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VIVER RECONCILIADOS ee Piscean Na sociedade atual, muito se tem refletido sobre o enfraqueci- mento da consciéncia do pecado, que pde em crise toda uma série de relacionamentos com Deus, consigo mesmo, com os outros. A.Cencini parte desse ponto para ressaltar que aspectos nega- tivos da condi¢ao humana como a limitacao e 0 pecado sao os caminhos que levam ao despertar da consciéncia do mal e,em Teele) Lae Me Molise (ald l-lial er Beco eae e pecador,o homem procura aceitar suas limitacdes por meio da UEC reer keg eM tte ORME RCO es em ocasiao de bem e de conciliacao com o amor de Deus. ame omy Ret Me Ke Mal lcs eRe Nera ie Meso ne mares Melle (ral eu LC MeL Cory de culpa que negam a alegria do perddo de Deus. Destina-se a “pessoa comum, obrigada a admitir — muitas vezes contra a vontade Eek Maleate Meo eM eter Me ERC LL nao tao imperfeita como as vezes parece”. Amedeo Cencini é sacerdote e religioso canossiano. Obteve a licenciatura em Ciéncias da Educagao pela Pontificia Universidade Salesiana e 0 doutorado em Psi- cologia pela Universidade Gregoriana (Roma); fez especializacdo em Psicoterapia no Instituto Superior de Psicoterapia Analitica. Atualmente, trabalha como formador Clete see Mor anne at lech adele Cae Renal ered Pere cei eed UEC sure eels Mole L Le refey sc Te (roe Reel ita le-len ee (eC ROOT 4c er mer ee cL coli Te cole VIVER RECONCILIADOS Aspectos psicolégicos COLEGAO PSICOLOGIA E ESPIRITUALIDADE + Atravessar as provacées: como ativar nosso potencial de vida com 0 Modelo de Interven¢ao Global em Sexologia ~ Marie-Paul Ross + Como superar o sofrimento e sair dele mais forte — Valerio Albisetti * Da autoestima 4 individuagao: psicologia e espiritualidade — Jean Monbourquette + E possivel superar a depressdo: uma abordagem a luz da fé ~ Kathryn J. Hermes + Faga as pazes com vocé mesmo: uma jornada pessoal para reencontrar a paz ~ Kathryn J. Hermes + Lutando contra a depressdo: um guia espiritual para a recuperacao da vida — William e Lucy Hulme + Por uma sexualidade plena: um Modelo de Intervengdo Global em Sexologia — MIGS — Marie-Paul Ross + Uma luz em meio ds sombras: a espiritualidade como aliada contra a depresséio ~ Bertha Catherine Madott + Viver reconciliados: aspectos psicolégicos ~ Amedeo Cencini A. CENCINI VIVER RECONCILIADOS Aspectos psicolégicos Dados Internacionais de Catalogago na Publicasio (CLP) (Carvara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cencini, Amedeo ‘Viver recanciliados : aspects psicoldgicos / Amedeo Cencini ; tradugaio Euclides Carneiro da Silva. -7. ed.~ Sto Paulo : Paulinas, Titulo original: Vivere riconciiati: aspett psicologici ISBN 978-85-356-3384-9 1, Bem e mal - Aspectos psicoldgicos 2. Pecado - Aspectos psicologicos _3. Perdao - Aspectos religiosos - Cristianismo 4. Reconciliagio~ Aspectos religiosos~Cristianismo 5. Vida crist& 1 Thulo. 1. Série. 1213591 cbp-234.5 indice para catilogo sistematico: iagiio : Aspectos psicoligices : Cristianismo 234.5 Titulo original: VIVERE RICONCILIATI: ASPETTI PSICOLOGICH © 1987 Centro Editoriale Dehoniano, Bologna, [tilia Traducito: Eudlides Carneiro da Silva Citagoes biblicas: A Biblia de Jerusalém, Sao Paulo, Paulus, 1985 7 edigio — 2012 28 reimpressdio— 2016 ‘Nethuma parte desta obra poderd ser reprodicida ou transmitide por qualquer forma elo ‘quaisguer meios (eletrinico ou mecdnico, incluns forocopia egsavacito) owargutvada em ‘qualquer sistema oubanco de dados rem permissio escrta da Editora. Direitos reservados. Paulin Rua Dona Indcia Uchoa, 62 4110-020 - Sao Paulo -SP (Brasil) Tel. (11) 2125-3500 http://www paulinas org. br editora@paulinascom.br ‘Telemarketing e SAC: 0800-7010081 © Pia Sociedade Filhas de Sio Paulo ~ Sio Paulo, 2002 APRESENTACAO Nesta publicagio, o autor sublinha 0 aspecto “for- iiago”: ajUdar-as pessoas a. crescet de miedo cacrente unitdrio, respeitando os dinamismos psiquicos de base. A. Cencini ressalta 0 que acontece quando, no pro- cesso evolutivo, a pessoa — algo normal e¢ inevitavel — depara com a limitagao, isto ¢, com tudo aquilo que faz vir & tona as fraquezas que somos espontancamente levados a ignorar. Com efeito, o homem nio é onipotente, ilimitado ou absoluto. No fundo, a elogiiente ligao do dinossauro é que, se uma certa grandeza é boa, uma superabundancia de grandeza nao é necessariamente melhor. Cencini escolheu o tema da limitagdo porque, em seu trabalho psicoterapéutico, revelou ser um dos pontos cru- ciais no caminho do crescimento do ser humano. A prépria cultura “narcisista” atual o confirma abundantemente. Numa Idgica baseada na equivaléncia “viver = aumentar e engrandecer a si mesmo”, a limitagdo torna-se uma ameaga a conservagao da auto-estima, mais que a ocasido de verifi- cacao e o empenho renovado. As tentativas de negd-la nao sio jamais de todo eficazes, uma vez que a outra face do narcisismo ¢ a depressdo ¢ 0 medo do fracasso. No livro, procurow-se prescindir, na medida do pos- sivel, de uma linguagem técnica, porque, na intengio do autor, o destinatétie nao é o psicélogo dlinico nem o indi- viduo necessitado de cuidados analjticos, mas 0 homem normal, comum, obrigado — freqiientemente contra sua vontade — a admitir que nao ¢ perfeito como gostaria de ser, mas também que nao € tio imperfeito como, as vezes, Ihe parece ser. O livro pretende exatamente por em discus- sio a idéia de que perfeigao significa auséncia de limites. Por isso, ele se dirige também a quem enveredou por um “caminho de perfeigo”, como 0 religioso consagrado ou 0 presbitero, para que nio incorra mais naquele equivoco, mas, ao contrério, aprenda a servir-se da sua limitacao para realizar-se plenamente. A medida que 0 autor desenyolve 0 préprio pensa- : de uma perspectiva psicolégica para uma perspectiva mais reli- petsp PD: e! mento, nota-se que seu campo se alarga sempre mai giosa, para chegat, progressiva ¢ explicitamente — & tercei- ra parte —, a uma precisa postura de fé. Também essa metodologia espelha 0 objetivo da abra. De fato, ser uma pessoa madura significa viver movida por convicgdes que agem internamente, em ver de depender dos precérios apoios que a condicionam externamente. Nessa solidez interior, a opeao motivada de FE enconera sua justificativa, quando nao, sua colocagao ideal. Evidentemente, 0 método nao é apologético nem se trata de uma invasio em Ambitos pré- prios de outras ciéncias, O psicélogo que adentra o setor rcligioso pode faxé-Lo legitimamente, contanto que, nesse caso, continue sua andlise com os mesmos instrumentos psicolégicos, como este livro procusou farce. Alessandro Manenti INTRODUGAO O ultimo Sinodo dos bispos (1983) ¢ a assembléia da Igreja italiana (P4scoa de 1985) tiveram o mesmo tema: a reconciliagao crista, vista em seu aspecto sobretudo teo- logal e sacramental por bispos, e em seu aspecto mais nitidamente antropoldégico-social por representantes da Igreja da Itdlia. E um fato muito significative — ¢ nada casual — essa coincidéncia temdtica: trata-se do interesse e da preocupagao da Igreja com o enfraquecimento da consciéncia do pecado, que pée inevitavelmente em crise — como em uma reagao em cadeia — toda uma série de relacionamentos ligados a essa consciéncia: com Deus; con- sigo mesmo; com 0 préprio mundo de limitagées ¢ fra- quezas; com o préprio ambiente, feito também de limita- Ges e fraquezas dos outros; com a prépria histéria, sintese do bem ¢ do mal, mas na qual o mal, quando nfo reco- nhecido ¢ nio integrado, pode impedir ¢ obscurecer a percepgio do bem. Se, de um lado, desapareceram — ¢ é um bem — alguns sentimentos de culpa, frutos de um ensimesmar-se narcisista distorcido que nao podiam levar a experiéncia do Deus da misericérdia, de outro, a consciéncia peniten- cial — que é sinal, a0 mesmo tempo, de maturidade hu- mana e crista, baseada na capacidade de reconhecer-se real profundamente pecador — foi praticamente abafaba JA se disse que © ser humano nunca € tao grande como quando sabe reconhecer € aceitar 0 seu pecado. A propria religiio, segundo Newman, “fundamenta-se, de um modo ou de outro, no senso do pecado”. Ainda