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3. Andlise, teoria e mttsica nova \ | s cela A metafisica 6 mais antiga que a historiografia, ea teoria da misica é consideravalmente mais antiga que cologia. A teoria, segundo o autor do artigo em The New Grove Dictionary of Music and Musicians, Claude Palisca, j4 nosso conhecido como cronista da musicologia americana, “é hoje entendida, princi palmente, como o estudo da estrutura da musica’ Entretanto, em séculos e milénios passados, tal como sao inventariados no artigo do Grove, quase todos os tipos de pensamento disciplinado sobre misica pare- cem ter sido admitidos sob o manto da teoria, Numa engenhosa demonstracao, Palisca converte um plano de conhecimento musical universal, exposto pelo te6- tico Aristides Quintiliano no século II a.C., numa taxonomia do tipo daquela elaborada por musicélogos sistematicos de hoje, como Riemann, Adler, Seeger e outros. Podemos aceitar que a “teoria”, em seu signi- ficado radical de contemplacdo ou especulacao, tal como a “musicologia”, oua ciéncia da musica, cobre o estudo da misica em qualquer rima de suas dimen- sdes, ou em todas elas. Nesse sentido amplo, a histéria da teoria musical é parte do objeto de estudo da musicologia; e a primeira 76 Musicologia coisa a ser indagada acerca da teoria em qualquer periodo historico é que elementos musicais os tedri- cos consideraram necessdrio especular. (A indagacao seguinte sera: para quem esta cada tedrico escrevendo — para misicos, homens de gosto, estudiosos ou ou- tros teéricos?). A teoria, tal como a estética, precisa ser entendida historicamente, pois a teoria de uma era reflete seus interesses musicais, eles proprios vincu- lados aos problemas da musica da época, conforme sao concebidos no momento. Portanto, ndo é surpresa para ninguém que, nos ultimos decénios do século XX, um ramo central da teoria tenha se interessado pela “problematica”, como diria Adorno, da composigao musical em nosso tempo. Ver‘a tédria atual como “um subproduto da composicao de vanguarda”, na expressiode um ted- rico, é ver uma tendéncia periodicamente repetida em teoria ao longo das eras. A julgar pelos escritos sobre- viventes de Aristoxeno, o primeiro corpus considera vel de escritos sobre musica que nos foi legado pela Antigiiidade, as principais coisas que os misicos do tempo de Aristételes precisavam estabelecer, eram a afinagao de escalas e sua organizacao em modos e tonalidades. Na Idade-Média, os tedricos escreveram sobre os intrincados sistemas notacionais desenvolvi- dos para registrar 0 que era um elemento recém-de- senvolvido da composigao musical: 0 ritmo. Os tedri cos do Renascimento escreveram sobre 0 soar simul- taneo dealfuras de som para formar consonancias ou dissonancias, e sobre o modo como sucessées de altu- ras de sons, ou linhas musicais, devem combinar-se para formar o contraponto. Os tedricos do comego do século XVIII escreveram sobre acordes e amaneirade relaciona-los. j Anidlise, teoria e mtisica nova 17 Todo esse material constitui, claramente, uma fonte de informagao essencial para os historiadores que se ocupam do periodo em questao. Com efeito, em fins do século XIX, antes que a decifragéo de todos os cédigos permitisse a transcrigao da polifonia medie- val, um dos primeiros estudos profundos da misica do. final da Idade Média foi realizado, em grande parte, com base numa pesquisa abrangente da teoria desse periodo; e desde o tempo de W.H. Wooldridge e da Oxford History of Music, os mais engenhosos e sofis- ticados intérpretes da teoria entre os musicdlogos foram os medievalistas. Entretanto, um ntimero cada vez maior de trabalhos tem sido realizado sobre os tedricos musicais de séculos subseqiientes. Uma area que recentemente tem despertado interesse especial éa doutrina da retérica musical exposta pelos autores do Renascimento e, em particular, do