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Sanmel Rawet Contos e novelas reunidos Organizagso André Seffin crvizagio SRastuein Rio de Janevo aia O profeta “Todas as ilsSes perdidas,s6 the restara mesmo aquele gest. Suspenso Jd passadigo, ¢ tendo soado 0 titimo apito, o vapor levantaria a ancora, Olhou de novo os guindastes meneando fatdos, os montes de minérioe {A embaixo correrias elinguas estanhas. Pescogos estirados em gritos par © que o rodeavam no parapeito do convés. Lengos. De longe o buzinar de automéveis a denunciar a vida que continuava na cidade que estava agora abandonando. Pouco the importavam os othares zombeteiros de alguns. Em outra ocasio senir-se-a magoado. Compreendera que a bar, ba branca e o capotio além do joelho compunham uma figura esteanha para eles. Acostumara-se. Agora mesmo ririam da magra figura toda ne. Eta, exceto 0 0sto, a barba e as mios mais brancas ainda. Ninguém oust. Ya, entretanto, 0 desafiocom os olhas que impunham eespeito e confiavan jum certo ar mjestoso a0 conjunto, Relutou com os punhos trancados nas ‘émporas a fuga de seu interior da serenidade que até alio trouxera, Ao apito surdo teve consciéncia plena da solidio em que mergulhava. O re. forno, nica saida que encontrara,afigurava-se-Ihe vazio e inconseqiien- £6. Fensou, no momento de hesitayso, teragide como crianga. Aide que f¢ fora agigantando nos iimos tempos e que eulminara com a sua pre. senga no convés,tinha reccio de vé-Ia esboroada no instante de dkvids, © medo da solidio aterrava-o mais pela experigncia adquitida wy eontato digtio coma morte. Em tempo ainda. — Dessam o passadigo, por favor, dessan A figura gorda da mulher sew lado girou ao ouvir, ou 20 julgar ouvir, as palavras do velho. — O senhor falou'comigo? Inti. A bacceira da lingua, sabia-o, nic the permititia mais nada. O rosto da mulhe’ desfigurou-se com a negativa os olhos de siplica do velho, Com excegées, 0 recurso mesmo seria « mfnicae isso Ihe acentua~ ria a infantilidade que o dominava. S6 entio peccebeu que murmurara a frase, e envergonhado fechou os olhos. — Minha mulher, meus fithos, meu geno. ‘Aturdido mirava 0 grupo que ia abragando c befjando, grupo estranho (mesmo o irmao e os primos, nao fossem as forogalias remetidas antes ser- lhe-iam estranhos, também), e as ligrimas que endo rolaram no eram de ternura, mas gratidio, Os mais velhos conhecera-os quando criangas. O préprio irmao haviatrinta anos era pouco mais que um adolescente. Aqui se casara,tivera filhos efilhas, ecasara a filha também. Nem recolhido as rmolas macias do carro que 0 genro guiava cessaram de correr as lagrimas. As perguntas em assalto respondia com gestos, melas-palavras, ou entdo.com osiléncio. O corpo magro, mas rijo, que apesar da idade produaira traba- Iho, ¢ garantra sua vida, oscilava com as hesicagées do trdfego, € a vista nnenhuma vez procuron a paisagem. Mais parccia concentrar-se como que respondendo 3 avalanche de ternura. O que the ia por dentro seria impos sivel transmitir no contato superficial que iniciava agora. Deduziu que seus siléncios eram constrangedores, Os siléncios que se sucediam a0 question rio sobre si mesmo sobre o que de mais terivel experimentara, Esquecer 0 acontecido, nunca, Mas como amesquinhé-lo, tirarthe a esséncia do hor- ror ante uma mesa bem posta, ou um ché tomado entre finas almofadas e ‘macias poltronas? Os olhos vidos ¢ inquiridores que o rodeavam nao teriam ‘ouvido e visto o bastante para também se horrorizarem e com ele participa dos siléncios? Um mundo s6. Supunha encontrar aquém-mar 0 conforto dos que coma ele haviam sofrido, mas que acaso pusera, marginalmente, a salvo do pior. B consciemte uisso partllriass wu ele ent humitdade o cencontro. Visiumnbrou, porém, um