mais a religiao cristé, que prega um Deus cheio de misericér- dia ¢ que manda o filho & terra nao para os s4os, mas para os doentes. Por outro lado, o mal faz parte de nés, experimenta- mo-lo todo dia em nossa vida, “espinho” fincado na car- ne, vemo-lo em torno de nds. Assume diversas formas e se manifesta em varios niveis: fisiolégico (a precariedade da vida, o depaupcramento organico inevitdvel ¢ progressivo, a docnga, a senilidade, a morte), psicelégico (as nossas ima- turidades, inconsisténcias, infantilismos, dos quais nem sempre somos totalmente responsdyeis) ¢ moral (a pecado propriamente dito, os egaismos mais ou menos latentes, as pretensdes do homem velho...). E impossivel ignorar 0 mal ou presumir viver como se ele nao existisse ou fosse somente incidente, algo eventual ou passageiro. Antes, se est4 profundamente radicado em nossa existéncia, deve ser integrado a ela. A integragao ¢ um processo psicodinamico comple- xo, por meio do qual o mal: 1) € seconhecido e identificado com precisio em nds: descobrimos que faz parte do nosso eu; nés © aceita- mos, dando-lhe um sentido; 8 2) nds o experimentamos perdoado ¢ nds mesmos nos sentimos perdoados para sempre ¢, portanto, capazes de perdao: reconciliados com o nosso mal e com o dos outros; 3) nesse ponto, o mal se transforma e se transfigura lentamente: torna-se ocasido de bem, fraqueza de que al- guém pode “gloriar-se”, imbito de manifestagao do poder do amor de Deus. Sao as trés fases por meio das quais se articula a dinamica integradora do mal. E sao também as trés partes cm que se divide este livro: queremos tentar entender 0 que € para nés, em particular, © pecado — 0 mal por exceléncia —, que relagio mantemos com ele como seres humanos e como crentes ¢€, conseqiientemente, com que capacidade de integragao sabemos aceitar nossas limita- gdes também em outros niveis: fisiolégico ¢ psicoldgico. Com efeito, surge-nos a dtivida de que muitas de nossas tristezas, muitos de nossos desdnimos e pessimismos estao realmente ligados a um baixo [ndice de integragao do mal. A perspectiva em que nos colocames € psicoldgica, de uma psicologia que reconhece o primado da graga e cré na liberdade do ser humano; uma psicologia que deseja apenas dar sua contribuigio para que nos deixemos recon- ciliar com Deus. 9 PRIMEIRA PARTE RECONHECIMENTO-ACEITACAO Ea primeira fase. Trata-se, antes de tudo, de saber perceber realisticamente 0 proprio erro, amadurecendo em si uma verdadeira ¢ prépria consciéncia de pecado, que vai além do simples sentimento de culpa. Reconhecer ¢ acei- tar ser pecador diante de Deus, diante de si mesmo e diante dos outros significa percorrer um caminho em di- regao 4 percepgio © ao amadurecimento. Nao € um pro- cesso espontineos nem algo imediato, simples e facil. Pouquissimas vezes 0 ser humano reconhece 0 préprio erro, ¢ ainda mais raramente 0 experimenta como “peca- do”. O que nos impede de sermos sinceros com nés mes- mos? Que diferenga existe entre o sentimento de culpa ea consciéncia do pecado? Como fazer despertar em nés uma auréntica consciéncia penitencial? Ser santo significa ser perfeito, sem pecado? Essas sia algumas indagagdes que procuraremos esclarecer. 12 CapiTULO PRIMEIRO A iluséo de ser justo Sem nos admirarmos nem nos mostrarmos demasia- damente ofendidos, convencamo-nos imediatamente do se- guinte: mantemos em nossa vida uma estranha relagdo com 0 mal. Uma relago que, talvez, poderiamos definir como amor-édio. Sutilmente — ¢ muitas vezes inconscientemente — atraidos e tentados por essa relagio, ndo queremos ad- mitir nossa falibilidade ¢ nossas tendéncias, como que nos apavoramos com elas e recorremos a mil artificios para afastar de nés a impressio de que ertamos, como se errar fosse uma desonra, algo infamante. O estranho é que tudo isso & muitas vezes, considerado como desejo auténtico de perfeicio. Nao falaremos das conseqiiénc s. Com efeito, por forca desse equivoco, somos muitas vezes levados a minimizar nosso erro, a reduzi-lo a simples transgressao, ou auma série de gestos facilmente identificdveis. Procla- mamo-nos pecadores, porém nao nos sentimos profunda- mente como tais, sobretudo se nos comparamos com os outros, com os “pecadores” pelos quais rezamos. Ou, pelo contrario, sentimo-nos como que esmagados pelo nosso 13 de reagir diante de qualquer obstaculo que seja maior que nds ¢ que destréi, implacavelmente, pecado, incapa nosses sonhas de perfeigio. Também, neste caso, procla- mamo-nos pecadores, mas com profunda desilusao e frus- tragao, ¢ nos incomodamos muito com a idéia de que os outros sejam melhores que nés. Esses séo apenas dois exemplos que nos fazem com- preender como funcionam em nés — consciente ou in- conscientemente — os mecanismos de defesa, cuja finalidade ¢ exatamente proteger nossa auto-estima, mas que, na reali- dade, impedem-nos de ser verdadeiros conosco (e com os outros), ¢, enquanto nos iludem com o fato de que somos justos, privam-nos da experiéncia mais rica e enaltecedora que o ser humano jamais poderé realizar: a da miscricérdia de Deus. Vejamos a seguir alguns desses mecanismos. 1. A pretensao de climinar 0 mal Uma primeira forma possivel de distorgio percepti- va nos confrontos do pecado é a determinada pela preten- sio de canceld-lo inteiramente da propria vida. Trata-se de uma pretensao implicita, jamais confessada a nds mesmos, que tem suas rafzes numa necessidade presente em todo ser humano, ainda que nunca se fale dela: @ necessidade de onipoténcia. & um impulso que irrompe quando a auto- estima esta ameagada pela constatagio do préprio esto. Ent&o, como que em socorro desta, nasce essa pretensio infantil — de modo algum rara, mesmo em nossos am- bientes — de simplesmente “cancelar” de nossa vida a realidade do mal. 14 A conseqiiéncia imediata disso € que 0 proprio eu fica como que dividido em duas partes: uma boa e a outra nio. Como € incémodo reconhecer ¢ carregar a parte ne- gativa de si, ela € progressivamente afastada dos préprios olhos ¢, por assim dizer, reduzida ao m{nimo, enquanto toda a prépria consideragao fixa-se na parte positiva, ou presumida como tal, com a intengao de se construir e depois defender uma imagem de si, somente positiva. A conclusao a que se chega ¢ a de se ter finalmente identifi- cado ¢ isolado o “inimigo” — chame-se ele o préprio defeito predominante ou no — para poder agredi-lo com todas as forgas, at¢ faze-lo desaparecer de todo. Mas esta exatamente aqui 0 equfvoco, fonte de frus- tages, desperdicios de energia, depressées intermindveis. Porque 0 ser humano nao pode jamais eliminar, totalmente, da sua vida o mal. Este faz parte de nés e da nossa histé- ria, liga-se profundamente a nosso cora¢ao e a nossos mem- bros. Revela muita simplicidade quem o reduz a alguns gestos € comportamentos errados, como se 0 resto da per- sonalidade pudesse ficar isento dele. Demonstra ingenui- dade quem julga poder extirp4-lo, de modo 2 nao sentir mais atragdo por ele. E importante, sobretudo, compreender que essa pre- sungao falseia nosso relacionamento de criatura com Deus. Mesmo escondendo-se atras de propésitos de santidade e de dedicagao apostélica, ela provém de uma sutil ambicao narcisista que sera, depois, descoberta e trafda pelos seus préprios frutos. De fato, empreender essa luta sem tré- guas contra 0 préprio mal, confiando mais ou menos cegamente nas proprias forcas (isto é a propria area consi- derada positiva), significa ir ao encontro de uma amarga 15 desilusao. O mal, absolutamente nao-cancelado, ressurgi- rd com a mesma forga ou com uma forga ainda maior, porque a pessoa usou um meérodo (enfrentar diretamente 0 problema apoiando-se nas préprias forgas) ¢ um objetivo {eliminar totalmente o mal) em si errados ¢ de fato im- praticaveis, apesar do notavel emprego — e desperdicio — de energia. Com a desilusio, ocorrerao a depressdo ¢ a raiva con- tra si mesmo, a intransigéncia diante do mal dos outros — como projecéo da impaciéncia contra si mesmo — e a mania perfeccionista, as quais sio o Ultimo recurso para iludir-se de que € justo Mas pode também suceder que 0 individuo, obriga- do a admitir a inutilidade dos seus esforgos, passe do em- penho ousado & total falta de empenho. Como se dissésse- mos que 0 individuo passa da pretensdo de eliminar 0 mal pela raiz A rendigdo incondicional diante dele. 2. A tentativa de ignorar 0 mal Outra falsa atitude diante do pecado consiste na ten- tativa, mais uma vez inconsciente, de ignord-lo ou minimizdé-lo, mas de maneira diferente. A pessoa relega simplesmente ao inconsciente a sensagio da sua negativi- dade. Nao se preocupa em identificd-la, “concentrando-a” numa precisa atitude pessoal, para depois combaté-la com veeméncia, como no caso precedente. Experimenta, quan- do muito, uma vaga sensagao de inquictacio, porém nao se perturba mais com ela. E uma pessoa, de mancira geral, trangiiila, diffcil de entrar em crise, mas também de entu- 16 siasmar-se. Vive satisfeita consigo mesma e com as pré- prias “observancias” ¢, de certo modo, sempre pronta a auto-absorver-se ou a conceder a si mesma “descontos” em casos de emergéncia. Tranqiiila ¢ mediocre como é, bastar-lhe-4 saber precisamente 0 que nio se pode fazer PI it Ps (pecados mortais) para satisfazer seu reduzido nivel de as- piragées na vida espiritual (“basta viver em graca...”). Nao poderia ser de outro modo. Para atender 4 san- tidade é importante o sentido do préprio pecado. Os san- tos sempre se consideram, e com plena sinceridade e ver- dade, grandes pecadores. E notério que 0 caminho para a perfeigio, quando verdadeito, implica uma crescente t0- mada de consciéncia do pecado. Também nisso ha uma verdade fundamental esque- cida ou nao suficientemente considerada: a que nos lem- bra de que © ser humano “é concebido na culpa” e € pecador muito em profundidade. Portanto, ¢ préprio da pessoa inconsciente sentir-se tranqiiila simplesmente por “nao ter feito nada de mal”... No fundo, e sempre sem maldade, existe aqui uma forma enganosa de pusilanimi- dade: é como se 0 individuo tivesse delegado a outros sua salyagio, sem sentir profundamente necessidade de um Salvador e a grandeza de ser salvo. As reivindicagoes do inconsciente Sem ditivida ha vantagens em relegar para o incons- ciente 0 sentimento da propria culpa: vive-se tranqiiilo, como ja se disse, sem escrtipulos e excessivas tensdes de perfeicao. Tem-se um conccito positive de si ¢, conside- rando-se tudo isso, deixa-se que também os outros vivam. Mas 0 inconsciente, sabemos bem, nao dorme; ¢ se for um \7 inconsciente negativo, influird negativamente em nossa vida. ‘Tendéncias, emoges, instintos, por nada recomendaveis, poderao agir, sem serem perturbados, na penumbra da nossa Psique € tornar-se motivagao que leva a comportamentos correspondentes, sem que os possamos controlar. O que sempre mais temas deixado de lado, torna-se, aos poucos, se- nhor do nosso coragio. E surge a seu modo. Temos, entaa, a tipo “trangiii- lo”, que se vé intimamente irado ou com certa antipatia, querendo livrar-se disso tude com violencia. Tal irritagio © tal violéncia nao the acontecem por acaso: sio conse- giiéncia de gestos ou sentimentos por longo tempo ali- mentados dentro de si, sem que a pessoa se sinta culpada por isso, mesmo os considerando ruins. E como se essas faltas veniais repetidas se tivessem sedimentado no incons- ciente, dando lugar a estimulos agressivos sempre mais exigentes e sempre menos controliveis, Ou, cntio, hé o tipo “satisfeito consigo mesmo”, que nota em si um crescente sentimento de inferioridade ¢ inadequagaa. E como se sutgisse de nova um misterioso sentimenta de culpa (conscientemente rejeitado) que o corna inseguro © medroso, incapaz de enfientar os com- promissos da vida e de se arriscar, Enfim, outra possfvel reivindicag4o do inconsciente € 0 tipo “mediocre” que, 4 forga de conceder-se compen- sagoes € permissdes varias, forma, aos poucos, “a sua” mo- ral, cm que quase tudo é licito e o pecado grave se torna tao casual que nao aringe, assim cle acredita, sua op¢io fundamental. E 0 auro-engano: 0 que quisemos ignorar ou minimizar surge navamente por outra via, ou se ani- nha no coragao, perturbando e complicando nossa vida 18 3. A obsessao da culpa A consciéncia de muitas pessoas, mais do que se cré, € muitas vezes agredida por fantasmas de um pecado tal- vez jamais cometido ou pela dtivida de nao merecer o perdao. Provavelmente, todos nés, de uma maneira ou de outra, vivamos, por algum tempo, o drama da culpa ex- cessiva e nao redimida. Entretanto, é um sofrimento que poucos compreendem, mesmo entre os confessores, e um drama com um nome preciso: 0 escriipulo. Tentemos, logo, uma definigao descritiva: a escrupu- losidade faz parte daquele género de conduta que a psico- logia define como autopunitiva, ditada por um sentimento inconsciente de autocondenagao e por uma conseqiiente neces- sidade de expiagdo. Manifesta-se por ditvidas excessivas que tém por objeto a conduta do individuo de ser perdoado. Ma- nifesta-se, ainda, por gestos repetitivos, com finalidade expia- toria, ¢ busca continua de uma confirmagao dos outros. Dois elementos aparecem, imediatamente, como cen- trais: itritante subjetivismo c a total invasio psicolégica do sentimento de culpa. Com efeito, é 0 sujeito que se sente culpado que se condena ¢€ se tortura por uma culpa que existe sobretudo em sa mente, mas invade seu ser. De fato, essa conduta autopunitiva representa outra forma de nao-integragio do mal. Se o ser humano, como diz Buber, é 0 ser capaz de se tornar culpado e de explicar a sua culpabilidade, 0 escrupuloso constitui uma exce¢ao: nio se torna, mas sente-se sempre culpado, e de uma cul- pabi se veja obrigado a pensar sempre nela. Vejamos 0 porqué dade que ele mesmo nao sabe explicar por mais que disso, observando a evolucio psicoldgica do escruipulo. 19 A ilustio Ha um equfvoco, como sempre inconsciente, na ori- gem de uma histéria de escriipulos: “eu nado devo errar” O desejo de perfeigao ¢ confundido com um sonho de infalibidade. Equivoco perigoso, porque induz a sonhar o impossivel ¢, simultancamente, leva o individuo a ensi- mesmar-se € a concentrar toda a sua atencao, de modo meticuloso ¢ quase obsessivo, em suas agdes e em scus progressos, Naturalmente, a ilusdéo ¢ inconsciente, mas os progressas “deverao” ser bem visiveis A pretensiio Do sonho de impecabilidade & pretensio de definir o proprio eu ideal, 6 caminho € curto, Sempre sem se dar conta disso, o individuo quase toma o lugar de Deus para definir o que ¢ bem e 0 que é mal para si mesmo € progra- ma, para scti crescimento espiritual, um plano de objetives muito dificil de se atingir, mas que satisfaz as prdprias ambigées espirituais. Ele préprio é quem define as condi- Ges precisas que tormam correta, ou perfeita, sua conduta. Nao percebe que, agindo desse modo, esta impondo wma perfcigao legalista aos scus atos ¢ lhes dando impor- tincia excessiva, como sc a salvagao dependesse deles, com o tisca de nao levar muito em considerag4o os valores clementares (por exemplo, o servico, a gratuidade, o per dao etc.) que se manifestam no dia-a-dia ¢ nao enaltecem visivelmente o cu O medo Com essas premissas, ¢ lgico esperar um temor in- sensato, 0 de admitir 0 proprio pecado. Com efeito, reco- 20 nhecer-se pecador significaria admitir o proprio fracasso. Seria como o fim de um sonho... FE entéo, como sempre sucede com o que se teme muito, 0 escrupuloso: vé pecado em toda parte, penaliza os sentimentos, confunde a tentagao com a culpa e o prazer com o pecado; aumenta-lhe a gravidade, como se sé exis- tissem pecados graves, dos quais se sente plenamente res- ponsdvel, sem atenuantes; encontra-o em transgressdes stm- plesmente veniais, em detalhes minimos, talvez para evitar confrontar-se com as exigéncias mais centrais da vida mo- ral e nao sentir que falta ao respeito com relagao a elas (escrupulosidade de compensagio). A desilusiio Quanto maiores forem as expectativas perfeccionis- tas, tanto mais provaveis serao as quedas, quer porque as pretensées sao irrealizéveis, quer porque o individuo vive numa tensao insuportavel que lhe tira as energias € o tor- na mais vulnerdvel. E com as quedas vém a desilusao, a