Barroco. I: propiciou, entre outras coisas, inspiragao pratica para o desenvolvimento de um novo estilo de execugao da miisica barroca. Afinacdo, configuracées ritmicas, consonancia € dissonancia, formagdes de acordes — tudo isso se en- quadra, sem duvida, no amplo termo “estrutura”, de Palisca. Hoje, porém, quando os miisicos usam esse termo, geralmente se referem & estrutura global das. obras de arte — o que faz as composigdes “funciona- rem”, que principios gerais e que caracteristicas indi- viduais asseguram a continuidade, coeréncia, organi- zagao ou teleologia da musica. Referem-se ainda & forma musical no sentido amplo, no sentido da confi- guracéo ou ordenagao de seqtiéncias de sons no tempo. Escalas, contraponto e harmonia sao estrutu- ras numa outra acepgao (estruturas de um outro nivel estrutural, somos tentados a dizer). E a nogao de uma 78 Musicologia composigao musical que, nesse sentido amplo, tenha estrutura ou forma, é uma questao de notavel impor- tincia, que surgiu e evoluiu num momento particular da histéria. E um fato hist6rico associado ao presente que a especulagio tedrica sobre misica—tanto antiga quanto nova — se encontra dominada por teorias da forma. O compositor e teérico canadense William E. Ben- jamin manifestou-se recentemente a respeito da teo- ria musical “tal como é correntemente exercida nos Estados Unidos e em seus satélites intelectuais”’. (Por satélites entende ele nao sé o Canada, mas também, devemos supor, a Inglaterra, onde teoria e anilise, calcadas no modelo americano, ganharam muito ter- reno nestes tiltimos tempos.) A teoria, tal como € cor- rentemente praticada, segundo Benjamin, € uma confluéncia antinatural de duas correntes de pensamento que devem rejeitar-se —e inevi- tavelmente se rejeitarao — mutuamente, por re- presentarem valores contraditérios. A primeira corrente é a tradigao schenkeriana e tudo 0 que lhe é tributario; a segunda é fruto da composigao de vanguarda e consiste em gerar sistemas, me- canismos, formulas, listas, estratégias e estrutu- ras normativas que sustentem esse tipo de com- posigao. Essas correntes realizaram um curioso casamento de conveniéncia, talvez em fungao do medo de andarem sozinhas num mundo musical hostil, e coabitam a ponto de compartilharem o mesmo espa¢o na mente de certos tedricos." 1. William E, Benjamin, “Schenker's Theory and the Future of Music”, Journal of Music Theory 25 (primavera de 1981), p. 171 Andlise, teoria e misica nova 79 Certamente, essa é uma leitura altamente restrita (€ altamente emocional) da situagdo. Talvez fosse de se esperar que 0 esquema dualista de Benjamin nao dei- xasse espaco para o estudo da teoria medieval ou bar- roca; tal tarefa 6 realizada por individuos que se dizem musicologos, nao-tedricos, e cujo interesse é interpre- tara teoria, nao gera-la. Mais surpreendente, porém, é que seu esquema despreza trabalhos como 0 dos se- miologistas musicais de Montreal, por exemplo — para nao caminharmos mais de 3.000km no préprio pais de Benjamin —e a obra de Leonard B. Meyer, na qual, goste-se ou nao, deve-se reconhecer 0 esforgo mais sistematico (quatro livros publicados) para for- mular uma teoria abrangente de musica produzida recentemente em paises de lingua inglesa, e que pro- vocou um impacto inegavel até no seio do establish- ment tedrico-musical que Meyer foi propenso a evitar. Assim, a generosa série de escritos teéricos e analil cos sobre a miisica do chamado perfodo tonal, de Bach a Brahms, esta toda canalizada para uma corrente “schenkeriana” —como se Heinrich Schenker e seus seguidores possuissem direitos privativos de pesca para 0 repertorio classico, e como se os anz6is e iscas idiossinerasicos de Schenker fossem aceitos pelo mundo musical como um todo. Chamemos a isso sim- plesmente “teoria tonal”, Quanto ao paradoxo de cor- rentes “mutuamente contraditérias” de teoria