ligeiro engano. Oapartamento ocupado pelo irmio ficava no dime andar do prédio. ‘A varanda aberta para o mar recebia noite o choque das ondas com mais 26 faror que de dia. Ali gostava de sentar-se (voltando da sinagoga apés a prece noturne) com 0 sobrinho-neto no colo a balbuciarem ambos coisas no sabidas. Os dedos da crianga embaracavam-se na barba e as vezesten- teavam com forga uma ou otra mecha, Esfregava entio seu nariz duro a0 arredondado ¢ eartilaginoso ¢ riam ambos um riso solto¢ sem incen- ‘s6es, Entretinham-se até a hora em que o imo voliava ¢ fam jantar. Nas primeiras semanas houve alvorogo € muitas casas a percorrer, imuitas meses em que comer, ¢ em todas revoltava-o 0 aspecto de coisa curiosa que assumia. Com o tempo, arrefecidos os entusiasmos ¢ a curio- Sidade, ficara $6 com o irmo. Falar mesmo s6 com este ou # mulher. Os ‘outros quase nio o entendiam, nem os sobrinhos, muito menos o genro, por quem principiava a nate antipatia, = Aivem 0 “Profeta”! Mal abrira a porta, a frase ¢ 0 riso debochedo do genro surpreende- ram-no, Fea. como se ndo tivesse notado o constrangimento dos outros. ‘Atrasara-se no caminho da sinagoga e eles jé o esperavamn & mesa. De re- lance, percebeu o olhar de censura do irmao ¢ 0 riso cortado de um dos pequenos. $6 Panlo (assim batizaram o neto, que em realidade se chama- va Pinkos) agitou as mos num blé-blé como @ reclamar a brincadeira perdida. Mudo, depositou o chapéu no cabide, ficando s6 com a boina preta de seda. Da lingua nada havia ainda apendido, Mas, observador, se bem que no arriscasse, conseguiu por associacio gravar alguma coisa. E © “profeta” que o riso moleque the pespegara 8 entrada, ia-se tornando familia. Seu significado no o atingia. Pouco importava, no entanto. A palavra nunca andava sem um olharirénico, uma ruga deriso. No banheico {lavava as mos) recordou as intimeras vezes em que os mesmos sons fo- ram pronunciados & sua frente. E ligou cenas. Do fundo boiowa lembran- 6 de coisa andloga no templo. ‘O engano esbocado no primeico dia acentuava-se. A sensagio de que 0 mundo deles era bem outro, de que nio participaram em nada do que fora (para cle) a noite horrive, jase transformando lentamente em objeto consciente. Eram-Ihe enfadonhos os jantares reunidos nos quai ficava & ‘margem. Quando as criangas dormiam e outros casas vinham conversar, apalermava-se com o tom da palestra, as piadas concupiscentes, as cifras sempre jogadas, a propésito de tudo, e, 88 vezes, sem nenhum. A guerra o despojara de todas as ilusSes anteriores eafirmata-the a precatiedade do ue antes era solide. $6 ficara intacta sua f€ em Deus na religifo, io arraigada, que mesmo nos transes mais amargos do conseguira expulsa, (0&0 tentara,reconhecia, em vio.) Nem bem se passara um ano etinha & sua frente numa monétona repetigio o que julgava terminado A situacio parasiéria do genro despertoulhe édio, ea muito custo, dominow-o, Vira utras mos em outros acenos. E as unhas tratadas € os anéis, 0 corpo roligo e 0 riso estGpico e a inutlidade concentravam a revolta que era eral. Quantas vezes (meianoite ia long) deixava-se esquecer na varan- da com 0 cigarto aceso a ouvir numa fala bilingite risadas canalhas (para ele) entre um carteare outro. — Entio ¢ isso? Os outros julgariam caduquice. Ele bem sabia que no. O monblogo fora-he til quando pensava endoidar. Hoje era habito, Quando s6, des- carregava a tensio com uma que outta frase sein nexo senio para ele, Recordava-se que um dia (no infcio, logo) esbogara em meio a alguma conversa um ténue protest, dera um sinal fraco de revolta, ¢ talvez seu indicador cortasse o ar em acenos cartegados de intengées. O mesmo na sinagoga quando a dsplicéncia da maioria tumultuara uma prece. — Esses gordos senhiores