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CIRCUITOS DE CAPITAL — CIRCUITOS DE CULTURA? Precisamos, assim, em ptimeiro lugar, de um modelo muito mais complexo, com ricas categorias intermediarias, mais estratificadas dos que as teo- rias gerais existentes. E aqui que considero util for- mular uma espécie de hipdtese realista sobre 0 estado existente das teorias. Que tal se as teorias existen- tes — e os modos de pesquisa com elas associados — realmente expressassem diferentes lados do mes- mo e complexo processo? Que tal se elas fossem todas verdadeiras, mas apenas até certo ponto, ver- dadeiras para aquelas partes do processo que elas tém mais claramente em vista? Que tal se elas fos- sem todas falsas ou incompletas, sujeitas a enganar, na medida em que elas so apenas parciais e nao podem, portanto, apreender o processo como um todo? Que tal se esforcos para ampliar esta compe- téncia (sem modificar a teoria) levassem a conclu- sdes (ideoldgicas?) realmente grosseiras ¢ perigosas? Nao espero uma concordancia imediata com as premissas epistemoldégicas deste argumento, mas ¢s- pero que ele seja julgado a luz de seus resultados. Seu mérito imediato, entretanto, est4 no fato de que ajuda a explicar uma das caracterfsticas-chave dos ~ 31 32 Estudos Culturais: as fragmentagdes tedricas ¢ disciplinares j4 observadas. Estas poderiam, natu- ralmente, ser explicadas pelas diferenc¢as politicas também ja discutidas, especialmente as divisdes in- telectuais e académicas de trabalho e a reproducao social de formas especializadas de capital cultural. Penso, entretanto, que pode ser mais satisfatério re- lacionar essas diferengas manifestas aos prdprios pro- cessos que elas buscam descrever. Talvez as divisdes académicas também correspondam a posicdes sociais € pontos de vista bastante diferentes a partir dos quais diferentes aspectos dos circuitos culuurais ad- quirem uma maior saliéncia. Isto explicaria nio sim- plesmente o fato da existéncia de diferentes teorias, mas a recorréncia e a persisténcia das diferengas, especialmente entre “blocos” amplos de abordagens com certas afinidades. A melhor maneira de fazer avangar este argu- mento seria arriscando alguma descrig’o proviséria de diferentes aspectos ou momentos dos processos culturais, aos quais poderfamos, entao, relacionar as diferentes problematicas tedricas. Um tal modelo nao poderia ser uma abstrag3o ou uma teoria acabada, se € que tal coisa existe. Seu valor teria que ser heuris- tico ou ilustrativo. Ele poderia ajudar a explicar por que as teorias diferem, mas nao constituiria, em si mesmo, a abordagem ideal. Ele poderia, na melhor da hipéteses, servir como um guia que apontasse quais seriam as orientagdes desejaveis de abordagens fu- turas ou de que forma elas poderiam ser modifica- das ou combinadas. E importante ter essas adverténcias em mente naquilo que se segue. Acho que ¢ mais facil (na tradicio dos Estudos Culturais do Centre for Contemporary Cultural Studies — CCCS) apresentar um modelo de forma diagramé- tica. O diagrama tem o objetivo de representar 0 Circuito da produgao, circulagado e consumo dos pro- dutos culturais. Cada quadro representa um mo- mento nesse circuito, Cada momento depende dos outros ¢ ¢ indispensavel para o todo. Cada um deles, entretanto, € distinto ¢ envolve mudaneas caracte- risticas de forma. Segue-se que se estamos colocados em um ponto do circuito, nao vemos, necessaria- mente, O que estd acontecendo nos outros. As for- mas que tem mais importancia para nés, em um determinado ponto, podem parecer bastante dife- rentes para outras pessoas, localizadas em outro pon- to. Além disso, os processos desaparecem nos produtos.!? Todos os produtos culturais, por exem- plo, exigem ser produzidos, mas as condicdes de sua producdo nao podem ser inferidas simplesmente examinando-os como “textos”. De forma similar, 33 os-produtos culturais nao sao “lidos” apenas por ana- listas: profissionais, mas pelo piblico em geral (se fossem lidos apenas. pelos analistas, haveria pouco lucro ein sua produdio). Por isso, nés nao