coexis- tente na cabeca de certos tedricos, se Benjamin nao o resolve realmente em seu artigo, torna imensamente clara sua solugao. Veremos que tal confluéncia nada tem de antinatural. Entretanto, apesar de toda a sua miopia, essa visao da teoria moderna, tal como a expe um de seus adep- tos mais jovens e capazes, nao pode ser inteiramente 80 Musicologia posta de lado. Pois ela representa um certo tipo de realidade. Representa a realidade de uma situacio académica que foi marcada, até muito recentemente, por ortodoxias opressivas, a ponto de, em comparagao, a musicologia e a etnomusicologia parecerem ecléti- cas e positivamente hospitaleiras para as idéias novas. A teoria tem sido um pequeno campo construido em torno de uma ou duas personalidades intensas, dog- miaticas, e de seus partidarios. Isso esta mudando; na minha opiniao, era um pouco tarde para Benjamin escrever daquela maneira cm 1981. Mas era (e ainda €) muito cedo para perceber as diregdes novas e signi- ficativas que a teoria estd tomando. Meyer observou em data recente, com razao, que a teoria musical pa- rece enfrentar agora (1982) um “periodo pré-para- digma”.? Um questiondrio ainda mais recente en- viado a um grupo de aproximadamente trinta te6ricos americanos — em sua maioria teéricos mais jovens, nao-compositores —suscitou respostas que revelaram uma gama incrivelmente ampla de linhas de investi- gagoes independentes.? O maximo que se pode dizer € que as velhas ortodoxias enfraqueceram claramente. Além disso, nao consigo distinguir claramente ne- nhuma tendéncia. Em seu discurso de posse na vice-presidéncia da Society for Music Theory, em 1980, Wallace Berry exortou os sécios reunidos em assembléia a corrigi- rem seus caminhos e repelirem 0 “dabelismo”, 0 obs- curantismo, 0 filisteismo, o dogmatismo, a miopia, 0 2, Leonard Meyer, prefiicio a Beethoven's Compositional Choices, de Janet Levy (Filadélfia: University of Philadelphia Press, 1982), p. ix. 3. “Reflections on Music Theory”, org. de Marian Guck ¢ Marianne Kielian-Gilbert, Perspectives of New Music, 22 (1983-4). Andlise, teoria e mtisica nova 81 monismo (“abordagens e conclusées dispares so es- senciais, nao meramente admissiveis, em qualquer esforgo no sentido de uma compreensao abrangente’’) €0 “arlequinismo”, pelo qual se entende uma espécie de malabarismo criptico, subversivo, de paradoxos sem nenhuma intengao real de tentar resolvé-los.4 Seria excelente se esse sermao um tanto surpreen- dente fosse levado a sério. Seria bom para os te6ricos, ¢ também para os musicdlogos que buscam na teoriae na andlise ferramentas que os ajudem em seu proprio trabalho. E provavel que fiquem até mais confusos do que os tedricos com a longa lista de “ismos” de Barry. (Que eu proprio fiquei confuso talvez transpareca em algumas das observacées no panorama geral que se segue a teoria, observagdes que me pareceram perti- nentes, promissoras ou inevitaveis para um music6- logo que tentou orientar seu trabalho para a critica.) Embora esse panorama geral seja predominante- mente dedicado ao que Meyer chamaria de os mais antigos paradigmas da teoria musical, estende-se um pouco além das duas correntes centrais e indevida- mente dilatadas de Benjamin. 2 O momento histérico em que a teoria musical con- verteu-se numa preocupagao com a forma musical ji nos deu antes a oportunidade de uma pausa em rela- cao a historia e a ideologia da musicologia. Em 1802, Forkel publicou sua biografia adulatéria de Bach, simbolo do noyo sentido da musica para com sua pré- pria historia; mais ou menos na mesma época, a mii- 4. Wallace Berry, “Dialogue and Monologue in the Professional Com- munity”, College Musie Symposium 21 (outono de 1981), pp. 84-100. 