da vida e da fartura nada tem a fazer aqui — murmurara algum dia para si mesmo, Talvez dato profeta. (Descobrta, depois, 0 significado.) Fensou em alterar um pouco aquela ordem e principiow a narrar 0 que havia negado antes. Mas agora ndo parecia iteressa-hes. Por condescer™ éncia (ado compreendiam o que de sactficio isso cepresentava para ele) Couvirar-no das primeiras vezes ¢ nfo faltaam légritmas nos olhos das mu theres. Depois, notou hes aborrecimento,enfaro, pensou descobrircensuras ¢emalgunsolhareseadivinhou frases como estas: “Que quer com tudo isso? Por que nos atormenta com coisas que nfo nos dizem respeito?” Haviarugas de remorso quando recordavam alguém que Ihes diziarespeito, sim. Mas ram *pidas. Suniam como uin vinco em boneco de borracha. N&o tardou que as suuifestagoes se rornassem abertas, se beim que mascaradas. — O senhor softe com isso. Por que insiste tanto? $$$ $s alow. E mais que isso, emudeceu. Poucas vezes Ihe ouviram a palavra, ¢ nfo repararam que se ia colocando numa situago marginal. S6 Pinkos (cle assim o chamava) continuava a trangar sua barba, esftegat o nariz, € contar hist6rias interminaveis com seus olhos redondos. Inutiidade. (© mar trazia lembrancas trstes ¢ langava incégnitas. Solidéo sobre solidfo, Interrogava-se, 3s yezes, sobre sua capacidade de resitiraum meio ‘que ndo era mais 0 seu. Chiados de ondas. Um dedo pequeno mergulha- do em sua boca e um riso ao choque. Riso sacudido. Poderia condenar? 'Niao, se fosse gozo apés a tormenta. Nao, ndo poderia nem condenar a si mesmo se por qualquer motivo aderisse, apesar da idade. Mas os outros? Cegos e surdos na insensbilidade ¢ auto-suficéncia! Erguia-se entéo. Ca- rminhava pelos c6modos, perscrutando no conforto um contraste que sabia deantemo nio exist. Alciava argumentos contra si mesmo, inutilmente, E do fundo um gosto amargo, decepcionante. Os dias se acumulavam na rotina ¢ lhe era penosa a estada aos siBados na sinagoga. O livro de ora- Ges aberto (desnecessério, de cor murmurava todas as preces), fechava 6s olhos as intrigas e se punha de lado, sempre de lado. No caminho ad- -mirava as cores vistosas das vitrinas, os arranha-céus se perdendo na volta do pescogo, € 0 incessante arrastar de automéveis. E nisso tudo pesava- thea soliddo, o estado de espirito que no encontrara afinidade. Soube ser recente a fortuna do irmao, Numa pausa contara-Ihe os anos de lata e subsirbio, etriunfante, em gestos largos, conclufa pela seguranga atual. Mais que as outras sensacées essa ecoou fundo. Conctuiu ser im- possivel a afinidade, pois as experigncias eram opostas. A sua, amarga. A outta, vitoriosa. E no mesmo intervalo de tempol? Deus, meu Deus! As noites de ins6nia sucederam-se. Tentou concluir que um sentimento de inveja carregava-lhe o 6dio. Impossivel. Honesto consigo mesmo entre- viu sem forgas essa conclusio. E suportou 0 oposto, mais dificil. As for- ‘mas na penumbra do quarto (dormia com o neto) compunham cenas que no esperava ever. Madrugadas horriveis e ossadas, Rostos de angiistia e preces evolando das cinzas humanas. As feigBes da mulher apertando 0 zxale nu din instante” Oude us ullios, wnde us ollvs que muds trata 6 grito animal? Risada canalha, Carteado. Ciftas. Olha o “profeta” af! E caras de gozo gargalhando do capote suspenso na cadeira. Impossvel. Gtitos amontoados deram-the a nowcia da sada, Olhou o ais. Lenta- ment afaixa dégua aumentava aos acenos fina, Retesou todas as fibras ddo corpo. Quand. voltassem da estagéo de Aguas encontrariam a carta sobre a mesa, B seriam imiteis os protestos, porque tardios. Aproveitara as duas semanas de auséncia. O passaporte de turista (depois pensavam ‘em torné-lo permanente) fs Viaradhe 0 plano. O dinheico que possuta esgotow-se 3 compra da passagem. Regresso. A empregada estranhou um ouco o'vé-o sir com a mala, Masjuntou ofato figura excéntrica que no inicio the infundira um pouco de medo. Planos? Nio os tina, la ape- ras em busca da companhia de semelhantes, semelhantes, sim. Talver do fim, As energias que 0 gesto exigin esgotacam-no, e a fraqueza trouxera hesitagdes. E ante o irremedidvel os olhos frustrados dilataramse na in- sia de travar 0 pranto, Midas jf, as figuras acenando, O fando monta- ‘nhoso, azulando num céu de meio-dia. Blocos verdes de hotas e espumas nos sulos dos lanchoes. (Hi sempre gaivotas. Mas ndo conseguia vé-as,) Novamente os punhos cerrand> e trangando, as tfmporas apoiadas nos bragos, ea figura negra, em forma de ganche, tepidando em Iégrimas. A prece A entrada do patio, muro que um caminhéo arriou, ninguém mais e- vantou, Zico jantou a molecada. s — Ava velha ail Dobrando a esquina, 0 xale preto envolvia o pescogo enquanto as mos, duras retesavam-se ao longo do corpo, estendidas por dois pecotes imen- s0s. O passo apressado, pisadas firmes de sapatos sem saltos, frou os olhares dos moleques, que a susto, s6 Ihe viam o perfil marcado ¢ os cabe~ los, grisalhos, repuxados em coque, Nunca tiveram coragem de olhéla de frente, € quando Ihe atiraram a primeira pedra, raspando nos pés, na expectativa de ouvir a lingua engrolada, s6 encontraram um olhar palido uma boca crispada. O gozo antevisto ¢ frustrado deixou-os sempre & ‘espera. Por isso a encaravam de perfil, ou entéo iam espionéc-la pela jane~ la, Nao havia uma igual no casaréo. Zico, o mais velho, garantia. Conke- cia os trinta © tantos moradores do sobrado, e nunca ouvira falar de caso semelhante. A velha chegou de repente, coisa de dias, silenciosa, Ajeitou ‘os trastes, que um preto trouxera na cabega, no quarto dos fundos, esem ter falado com ninguém, ia vinha, muda, os sapatos ferindo 0 madeirame podre do corredor. $6 the ouviram 2 vor uma vez. No segundo dia da cchegada foi pedir fésforos a velha Genoveva, que sentada num banco, descansava do tanque, acendendo o pito. Genoveva abriu um olho meio fechado, livrou a boca e sorriu com a meia diizia de dentes espalhados na ‘gengiva. Custou a compreender 0 desejo da estranha. “Favor... Empres- t2..”, 0s dedosrscavam a palma da mio, nos olhos de splica um medo dos risos que a gacotida preparava. “I6 fazer..",miimica esquisita, espre- mide 20s satos, a palavra que falta. Genovevaestiou o brago que a velha agarrou com forgaetirando a caixa apertou 0 passo. A zoada matraqca- vahe as costas. Brito, o mais afoito, macaqueava os gestos ¢embrulhava a lingua, enquanto os outros, ates, riam, bobamente. “Ta. malandr ‘chaigatz'..". © coque virow e aos trancos uma saraivada de respostas. Pict, © riso aumentou. A chacota também. Brito cogando a barriga, gargalha- 2, continuando a dialogagdo, num estridar e gan, latidos 20 meio. Ao subir odegrau, uma pedra rogou-the o tornozelo. O giro do coque despe- jou-the um olharpalido ea boca crispada, Silencio repentino. Brito coga- vvaa barriga em clmara lenta até pacar Um peso imobilizou-os instantaneamente, até que se ouviram de novo 08 passos firmes nas tabuas do corredor, e o grito de Genoveva, temido: — Ja pra rua, safadezallt Arriou-se junto com os pacotes na cama. Um alfvio vinha das pontas dos ddedos, percorria as espdduss, e desaparecia pela boca num suspiro. Esfregou. © rosto eas faces ardentes. Nao estava acostumada a um sol assim, nem a um trabalho daguele, Osuor incomodava-a por dentro, e das axilas um tringulo ‘empapado fazia vértice na cintura. Gosto de areiana boca. Os cotovelos nos joelhos, face na palma das mos, arava, resecada, dura, triste. Oxale preto caido nas coxas inundavaclhe os olhos. Sexta-eiral Quatro horas! Meu Deus! Girou o rosto. Pela anela fechada vinha uma quentura boiando, na cama, na ‘mesa, no pedago de cOmoda-guarda-roupa, batendo e rebatendo nas paze- des, se concentrando em s6lido no corpo de Ida. Uma vontade de ficar ali pregada, fundir o cansago ea solidéo, Sexta-feir. Quatro horas. Meu Deus! Furou a inércia arrancando 0s sapatos. Enfiou nos pés dofdos as chinelas e quebrando 0 mormaco foi pia. Sexta-feira Levantou a tampa da panela e um vapor de carne cozida aqueceu-the © rosto. Remexeu 0 fogareiro, avivou o fogo com mais carvdo e um aba- ‘no, € numa cagarola de dgua fervendo despejou as duas postas de peixe, Da cOmoda saiu uma toalha branca para a mesa. Um cheiro diferente inun~ ava 0 quarto, agora limpo, vauido. Na eama desmanchava os pacotes, arrumando em caixas, as meias, lengos, pedagos de sabao, pacotes de gram pos, cadargos, ftas...um mundo! Seu mundo. Na parede os olhos de Isaas, fem prece, assustaram-se com o tic da fotografia. [da lembrou o esforgo para convencé-lo a deixar o retrato, conseguido de surpresa. Agora pen- dia amarelado, a mancha da barba, as sobrancelhas arqueadas e uns olhos de susto. Dos outros nada mais ficara. Os olhos de Ida tremeram na lem- branca. Que pesadeto! Isafas as sextas-eiras entrava mais alegre, 0 rosto brilhando, € um ou outro pingo dégua, da barba, denunciava 0 banko, Dava umas palmadas em suas costas (Ida tinha 0 rosto vermelho da lenha do forno), ¢ ia orar. Agora, 0 retrato. Uma algazarra no patio. Corcerias pela casa. Gritos, cantoria saindo do tanque. Um rédio no andar de cima despejava sambas. Em meio a vi- bragio Ida parada junto janela, perdida, sem lingua, sem vor. Enfiada numa vida que nunca fora sua. O corpo todo inda dofa da andanga. Subit « descer ruas, escadas, baircos. Anda. E estar s6. Ida sentia um cansago imundar-lhe a alma. Filhos,j4 0s tivera, marido também, De tudo, s6-0 retrato ficou na parede. E ela, No costo arcado de rugas, um sofrimento triturado. Esquecia. Morreram-lhe todos coma guerra. A tampa da pane- la ritmava 0 samba do rédio, agitada pelo vapor. Sem saber como saltou uum dia no porto daqui. Deixava uma existencia inteira atrés. Ave-Maria no andar de cima, ¢ 0 quarto quase as escuras. A principio receberamt-na ‘em casa de alguém, mas como novidade, bicho raro de outras terras que tem histérias para mais de um ms, As histriascansaram. A bondade tam- ‘bém, Veio o casardo com uma lingua que néo entendia, moleques e arre- medar, 0s pacotes arriando os bragos, as pernas marcando calgadas ese esfregando em cem capachos didrios. A luz de um lampido, na calgada, cortou 0 rosto de Ida em dois, em diagonal. Um olho truncado pelo cla- 140 brilhava em seco. Tateando, arrastou os pés até o interruptor. De uma gaveta, desenrolando a flancla, tou dois castigais prateados, e acariciou- (5 com uma tremedeira nos dedos. Na mesa, ajustava as velas, sem ver uns olhos, middos, espremidos, respiragio press, agarradosjancla. Amat- ‘ou um lengo branco, enorme, na cabeca, ¢, acesas as velas, seus olhos se fecharam, com o corpo em balango. — Taviw? — Vit. A gringa tinha um jeito esquisitol... — Ti foi trowxal... Devia dar peda na janela. i, — Nio chateia! Eu estou € invocado com um trogo.. — Que — Esse negécio de vela... tava com a luz acesa e tinha umas velas também. — Seré que tem defunto escondiio? ‘Uma gargalhada agitou o grupo espacramado no muro. S6 Brito nao ra — Nadal... E que... ndo sei no, estou com medo de falar... — Falar 0 qué? — Um trogo... mas, no duro, que es:ou com medo. — Ta é maricas mesmo! — Eamie! — Fica af fazendo doce... Soles logo! A revelagio de Brito estarreceu a meninada, Uns olhos desconfiados, ‘meio a meda, fitavam a janela no canto do sobrado. Um gosto de aventu- a.€ um pingo de lembranga de histéria contada, deixou-os estatelados. Negrinho Jodo, oito anos feito, cogando a cabega, deu 0 jeito. — O melhor é gente dizer pro pessoal {4 dentco! Um frémito atravessou 0 casardo de ponta a ponta, Aos olhos de es- panto seguia-se um bater de ports, de passos atropelando os corredores. (Os que chegavam do trabalho iam engrossando a onda, e do andar de cima rmatraqueavam passos na escada. A molecada, em trés tempos, numa qua- se ubighidade, levantarao sobrado, As mulheres excitadas tomavamafren- te,em meio ao choro de algum bergo deixado repentinamente, Os homens, curiosos, iam atrés, assombracios com a novidade. Um ou outro céptico deitava em ar de troga: — Isso ndo existe! Um jato em dialeto estranho, lamento gritado, escapava da porta de Ida, A vor era quente ¢ forte, ninguém a havia ouvido assim, e dew um nd ‘no povaréu que se comprimia no corredor. As suspeitas aumentaram. Rosa, de mio pesada e carnes fortes, abateu 0 punho na madeira, — Arreia @ portal As mios espalmadas nos olhos, eo lengo na eabega, Ida jorrava a pre ‘cecom o corpo em balango sobre as vcias. Quase sempre orava baixinh 0 labios acelerados. Hoje, do fundo, o griso da reza era uma imprecagso, € nunca os ombros balangaram tanto. Hoje, Ida nfo pedia a Deus, mas comas mesmas palayas, gritava, ofendia. Ndo setixo uo nemas pat cadas. A porta estava encostada e nfo foi preciso arté-a, A vox quente, compassad, nfo a deixou vera multiddo que lhe ia enchendo 0 quarto, fem atropelo. Tina entre os olhose a palma das mos, plesmados no «3- -cuto, 0 rosto de Isafas e dos filhos, de Isafas quase um santo. Quando baixou csbragos, a multido encontrou as légrimas fatas. Um silencio deixouos Jiméveis, € uma sensagdo de mal-estar, incdmoda,esriara os animios. Wla tra um monte de nervos em relaxamento, sm frga para mover os labios [Nem um susto sofreu, Uma ligeira perearbagio interna denunciada por ‘um tremor da eabega, O rosto marcado, lissido, percorrew 0 quarto. AS mmios comesaram a preparara mimica, e uma ruga de splice se esbogava na boca. — Vamos sai minha gente, Nio é nadal Uma voz de homem ressoou dando a retirada, ¢ o chiar de sapatos pela porta funditrse, li fora, num mucmério ercents. — Isso & rera i da tera deles —a mesma vor ‘Naescada para o andar de cima o mulherio fez ponto, ea mie de Brito abrivlhe o choro. ‘— Aprende a espiar janela dos outros, aprende! Ida, parada diante das velas, os olhos nas chamas, ndo procurava pér em ordem o pensamento. A multidéo no quarto, assim de repente, era tuma coisa vaga, e nem saberia explicé-la. Sexta-feira. A primeira sexta- feira no casardo. De dentro vinha uma sensagdo de rutura, de algo que se tinha perdido com a prece gritada, As quatro paredes caiadas de branco ceram-Ihe estranhas, ¢ 20 tentar dar término 3 oragio as palavras sussurra- das vinham-lhe mecdnicas, Um estreitamento da garganta (é-lasoltar com tum solugo tudo que the boiava no interior. Sentiu-se aca. Os dedos ma- gros se entrelagaram e com os dois punhos fundidos esfregou a testa. Oca, Sopron as velas uma a uma, serena, calma. Sentada diante dos casticais, cs olhos de Ida miravam os tocos apagados, ¢ seguindo a linha das gotas de cera, glébulos emontoados em miniaturas estranhas, a cabesa sombou silenciosa na toalha branca. Judith Mansamente. Do mar a brisa enfunava o cortinado branco agitando as franjas das poltronas. Sentou-se. A criada pedi-the que esperasse al- guns instantes. Em outra ocasido varreria com os olhos as paredes e 08 méveis pesados. Acharia engragadas as figurinhas barrocas emolduradas ‘em mau gosto, Sentiia os fios macios das molas que cederam a0 seu peso, recolhendo-se em convexa superficie para acomodé-la. Hoje, imposstvel. ‘Tinha medo que the ouvissem as palpitagées ou que o arfar dos seios des. Pertasse atengo, Hoje era toda hesitacio, criara para si um invélucro que 4 obrigava.atolher os movimentos, e que, vez por outra, tentava, revolta- da, romper. O dedo pressionando o botio do elevador transmitira-lhe a ‘energia necesséria para suportar a abertura da porta. Agora, eruzando os sapatos, parecia té-a perdido por completo. Biqueiras rotas. Salpicos de Jama na dobra da sola. Tremor. Recolhendo a pena do tapete pousow-a no trecho encerado, A cena fora toda imaginada. A noite, os olhos presos 420 teto cle dormira apés um choro manhoso. O cortinado envolvia-lhe 0 bergo), sufocava a l4grima em antecipagao. A irma. Seria a Gnica a quem poderia recorrer. Os outros distanciaram-se na teimosia, na incom- Preenslo. $6, no leito, esbogava carfcias no corpo ausente sufocando travesseiro. A irm8. Poucos anos as separavam. Pot certo ndo esquecera ‘08 sonhos miituos a vidraca em dia de chuva, ou ao dormir, no quarto comum, a8 confidéncias trocadas, Rodeado pot dois pratos o retrato dos pais, de brago, sorrindo, surpreendeu-a com a expressio de conforto € ae amparo. E télos-ia se em troca oferecesse tudo. Hloje nada mais tinha a pedir. Soube que o luto acompanhou sua safda, e que no dia da cerimOnia (civil, somente, como ambos tinham acertado) houve chotos lamiiras ‘como que acompanhando a sada de um morto. Depois osiléncio que aterra € deprime. A soldio. A incomunicabilidade, Quando noite ele acondu- 2ira para o subirbio sabia que uma ratura se tna processado, e por mais finimo que se tivesse imbufdo nfo pode conter o choro amargo, de quem, apesar de convicg6es, tazia em sie fazia romper todo um lastro de afei- shes. A itm, Tinha a certeza, Sempre partcipara de suas idéias apenas ‘com maior reserva ¢ com certa hestagSo quando acaso alguét nelasto- cava. Mas partcipava. Os gatos, 2s vexes, perturbavam-lhe 0 sono com suas correias eamores, e hoje mais do que nunca, apés arrastoes, um deles cxigaraclhe a pele com um lamento mais parecido a choro de crianga. O corpo girou rapidamente apoiando-se a cabega na mio. O bergo imével com 0 cortnado, Alivio. Abragou com as mos 0 jelhos e deixouse f- car esttica com os olhos presos em nada, Depois de amanhi faz um més {que o trouxeram, jé mort, da fabrica (A bala aingiraclhe o eri.) Te nha ao seio a crianga quando a porta se abriwe alguns homens o carrega~ ram até a cama, em vio, Depois de amanha faz um més, Afastou com as tnios 0s cabelos que he cafam sobre os olhos, num esfregar automatico a testa, Ouvianitidamente os zumbidos, os pequenos sons que se aglo- ‘meravam, compondo-se em estranhas dissonncias a seus ouvidos pedin- do siléncio. © pouco que os amigos puderam cotizar estava quase em exaustio. O dia que nao tarda agigantava-se com a promessa dos tempos difceis. Sobre a mesinha-de-cabeccira tm recibo selado, deixando em confianga, 4 espera do aluguel. Os outros, amortecido o sentimento pelo tempo, davam mostras ce impacigncia, E em seu interior um fio entupin- do a laringe, enrolando-se na Iingua, e prendendo-se nos intersticios dos dentes que cismavam em se pressionar mutuamente, como a medo, para {que no escapem coisas nao sabidas. Trabalharia, Nao ha dvida, Nunca se amedrontara com tal idéi. Quando se resolvera unit com outro que niio de sua raga tnha a perfeitaconsciéncia do ato, que nfo representava uma total rentincia & sua origem (havia arraigado em si um peso que um simples gesto ou atitude nao destoca), nem ele a obrigava ou exigiaa fazer eS Gringuinho CChorava, Nao propriamente 0 medo da surra em perspectiva,apesar de roto 0 uniforme. Nem para iss teria tempo a mie. Quando muito uns berros em meio a rotins, Tiraria a roupa; @ outa, su encontraria no fando do armétio, para a vadiagem. Ao dobrar a esquina tinka a certeza de que nada faria hoje. Os pés, como facas alternadas, cortavam o barro de pés-chuva. A mangueira do terreno baldio onde cacavam gafanhotos, 01 jogavam bola, tinka pendente a corda do balango improvisado. Reco- nheceu-a. Fora sua e restara da forte embalagem que os seus trouxeram. Ninguém na rus, Os outros decerto ndo voltaram da escola ou jf almoga- vam, Ninguém percebewthe 0 choro, A viginha sorsiu ao espantar 0 gato cenlameado da poltrona da varanda. Conteve o solugo 20 empurrar 0 por- to, Com a manga esfregava o rasto marcando faixas de lama na face. Brilhavam ainda da chuva as folhas do ficus. Olhow a trepadeira. Novi- tha, mas jé quase passando a janela, Na sala esitou entre @ cozinha © 0 quarto, A mie de lengo & cabeca estaria descascando batatas ou moendo care, Despertars-Ihe a atengio a0 langar 0s livros sobre a comoda. Que trocaise a roupa e fosse buscar cebolas no armazém, Nada mais. Nem 0 rosto enfaca para verdhe 0 a de pranco ea roupa em desalinho, Aentra- da do quaro surpreences o blebs do cagula que, olhos no teto, tocava uma harpainvistvel, Era-the estranha a sala, quase estranhos, apesar dos meses, o$ companheiros. Os olhos no quadro-negro espremiam-se como se auxiliassem a audio perturbada pela lingua. Autémato, copiava no- rcs ¢ algarismos (a estes compreendia), procurando intuir as frases da professora. As vezes perdia-se em fitd-la, Dentes incisivos salientes, os ca- belos lembrando chapéus de velhas miimias, os labios grossos. Outras, rodeava os olhos pelas parcdes carregadas de mapas e figurdes. A janela lembrava-Ihe a rua onde se sentia melhor. Podia falar pouco. Ouvir. Nem provas nem argiig6es. O apelido, Amolava-o a insisténcia dos moleques. Esfregon ante oespelho os ollios empapugados. Ontem rolara na vala com Caetano apés discussio. Atrapalhou o jogo. O negrinho eresceu em sua frente no mpeto de derrubs-t. Gringuinho burro! Aieitou sobre a cama o uniforme. & ligéo nfo a faria. Voltar & mesma escola, sabia impossivel também. Por von‘ade, a nenhuma. Antigamente, antes do navio, tinha seu geupo. Verdo, encontravam-se na praca € atta vvessando o campo alcangavaro riacho, énde nus podiam mergulhar sem edo. A chatuéa das ligdes do velho barbus (de mao farta e pesada nos tapas c beiscées) havia o bosque como recompensa, Castanheiros de fra- tos espinhentos ¢ larga sombra, colinas onde o corpo podia rolar até a beira do caminho. Framboesas que se colhiam 3 farta. Cenoura roubada da plantagio vizinha. A vou da mie repetiao pedido de cebolas. Cogar de cabega sem vontade. No inverno havia o trend que cartegava pata mon- tante, 0 rio gelado onde a botina ferrada deslizava qual patim. Em casa a sopa quente de beterrabas, ou 0 fumegar de repolhos. Sentava-se no colo do av6 recém-chegado das oragées¢ repetia com entusiasmo.o que apren- dera. Onde 0 avé? Gostava do rogar da barba na nuca que lhe fazia c5 28, e dos contos que lhe contava 20 dormir. Sempre milagres de homens santos, Sonhava satisfeito com a eternidade. A vox do av6 era rouca, mes boa de se ouvir. Mais quando cantava, Os olhos no teto de tibuas, ou acom- panhando a chamin€é do fogio, a melodia atravessava-the 0 sono. Hoje ‘entrara tarde na sala. Nao gostava de chamar a atengao sobre si, mas teve {que ir A mesa explicar 0 atraso. Cingilenta pares de olhos fixos em seus és que teem! 52 em contraponto aos titubeios da boca, olhos e mos. A custo conteve as lagrimas quando tomou o lugar. Chorava assim quando no primeiro sibado sain de boné com o pai em diregao a sinagoga. Caetano, Raul, Zé . © pedido de cebolas veio mais forte. Gargalhada maci- b_ Paulo, Betinho, fizeram coro ao fim da rua repetindo em estzibilho 0

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