desconfianga, a raiva de si mesmo e muita amargura no coragao por ter o indivfduo faltado as promessas e ter descoberto que é fraco. E esta, na realidade, a verdadeira raiz de seu descon- tentamento: nao tanto saber que ofendeu a Deus, mas constatar a propria fraqueza. Um sentimento de culpa que nasce mais do amor-préprio ferido que da consciéncia de ter “ferido” o Amor divino. A condenagio Nesse ponto, irrompe a condenagao do eu. Podera parecer estranho, mas também essa condenagao ¢ expres- 21 sao do narcisismo. De favo, representa uma afirmagio do eu, ulterior ¢ distorcida, ou a conseqiiéncia exasperada de um pracesso de autoleséoe moral. Se é, de fato, o eu que escolhe autonomamente os valores ¢ fixa os objetivos para Sua auto-realizagao ascética, podetd realizar grandes pro- jctos de santidade, empenhar-se ao maximo ¢ dar prova de coeréncia ¢ severidade Para consigo mesmo, mas hé algo que nao sabera nem poder4 jamais fazer: aceitar 0 proprio mal e perdoar-se. O perdao sé podia ser inventa- do por Deus, que quer 0 bem do ser humano, ¢ nio certamente por um eu que procura a si mesmo ou os préprios intercsses espirituais com obstinada e simulada ambicio. No fundo, nao existe pior tirano que um eu ambicioso que sé busca a si mesmo... Se 0 escrupuloso se culpa, nio o faz, pois, por delica- deza de consciéncia, mas pot imposigso de seu eu (ou de seu superego) que, ofendido em scu narcisismo, se vinga ou tenta reabilitar-se, condenando-se ou castigando-se de mil modos (busca excessiva de mortificagées expiatérias, formas exageradas de ascetismo, rituais propiciatérios etc). E tudo sempre com uma pontinha de exibicionismo ¢ a reemergente, ¢ jamais adormecida, prevensao de perfeicao. A divide Apesar dessa dificil tentativa de recuperagio, 0 es- crupuloso néo resolve seu problema: nao consegue a sere- nidade interior nem a certeza do perdao. E isso por dois motivos. Antes de tudo, porque € sempre 0 eu que quer realizar esse programa de “reabilitagio”: esse pequeno cu que presume, mediante seus atos de peniténcia, ter a ga- rantia da sua recuperada inocéncia ¢ pensa que esté per- 22 doado somente gragas As suas confissGes repetidas (como se o perdao estivesse ligado a quantidade de absolvigées). Surgird, entao, em vez da confianga na misericérdia divi- na, © costumeiro mecanismo narcisista (pretensao de ser perfeito ¢ medo de nao o ser), que, dessa vez, acabard numa espécie de mania obsessiva: “Serd que me confessei bem? Terei dito tudo? Deverei confessar-me outra vez? Terei feito peniténcia suficiente?” fa classica dtivida do escrupuloso, um verdadeiro sofrimento, dificil de com- preender e, mais dificil ainda, de suportar. E, porém, a conseqiiéncia Iégica de um equivoco imperdodvel: 0 es- crupuloso impde-se & confissdo, mais como uma punicao que como uma busca de encontro com a misericérdia di- vina, que perdoa e da seguranga. Existe ainda outra raz4o, ligada, de modo particular, a natureza do perdao. Parece evidente que, para sentir-se perdoado, é preciso, antes, sentir-se pecador. O escrupu- loso ndo se sente perdoado, simplesmente por nao ter tomado consciéncia da verdadeira natureza do seu pecado. Vive com medo de descobrir a prépria culpabilidade. Portanto, nao aceita ser radicalmente pecador. Vé pecado nos aconteci- mentos mais triviais, exatamente para evitar a idéia insu- portavel de sentir-se pecador nos grandes. Nesse ponto, se o seu sentido de pecado ¢ tao restri- to, que experiéncia de perdao radical ¢ “definitive” poderd realizar? Multiplicard confissdes, mas permanecerd na dtivi- da fundamental: “Posso merecer 0 perdéo © o amor de Deus?” E essa sua verdadeira diivida ainda narcisista, como a reflexdo que se seguird a ela, semelhante a uma ruminagéo sem fim, que tem por objetivo o préprio eu e nao o amor de Deus. Um amor que 0 escrupuloso corre o risco de nao descobrir nunca como maior que o seu préprio pecado. 23 Terapia antiescripulo E possfvel extinguir a duvida asfixiante do escriipulo ou, pelo menos, assumir uma atitude diferente, mais livre ¢ libertadora, diante dele. Eis algumas normas indicativas: 1) Livrar-se do narcisismo: se olhar demasiadamente © préprio eu pode tornar-nos doentes e, 3s vezes, escrupu- losos, o remédio est4 em voltar o coragao e a vontade para Deus, a escuta de sua palavra, e permanecer atento para descobrir as necessidades dos outros. Poderiamos dizer que é terapéutico tudo o que impede o escrupuloso de voltar-se para si mesmo c, pelo contrério, o estimula a liberar suas energias para um servigo concreto ¢ criativo ao proximo. O escrupuloso tem muito mais necessidade de livrar-se do seu narcisismo inconsciente que de ouvir pregagées sobre o perdio de Deus, tranqitilizar-se acerca de seu comporta- mento ou de obrigacées e proibigées varias. 2) Esclarecer o sentido da vida moral, livtando-a dos equivocos, por exemplo, de uma ética demasiadamente legalista (o dever pelo dever) ou repressiva, que vé 0 peca- do em toda a parte e acaba por sufocar o espirito; ou tao sublime e exigente, a ponto de impor metas im poss{veis; ou quase unicamente sexual, como se nao houvesse outros aspectos da moral (mais de trés quartos dos escrupulosos sio atormentados por dtividas na area sexual). 3) Ter um guia spiritual. é perigoso para o escrupulo- so ficar abandonado a si mesmo ou mudar constantemente de confessor. Mas é importante que tenha seu diretor espi- ritual, um diretor que saiba unir a paciéncia a firmeza, que seja sereno, misericordioso, capaz de infundir confianga em seu dirigido ¢ impedir que este se concentre continuamente 24 em si mesmo. Por sua ver, 0 escrupuloso procurara deixar- se guiar ¢ ser obediente, resistindo a tentagao de multiplicar as confissdes, de acusar-se repetidas vezes do mesmo peca- do, de fazer confissées gerais. Também devera lembrar-se de que, em caso de dtivida sobre sua conduta moral, a suposi- gio é sempre a scu favor. Tal obediéncia é sua verdadeira peniténcia; nao precisa buscar outra... 4) Aceitar o lento processo de cura, dando um sentido ao préprio sofrimente. Nao € verdade, como ja se disse, que o escriipulo é um sofrimento inieil. Pode tornar-se um sofrimento redentor se lhe for dado um significado, se for vivido diante de Deus ¢ de sua misericérdia, se for progressivamente libertado das componentes egofstas ¢ acei- to como parte da propria fraqueza. Naturalmente, é um processo lento. Talvez 0 individuo cscrupuloso jamais se cure completamente. © importante € que aceite livrar-se gtadativamente de seu eu embaragoso. Poderd, entio, até se santificar, nao obstante seus escripulos. 4. A trave no olho Eram chamados de mesinos das chicotadas. Viviam nas cortes reais inglesas no século XIX. Acompanhavam sempre o filko do rei, mas tinham também esse estranho encargo: quando 6 jovem principe cometia uma falta, eram castigados com o chicote no lugar do principe. Dessa ma- neira, a culpa era, de certo modo, expiada. Prdticas de outros tempos, absurdas e barbaras. Concudo, certo dia, numa comunidade, sucedeu algo semelhante. L4 nao ha- via principes, chicotadas ¢ meninos, é claro, mas a mesma operacao intrapsiquica que impele, inconscientemente, uma 25 pessoa gue comete um erro ou constita uma limitasdo, mus ndo o quer aceitar, a “transferir” a culpa e 0 castigo para uma outra. F © velho e infantil mecanismo da projegao. Uma outra forma de nao-integragao do mal. A projecio constitui, de fato, um modo muito pri- mitivo de liberrar-se da propria culpa, descarregando-a nos outros. Todos nés, mais ou menos, somas tencados a fazer uso da projegia, pelo menos alguma vez na vida. Poderia- mos, talvez, afirmar que esse mecanismo é responsavel por varios problemas e dificuldades de relacionamento em nos- sas comunidades. O que existe na origem dessa projegio do prdprio mal nos outros? De um lado, o costumeiro medo ancestral do prdprio pecado, que leva, As vezes, a ignord-lo. De outro, mais particularmente, a sensagdo de poder comba- ter melhor 0 que est4 fora do préprio individuo e nao lhe diz respeito diretamente. £, entao, que o ser humano “pro- jeta”, isto ¢, critica, acusa, julga e, 4s vezes, condena, recu- sa, despreza... Desse modo, tem a impressao de ter feito algo contra esse mal. Nao pereebe, porém, que o mal tratado, desse modo, estA complicando-o, talvez arruinan- do os rclacionamentos interpessaais, ¢ nado estd, de modo algum, sendo eliminado de sua vida. O bode expiatéria Uma primeira forma de projegao, a mais classica, € aquela que atribui, inconscientemente, a determinada pes- soa, sentimentos, intencdes, atitudes ligadas aos préprios atos da imaturidade. & como se 0 outro se tornasse uma tela cincmatogr4fica na qual projcta sua propria negatividade, suas culpas, ou aqueles aspectos do eu que o individuo 26 n4o aceita ou nao integrou em sua identidade. Uma trave no olho impede-o de perceber que tudo o que contesta no outro é de sua propriedade. Na realidade, nao sabe aceitar © outro nem a si mesmo. Como descobrir essa projegao? Geralmente h4 um conjunto de sinais que faz pensar no surgimento desse processo: 1) A rigidez € a repetitividade do juizo, que deixam pouca ou nenhuma esperanga de uma melhora real do outro. Parece quase “ser necessdrio” que 0 outro seja exa- tamente assim e nio possa mudar (para continuar a iludir-se que o “problema é dele, e nao meu”), com a conseqiiente “indugio” de um comportamento correspondente. Com efeito, sabe-se que cada pessoa, por sua vez, induz quem vive a seu lado a comportar-se exatamente segundo a idéia que tem dele. 2) Uma acentuada intolerancia com relagéo ao outro, cuja simples presenga incomoda, comporte-se ele como se comportar (“nao agiiento nem a maneira como ele fala”). Tal intolerancia culmina na antipatia declarada (de certo modo, autojustificada) e na irritagao mais ou menos ex- pressa (sinal de que o problema nao esta, de modo algum, resolvido e o mal, em absoluto, eliminado). 3) A condenagito demasiado ficil e imediata como expressio inconsciente de um desejo de estar completa mente indene e livre do mal. Esse mal ¢ condenado no outro para nos iludirmos de que j4 0 vencemos ¢ afasta- mos de nés mesmos. E, normalmente, bastante severas, sem apelacio, até com conotagoes profé- ticas, mesmo que nao-verbalizadas. o condenagées Expressio tipica e exasperada dessa primeira forma de projegao é a criagio do bode expiatdrio: um membro da 27 comunidade é visado e insistentemente acusado e contes- tado por suas culpas e, também, pelas dos outros. Talvez seja realmente um irmiao fraco, que comete mais faltas que os outros. Ou talvez, diferentemente dos outros, seu tini- co erro consiste em cometer faltas diante dos outros, de modo evidente, a luz do sol... Caso se torne 0 alvo de uma projecio, serd o irmfo que sempre comete faltas, que nada entende e que retarda a caminhada comunitdria, porque tem esse ou aquele defeito. Nao se corrigiré jamais. melhor que seja transferido... Ha algum tempo, conheci um religioso que tinha esse “carisma” particular: criar bodes expiatérios nas co- munidades pelas quais passava (¢ tinha passado por diver- sas). O interessante é que todas as pessoas visadas por esse “terrorista” da vida comunitéria mostravam semelhangas singulares de personalidade e eram acusadas, quase sem- pre, das mesmas atitudes, daquelas imaturidades que ele mesmo nao sé nao tinha vencido, como também nem sequer reconhecia em si. E verdade: teoricamente o bode expiatério poderia até se santificar se soubesse minimizar tais situagdes. Contudo, também poderia cair numa séria depressio ou ser impclido a gestos temerdrios de reacao. Portanto, é melhor que nos decidamos a santificar-nos juntos por outra via, comegando cada qual a assumir os préprios erros. Grupo expiatério e estilo de vida Outra possivel forma de projegao surge quando al- guém descarrega, habitual ¢ inconscientemente, sua negativi- dade no grupo. Nao necessariamente, portanto, uma pes- soa se torna alvo da projegao. Pode, também, acontecer 28 com um conjunto de pessoas, como a prépria comunidade, “os outros”, a propria congregagio, ou mesmo a estructura. Até 0 mundo ou a sociedade podem prestar-se a esse tipo de projegio, ou uma particular categoria de pessoas, por exemplo, 0s pecadores. Mais que uma técnica ocasional de projegao, teremos, entao, um estilo de vida, em chave pro- jetiva. Essa projegio habitual pode manifestar-se da se- guinte forma: * Airibuir aos outros a md intengéo. E dificil, sabe- mos muito bem, compreender as verdadeiras motivacbes que nos levam a agir, muitas vezes, habilmente escondidas pelas nossas inconscientes tdticas defensivas. Mesmo as- sim, essas pessoas conseguem descobrir, de repente, as mo- tivagdes dos outros, naturalmente sempre negativas. Suas “descobertas”, na realidade, nao sao fruto de longas pes- quisas; séo, antes, um atribuir-se instintivamente algo sé vagamente percebido em si mesmo. Em outras palavras: quem € egoista, sobretudo se o ignora, ser4 levado a inter- pretar como egofstas as atitudes dos outros. Por isso é que, nao raro, essas interpretagdes malignas sao tao sutis € originais: quem as excogitou, com certeza jd as viveu cm seu dia-a-dia, é um “especialista” na matéria, O seu pensar mal dos outros torna-se um desabafo, manifestagao de um mal-estar {ntimo, como uma catarse libertadora, mas que revela € trai o que tem no coragao. Se 0 principio funcio- na, podemos dizer que, muitas vezes, nas constantes mas interpretagdes das agSes dos outros podem se esconder nossas proprias inconsisténcias A sindrome do farisen 1) Outra forma elegante de projegao é a de quem se considera gratuitamente superior aos outros, a ponto de 29 desprezé-los, mais ou menos implicitamente, ou, pelo me- nos, de condend-los em seu coracgio. E uma atitude tipica- mente farisaica, de que Lucas nos fala no capitulo 18, ¢ que (parece estranho!) se manifesta exatamente num con- texto de oragao. Quais as caracterfsticas dessa sindrome do ser huma- no “piedoso”? Antes de tudo, a incapacidade de olbar para dentro de si, a falta de coragem para aceitar o préprio mal. 6 como se o seu exame de consciéncia sé se limitasse 4 Arca positiva, com conseqiiéncias perigosas para o relaciona- mento com Deus ¢ com as pessoas. De fato, na realidade, esse ser humano “rezador” nao se comunica com Deus (Lucas diz. que orava “intcriormente”), porque orar € reco- ohecer a distancia que nos separa de Deus ¢ acolher, com gratidio, © Pai que vem ao nosso encontro, apesar da nossa indignidade e do nosso mal. Além da consciéncia desse mal, existe somente 0 monélogo vazio ¢ presungoso de quem “celebra” seu eu e seus méritos diante de Deus. Se, por acaso, cu também me comporto dessa forma em relagéo aos outros, nasceré em mim uma singular ma- nia de contraposigao, que me levara, exatamente, a me con- vencer de que sou de fato melhor. E como? Fazendo um exame de consciéncia a respeito do outro, isto ¢, exami- nando-o precisamente quanto aos aspectos que considerei Positivos em mim mesmo ¢ sobre os quais, no confronto, sei que sairci vencedor. E ébvio que estarei muito atento a escolher pessoas que me permitam esse ficil confronto vitorioso; irei dirigit-me aos “publicanos” (ou os que me parecem como tais). Em todo caso, terei necessidade de encontré-los: sem eles, nao me sentirci bastante positive ou nao saberei onde descarregar a negatividade de que 30 procurei livrar-me. Ficaria com um exame de consciéncia pela metade... 2) O lamentador ¢ 0 bajulador, Assumiu a projecio como estilo de vida também quem sempre se queixa de todos e de tudo. E uma figura nao rara em nossas comuni- dades. O que se projeta, neste caso, é sobretudo 0 mal- estar ¢ 0 nervosismo determinados pelas inconsisténcias, especialmente pelas inconscientes. O lamentador é 0 tipo para o qual nada est4 bom, desde o sal da sopa, o plano de apostolado da comunidade, os coirmaos, até os superiores. A comunidade e¢ 0 Instituto serao alvos freqiientes das qucixas dessas pessoas que, geralmente, fora da comunida- de (nao se sabe 0 porqué), encontram quase sempre pes- soas maravilhosas e institutos melhores que o seu... Outra variante dessa modalidade projetiva é consti- tuida pelos bajuladores ou fofoqueiros de corredores: também esses sempre criticam tudo, mas preferem fazé-lo em voz baixa, sem comprometer-se, as ocultas. Mas quando se tra- ta da obrigagao de falar, ficam repentinamente sem cora- gem de manifestar a propria opinido. Ou entio, o tipo do contra, que parece sentir prazer em se opor aos demais... Todos esses tipos sio simplesmente individuos que nao se accitaram ou se iludiram, pensando resolver seus problemas descarregando-os nos outros. Desperdigam ener- gias para “ver o cisco nos olhos dos outres e nao ver a trave nos seus”. Querem evitar 0 peso do préprio pecado e sentem um peso maior no coragao. Entretanto, com um pouco de honestidade consigo mesmos, esse peso comega- ria a ficar leve. 31 CapiTuLo SEGUNDO Verdadeiro e falso sentimento de culpa” Conseguir reconhecer, objetivamente, 0 préprio erro, evitando as ciladas dos mecanismos de defesa, ndo quer dizer, ainda, sentir-se pecador. A experiéncia subjetiva do mal pessoal tem diversas ressonancias possiveis: 0 indivi- duo pode sentir-se simplesmente culpado, ou chegar a des- cobrir que ¢ pecador. E um processo de amadurecimento ptogressivo da prépria consciéncia penitencial que deveria permitir-nos passar da sensagao de culpa & consciéncia de que somos pecadores. Na realidade, isso nem sempre acon- cece: nem todo sentimento de culpa leva a essa maturagao progressivo. Dentro dessa mesma experiéncia de culpa hé diversos matizes de atitudes. H4 um sentimento de culpa construtivo, essencial para sermos pessoas responsiveis € capazes de crescer. E hd um sentimento de culpa destruti- vo e infantil, que fecha o eu sobre si mesmo e o impede * Este capitulo foi escrito por Alessandro Manenti 33 de amadurecer. Como compreender a diferenca ¢ favore- cer o sentimento de culpa construtivo e libertador? Antes de tudo, livremos 0 campo de falsos preconcei- tos, como: a culpa é sempre um sentimento mau, a culpa inibe, hoje nao existe mais sentimento de culpa. Trata-se, 20 contrario, de distinguir os diversos tipos de culpa: alguns nocivus, was outros titeis para o crescimento da nossa cons- ciéncia penitencial. Em seguida, devemos reconhecer que esse sentimento é inevitavel no ser humano (a menos que se trate de casos patolégicos). Est4, portanto, presente também no set humano de hoje, que, no m4ximo, procurard, inutii- mente, cancela-lo. O objetivo torna-se, entao, favorecer um sentimento sadio de culpa ¢ eliminar a que for destrutiva. Podemos distinguir quatro tipos de culpa: dois cons- trutivos € dois destrutivos. 1. Culpa construtiva Culpa ontolégica e existencial Tornando-se adulto, o ser humano percebe que a vida nao continua por acaso, mas exige uma série de deci- ses. Desenvolve-se sempre entre dois pélos: de um lado, 0 risco e, de outro, o medo. Arriscar para ir em frente, fazer novas opgdes, assu- mir responsabilidades antes desconhecidas. Medo, porque tudo isso significa algo imprevisivel. Abrir mao das posigdes familiares ¢ encorajadoras para fazer opges novas, desconhecidas. Se o ser humano qui- ser crescer, devera passar do velho para o novo, do progra- 34 mado para 0 criativo. E vive-se isso com uma tensao sadia de crescimento. Por outro lado, a culpa ontoldgica apare- ceré toda vez que perdermos a ocasiao de avangar para 0 futuro ¢ permanecermos comodamente estacionados. Portanto, seja bem-vindo esse sentimento de culpa. Se nao existe, precisamos fazé-lo aparecer, pois ele nos re- vela a ocasiao perdida e nos lembra — mesmo de forma negativa — da necessidade de arriscar ¢ de tentar. Culpa reflexiva E © sentimento de autocritica que nasce da cons- ciéncia. Sua base nao é instintiva (ansia, medo de puni- gio, autocondenacao), mas cognitiva. Nasce da capacidade de julgar a si mesmo em termos de valores morais interio- rizados. Nao se trata, por isso, de rejei¢ao de impulsos inter- nos inaceitdveis, nem do medo por causa das conseqiiéncias, nem mesmo do simples pesar por ter prejudicado os outros. Aqui esta implicada a consciéncia de nao ter estado 3 altura dos ideais realistas nos quais cu creio. E, portanto, um sen- timento racional, que nasce de uma maturidade cognitiva (capacidade de autocrftica) ¢ moral (sensibilidade aos apelos que me foram feitos pelos ideais transcendentes). Culpa positiva, portanto, que nasce da comparagao entre o meu eu e os valores que me solicitam: a conscién- cia de ter transgredido um estilo de vida livremente aceito. Esses dois tipos de culpa nascem de uma estrutura psicolégica sadia: de alguém que levou a sério a vida como uma série de opc6es pessoais a serem realizadas, e que ancorou a prépria existéncia em projetos ideais. 35 2. Culpa destrutiva Diferente € a culpa destrutiva, que esconde os con- flitos inferiores de origem psiquica e bloqueia ou freia o crescimento. Culpa psicologica E aquele sentimento que nao deriva da reflexao so- bre a propria situacéo quanto ao ideal a ser atingido. E, antes, um sentimento imediato e irracional. Um senti- mento de angistia e de autocondenagao que, as vezes, atormenta-nos ¢ nos faz sentir dores de estémago. Por exemple, a angtistia por ter transgredido uma proibicao e, por conseguinte, o medo do castigo. Ou, entdo, a auto- censura por nao ter sido digno da confianca de alguém, e, portanto, o medo de perder o seu amor. Ou, ainda, a humilhagao de aparecer a nds mesmos com a nossa ima- gem distorcida. Esse tipo de culpa nao se refere ao pesar por ter perdido o ideal, mas ao desapontamento por nao ver reali- zado 0 desejo de sermos amados, reconhecidos, valoriza- dos. Humilhagao essa que anula a capacidade de reagir. q 8) Antes, pode levar-nos a perpetuar 0 erro: como sou uma pessoa que nio serve para nada, posso perfeitamente con- tinuar a resignar-me. Culpa inconsciente Nasce de impulsos reprimidos, porque inaceitéveis, mas que voltam a consciéncia. E 0 “retorno do que tinha sido removido”: estar certo de que possuo impulsos ina- 36 ceitaveis irrita-me. Autocensuras humilhantes, submeter- se a privagdes para punir-se, sentir-se culpado por agdes que nao merece, escriipulos injustificados, exames de cons- ciéncia torturadores demonstram que o individuo esté com raiva de si mesmo. F. a Idégica do “nao podendo agir de outra maneira, torturar-me-ei por dentro”. 3. Como compreender E, entio, o meu sentimento de culpa é construtivo ou destrutivo? Um tabu clerical ou uma experiéncia de crescimento? A esse propésito, sao titeis dois critérins: dis- cernir a causa ¢ 0 efcito da culpa. A causa da culpa construtiva é a consciéncia de ter transgredido um valor importante para mim (sinto, por- que perdi 0 verdadeiro sentido de minha vida). Ao contrd- rio, a causa da culpa destrutiva ¢ o medo do castigo (real ou imagindrio) proveniente dos outros ou de mim mes- mo: agora me acontecerd uma desgraga; o que farei se os outros perceberem isso? Este pecado nao foi cometido por mim, nao é meu! Sio situagdes que podem ocorrer com os outros, nao comigo... No primeiro caso, sente-se pesar por um valor per- dido; no segundo, sente-se vergonha pelo vexame da re- presdlia. O efeito da culpa ¢ a resisténcia 4 tentagao: nao o farei mais! Mas por que resistir? Na culpa construtiva, a resisténcia fundamenta-se em princfpios internos: no o farei_mais porque quero reconfirmar em minha vida o valor que perdi. Também a culpa destrutiva me faz resistir 37 (até certo ponto!), mas por razdes externas ou afetivas: nao o farei mais porque nao quero mais sentir dor de estOmago, porque é humilhante ter de confessar-me. 4, Na culpa para ser livre Aqui devemos pensar em nossa moralidade: nossa boa conduta € sustentada por valores que amamos e nos quais acreditamos, ou por critétios pessoais? Podemos dei- xar de transgredir por medo de sermos descobertos, pela necessidade de ver-nos confirmados em nossa retidao, pelo temor das conseqiiéncias ou de uma represdlia. Infeliz- mente, sio 0 medo e a vergonha, e nao 0 amor e a convic- gio do valor, que nos levam 4 nao-transgressao. Culpa destrutiva € construtiva: aquela € 0 remorso (experiéncia psicaldgica) e esta, o arrependimento (cxpe- ri€ncia moral). O remorso nos liga ao erro; o arrependi- mento nos livra dele, Livres para nos sentir genuinamente culpades e assim descobrirmos a beleza do valor perdido. 38 CAPITULO TERCEIRO Do sentimento de culpa 4 consciéncia do pecado O sentimento de culpa verdadeiro e construtivo é a consciéncia de ter rransgredido um valor importante, 0 pe- sar por ter perdido esse mesmo valor. Mas o ser humano pode ir além dessa consciéncia e desse pesar. Pode passar da consciéncia psfquica e moral & consciéncia religiosa. Na experiéncia as vezes dramatica que ele tem do mal, ha uma posstvel ressonincia ulterior, além da consciéncia de sentir-se culpado diante da prépria consciéncia: descobrir-se pecador diante de Deus, Ea passagem do sentimento de culpa para a consciéncia do pecado. Uma passagem por nada suposta, e que, no entanto, revela a maturidade da nossa fé. Tem consciéncia do pecado somente quem se coloca dian- te de Deus ¢ descobre, arrependido, que o ofendeu. De fato, sem Deus nao hé bem nem mal, mas, quando muito, uma avaliacio ética subjetiva, exposta & ambigiiidade e a visdes mfopes. Com efeito, bem ¢ 0 que corresponde ao projeto de Deus e mal € 0 que se opée a esse projeto. Nesse 39 sentido, o pecado € essencialmente uma realidade religiosa E © préprio mistério do pecado revela-se ao set humano somente quando ele se aproxima de Deus e descobre 0 seu ser pecador como ruptura do relacionamento com Deus. Por isso, a primeira experiéncia que 0 ser humano faz quando encontra Deus é a de ser pecador; talvez seja defi- nitivamente um sinal do encontro ocorrido, pelo que po- derfamos dizer: néo é verdadeira a experiéncia de Deus que no leva & consciéncia do proprio pecado. Sabemos muito bem disso. Mas queremos perguntar se € essa a efetiva experiéncia psicolégica que fazemos da nossa limitagio moral, ¢ como eventualmente construf-la cm ads, dentro de um processo de integragao do mal. Com outras palavras: percebemos 0 nosso erro como ofen- saa Deus mais € antes que a nés mesmos? FE quando nos confessamos, acusamo-nos de culpas ou de pecados? Como chegar, entao, 4 consciéncia de pecado? 1. Ele é 0 “Altissimo” (SI 46,5) Na bula de proclamagio do jubileu da Redencao, o papa escrevia: “E preciso redescobrir o sentido do pecado e, para chegar a isso, é mister redescobrir 0 sentido de Deus”. Que significa essa redescoberta para nés © para quem pensa “té-la descoberto”? Na Biblia, o sentido de Deus que tinham nossos pais na fé parece caracterizar-se por um mesmo elemento central: a sranscendéncia de Deus. Creio que sobre isso temos muito que aprender ¢ redesco- brir. Como somos grandes niveladores, ¢ tedricos do igua- litarismo a todo custo, arriscamo-nos a nao notar mais a 40 grande admiracdéo que toma conta de quem se aproxima do divino, pela primeira vez, ¢ 0 descobre como um ser diferente de si, bem além de tudo que o cerca e dos seus pensamentos, distante da sua vida, porque é o Alcissimo, o Santo, aquele que ninguém pode ver... Acostumados ao divino, encontramo-nos sem 0 “te- mor de Deus” ¢, cm nossa insensata intromissao, nao nos damos conta da voz misteriosa que nos admoesta: “Nao te aproximes daqui; tira as sandélias dos pés porque o lugar em que est4s é uma terra santa” (Ex 3,5). Contudo, o crente é aquele que, diante da revelagao da grandeza de Deus, sente uma necessidade instintiva de retirar-se, de deter-se, quase pedindo desculpas por ter ousado tanto. ‘Assim como Moisés, diante da sarga ardente, ou Pedro, depois da pesca milagrosa: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador!” (Lc 5,8). Assim como 0 publica- no: “O publicano, mantendo-se a distancia, no ousava levantar os olhos para o céu” (Le 18,13). Ao contrario do fariseu da mesma parabola, que acreditou poder “ficar em pé” dianre de Deus, estabelecer 0 confronto sem proble- mas, como se fosse igual a ele, como se Deus fosse somen- te um amigo... Com tal pretensdo, muitas vezes habilmente escon- dida cm projetos sentimentais de intimidade, é dificil, acé certo ponto, alguém se descobrir pecador. Se a amizade com Deus nao passa pela descoberta da ranscendéncia, ou, de certa forma, nao nasce dela, € uma amizade falsa que jamais nos levard a consci¢ncia do pecado. 41 2. “Deus a quem louvo, nao te cales!” (SI 109,1) A percepgao da grandeza e da impenetrabilidade de Deus, por si mesma, afasta ¢ perturba. E assim, pelo me- nos no comego. E um precioso momento de provagao e de crescimento, no qual vemos fracassar nossas tentativas de conquista facil do divino e o desejo de conhecer Deus se purifica. Ao mesmo tempo, torna-se mais forte a cons- ciéncia de que sé ele pode vir ao nosso encontro, e mais ardente torna-se a oragio: “Naq me sejas surdo; que eu nao seja, diante de teu siléncio, como os que descem a cova!” (Sl 28,1). Quando essa stiplica ¢ verdadeira ¢ a espera € paciente, Deus nao se omite e nos atinge com aquela palavra que anula toda distancia, tornando-nos seus interlocutores. Podemos comunicar-nos com Deus! Sua palavra co- loca-nos diante dele, simbolo de vontade de didlogo, de amizade, de intimidade. Aquele que eu nunca teria podi- do conhecer nem ver por mim mesmo, com as minhas intuigdes do divino, com as minhas stiplicas, resolveu fi- xar residéncia em minha casa: “Hoje devo ficar em tua casa” (Le 19,5). Mas foi importante experienciar, antes, minha impoténcia e enché-la de oracdo, sofrer sua ausén- cia e aceitar sua inefabilidade. Se nfo se passa pelo deserto da transcendéncia, nao se pode, depois, desfrutar a revelagio. Se nao se sentiu o siléncio de Deus, no se pode, depois, valorizar 0 dom da sua Palavra e, muito menos, usuftuir sua riqueza. Com efeito, dentro dessa Palavra descobrimos o projeto que o Pai tem para nés, nossa vocagao, aquilo que somos chama- dos a ser. Uma palayra diferente, que Deus Criador pro- 42 nuncia para cada um de nds € nunca mais se repete, ¢ que cada um s6 pode escutar com gratidéo para depois empe- nhar-se a vivé-la. Agradecido, porque aquela palavra, junto com o meu nome, revela-me o semblante de Deus, como de um bom Pai a me indicar o caminho que conduz a cle, tinica fonte da minha alegria ¢ da minha realizagio. Nio é uma palavra qualquer, mas palavra que me é dirigida para revelar-me o interesse ¢ a bencvoléncia do Pai por mim. Aceitar esse amor é condigéo indispensdvel para 0 individuo fazer nascer em si a consciéncia do pecado ¢ sentir a dor de ter ofendido essa divina vontade. Quem nao experiencia uma tal benevoléncia nao poderé sentir, depois, arrependimen- to sincero por té-la, de algum modo, rejeitada. O fariseu da parabola de Lucas ¢ uma prova do que estamos dizendo. Ele nao se dirige a Deus nem tem ne- cessidade de ouvi-lo, j4 eliminou as distéacias com as préprias palavras ¢ se ilude pensando ter uma ligagao di- reta com o Altissimo. E como fala apenas consigo mes- mo, encontra-se sé com scus méritos € suas pretensoes. Agradece a Deus, porque pensa estar sem pecado, ¢ nao porque se sinta amado por cle. De fato, nao descobre nenhum projeto divino sobre si. Basta-lhe saber que € melhor que os outros. O seu mondlogo € um palavreado vazio, cxibicionismo de um eu que nao tem outro deus além de si mesmo e que, portanto, paradoxalmente, ja- mais “peca” ou sente algum arrependimento. 43 3. “Pratiquei o que é mau aos teus olhos” (SI 51,6) Nesse didlogo gratuito, e sb nele, é possivel descobrir 0 proprio pecado e considerd-lo como ofensa a Deus. Pecar, de acordo com 0 termo original hebraico, quer dizer, de fato, “errar o alvo”. Aquele alvo que Deus fixou em nossa vida € que corresponde ao seu projeto para nés. A descoberta do pecado estd ligada 4 revelacdo desse projeto. Quanto mais a revelagao apatece € se torna uma proposta precisa de um modo de ser, de realizar-se, de amar, de servir, de discernir, tanto mais a pessoa € obrigada a perceber quan- do est4 longe desse projeto existencial, dessa idéia divina. Em outras palavras, quanto mais vivo for o didlogo com Deus, e fiel a escuta de sua palayra-projeto, mais profundo ser4 0 sentido do préprio pecado e a constata- gio de que os seus caminhos nao sao os nossos, nem os scus pensamentos e os seus projetos (cf. Is 55,8). Diante da luz, descobrimos que somos trevas; diante do amor, sentimo-nos egoistas, apesar de nossos jejuns ¢ de nossas observancias. E uma sensibilidade nova e mais verdadeira, capaz de ler, em profundidade, no coragao do ser humano e também de intuir o que se esconde atras das suas “boas agées”. Gracas a ela o pecado € nao sé descoberto na raiz € em suas ramificagoes, mas sobretudo € percebido como ofensa ¢ ingratidéo para com a bondade de Deus, um no-corres- ponder ao seu projeto, desiludi-lo em suas expectativas, senegi-lo como Criador, ¢ tornar va sua palavra. E fazer 0 que é mau a seus olhos. E sinceramente arrepender-se de tudo isso. 44 4, “Tem piedade de mim, pecador!” (Le 18,13) A esta altura, a oragdo brota espontinea. Simples € essencial, como de quem se encontra em extrema necess dade. Apaixonada ¢ vibrante, porque compreendeu que somente ele pode curar. Mas, sobretudo, verdadeira ¢ coe- rence, porque nasce de uma experiéncia profunda do pré- prio pecado e da prépria incapacidade de livrar-se dele. Nao & férmula ritual nem ladainha que deva ser repetida em grupo, porque todos somos pecadores (sobre- tudo alguns...). H& um qué de trdgico nesse confessar-se “pecador”, porque ¢ a confissao da distancia infinita entre a santidade de Deus ¢ a miséria do ser humano. Distancia que parece destinada a afastar, inexoravelmente, 0 ser hu- mano da vida. Mas, entio, quando percebo o drama psicolégico do meu ser pecador ¢ que posso abrir-me, realmente, para buscar 0 perdio. Alids, 0 ato de pedir perdio faz parte ainda da consciénci a do pecado; € 0 seu clemento funda- mental e integrante. Se, de fato, como dissemos, cssa cons- ciéncia nasce e amadurece dianre de Deus e da sua trans- cendéncia, é inevitavel que, num dado momento, encon- tre a misericérdia e a ternura divinas. Aquela palavra que Deus me dirigiu um dia, anulan- do toda distancia, continuaré a chegar a mim, a fim de eliminar a inimizade criada pelo meu pecado. Somente quem reconhece o préprio pecado e dele se artepende diante de Deus pode descobrir sua bondade, esperar seu perdao c dirigir-lhe a oragio mais natural: “Se- nhor, tem piedade de mim, pecador!” E como um gemido que sai silencioso do coragao e aflora espontaneamente aos lébios. Experimenta-se a sensagao serena de estar constan- temente diante de Deus, na verdade do préprio ser que necessita de reconciliacao. Essa é, realmente, a oragao do coragio. Oracdo de quem encontrou o Senhor. Diariamente 0 procura e o encontra, com a stiplica mais antiga ¢ mais verdadeira que © ser humano jé dirigiu a Deus: Kyrie eleison! (Senhor, tem piedade!) 46 CapituLo Quarto Diante da Palavra No noviciado, fazia-se regularmente, duas vezes por dia, além daquele especial, antes da confissao. Depois, aos poucos, fomos deixando essa prdtica e, talvez, até perde- mos o seu sentido. Relegado para o fim do dia quando jé estamos cansados, ele terminou por se tornar 0 desprezado € feito as pressas e mal, de nossas “priticas de piedade” segundo um esquema fixo e muito pobre, muitas vezes superado ou associado, exclusivamente, 4 confissio. Todos ja entenderam que estamos falando do exame de consciéncia. Entretanto, em nosso caminho de integra- a0 do mal, cle tem uma fungao precisa ¢ insubstitufvel. Se queremos, de fato, evitar aquelas formas de nao-aceita- gio do nosso pecado, que nos levam a ignoré-lo, descarregd- lo nos outros ou a ficarmos esmagados por ele, devemos aprender a reconhecé-lo dentro de nés mesmos ¢ desco- bri-lo em suas camuflagens, convencidos de que, nesse campo, somos todos aprendizes, sobretudo quem nao sabe que o é € pensa que o exame de consciéncia é tarefa para criangas que faréo a primeira comunhio ou para novigas 47 principiantes (para depois fazer confissdes tao semelhan- tes, que j4 nao se vé mais o sentido que elas tém, € se perde até a vontade de fazé-las). 1. Sob o olhar de Deus Antes de tudo, ¢ importante esclarecer algo: 0 exame de consciéncia € oragdo. Se orar quer dizer estar diante de Deus na verdade do nosso ser, o exame de consciéncia significa exatamente isto: é um encontrar-se com Deus através de nés mesmos, ou um deixar que Deus venha ao nosso encontro com aquela Palavra que nos perscruta, co- nhece-nos € revela 0 que somos. Em todo caso, 0 exame de consciéncia nao ¢ simples introspecgao psicolégica, nem auto-andlise complacente e sofrida, de vago sabor perfeccionista, com poss{vel resulta- do depressivo; tampouco € gesto de intimismo circunscri- to ao perimetro da nossa consciéncia. E, pelo contrario, um pér-se diante ce Deus, com a certeza de que olhar dentro de si com honestidade, deixando que ele nos veja como somos; € fonte de paz profunda. E um “reentrar em nés mesmos” sob 0 olhar de quem nos ama € nos conhece intimamente, em um didlogo que é, sobretudo, escuta con- fiante de sua palavra. Um bom éxame de conscigncia 6 portanto, feito diante da Palavra: é a regra fundamental. Por qué? Porque 66 a Palavra pode me dizer 0 que é bom eo que é mau. E nao sé em absoluto, mediante um cédigo ¢ preceitos que vinculam a todos, mas também e sobretudo em referéncia a minha vida. Com cfeito, Deus confiou a cada um uma 48 vocagiie que s6 pode ser compreendida no pano de fundo da Palavea. E é sempre a Palavra que me revela, como jé observamos. 2. Luz para meus passos Essa, porém, nunca € uma revelagao repentina e definitiva que, a certa altura, possa considerar-se concluf- da. Dia a dia, uma Palavra sempre nova ¢ imprevisivel, mas também cancreta € circunstanciada, vem iluminar minha vida. Lampada para meus passos, revela-me 0 ca- minho que Deus tragou para mim, ¢, por contraste, des- mascara aquele caminho que eu teimo em querer seguir. Referimo-nos 4 Palavra de Deus em geral. mas também, em particular, dquela que a liturgia de cada dia nos ofere- ce: € 9 nosso mand, © pao cotidiano preparado, para cada um de nés, pela providéncia do Pai que sabe do que precisamos todos os dias. Nessa Palavra h4 um projeto sobre mim: a Palavra deve realizar-se hoje na minha vida. Conseqiientemente, dela parte, também, a anélise e a des- coberta de tudo 0 que em mim se opoe & realizagao da- quele projeto. Exame de consciéncia, portanto, estreita- mente ligado a Jectio, ou diretamente parte dela, que sc prolonga pelo dia e 0 conclui. E importante redescobrir 0 valor da Palavra de Deus em nosso dia-a-dia ¢, a mesmo tempo, salvaguardar a exigéncia psicoldgica da unidude interior. Se quisermos real- mente progredir na vida espiritual, deveremos ter um uni- co vonto de referéncia capaz de abranger coragao, mente vontade, e, em torno deles, estruturar nosso compromisso cotidiano. A Palavra do dia, lida a fuz da prépria identida- 49 de carismatica, pode realmente tornar-se esse centro de atragao ¢ de tragdo de todo o meu ser, porque é Palavra a ser meditada com amor, saboreada na prdtica e acolhida como critério de meu viver. Assim, se me deixo, cada dia, conduzir pela Palavra que me julga, lentamente se desenvolve em mim uma cons- ciéncia mais profunda do pecado, nao mais deduzivel de um simples confronto com prescrigdes comportamentais ou com esquemas fixos de conduta. Desse frio confronto, facilmente saimos inocentes e sem culpa (com conseqiien- tes confiss6es monétonas ¢ sem arrependimento). Do con- fronto com a Palavra de Deus, pelo contrdrio, sempre terei uma luz nova, que sacode minha inércia e me faz descobrir 0 mal que h4 em mim, nao mais segundo mi- nhas “tranqiiilizadoras” categorias, mas segundo a lei de Deus. Essa lei que é minha alegtia e minha paz, e que aprendi a amar (cf. S] 119,165). 3. Espada de dois gumes “A Palavra de Deus € viva, eficaz ¢ mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espfrito, junturas e medulas. Ela julga as disposi- ges € as intencgoes do coragéo” (Hb 4,12), Essa passagem poe em evidéncia outra caracteristica fundamental da Pa- lavra de Deus: sua profiinda capacidade de penetragao. “Tudo esta nu e descoberto aas seus olhos”, continua a mesma Passagem, mesmo aquilo de que nao tenho consciéncia (absolve-me das culpas que cu nao vejo”) e que nao acei- tamos de nés mesmos, ou de que nos envergonhamos e¢ gostarfamos de esconder... 50

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