82 Musicologia sica instrumental de Haydn, Mozart e Beethoven emergiu como a consubstanciagao de um novo ideal estético. Era uma idéia quintessencialmente roman- tica — e E. T. A. Hoffmann, uma figura-chave em estética e teoria (e também composigao) musical des- ses anos, qualificou esses trés compositores de “ro- manticos”. O novo interesse pela historia da musica foi acompanhado de uma nova posigao na hierarquia das artes, sob 0 termo recém-cunhado de “estética”’. A misica foi considerada em si propria como estrutura aut6énoma de som, e nao como um complemento da danga ou da liturgia, ou de textos liricos ou dramati- cos. E a misica foi valorizada nao (ou nao apenas) por ser agradavel e comovente, mas porque era sentida como pressentimento do sublime. Para nos, o significado ou a novidade disso pode nao ser facil de apreender no comego, acostumados que estamos a um panteao de grande misica, incluindo obras puramente instrumentais de tempos muito mais recuados, desde as pavanas e galhardas de Byrd para virginais até os prelidios e fugas de Bach para 6rgao. Essa era uma misica que os romanticos nao conhe- ciam. A novidade era a convicgao deles de que a mi- sica instrumental aut6noma, exemplificada em granu supremo pelas sinfonias de Beethoven, podia pene- trar no que Hoffmann chamou de “o dominio do espi- tito”, a esfera da mais alta significagdo humana. A miisica tornou-se a arte paradigmatica para os roman- ticos porque era a mais livre, a menos vinculada a manifestagdes mundanas, como a representagao na pintura e a denotacao na literatura. Quando Pater disse que toda arte aspira 4 condicdo da misica, ele quis dizer a condigao das sinfonias, e nao & condigao de hinos, valsas ou cantatas. Andlise, teoria e mtisica nova 83 Nao se pense que essa “metafisica da misica ins- trumental” envolveu 0 ouvinte ou critico em arroubos de devaneio entusiastico muito acima das particulari- dades da misica disponivel.5 A intuigao especial de Hoffmann consistiu em associar as fontes metafisicas do sublime na musica de Beethoven as fontes técnicas de sua unidade — 0 que ele, de modo nao surpreen- dente para 0 seu tempo, comparou a unidade de um organismo. Nenhuma das artes foi mais profunda- mente afetada pela ideologia do organicismo que a musica; sua influéncia nociva ainda persiste entre nos.° Nas famosas criticas de Hoffmann A obra de Beethoven é visivel uma preocupagao dupla, que en- trelaga a retérica romantica, digna do mestre-de-cape- la Kreisler, com detalhadas, e na verdade prosaicas, andlises técnicas da estrutura musical, assinalando caracteristicas internas que Hoffmann pensava con- tribuirem para a unidade e a forca organicas da mu- sica. Foi somente no século XIX, portanto, que ateoria sé casou com a anélise, num processo de submeter obras-primas musicais a operagdes, descricdes, redu- ges e demonstragdes técnicas com o propésito de mostrar como elas “funcionam”. “Teoria e andlise” passou a ser uma matéria conjunta e corrente no curri- culo dos conservatérios. Ainda hoje ocupa um lugar de prestigio nos curriculos universitarios de musica. A finalidade dessa digressao histérica é efetuar uma O papel de E:T.A. Hoffinann na histéria da critica foi analisado com grande perspicécia por Carl Dahlhaus; para um resumo, ver seu “Meta physik der Instrumentalmusik”, em Die Musik des neunzehnten Jahrhun- dersts, vol. 6 de Neues Handbuch der Musikwissenschaft, org. de Carl Dahlhaus (Wiesbaden: Athenaion, 1980), pp. 73-79, 6. VerRuth A. Solie, “The Living Work: Organicism and Musical Analy- sis”, 19th-Century Music 4 (outono de 1980), pp. 147-56. 