podemos ‘predizer essas Jeituras a partir de nossa prépria and- lise ou, na verdade, a partir das condigdes de pro- dugio. Como qualquer pessoa sabe, todas as nossas comunicagGes esto sujeitas a retornarem para nds em. tecmos inreconhecfveis. ou, a0 menos, transfor- madas. Frequentemente chamamos isto de md com- picerisdio, ou, se quisermos ser. bastante académicos, de Jeituras “equivocadas”.. Mas-esses “equivocos” sio tHo.comuns' (ao. longo de toda a sociedade) que po- deriamos considerd-los normais. Para compreender as transformages, pois, néds temos que compreen- der as. condicdes especificas do consumo e da leitu- ra. Estas inchaem as simetrias de recursos ¢ de poder — materiais ¢ culturais. Também incluem os ensem- bles existentes. de clementos culturais j4 ativos no interior de miliewx sociais particulares (“culturas vividas”, no diagrama) e as relagGes sociais das quais essas combinacdes dependem. Esses reservatérios de discursos € significados constituem, por sua vez, ma- terial brato para uma nova produgao cultural. Eles esto, na verdade, entre as condigdes especificamen- te culturais de produgio. REPRSSERTTACORS, POBUCAS zu Formas @STAT | t 7 - N Contes feds a s ¥ vIDAS Adages a. eR Em nossas sociedades, muitas formas de produ- 4o cultural assumem também a forma de mercado- rias capitalistas. Neste caso, temnos que prever condi¢des especificamente capitalistas de produgio (veja.a seta apontando para o momento 1) ¢ condi- gGes especificamente capitalistas de consumo (veja a seta apontando para o momento 3). Naturalmen- te, isto ndo nos diz tudo que temos que saber sobre esses momentos, que podem estar estruturados tam- bém de acordo com outros Principios, mas nesses casos © circuito é, a um sé tempo, um circuito de capital (e sua reprodugao ampliada) ¢ uni cireuito da producao e circulacio de formas subjetivas. ~ a Algumas implicacdes do circuito podem se tor- nar mais claras se considerarmos um caso particular. Podemos, por exemplo, tomar 0 caso do langamento do carro chamado Mini-Metro. Escolhi o Mini-Me- {0 porque se trata de uma mercadoria capitalista bastante padronizada do final do século XX — uma mercadoria que carrega uma acumulacio Particu- Jarmente rica de significados. O Metro era 0 carro que iria salvar a industria automobilistica britanica, ao tirar os rivais do mercado ¢ ao resolver os agudos problemas de disciplina trabalhista da British Leyland. Ele era a solugao para ameacas nacionais internas. As campanhas de publicidade em torno de seu langamento foram notiveis. Em um anuncio de televisio, um grupo de Mini-Metros perseguia uma gangue de carros estrangeiros importados até Whi- te Cliffs, em Dover, onde eles escapavam naquilo que parecia, de forma notavel, uma plataforma ter- reste, Isto era Dunquerque em forma inversa, ten- do o Metro como heréi nacionalista. Essas sao, certamente, algumas das formas — o género €pico- nacionalista, a meméria popular da Segunda Guer- ta, a ameaga interna/externa — que gostaria de abstrair para 1m exame formal mais detalhado, Mas isto também levanta questdes interessantes sobre o que constitui o “texto” (ou o material brato para este tipo de abstrac3o) nesses casos. Seria suficiente analisar o design do préprio Metro como uma vez Barthes analisou as linhas de um Citroén? Poderfa- mos deixar de fora os antincios ou as exposi¢6es em showrooms? Nao deveriamos incluir, na verdade, o lugar do Metro nos discursos sobre a recuperacdo econdémica nacional e sobre o renascimento moral? Supondo que tenhamos respondido a essas ques- t6es afirmativamente (atribuindo-nos uma carga mai- or de trabalho), haveria ainda algumas questdes a screm respondidas. O que foi feito do fendmeno Metro, de forma mais Privada, por grupos parti- culares de consumidores ¢ leitores? Poderiamos esperar uma grande diversidade de respostas. Os operarios da Leyland, por exemplo, provavelmen- te veriam o carro de uma forma diferente daquelas Pessoas que apenas o compraram. Além disso, o Metro (e seus significados transformados) tornou- se uma forma de chegar ao trabalho ou de apa- nhar as criancas na escola. Ele também pode ter ajudado a produzir, por exemplo, orientagdes re- lativas 4 vida laboral, vinculando a “paz” nas rela- g6cs trabalhistas & prosperidade nacional. Depois, naturalmente, os produtos de todo esse circuito Tetornam, uma vez mais, para o momento da pro- ducao (como lucros Para novos investimentos), mas ma também como o resultado das pesquisas de merca- do sobre a “popularidade” do produto (os estudos culturais do préprio capital). O uso subsequente, pela administracio da British Leyland, de estraté- gias similares para vender carros ¢ enfraquecer os operarios sugere acumulagoes consideraveis (de ambos os tipos) deste episddio. Na verdade, o Me- tro tomou-se um pequeno paradigma, embora nado © primeiro, para uma forma ideolégica muito mais generalizada, a qual nés poderiamos chamar, com alguma sintese, de “comércio nacionalista”. PUBLICACAO E ABSTRACAO Falei, até aqui, de forma bastante geral, sobre as transformagGes que ocorrem em tomo do circuito, sem especificar qualquer uma delas. Em uma dis- cussdo tao breve quanto esta, especificarei duas mu- dangas — relacionadas — de forma, indicadas nos lados esquerdo ¢ direito do circuito. O circuito enyolve movimentos entre o publico ¢ o privado, mas também movimentos entre formas mais abs- tratas e mais concretas, Esses dois polos estao rela- cionados de forma bastante estreita: as formas Pprivadas sao mais concretas e mais particulares em seu escopo de referéncia; as formas publicas sdo mais 38— - - — = - abstratas, mas também tém uma abrangéncia mai- or. Isso pode se tornar mais claro se retornarmos ao Metro, e, daf, 4s diferentes tradicées de Estu- dos Culturais. Visto apenas como uma ideia de prancheta, como um conceito discutido no dmbito gerencial, o Me- tro era uma coisa privada.’? Ele poderia, inclusive, ter sido concebido em segredo. Ele era conhecido apenas por uns poucos escolhidos. Nesse estagio, na verdade, teria sido dificil separd-lo das ocasides so- ciais nas quais ele foi discutido: reunides na sala de planejamento, conversas de bar, jogos de golfe no sdbado. Mas 4 medida em que as ideias eram coloca- das no papel, ele comecou a adquirir uma forma mais objetiva e mais pitblica, A virada ocorreu quando se tomou a decisao para ir adiante com “o conceito”, “tomando-o piblico”. Finalmente a ideia “Metro”, logo seguida pelo carro “Metro”, chegou 4 “luz ple- na da publicidade”. Ela adquiriu uma importancia mais geral, reunindo em torno dela, na verdade, algumas nogGes bem portentosas. Ela se tornou, na verdade, uma grande questo ptiblica ou um simbo- lo para isso. Ela também tomou forma como um pro- duto real e como um conjunto de textos, Em um sentido Sbvio, cla tormou-se “concreta”: vocé podia nao apenas chuta-la, mas também dirigi-la. Mas, em ~ 39 cutro sentido, este Metro era bastante abstrato. Ali estava ele, no showroom, rodeado por seus textos de britanicidade: uma coisa brilhante, vibrante. Entretanto, como se poderia saber — a partir dessa exposig¢io — quem o teria concebido, como cle foi teito, quem sofreu por ele ou, na verdade, que uso possivel ele iria ter para a mulher apressada, com duas criangas a tiracolo, que apenas tinha acabado de entrar no showroom? Para desenvolver pontos mais gerais, trés coisas ocorreram no processo de publicagéo. Em primeiro lugar, o carro — junta- mente com seus textos — tornou-se puiblico em um sentido Sbvio: ele adquiriu, se nio uma importancia universal, ao menos uma importancia mais geral. Suas mensagens também foram generalizadas, percorren- do, de forma bastante livre, toda a superficie social. Em segundo lugar, ao nivel do significado, a publi- cacdo envolveu um processo de abstragio, O carro ¢ suas mensagens poderiam, agora, ser vistos de for- ma relativamente isolada das condigées sociais que o formaram. Em terceiro ugar, ele foi submetido a uum processo de avaliacao pablica (uma grande ques- x20 publica) em muitas ¢ diferentes escalas: como instrumento técnico-social, como um simbolo na-

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