. 19654, "Proofs and. Refutations”) 153. Um exemplo éléssico desse modelo é a relagio entre Newton e Flamsteed, 0 primeiro astrOnomo real. Newton, por exemplo, visitou Flamsteed no dia 1." de setembro de 1634, quando trabalhava o dia inteiro em sus teoria Junar; pediuthe que reinterpretasse alguns dos seus dados, que lhe contra iam a propria teoria; © explicoulhe exatamente como deveria proceder, smsteed obedeceu © exereveu a Newton no dia 7 de outubro: “Depols que © senhor fol para casa, examinei minhas observagses para detceminar as maio- res equagSes da Orbita da terrae considerar os lugares da Ida nessas oca- sides... Veifico que (se, como o senhor afirma, a terra se inelina para 0 la em que esid a lua) 0 senhor pode descontar eerea de 20” dela...” Ass Newton criticava e corrigia constantemente as teorias observacionais de Flamsteed, Newton ensinowthe, por exemplo, uma teoria melhor dopo refragio da stmosfera; Flamsiced. a seus “dados” originals. Pode’ compreender-se a constante humilhaedo ea furia erescente desse grande: abservador ao ver seus dados criticados © aprimorados por um homem que como ele mesmo confessava, nio fazia observagses por si proprio: e descon muito de que foi esse seniimento a origem de uma rancorosa controvérsia entre. ambos. 154. O mesmo se aplica ao teresiro tipo de decisio. Se s6 rejetarmos uma hipétese slent6ria por outra que, a0 nosso entender, a suplanta, @ forma exata das “tegras de rejeigdo" se tomard menos impor 1945, vol. 11, capitulo Nao poderemos livrar-nos do problema da “base empfrica”, se qui- sermos aprender com a experiéncia 18°; mas podemos tornar nosso aprendizado menos dogmético — mas também menos rapido ¢ me- nos dramatico. Encarando como problematicas algumas teorias obser- vacionais podemos tornar mais flexfvel nossa metodologia, mas ndo podemos expressar e incluir todo 0 “conhecimento de fundo” (ou “jgnorancia de fundo”?) em nosso modelo dedutivo critico. Esse proceso esta fadado a realizar-se aos poucos e € preciso tragar uma linha convencional a qualquer tempo dado. HA uma objecio até para a verso sofisticada do falseacionismo metodol6gico qual ndo se pode responder sem fazer uma conces- implismo” duhemiano. A objecdo é 0 chamado “paradoxo ). De acordo com nossas definicdes, acrescentar hipéteses de baixo nivel completamente desconexas a uma teoria dada pode constituir uma “transferéncia progressiva”. E dificil eliminar tais transferéncias provisorias sem exigit que as assergdes adicionais devam ser ligadas a assergio original mais intimamente do que por simples conjungao, Claro esté que isso é uma espécie de requisito de simplicidade que asseguraria a continuidade na série de teorias que, segundo se pode dizer, constitui uma transferéncia de problemas. Isso nos conduz a novos problemas. Pois um dos tracos cruciais do falseacionismo sofisticado é substituir 0 conceito de teoria, como conceito da descoberta, pelo da série de teorias. E uma sucessdo de teorias endo uma teoria determinada que se avalia como cientifica ‘ou pseudocientifica. Mas os elementos dessa série de teorias costu- mam estar ligados por notavel continuidade, que os solda em progra-~ ‘mas de pesquisa. Essa continuidade — que lembra a “ciéncia nor- mal” kuhniana — desempenha um papel vital na histéria da ciéncia; 0s principais problemas da Idgica da descoberta s6 podem ser satis- fatoriamente discutidos na estrutura de uma metodologia dos pro- gramas de pesquisa ~ 3. UMA METODOLOGIA DOS PROGRAMAS DE PESQUISA CIENT{FICA Discuti o problema da avaliagéo objetiva do crescimento cient{- fico em termos de transferéncias progressivas © degenerativas de pro- 156. Agassi, portanto, esti errado em sua tese de que “os relatos de obseryagdo podem ser accitos como falsos ©, por conseguinte, assim se elimina © problema da base empirica” (Agassi, “Sensationalism”, 1966, p. 20). 