84 Musicologia inversao e alterar a teoria e andlise tonal, em fungao de sua primazia, como no titulo deste capitulo. Para se entender a ideologia da musicologia 6 necessrio co- nhecer um pouco sua histéria; o mesmo pode ser dito acerca da teoria moderna. O impulso subjacente A teoria tonal era a demonstragao técnica dos méritos de um corpus musical que era valorizado, de fato, em bases que estavam longe de ser meramente técnicas. Foi isso o que William Benjamin quis dizer, penso eu, com seu comentario sobre os “valores mutua- mente contraditorios” representados pelas duas li- nhas ou tendéncias em que ele dividiu a disciplina da teoria de hoje (ou de ontem). A teoria de vanguarda é exercitada muito francamente como um apoio — ou mesmo um aspecto — da composigao de vanguarda. A teoria tonal — a que Benjamin chamou injustamente de “tradigao schenkeriana’”” —é praticada, com menos franqueza como um tipo de critica. As teorias de mu- sica tonal nao foram construfdas e nao sio adotadas usualmente por amor a teoria, com a analise assu- mindo um papel heuristico na validagao de conclu- s6es tedricas através de exemplos extraidos do reper- torio. O que era e é primordial é a validacio de um corpo de composigdes musicais de valor inestimavel. Se bem que algum tipo de teoria deva servir de suporte a anilise, é significativo o fato de que ela pode ser extremamente informal. Pode ser tao informal a ponto de dissolver-se em relagao ao quadro de refi réncias usual da palavra teoria. Somente na noss: €poca é que surgiu, em alguns circulos, ademanda de uma teoria musical que seja sistematica no sentido estritamente cientifico — e s6 desse ponto de vista parece inteiramente imposs{vel caracterizar Hoff- mann, por exemplo, como teérico. Andlise, teoria e musica nova 85 Pois Hoffmann tinha uma idéia “tedrica” orienta- dora propria. Foi o primeiro a escrever sobre a Quinta Sinfonia de Beethoven em termos de uma unidade organica, pelo menos parcialmente, projetada por meio da afinidade de temas e motivos que se repetem dentro das diferentes segoes e movimentos e entre elas. Essa idéia simples, mas fecunda, ainda nao per. deu sua ressonancia. Associada de forma extremada a obra de Rudolph Reti e de seus seguidores ingleses, foi ha muito tempo aceita, de forma menos extrema, por uma grande variedade de criticos. Portanto, eu nao regatearia a Hoffmann o titulo de “tedrico”, embora pense que ele pode ser mais apro- priadamente descrito como critico. Penso o mesmo a respeito dos tedricos de hoje, cuja tarefa principal parece consistir em analisar composigdes do reperté- io classico. A maioria deles nao faz mais do que adi- tamentos pro forma A teoria da misica tonal, num sentido geral. De fato, além de uma certa dose de refinamento, perguntamo-nos 0 que restara por fazer numa area tao nitidamente limitada — embora haja muito a fazer no que se refere 4 andlise de pegas musicais. Em estudos literdrios, 0 excesso de leituras criticas de poemas e romances canénicos levou eseri- tores como Jonathan Culler a clamar pelo fim da in- terpretagao. Esse nao é um problema que aflija a ma- sica. Pelo contrario, ha importantes obras no canone sobre os quais nunca foi publicado qualquer estudo analitico sistematico: o Trio Fantasma de Beethoven, aGrande Sinfonia em Do Maior de Schubert, Haroldo na Itdlia de Berlioz, diizias de cantatas de Bach... Sem divida, aqueles que praticam a andlise musical continuarao resistentes a idéia de que 0 que estao fazendo é uma forma limitada de critica implicita. (A 86 Musicologia palavra “critica” nunca foi mencionada no simpésio “Music Theory: the Art, the Profession and the Future” [Teoria Musical: a Arte, a Profissao ¢ o Futuro}, orien- tado por seis eminentes te6ricos americanos em 1976, embora falassem esperangosamente das relagdes de sua arte ou profissao com a lingiiistica, psicologia, matemitica, légica, ciéncia acistica e outras discipli- nas “estruturadas”.7) De qualquer modo, seria essa a formulagao imediata de um observador de algum outro campo das humanidades a quem fosse pedido para informar sobre as atividades dele. Aquilo'a que vocés chamam anilise, diria esse observador, n6s chamamos critica formalistica. E ele poderia acres- centar algumas palavras de admiracao e inveja pela pericia técnica com que tal critica pode ser executada em mtsica. Alguma luz foi projetada sobre essa questao numa controvérsia relativamente comedida, surgida ha al- guns anos nas paginas da revista Perspectives of New Music, entre dois mtisicos que, de fato, tinham dado mais do que meras contribuigdes simbélicas para a teoria geral (assim como para a composicio, andlise e critica). David Lewin, em resposta ao que julgou serem confusdes perlurbadoras no artigo de Edward T. Cone “Beyond Analysis”, de 1967, empenhou-se em definir e distinguir teoria, anilise e critica.* A teoria, observou ele, recorre a varios niveis diferentes na tentativa de formular “universos sonoros gerais”” de diversos géneros de musica. Pode recorrer a lei 7. Richmond Browne, Allen Forte, Carlston Gamer, Veron C. Kliewer Carl E, Schachter ¢ Peter Westergaard, “Music Theory: the Art, the Pro. fession and the Future”, College Music Symposium 17 (primavera de 1977), pp. 135-62, Andlise, teoria e misica nova 87 divina ou natural, ou & consisténcia intelectual de um sistema, ou entao, empiricamente, a pratica de gran- des compositores. Nesse tiltimo caso, 0 te6rico “su- blinharé naturalmente passagens da literatura como apoio A suposta pertinéncia de suas nogées. Ele pode, na verdade, trabalhar laboriosamente para estabele- cer essas passagens”. Mas, se 0 tedrico esquadrinha pegas com a finalidade precipua de validar sua teoria, ele nao esta, segundo Lewin, analisando-as verdadei- ramente. A andlise deve ser dirigida para a explicagao da obra de arte como entidade individual, e nao para demonstrar principios gerais. A andlise “sempre deve refletir uma atitude critica em relagao a peca’’.* Em sua resposta, que nao resumiremos aqui, Cone objetou com veeméncia a rigida distincao de Lewin entre teoria e andlise, assim como a muitas outras coisas. Mas nao discordou dele a respeito da criti A discussao de Lewin a propésito das relagdes entre anilise e critica é inatacavel. Gostaria que ele a ampliasse. Pois esté inteiramente certo quando diz que “a palavra importante é critica”, O artista deve ser critico. O observador deve ser um critico... Devemos reconhecer as limilagoes da teoria e da anilise, e... é preciso recorrer a todos os modos de conhecimento, incluindo o tedrico, o analitico e o intuitivo a fim de que nos ajudem a realizar uma resposta critica apropriada auma peca de miisica.? O desejo de Cone, devo assinalar entre parénteses € até com certa melancolia, é um dos que eu certamente 8, Lewin, “Behind the Beyond”, pp.62-63. 9. Cone, “Mr. Cone Replies”, p. 72. 88 Musicologia partilhava nessa época, quando eu préprio procla- mava, de modo um tanto solitario, a importancia da critica, Entretanto, é muito gratificante notar uma concordincia tao firme nessa questao entre dois cola- boradores permanentes de Perspectives. Quanto ao ponto de discordancia entre eles, certa- mente concordo com Lewin a respeito da diferenga, em principio, entre exercicios analiticos realizados em apoio a teoria, e a “verdadeira” anilise feita em apoio a critica. Esse é 0 tipo de andlise que importa para os historiadores, assim como para os criticos. Na pratica — nesse ponto Cone esta obviamente certo — nem sempre € possfvel tracar distingGes nitidas, Uma demonstragao incidental num tratado tedrico pode elucidar uma obra de arte, tal como um ensaio critico pode incidentalmente iluminar um ponto da teoria, (E essa, penso eu, a estratégia em muitos ensaios de Cone.) Os teéricos mais argutos geralmente nao sao os criticos mais sensiveis, e mais cedo ou mais tarde 0 impulso basico da obra de qualquer autor se faz sentir. Tanto a teoria como a critica sofrem com isso. 3 Um outro momento de grande importincia na hist6- ria da teoria foi o advento do Modernismo, em torno de 1900. E mais do que ébvio que a experiéncia do Modemismo se baseou no desenvolvimento, por Schoenberg, do sistema dodecafénico, que, por sua vez, foi o ponto de partida para a teoria de composigao de vanguarda dos dias atuais. Mas essa experiéncia também coloriua orientagao basica da teoria tonal, em especial a relagao da teoria com aanilise e ada anilise com a critica. Pois a articulagao total da teoria tonal sé. Andlise, teoria e musica nova 89 ocorreu no momento em que os principios subjacen- tes A misica tonal pareciam estar sob ataque. A obrade duas pessoas importantes no desenvolvimento da teo- ria e andlise modemas, Heinrich Schenker em Vienae Donald Francis Tovey em Londres, apareceu na vi- rada do século e foi obviamente concebida como uma defesa da antiga ordem. Richard Strauss era o expoente mais ameagador de- pois de 1890 —e, depois de 1910, Arnold Schoenberg (nos cfrculos musicais alemaes e ingleses, Debussy e Stravinsky pareciam constituir uma ameaga menor). ‘Teoria ¢ andlise foram desenvolvidas para celebrar as virtudes da misica que os teéricos prezavam. E, na- queles dias, os tedricos eram bastante explicitos a respeito das virtudes musicais que valorizavam — Schenker, com sua grande tradigao alema, deteve-se perversamente em Liszt e Wagner; Tovey ficou com sua nao mais navegavel “principal corrente mu 1”. Parece claro, como assinalei antes, embora nao seja facil de confirmar, que a crise do Modemismo enviou numerosos musicélogos a cruzadas iguais as dos séculos XII e XIII. E mais facil ver como impeliu os analistas para as casamatas do século XIX, casama- tas furradas com as obras-pritias do modelo tadicio- nal, estendendo-se desde Bach, de quem 0 século XIX se apropriara como seu, até Brahms, e nao mais além. Se se pode afirmar que o Modernismo converteu mui- tos musicélogos em conservadores musicais, também pode-se dizer que o Modernismo transformou muitos tedricos em reacionérios 10, Ver Joseph Kerman, “Tovey's Beethoven’",em Beethoven Studies 2, org. de Alan Tyson (Londres e Nova York: Oxford University Press, 1877), pp. 172-91. 90 Musicologia O préprio modelo foi uma criagio caracteristica do século XIX. Até por volta de 1800, como vimos, 0 repertério consistiu predominantemente de composi- goes da propria época; qualquer dimensao historica era quase inexistente. Mas, depois da geracao de Hoffmann teraprendidoa venerar a misica de Haydn, Mozart e Beethoven, pressupés-se automaticamente que o modelo continuaria crescendo no futuro, e que as sdlidas raizes para que isso ocorresse poderiam ser descobertas no passado, bastando que os musicélogos se dessem ao trabalho de descobri-las. (Assim, uma vez Bach reintegrado no modelo, o grande especia- lista em Bach, Philipp Spitta, dedicou um esforco ingente aos precursores seiscentistas de Bach, Scheidt, Schiitz e Buxtehude.) E como se a poderosa idéia de Hoffmann acerca da Quinta Sinfonia, cres- cendo de uma célula-motivo tmica, tivesse sido trans- ferida para 0 proprio modelo. A grande misica cres- ceu como se proviesse de algum misterioso pool gené- tico de origem alema; historicismo, organicismo e na- cionalismo foram todos amalgamados na ideologia musical da época. Quando, depois de Schubert, Men- delssohn e Schumann, surgiu uma dis puta em torno da autenticidade dos ramos representados por Wav ner e Brahms, a questao foi finalmente resolvida, nao por Tovey ou Schenker, mas por Schoenberg, quando atribuiu ao segundo a origem de sua propria linha- gem. De fato, quase até os dias de hoje, a continua evolugao organica do modelo da grande musica per- maneceu, para muitos miisicos, um dogma incons- ciente. Como defensores aguerridos do modelo tradicional da misica erudita ocidental, num mundo onde ecoa- vam misicas de todas as categorias, classes, eras, tri- Andlise, teoria e mtisica nova 91 bos e culturas, os analistas parecem querer examinar cada vez mais minuciosamente um mimero cada vez mais restrito de obras musicais. Schenker reverenciou J.S. e C.P.E. Bach, