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———— ox ie r ESTA OBRA BENEPICIOU DO PROGRAM 1a Cultura Francés e Europeus OUVRAGE PUDLIE AVEC LE SOUTIEN DU PROGRAMME D'AIDE ALA TRADUCTION ET A I Centee National du Inst et Buropéennes Para Fabien Eboussi Boulaga, Jean-Francois Bayart Peter L. Geschiere ‘riruzo omsarat Pol navisko L Baptista Coelho contengho oRAricé Fi pacINAGhO Rita ramxsssio Guide omsnigHt © 2016 fiditions de La Découverte, Paris | wwwalfaiataria.ong ‘o sory Antigona | Direitosreserados para Portugal ———————<——— — oe—eee foram fecundas fontes de inspiragao e, muitas vezes sem 0 saberem, interlocutores da linha da frente. ‘Agradeco aos meus colegas do Johannesburg Workshop in Theory and Criticism (WTC), LeighAnn Naidoo, Zen Marie e Kelly Gillespie por terem sido figis companheiros, wecim como a Najibha Deshmukh ea Adila Deshmukh pela sua profunda amizade. G anew editor Hugues Jallon e sua equipa, Pascale Iti, ‘Thomas Deltombe e Delphine Ribouchon, foram, como habF tualmente, um infalivel apoio. ; Dedico este ensaio a um homem para lé dos nomes, Fabien boussi Boulaga, ea dois amigos indefectiveis, Jean-Francois Bayart e Peter L. Geschiere. 0 abjecto deste livro é co! vivo e trabalho (mas tam que nio deixo de p tempo ~ um tempo mundo sob a égide do 1 ASAIDA DA DEMOCRACIA ntribuix, a partir de Africa, onde ‘bém a partir do resto do mundo, fercorrer), para uma critica do nosso de repovoamento e de globalizacto do ‘militarismo e do capital e, como der- ‘adeira consequéncia, um tempo que promove & saida da “Jemocracia (ou a sta inversio) Para levar adiante est® PF” jecto, adoptaremos uma abordagem transversal, atenta 208 res motivos da abertura, da travessia e da circulacto. Tal diligéncia s6 serd frutuo: regressiva do nosso presente. .sa se proporcionar uma leitura fai ,-tenta rom Je vigente que sabemos defender 0 fe- per com am vhamento e toda a espécie de demarcacbes, a fronteira entre te, o interior ¢ 0 exterior, aqui e acolé, 0 proximo ¢ 0 dista aevinde de Linha Maginot para grande parte daquilo ave passa hoje por epensamento global». Ora, 36 6 epensamento_ a usa e REGRESSO, INVERSAO E ACELERACAO Como contribute para a reflexo aqui esbocada, realgamos quatro tracos caracteristicos do nosso tempo. O primeiro é ‘o estreitamento do mundo e o repovoamento da Terra devi- do a oscilagdo demografica que, doravante, opera em bene- ficio dos mundos do Sul. zamento geogra tacdo forcada de populagées inteiras em vastos territorios, Quanto a vertente atlantica do planeta, houve dois momen- tos significativos, ligados a italismo indus- trial, a ritmar o proceso de redistribuica populacées. ‘Tanto o comércio negreiro como a colonizagao coincidiram ‘em grande medida com a formagao do pensamento mercan- tilista no Ocidente, estando quica, pura e simplesmente, na sua origem?. O comércio negreiro funcionava com o san- gramento e a puncio dos bracos e das energias mais das sociedades que forneciam escravos. Paul Gilroy, 0 Aldntion Negro, Moderidade e Dupla Consciéncia, UCAM, Rio de Janeiro, 2001 [1993) + Para uma visio geral, ver Parkakunnel Joseph Thomas, Mercantilism and East India Trade, Frank Cass, Londees, 1963: William J. Barber, British Eeo- nomic Thought and India, 1690-1858, Clarendon Press, Oxford, 1975 2 Nas Américas, a io®de-abraseevil de origein afieana de mais, o das florestas e das arvores que regularmente teriam de ser cortadas, queimadas e abatidas; 0 do algodaio ou da cana-de-agicar que deviam substituir a natureza pree- xistente, de paisagens antigas que era preciso remodelar, 0 de formacées vegetais anteriores, que era preciso destr eo do regime de um ecossistema que era preciso substitu pelo agro-sistema’. A plantacdo era, assim, apenas um dispo- sitivo econémico. Quanto aos escravos transferidos para o Novo Mundo, era também ali que se desenrolava outro come- go. Dava-se inicio a uma vida doravante vivida segundo um pri Imente racial. Mas, longe de ter apenas um puro significado biolégico, a raga assim entendida remetia particularmente o caso dos pobres a0 cuidado da sociedade € dos vagabundos ¢ delinquentes, supostamente nocivos para a nagdo, Era uma tecnologia de regulagdo dos movi- que esta forma de migracdo beneficiaria, em tiltima andlise, © pais de partida. «Nao s6 um grande niimero de homens 5 Ver Walter Johnson, River of Dark Dreams. Slavery and Empire in the Catton Kingdom, The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, son, A Tale of Two Plantations. Slave Life and Harvard University Press, Cambridge, 2014, insttwigd. 23 que vivem actualmente na ociosidade aqui, que representam_ ‘um peso, uma carga, endo pertencem a este reino, seriam postos a trabalhar, como os seus filhos de doze ou catorze anos, ou mais, seriam afastados da ociosidade, fazendo toda a espécie de coisas fuiteis, podendo vir a ser boas merca- dorias para este pais», escrevia, por exemplo, Antoine de Montchrestien no seu Traité d'économie politique no inicio do século xvii. E acrescentava ainda: «As nossas ociosas mulhe- res {...] sero empregadas, arrancando, tingindo e escolhen- do penas, esticando, batendo e trabalhando 0 cinhamo, colhendo 0 algodio, e diversas coisas com tingimentos.» ‘Os homens poderiam, por seu lado, «ocupar-se do trabalho nas minas, de actividades de lavoura, e até da caga a baleia [...]alem da pesca do bacalhau, do salmio, do arenque, ¢ do abate de arvoress, concluia’. ‘Do século xvi a0 x1%; estas duas modalidades de repo- parte, construidas sobre a defesa ou sobre a critica de uma ou de outra destas duas formas de redistribuigao espacial de populagées?. Em contrapartida, estas originaram muitos 5 Antoine de Montchresten, Traitédconomie politique, Droz, Genebra,1999 5) p387, 6 Verporexemplo, joriah Child, A New Discourse of Trade, Hodges, Londres, 3690, p.297; Charles Davenant,sDiscourses on the publi revenue and on. the rade in The Pll and Commer Wr Caleta Revd Sir Charles Whitworth, R Horsfeld, Londres, 1967 (1 {ar Chestphe vee Formation edison del peat monique ibta- romie politique du XVIe 3, Lyon, ry voamento do planeta pela predagio humana, a extracgdo | : | conflits e uerras de distribuigdo ou de monopélio. Como resultado deste movimento de alcance planetirio, desenhou- -se uma nova distribuigao da Terra, com as poténcias oci- dentais no centro e, fora dele ou nas margens, as periferias = dominios de abundante luta e dedicados & ocupacao ¢ pilhagem. B além disso é preciso ter em conta |. Certamente, em ambos os casos, considerava-se |) que o enriquecimento da coldnia ~ de qualquer colénia ~s6 fazia sentido se contribuisse ‘Tmetrépole. A diferenca, no entanto, Alias, o dominio das colénias de exploragio destinava- -se teoricamente a um objectivo, e a implantacdo dos euro- peus nestes lugares era provisoria. No caso das colénias de ovoamento, a politica de migragao visava conservar na esfe- ra da nacao pessoas que seriam perdidas se tivessem ficado entre nds. A colénia servia de saida paraestes indesejéveis, categorias da populacdo «cujos crimes e deboches» poderiam ser «rapidamente destrutivos», ou cujas necessidades os leva iam a prisio ow os forcariam a mendigar, tornando-os int- Alias, repovoamento da Terra no inicio da era moder- na nao passa apenas pela colonizacdo. As ea mobilidade explicam-se igualmente p 25 150 do periodo 1685730, a seguir revogacio do feito Nantes, cerca de 170 mil a 180 mil huguenotes deixaram, anca. A emigracio religiosa atinge muitas outras comu- des. Na realidade, diferentes tipos de circulagées inter- jonais imbricam-se, quer se trate de judeus portugueses redes comerciais se articulam em torno dos grandes, portos europeus de Hamburgo, Amesterdio, Londres ou Bordéus; de italianos que investem no mundo da finanga, do negécio ou dos oficios altamente especializados, como 0 vidro e produtos de luxo; e até de soldados, mercenarios, engenheiros que, devido a varios conflitos da época, passam. alegremente de um a outro mercado da violencia. Na alvorada do século xxi, jé nio é pelo trafico de escra- vos nem pela colonizagio de regides longinquas do globo que se repovoa a Terra. O trabalho, na sua acepcao tradicio- nal, ja nao é necessariamente o meio privilegiado de for- macio de valor. O momento ¢ agora de agitacao, de grandes e pequenas deslocagées e transferéncias, em. sue SD anual Asnovas dinamicas circulat6rias ea for- magio das diésporas passam, em grande parte, pelo Oe jento acelerado de grupos humanos das nagées ricas do mundo representa, deste ponto de vista, um acontecimento de consideravel alcance. f 0 inverso dos excedentes demogriticos tipicos do século x1x que acabé- mos de evocar. A distancia geografica enquanto tal deixa © Ver Jean-Pierre Bardet e Jacques Dupaquier (org), Histoire des populations de VBurope. I. Des origines aux prémicss de la révolution démographique, Fayard, Paris, 1998, > Sobre amplitude das novas formas de circulagio, ver World Bank, Deve- lopment Goals in an Bra of Demographic Change. Global Monitoring Report, 2015/2016, 2016 (disponivel em «worw.worldbank org % de significar um obstaculo & mobilidade. As grandes rot da migracio diversificam-se, e os dispositivos cada vez ma sofisticados de evasao das fronteiras actuam. Se, de sil 05 fluxos migratorios, centripetos, se orientam simultanea: mente em varias direcgdes, a \qui surgem novas aglomeracdes ¢ constroem-se, apesar de tudo, Como prova das novas circulagdes internacionais, vao, recendo, a or todo o planeta, varios con- juntos de Esta nova disseminacdo de col6nias ~ que vem juntar-se as anteriores vagas de migracées provenientes do Sul ~ baralha os critérios de pertenca nacional. Pertencer & nagio nao é apenas uma questio de origem, mas também de esco- Tha, Uma massa incessantemente crescente de pessoas parti- ‘cipa agora em varios tipos de nacionalidades (nacionalidade de origem, de residéncia, de escolha) e de ligacdes identi- tarias, Em certos casos, tém de se decidir: ou se fundem na populagio, pondo termo as duplas fidelidades, ou, em caso de delito que ponha em perigo a xexisténcia da nacio», se artis cama ser privadas da nacionalidade de acolhiment ‘Além disso, quanto & parte fulcral do repovoamento - em ‘curso ~ da Terra, ndo encontramos unicamente os humanos. Os ocupantes do mundo ja nao se limitam aos seres huma- nos. Mais do que nunca, esto incluidos inmeros artefactos € todas as espécies vivas, orginicas e vegetais. Também as forcas geologicas, geomorfol6gicas e climatoldgicas comple- la Benhabib e Judith Resnik (org), Migrations and Mobilis. Citi- _zenship, Borders, and Gender, New York University Press, Nova forque, 20095, «Seyla Benhabib, The Rights of Others. Aliens, Residents, and Citizens, Cam bridge University Press, Cambridge, 2004. a tama panéplia dos novos habitantes da Terra", Certamente, nao se trata de seres nem de grupos ou de familias de sores enquanto tais. No limite, nao se trata nem de ambiente nem de natureza, Sio agentes ¢ meios de vida — a agua, 0 ar, 0 po, 0s micrébios, as térmitas, as abelhas, os insectos -, 0s pro- tagonistas de relagdes especificas. Passamos assim da condi- segun ‘istico do nosso tempo éa rede- finicdo ~ em curso ~ do humano no quadro de uma ecologia. gerale rafia agora alargada, ésférica, irrever- De facto, o mundo ja nao é conside- rado apenas um artefacto fabricado pelo homem, ~ Hico. O acontecimento do homem plistico e do sen corolirio, © sujeito digital, vai directamente ao encontro de imimeras convicgdes tidas, até hoje, por verdades imutaveis. Eo caso da crenca segundo a qual existiria uma «essén- cia do homem», um chomem genérico» separivel do.animal ou do mundo vegetal; ou, ainda, que a Terra que ele habita © explora ndo seria sendo um objecto passivo das suas inter- Vencées. E ainda a ideia segundo a qual, de todas as espécies vivas, 0 «género humanoy seria o tinico a ter-se libertado Parcialmente da sua animalidade. Com a quebra das cadeias da necessidade biolégica, ele ter-se-ia erguido quase até 20 nivel do divino. No inverso destes votos de fé e de muitos Outros, admite-se agora que, no seio do universo, 0 género humano, em particular, é apenas parte de um conjunto mais vasto de seres vivos, que inclui os animais, os vegetais ¢ outras espécies, (termo eovos habitantes ndo significa que eles no estivessem cd antes, Por enovor, deve entender-sea mudanca do seu estatito-n0s nossos dispo- sitivos de representagao. Sobre estas questes, ver Brio Latour Fae Guia ‘Hutt conférence sur le nouveau régime climaigue La Découverte, Pris, 2015, 28 dT Se observarmos a biologia e a engenharia genética, néo hé, propriamente falando, qualquer xesséncia do homem» a salvaguardar nem qualquer «natureza do homemy a pro- teger. Sendo assim, nio se coloca quase nenhum limite & modificagio da estrutura biolégica e genética da huma- nidade. No fundo, entregando-se as manipulagdes genéticas e germinais, é sempre possivel, pensa-se, nao apenas Thon it Inerability and % Thomas Grgory sDismemberng te den, Voenc. ler a ta body in war Europea Jounal of nterainal Relais el Deseo de aos 63 | . | a estratégia dos Estados desde a época colonial centrase no dominio dos territérios, jé a que preside as diversas forma- Ges da violencia (inclusive a terrorista) assenta no dominio e dos mercados. Uma das caracteristicas do deserto é a flutuacdo. Se 0 deserto é flu- tuante, as suas orlas também o so, uma ver que mudam de acordo com o Igualmente tipica dos espacos desérticos sarianos é a importancia dos mercados e das estradas que ligam as flo- estas do Sul as cidades do Magrebe. Aqui, o terrorismo é um terrorismo de estratos, vulgar nos regimes das carava- nas, némadas e sedentarios. Eassim é porque espaco e popu- lacdes movem-se constantemente. © espaco nio é apenas atravessado pelo movimento, ele proprio esta em movimen- to. Segundo Denis Retaillé ¢ Olivier Walther, «esta capaci- dade de movimento dos lugares tornou-se possivel pelo facto de os lugares nao serem prioritariamente determina- dos pela existéncia de infra-estruturas rigidas»s*. O que interfere, acrescentam, é «uma forma de organizagio mais, subtil que 0 modelo zonal que se funda numa diviso do espaco em varios dominios biocliméticos»**. A capacidade de deslocagio por distancias consideraveis, de manutencéo de aliangas que se vao alterando, privilegiando os fluxos em detrimento dos territorios e de negociacao da incerteza, séo parte dos recursos necessérios contemplados nos mer- cados regionais do terror. \des, mais ou menos méveis e segmen- istrar 0 terror, a soberania consiste no poder de fabricar toda uma massa de gente habituada a viver no fio da navalha ou, ainda, a margem da vida — gente para quem Denis Retallé e Olivier Walther, «Terrorisme au Sahel. De quoi parle sos, formation graphique vo 75.3 20-2 64 _yiver é estar sempre a prestar contas a morte, em condicbes dm que a propria morte tende a tornar-se cada ver mais algo Ge espectral, tanto pelo modo como é vivida como pela ma- neira como acontece. Vida supérflua, portanto, cujo prego tfo baixo que nio equivale a nada, nem sequer como mer- cadoria e, ainda menos, humana ~ é uma espécie de vida ‘cujo valor esté fora da economia, correspondendo apenas go tipo de morte que se Ihe inflige. Regra geral, trata-se de uma morte a qual ninguém se sente obrigado a responder. Ninguém tem qualquer sentimento de responsabilidade ou de justica no que respeita a esta espé- cie de vida ou aesta espécie de morte. O poder necropolitico opera por um género de reversao entre vida e morte, como sea vida néo fosse o médium da morte. Procura sempre abo- lira distingéo entre os meios ¢ os fins. Dai a sua indiferenca aos sinais objectivos de crueldade. Aos seus olhos, 0 crime 6 parte fundamental da revelacdo, ¢ a morte dos seus ini- ‘migos, em principio, nao possiti qualquer simbolismo. Este tipo de morte nada tem de tragico e, por isso, 0 poder necro~ politico pode multiplicé-la infinitamente, quer em peque- nas doses (o mundo celular e molecular), quer por surtos espasmédicos ~ a estratégia dos «pequenos massacres» do dia-a-dia, segundo uma implacivel logica de separagio, de estrangulamento e de vivisseccio, como se pode ver em todos 0s teatros contemporaneos do terror e do contraterror® Em larga medida, o racismo é 0 motor do principio necropolitico, enquanto este é 0 epiteto da destruicio orga- nizada, 0 nome de uma economia sacrificial, cujo funcio- namento requer que, por um lado, se reduza o valor da vida €, por outro, se erie o habito da perda. Este principio esté ‘em curso no proceso pelo qual, hoje em dia, a simulacdo 6s Public Culture, ol.15, 9.21, 2003; PP- TIVE TSSSSSSSSLSUSSSSSSVVAUSSVVVVVVY permanente do estado de excepedo justifica «a guerra con- __ tra terror» ~ uma guerra de erradicacao, indefinida, abso- luta, que reivindica o direito a crueldade, a tortura e a detenso ilimitada ~ e, portanto, uma guerra que retira as suas armas do «mal» que pretende erradicar, num contexto ondea lei ea justica sao exercidas como represélias sem fim, vinganca e revolta. Talvez mais do que de diferenca, 0 nosso tempo se} sobretudo o da fantasia da separacio e, até, do exterminio. £0 tempo dos que nao esto juntos, que nada agre que nao estdo de todo dispostos a partilhar. A proposta de igualdade universal, que, ndo ha muito tempo, permitia contestar as injusticas substanciais, foi sendo gradualmente substituida pela projeccdo, muitas vezes violenta, de um «mundo sem» ~ «0 mundo que se desembaraca» dos mugul- ‘manos, que sobrecarregam a cidade, dos negros e de outros estrangeiros, que devem ser deportados, dos terroristas (ou suspeitos disso) que torturamos, pessoalmente ou por pro- curacao, dos judeus que lamentavelmente escaparam as camaras de gis, dos migrantes que vém de todo o lado, dos refugiados e de todos os nauftagos, esses miseraveis cujos corpos estranhamente se assemelham a montes de lixo, pro- cessando-se em massa este cadaver humano, na sua decom posigao, no seu fedor e podridao. Além disso, a classica distingao entre vitima e carrasco — que outrora serviu de fundamento para a mais elementar justica ~ foi tremendamente atenuada. Hoje vitima, ama- nhd carrasco e, de novo, vitima ~ 0 ciclo odioso enredase € propaga-se de todas as maneiras. S40 poucos os sofrimen- tos considerados injustos. Nao existe nem culpabilidade, nem remorso, nem reparacio. Tal como nao existem injus- tigas que se devem reparar, ou tragédias que se possam evi- tar. Para reunir, é necessario dividir; e quando se diz «nés», 66 fazemvse 0s possiveis por excluir alguém, despoji-lo de algu- ma coisa, confiscé-lo. Por uma estranha transmutacao, pede-se as vitimas que, além do prejuizo sofrido, se culpabilizem pelo que os seus carrascos terdo sentido, Pede-se que expiem a culpa ~ em vex dos seus algozes, isentos de qualquer remorso ¢ imunes a necessidade de reparar os danos que lhes provocaram. Em contrapartida, antigas vitimas, que sobreviveram, nao he: tam em transformar-se em carrascos e em projectar contra 08 seus mais fracos o terror que antes sofreram, reprodu- indo no presente, ao fim e ao cabo, a logica que presidiu ao seu exterminio, Aliés,a tentacdo da excepcdo eo seu corolirio, a imuni- dade, esto sempre presentes. Como inflectir a propria demo- cracia, eaté desembaracar-se dela, de modo a que a violencia social, econémica e simbélica, transbordante, possa ser cap- tada, ou até mesmo confiscada, em todo o caso, institucio- nalizada e dirigida contra um «grande inimigo» — qualquer que ele seja, isso ndo é importante ou pouco importa - que imperativamente é preciso negar? Agora, que jé nao ha divi- das quanto a fusio do capitalismo com 0 animismo, uma vez que se tende a tornar norma o enredo entre o tragico € © politico, a inversdo da democracia é a questdo que a nossa época continua a colocar a si mesmas*, Um pouco por todo 0 lado, o discurso € o da suspensio, da restrigdo e, até, o da revogacao ou da abolicao pura e sim- Ples ~ as constituicdes, a lei, os direitos, as liberdades publi- cas, as nacionalidades, toda a espécie de proteccdes ¢ de Barantias, até hoje consideradas como adquiridas. Tanto a maioria das guerras contemporaneas como as formas de ter- Tor a elas associadas procuram, jé nao o reconhecimento, % Wendy Brown, Undoing the Demos. Neoiberalism’s Stealth Revolution, Z0n6 Books, Nova lorgue, 2035 o ‘mas apenas que se estabelega um mundo afastado de qualquer relagao. Provisério ow nao, 0 processo de saida da democracia € 0 movimento de suspensio dos direitos, constituigdes ou liberdades sao paradoxalmente justificados pela necessida- de de proteger estas mesmas leis, iberdades e constituicdes. E juntamente com a saida ¢ a suspensio vem o enclausura- mento — toda a espécie de muros, arames farpados, campos etineis, cdmaras, como se, na verdade, se tivesse seriamente acabado com uma certa ordem das coisas, uma certa ordem da vida, um certo imaginario do comum na cidade futura. A varios respeitos, a questo que ontem era colocada é exactamente igual a que, hoje em dia, de novo se deve colo- car. £ preciso saber se alguma ver foi, é ou sera possivel encontrar outrem, sem que esse outrem seja um objecto dado de mio beijada. Havera alguma coisa que ligue alguém Aqueles com os quais se afirma estar? Que forma terd esta solicitude? Sera possivel outra politica global nao necessa- riamente centrada na diferenca ou na alteridade, mas numa certa ideia da semelhanca e da comunidade? Nao estaremos condenados a viver uns com os outros, por vezes no mesmo espaco? Devido a esta proximidade estrutural, deixa de haver um «fora» passivel de opor-se a um «dentro»; um «algures», a opor-se aum eaqui; um «préximo» oposto a um donginquov. Nao se pode «santificar» 0 cé dentro e, a0 mesmo tempo, fomentar-se o caos ea morte lé longe, lé fora. Mais cedo ou mais tarde, recolhe-se em casa aquilo que se semeou fora dela. $6 é possivel haver santificacdo, se ela for miitua. Para conseguirla, é necessario pensar a democracia para la dajus- taposicdo das singularidades, bem como a simplista ideolo- gia da integracio, Alias, a democracia vindoura construir-se-4 sob a clara distingio entre o «universal» e 0 «em comump. universal implica a incluso em algo ou em alguma enti- dade jé constituida. O em-comum pressupde uma relacdo oa de co-pertenca e de partilha ~ a ideia de um mundo que é o vinico que temos e que, para ser duradouro, deve ser par- tilhado pelo conjunto dos seus dependentes, juntamente com todas as espécies. Para tornar esta partilha possivel e para que se cumpra a democracia planetéria ea democracia das espécies, é necessario exigir justica e reparagioss, ‘Ao evocar estas mutacdes de grande amplitude, é preciso perceber que elas afectam profundamente as relades entre ademocracia, a meméria e a ideia de um futuro que a huma- nidade no seu todo poderia partilhar. Ora, tratando-se da «humanidade no seu todo», convenhamos, também, que hoje em dia, na sua dispersio, ela tem vindo a assemelhar- -sea uma mascara mortuéria ~ uma coisa, um resto, tudo, ‘menos uma figura, um rosto e um corpo perfeitamente reco- nheciveis, nesta era de abundancia, de proliferacio e de enxerto de tudo sobre quase tudo, Na verdade, algo se per- eu, Mas, este «algor, cadaver meio putrefacto e meio jacente, teré estado alguma vez perante nés, a nao ser sob forma de uma sumptuosa carcaga ~ na melhor das hipéteses, uma uta simultaneamente elementar, originaria ¢ ilimitada, para escapar ao pots® Esté-se, efectivamente, longe de viver num tempo racional, e nao se sabe bem se ele alguma ver voltara asé-lo, pelo menos a curto prazo. Com a ajuda da necessi- dade de mistérios e o regresso do espirito de cruzada, vive-se num tempo mais dado a dispositivos parandicos, & violéncia histérica, aos processos de aniquilagdo de todos aqueles que a democracia tem transformado em inimigos do Estados?. ' atpilogo.Existe apenas um mundos, in Achille Mbembe, Critica da Razdo ‘Negro, Antigona, Lisboa, 2014, trad. Marta Langa, pp. 299-306. % Aimé Césaire, Discurso sbreoColonialismo (1961) Sida Costa, Lisboa, 1978: Frantz Fanon, Os Condenados da Tera, Letra Livre, Lisboa, 2015, ° rédéric Lordon, Imperium. Structures et alfects des corps politiques, La Fabri ‘que, Paris, 2015, 9.36 o £€9OOOO4O064664646466 68065668 060646664464645%4%% «

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