161, blemas em séries de teorias cientificas. As mais importantes dessas séries no crescimento da ciéncia caracterizam-se por certa continui- dade que liga seus elementos. Essa continuidade se desenvolve de io. O progra- ‘ma consiste em regras metodolégicas; algumas nos dizem quai os caminhos de pesquisa que devem ser evitados (heurist va), outras nos dizem quais so os caminhos que devem ser pal Ihados (heuristica positiva) 157 negati- A prépria ciéncia como um todo pode ser considerada um imen- so programa de pesquisa com a suprema regra heuristica de Popper: “arquitetar conjeturas que tenham maior contetido empfrico do que as predecessoras.” Essas regras metodoldgicas podem ser formuladas, como Popper assinalou, como princfpios metaffsicos.18* Por exemplo, a regra anticonvencionalista universal contra a exclusio da excecio natureza nfo Mas o que tenho sobretudo em mente nfo é a ciéncia como um todo, sendo programas particulares de pesquisa, como o conhecido por “metafisica cartesiana”. A metafisica cartesiana, isto é, a teoria de acordo com a qual o universo é um de reldgio (e um sistema de vértices) que tem o impulso como tinica causa do movimento — funcionou como pode- so principio heuristico. Desestimulava o trabalho em teorias cien- tificas que — como [a versio “essencialista” da] teoria de Newton de aco a distincia — fossem incompativeis com ela (heuristica ne- sativa) e, de outro lado, estimulava o trabalho sobre hipéteses auxi- programas de pesquiss mais do que das do ponto de pais oul ualieartia aaa ante taeacanel oot 159. Watkins, adverte que “a lacuna l6gica entre os enunciados e as prescriy metafisicometodolégico & ilustrado pelo fato de poder uma pessoa time doutrina (metafisica] em sua forme de expocgao de fatoe enquanto Ihe subscreve a versio prescritiva” (Ibid., pp. 356-7). 162 liares que poderiam té-la salvo da aparente evidéncia contréria — ‘ica positiva) 100 negativa: 0 “nticleo” do programa, jentifica podem ser caracte- do programa nos proibe Ao invés disso, precisa- programas de rizados pelo “nticleo”. A heuris que formam um cinto de protecao em tomo do mi- amos reditigir 0 modus tollens para elas. B esse cinto de protecdo de hipéteses auxiliares que tem de suportar o impacto dos testes e ir se ajustando e reajusando, ou mesmo ser completa- mente substitufdo, para defender o micleo assim fortalecido. O pro- grama de pesquisa seré bem-sucedido se tudo isso conduzir a uma transferéncia progressiva de problemas, porém mal sucedido se con- duzir a uma transferéneia degenerativa de problemas _O exemplo clés programa de pesquisa j4 levado a cabo, Quando foi pela primeira vez, viu-se submerso num oceano de “anomal rem, de “contra-exemplos”),!® © enfrentou a opo: teorias observacionais que sustentavam tais anomalias. Os newtonia~ nos, contudo, transformaram, com tenacidade e engenho brilhantes, um contra-exemplo depois do outro em exemplos c teorias observacionais originai mos produziram novos contra-exemplos, que novamente resolyiam. “Converteram cada nova dificuldade numa nova vitéria do seu pro- grama”162 No programa de Newton a heurfstica negativa nos sugere que desviemos o modus tollens das trés leis da dinimica e da lei de gravi- taco de Newton. Esse “nécleo” é “irrefutavel” por decisio metodo- 160, Sobre esse programa de pesquisa cartesiano, ef. Popper, *Philoso- phy and Physics”, 1958, e Watkins, “Influential and Confirmable Metaphysics", Sobre o esclerecimento dos conctitos de “exemplo contrério” © cf. mais acima, p. 133, ¢ sobretudo mais adiante, p. 195, 0 texto A nota de pé de pagina n? 251 tulp {82 MBP Exposition du Systeme du’Monde, 1796, wre IV, expt loi. 163 : as anomalias s6 devem conduzir a mu- Iogica de seus protagonist it am da hip6tese auxiliar, “observacional” € dangas no cinto “protetor das condig6es iniciais.4° Dei um microexemplo inventado de uma transferéncia progres- siva newtoniana, de problemas. Se o analisarmos, veremos que cada elo sucessivo nesse exercicio prediz um fato novo; cada passo sepresenta um aumento do contetido empfrico: 0 exemplo constitui uma transferéncia tedrica coerentemente progressiva. Outtossim, ca- da predigdo se verifica no fim; embora em trés ocasiGes subseqiien- tes as predigdes parecam ter sido momentaneamente “refutadas”.189 Ao passo que 0 “progresso tedrico” (no sentido aqui descrito) pode ser verificado imediatamente,1® 0 “progresso empfrico” no pode, ¢ num programa de pesquisa somos, &s vezes, frustrados por uma lon- ga série de “‘refutacdes” antes que hipdteses auxiliares, engenhosas e felizes, capazes de aumentar 0 contetido, convertam — retrospec- tivamente — uma cadeia de derrotas numa ressoante historia de su- cesso, quer revendo alguns “fatos” falsos, quer acrescentando novas hipéteses auxiliares. Podemos dizer entio que precisamos exigir de cada passo de um programa de pesquisa que aumente consistente- mente 0 contetido: que cada passo constitua uma transferéncia ted- rica consistentemente progressiva de problemas. Além disso, 86 pre- cisamos, pelo menos de vez em quando, que se veja que o aumento de contetido foi retrospectivamente corroborado; 0 programa como um todo deve também exibir uma transferéncia empirica intermiten- temente progressiva. Nao exigimos que cada passo produza ime- diaiamente um fato novo observado. Nosso termo “intermitentemen- te” dé suficiente amplitude racional para a adestio dogmética a um programa em face de “refutagdes” prima facie. A idéia da “heurfstica negativa” de um programa de pesquisa cientifica racionaliza de forma consideravel 0 convencionalismo clis- sico. Podemos decidir racionalmente n3o permitir que “refutagées” transmitam falsidade ao nticleo enquanto aumenta o contesido empi- rico corroborado do cinto protetor de hipéteses auxiliares. Nossa 165. O nficleo real de um programa nio emerge, na realidade, comple: tamente armado — como Atenas da cabeca de Zeus. Desenvolve-se aos pour cos, por um longo processo preliminar de ensuio--erro. Neste ensaio nfo se Bicsteio lcs unc se al ae 16k. Cf. mais acima, pp. 120-1. i. 5, A “tefutacéo” foi, todas as vezes, desviada com éxito para “lemas isto é para lemas que emergem, por assim dizer, da cléusula ceteris le CaN abordagem, porém, difere do convencionalismo justificacionista de Poincaré no sentido de que, & diferenca de Poincaré, sustentamos que na hipétese de o programa deixar de antecipar fatos novos, e quando isso acontecer, 0 seu micleo talvez tenha de ser abandonado; isto é, © nosso niicleo, a diferenca do de Poincaré, pode desintegrar-se em certas condigdes, Nesse sentido estamos com’ Duhem, segundo 0 qual era preciso tomar em consideraciio essa possibilidade; 187 mas para Duhem a razio da desintegracio ¢ puramente estética,!® ao passo que para nés ela é sobretudo ldgica e empirica. (b) Heuristica positiva: a construgdo do “cinto de protecdo” ¢ a relativa autonomia da ciéncia tedrica. Os programas de pesquisa, além da sua heuristica negativa, ca- racterizam-se também pela sua heuristica positiva. Até os programas mais répida e coerentemente progressivos de pesquisa s6 podem digerir sua “evidéncia contréria” aos poucos: as anomalias nunca se esgotam de todo. Nao se deve pensar, porém, que anomalias ainda néo-explicadas — “quebra-cabecas” como Kuhn Ihes poderia chamar — sao compreendidas 20 acaso, e 0 cinto de protecao construfdo de maneira eclética, sem nenhuma ordem pre- concebida, A ordem costuma ser decidida no gabinete do teérico, in- dependentemente das anomalias conhecidas. Poucos cientistas te6ri- cos empenhados num programa de pesquisa dio indevida atengio a “refutagées”. Eles tém uma politica de pesquisa a longo prazo que as antecipa. Essa polftica, ou ordem, de pesquisa € exposta — com maiores ou menores miniicias — na heuristica positiva do programa de pesquisa. A heurfstica negativa especifica o “nticleo” do progra- ma, que € “irrefutével” por decisio metodolégica dos seus protago- nistas; a heurfstica positiva consiste num conjunto parcialmente arti- culado de sugestées ou palpites sobre como mudar ¢ desenvolver as “variantes refutaveis” do programa de pesquisa, e sobre como modi- ficar e sofisticar 0 cinto de protecio “refutével”, A heurfstica positiva do programa impede que o cientista se confunda no oceano de anomalias. A heurfstica positiva apresenta um programa que inclui uma cadeia de modelos, cada vez mais com- plicados, que simulam a realidade: a atengdo do cientista focaliza-se ha construgéo dos modelos de acordo com as instrugées que figuram 167. Cf. mais acima, p. 127. 168. Ibid. 165 do programa, Ele ignora os contra-exemplos reais, ispontveis."®2 Newton elaborou primeiro o seu progra- ‘ma para um sistema planetério com um ponto fixo como sol e um ‘inico ponto como planeta, Desse modelo, derivou sua lei do inverso do quadrado para a elipse de Kepler. Mas esse modelo foi proibido pela prépria terceira lei da dindmica de Newton e, portanto, precisou ser substituido por outro em que tanto o sol quanto o planeta gira- toro do seu centro comum de gravidade. A mudanca no por nenhuma observagio (os dados nao sugeriram aqui alguma) mas por uma dificuldade tedrica no desenvol- vimento do programa. Em seguida, Newton desenvolveu 0 programa para um némero maior de planetas, como se houvesse apenas forcas heliocéntricas mas nfio houvesse forcas interplanetérias. Ato conti- rnuo, desenvolveu a hipétese de ndo serem o sol e os planetas pontos- massa, mas bolas-massa. E para essa mudanga tampouco pr sou da observacio de uma anomalia; a densidade infinita era proi- ida por uma teoria (ndo-expressa) que servia de critério e, por con- seguinte, os planetas tinham que ter extensfo. A mudanca supunha considerdveis etardou o trabalho de New- Tendo solucionado esse “enigma”, ele pés-se a trabalhar em esferas giratorias ¢ suas oscilacdes. A seguir, admitiu a existéncia de forcas interplanetérias ¢ comegou a trabalhar em perturbacdes. Nese ponto no o eram. Foi entéo que comecou a trabalhar com planetas ee ares, em lugar de planetas redondos, etc. Newton desprezava as pessoas que, & semelhanca de Hooke, tropecavam num primeiro modelo ingénuo mas nao tinham a tenaci- dade nem capacidade para desenvolvé-lo e transformé-lo num pro- grama de pesquisa, e encaravam uma primeira verséo, um mero aparte, como uma “descoberta”. Sustou a publicagdo até que o seu programa logrou uma notivel transferéneia progressiva.,7 169. Quando um cientista (ow matemético) tem uma heuristica positive, Fecusase a ser attaido para a observacio, “Deitase em seu fecha olhos ¢ esquecese dos dados’. (Cf. mea ensaio, "Proofs snd Refutations”, 1965-4, especielmente as pp. 300 © seguintes, onde se encontra um circtnstanciads de um progrema dessa natureza,) Ocasionalmente, € claro, ele fard 4 Natureza uma pergunte ladina, e sentir-se4 animado pelo SIM da Natureza, mas niflo se sentiré desenimado pelo seu NAO. 110, ie ichenbach dé uma explicacdo diferente do atra- so de publicssio dos Principia de Newton: “Para seu desapontamento ele Aescobriu que os resultados observacionais nfo concordavam com os seus 166 A maioria, se nfo todos, os “enigmas” newtonianos, que con- duziram a uma série de novas variantes que se sucediam umas as outras era pre a0 tempo do primeiro modelo ingénuo de New- que sem diivida os previu, como os devem ter previstos os seus colegas; Newton deve ter tido plena consciéncia da falsidade berrante de suas primeiras variantes. Nada mostra com maior clareza a exis- téncia de uma heuristica pt este fat i Um junto com algumas teorias observacionais) que se sabe condenado a ser substitfudo durante o subseqiiente desenvolvimento do programa, © que até se sabe, mais ou menos, c¢ uma vez o quanto so irrelevantes as “refutagdes” de qualquer va- riante especifica num programa de pesquisa. A existéncia delas é plenamente esperada, a heurfstica positiva 14 est4 como estratégia no 66 para as predizer (produzir) mas também para as digerir. Com efeito, se se expuser claramente a heuristica p Pode formular-se a “heur pesquisa como um principio “metalfsico”. Pode formular-se, por exemplo, da seguinte maneira o programa de Newton: “os planctas sto essencialmente pides girat6rios de forma aproximadamente esfé- tida: os planetas no séo apenas gravitacionais, possuem também, por exemplo, caracterfsticas eletromagnéticas que podem influenciar- Thes o movimento. Desse modo, a heuristica positiva, em geral, é mais flexivel do que a negativa, Além disso, acontece ocasionalmente que, quando um programa de pesquisa entra numa fase degenerativa, uma revolugiozinha ou uma transferéncia criativa em sua heuristica Eniretanto, em lugar de propor uma teoria qualquer, por mais bo- fosse, antes dos fatos, Newton engavetou o manuscrito da sua tet Uns vinte anos mais tarde, de io francesa medigSes da circunferéncia di baseara o seu teste eram seus célculos te6ricos, $6 depois disso publicou sue ton é uma das mais notdveis ilust chenbach, The Rise of Scientific Philosophy, 1951, pp. Feyerabend crtica 0 relato de Reichenbach (Feyerabend, “Reply to Criticism", 1965, p. 229), mas nfo apresenta,um fundamento I6gico altern 171, Sobre este ponto cf. Truesdell, “The Program toward Rediscove: ring the Rational Mechanics in the Age of Reason’, 1960, 167 positiva pode empurré-lo de novo para a frente.‘7? & melhor, por- tanto, separar 0 “micleo” dos princfpios metaffsicos mais flexiveis que expressam a heurfstica positiva. Das nossas consideragdes se depreende que a heuristica positiva avanca aos poucos, com dificuldade, e com descaso quase completo das “refutacées”; pode parecer que as “verificacdes”,17 mais do que as refutagdes, fornecem os pontos de contato com a realidade. Con- quanto se deve assinalar que qualquer “‘verificacao” da enésima-pri- meira versio do programa é uma refutagio da enésima versio, nao podemos negar que sempre se prevéem algumas derrotas das verses subseqiientes: so as “verificagdes” que mantém o programa em an- damento, apesar dos casos recalcitrantes. Podemos avaliar os programas de pesquisa, mesmo depois da sua “eliminagdo”, pela sua forca heuristica; quantos fatos novos pro- duziram, até onde ia “a capacidade deles para explicar suas refutacdes no decorrer do crescimento”? 174 (Podemos avalié-los também pelo estimulo que dio A matemé- tica, As dificuldades reais para o cientista tedrico nascem mais das dificuldades matemédticas do programa do que das anomalias, A gran- deza do programa newtoniano procede, em parte, do desenvolvi- mento — por newtonianos — da anélise infinitesimal cléssica, pré- -condi¢io crucial do seu bom éxito.) De modo que a metodologia dos programas de pesquisa cienti- fica explica a relativa autonomia da ciéncia tedrica: fato histérico cuja racionalidade néio pode ser explicada pelos primeiros falseacio- nistas. Os problemas racionalmente escolhidos por cientistas que tra- balham em poderosos programas de pesquisa so determinados pela heuristica positiva do programa, muito mais do que pelas anomalias psicologicamente preocupantes (ou tecnologicamente urgentes). Em- bora arroladas, as anomalias so postas de lado na esperanca de que se transformem, com o tempo, em corroboracées do programa. Sé 172. A contribuigo de Soddy para o programa de Prout ou a contri buigdo de Pauli para o programe de Bohr (a antiga teoria quéntica) s40 exem- los tfpicos dessas transferéncias criativas. 173. Uma “yerificagiio” 6 uma corroborago do excesso de contetida no programa em expansio, Mas uma “verificapio", naturalmente, no yerifica uum programa: apenas The mostra a forca heuristica. 174. Cf. meu enssio “Proofs and Refutations", 1963-4, pp. 324-30. In- felizmente, em 1965-4 eu ainda nao fizera uma clara distincdo terminol entre teorlas e programas de pesquisa, o que me prejudicou a exposigio de um programa de pesquisa da matematica informal, quase empltica, 168 precisam concentrar sua atencZio em anomalias os cientistas empe- mhados em exercicios de ensaio-e-erro 17 ou que trabalham numa fase degenerativa de um programa de pesquisa quando a heurstica positiva perde 0 gis. (B claro que tudo isso hé de parecer repugnante aos falseacionistas ingénuos, segundo os quais, depois que uma teoria € “refutada” pela experiéncia (segundo o livro de regras deles), é irracional (e desonesto) continuar a desenvolvé-la: cumpre substi- tuir a velha teoria “refutada” por uma teoria nova, nfo-refutada.) (c) Duas ilustragoes: Prout e Bohr. ‘A dialética da heurfstica positiva e negativa num programa de pesquisa pode ser melhor esclarecida por meio de exemplos. Esbo- carei, portanto, alguns aspectos de dois programas de pesquisa espe- tacularmente bem-sucedidos: 0 programa de Prout 17°, baseado na idéia de que todos os 4tomos so compostos de dtomos de hidrogénio, ¢ 0 programa de Bohr, baseado na idéia de que a emissdo da luz se deve a elétrons que saltam de uma érbita para outra no interior dos Atomos, (Ao redigir 0 estudo de um caso histérico deve-se, creio eu, adotar 0 seguinte procedimento: (1) faz-se uma reconstruedio racio- nal (2) tenta-se cotejar essa reconstrucdo racional com a histéria real e criticar tanto a reconstrucao racional por falta de historicidade quanto a histdria real por falta de racionalidade. Dessa maneira, to- do estudo histdrico deve ser precedido de um estudo heuristico: a hist6ria da ciéncia sem a filosofia da ciéncia é cega. Neste estudo no é minha intencao entrar seriamente na segunda fase.) (c 1) Prout: um programa de pesquisa que avanca num oceano de anomalias. Num ensaio anénimo de 1815, Prout afirmou que os pesos até- micos de todos os elementos quimicos puros eram ntimeros inteiros. Ele sabia muito bem que as anomalias eram abundantes, mas disse que elas surgiam porque as substincias quimicas tal como costuma- vam se apresentar eram impuras: isto &, as “técnicas experimentais” pertinentes que existiam nessa época néo mereciam confianca ou, em outras palavras, as teorias “observacionais” contempordneas, a cuja luz foram estabelecidos os valores-de-verdade dos enunciados 175. Cf. mais adiante, p. 216. 176. Jé mencionado paais acima, pp. 1563. 169 basicos de sua teoria, eram falses17 Os defensores da teoria de Prout lancaram-se, portanto, numa grande aventura: derrubar as teo- rias que proporcionavam a evidéncia contréria A sua tese. Para isso erathes preciso revolucionar a qu{mica analitica estabelecida na- quela época e, correspondentemente, revisar as técnicas experimen- tais com que se haviam de separar os elementos puros.178 A teoria de Prox ‘oto as teorias anteriormente aplicadas if ias quimicas, uma depois da outra. Mes- assim, 0s quimicos cansaram-se do programa de pesquisas ¢ re- nunciaram a ele, visto que os sucessos ainda estavam longe de indi- car uma vit6ria final. Stas, por exemplo, frustrado por alguns casos obstinados e recalcitrantes, concluiu em 1860 que a teoria de Prout “no tinha fundamentos”% Outros, porém, se sentiram mais ani- mados pelo progresso do que desanimados pela falta de sucesso com- pleto. Marignac, por exemplo, retrucou imediatamente que ‘“embo- ra [ele estivesse convencido de que] as experiéncias de Monsieur Stas sto perfeitamente exatas, [nic hé prova] de que as diferencas observadas entre seus resultados © os requeridos pela lei de Prout om ser explicadas pelo cardter imperfeito dos métodos expe- 189 Como disse Crookes em 1886: “Nao poucos quimicos de reconhecida eminéncia consideram que temos aqui [na teoria de Prout] uma expresso da verdade, mascarada por alguns fendmenos residuais ou colaterais que ainda néo conseguimos eliminar.” infelizmente, & ja verdadeira. Prout negou rn il do que his- sncia de quaisquer anomalias. Ele afir- ensaio de 1815, “On in their Gaseous’ State ind podetto er uréar low pu velhesfaoy podctto wor ae Thor estabelecidos, mas se verifies fee seni pote ob iio, den val aa have smas [moléculas] fos. , temos meios de separar a i ‘uma ds im pouro mis densa do nfo pode ser feito, temos de admitir {que todas sio * (Maxwel, Theory of Heat, 1871). He wc, “Commentary on jons of Atomic We 181. Crooks, Researches on the Mutual Rela- Dirigido & Sego de Quimica da 6 devia haver alguma falsa suposicao oculta adicional nas teorias “observacionais” em que se baseavam as “técnicas experimentais” para a purificagéo quimica e com cuja ajuda foram calculados os pesos at6micos; no entender de Crookes mesmo em 1886 “alguns esos atémicos atuais representavam tdo-somente um valor mé- dio”.18 Com efeito, Crookes prosseguiu no aff de dar a essa idéia uma forma (aumentadora de contetido): propés novas teo- rias concretas de “fracionamento”, um novo “Deménio classifica- dor”.185 Infelizmente, todavia, suas novas te observacionais re- velaram-se tio falsas quanto ousadas e, sendo incapazes de antecipar um fato novo sequer, foram eliminadas da histéria da ciéncia (ra- cionalmente construfda). Como se verificou uma geracio depois, uma suposigo oculta basica escapou aos pesquisadores: a de que dois elementos puros devem ser separaveis por métodos quimicos, A de que dois elementos puros diferentes podem comportar-se de iéntica em todas as reagdes quimicas mas podem ser sepa- maneira rados por métodos ‘uma mudanca, uma “extensdo” do conceito de fa uma mudanca — uma expansao da extensao do conc proprio programa de quisa.18 Essa transferéncia rev mada apenas pela escola de Rutherford 1%; e entio, “depois de imt- meras vicissitudes e das mais convincentes refutacdes aparentes, a hipétese levantada to ligeiramente por Prout, médico de Edimbur- g0, em 1815, tornou-se, um século mais tarde, a pedra angular das modernas teorias da estrutura dos étomos”.18° Esse passo criativo, no entanto, foi, de fato, apenas um resultado colateral do progresso num programa de pesquisa diferente e, com efeito, distante; care~ cendo desse estimulo externo, os proutianos nunca pensaram em ‘méquinas centrifugas poderosas para tentar, por exemplo, construi separar elementos. (Quando se elimina uma teoria “observaci tativa”, as mensuracGes “precisas” levadas a cabo no interior do re~ 182. Ibid. 185. Ibid., p. 491 184, Sobre jento de conceit futations”, 1963-4, parte IV. (85. A transferéncia @ antecipada no fascinante Relatério Apresentado i ‘Anual da Chemical Society, em 1888, por Crookes, onde ele "a que,a solucdo deveria ser buscada numa nova demarcagdo entre o “ff :0” e 0 “quimico”. Mas a antecipaco permaneceu filos6fiea; coube a Ru- rford © a Soddy o desenvolvimento dela e sua transformagio, depois de ‘em teoria cientifica iy. The Interpretation of the Atom, 1932, p. 50. cf. meu enssio, “Proofs and Re- 19 171 ferencial desprezado podem parecer — considerando-as retrospecti- vamente — um tanto tolas. Soddy ridicularizou a “precisdo experi- mental” a suas préprias custas: “Hé, sem davida, algo semelhante a uma tragédia, ou capaz de transcendé-la, no destino que se abateu de repente sobre a obra a que dedicou sua vida a distinta galdxia de guimicos do século XIX, reverenciados com razio pelos seus con- temporaneos como representando 0 ciimulo da perfeigio da mensu- Tacdo cientifica exata, Os resultados que conseguiram com tanto es- forgo parecem, pelo menos por enquanto, to despidos de interesse e de importéncia quanto a determinacio do peso médio de uma cole- Go de garrafas, algumas cheias e algumas mais ou menos vazias.”87 Acentuemos que, & luz da metodologia dos programas de pes- quisa aqui proposta, nunca houve uma razdo racional para eliminar © programa de Prout. O programa, com efeito, produzia uma bela ¢ Progressiva transferéncia, ainda que, nos intervalos, surgissem consi- derdveis transtornos."®8 Nosso esboco mostra como um programa de Pesquisa pode desafiar um volume considerdvel de conhecimento cientifico aceito; plantado, por assim dizer, num ambiente hostil, pouco a pouco o sujeito se transformou. Outrossim, a hist6ria real do programa de Prout ilustra bem demais até que ponto o justificacionismo e 0 falseacionismo ingénuo estorvaram e retardaram o progresso da ciéncia. (A oposigao A teo- ia atémica no século XIX foi fomentada por ambos.) Uma elabo- racdo da influéncia da ma metodologia sobre a ciéncia pode ser um programa de pesquisa recompensador para o historiador da ciéncia, (c 2) Bohr: um programa de pesquisa que progride sobre fundamentos. inconsistentes. __ Um ripido resumo do programa de pesquisa de Bohr sobre a emisdo da luz (no principio da fisica quantica) ilustraré ainda mais — e até expandiré — nossa tese.1#9 187. Thi, 4-88: Ht transtornos induzem inevitavelmente muitos centst indivi dhuais arquivar ou a jogat fora o programa e n pertcipar' de outaoe preqie fm ie acontece, & eurstica positiva oferecer, ma cccti, is; stria da cléncia nao pode ver cabelmente’ comprechd. gia das multidses. (Ck. mais aba, pp. 21928) hogl#S, Este sei80 pode impressinar novamente 0 hsteriador menos come fhe d,s cin acai; mas apo gue siva ao, se propoaio (Ch. ib cima, p. 169) Alguns enunciados nao devem set fomados om tone pads senso com toneladas de sal. ae pee 172 A histéria do programa de pesquisa de Bohr pode ser caracteri- zada por (1) seu problema (2) sua heuristica negativa e sua heuristica positiva; (3) os problemas que ele tentou resolver no de- curso do seu desenvolvimento; e (4) seu ponto de degeneracio (ou, se quiserem, seu “ponto de saturaca0") e, finalmente, (5) 0 progra- ma pelo qual foi ultrapassado. O problema basico era o enigma de como os étomos de Ruther~ ford (isto é, mindsculos sistemas planetérios com elétrons que des- crevem drbitas em torno de um muicleo positivo) podem permanecet de acordo com a teoria bem corroborada de Mawell- jetromagnetismo, eles deviam desintegrar-se. Mas a teo- ria de Rutherford também era bem corroborada. A sugestio de Bohr consistia em ignorar por ora a incongruéncia desenvolver conscien- temente um programa de pesquisa cujas versdes “refutdveis” fossem incompativeis com a teoria de Maxwell-Lorentz.' Ele props cinco postulados como niicleo do seu programa: “(1) que a radiagao de energia [no interior do tomo] nao & emitida (nem absorvida) da maneira continua presumida na cletrodinamica comum, mas apenas durante a passagem dos sistemas entre diferentes estados “estacio- nirios”. (2) Que 0 equilfbrio dindmico dos sistemas nos estados esta- ciondrios € governado pelas leis ordindrias da meciinica, ao passo que essas leis nao vigem em relacdo & passagem dos sistemas entre 0s diferentes estados. (3) Que a radiagao emitida durante a transigao sistema entre dois estados estaciondrios é homogénea, e que 10 entre a freqiiéncia v e a quantidade total de energia emi- tida E é dada por E = hv, sendo h a constante de Planck. (4) Que 0s diferentes estados estaciondrios de um sistema simples, composto de um elétron que gira em torno de um niicleo positivo, sio determi- tida durante a formacdo da configuracao, ea freqiiéncia da revolucao ‘on seja um miiltiplo inteiro de 1/2h. Presumindo-se que a Grbita do elétron é circular, essa suposi¢ao equivale & suposicao de que o momento angular do elétron em torno do niicleo é igual a um miiltiplo inteiro de h/2m,. (5) Que o estado “permanente” de qual- quer sistéma atémico, isto é, 0 estado de maxima energia emitida, € 190. Isto, naturalmente, é mais um argumento contra a tese de J. O. jom de que as teorias metafisi futadas por ¢ bem corroborada teoria ci wi te’ Laws”, 1965). Cf. também 2 nota de rodapé n.* 80, e pp. 154-55, 173

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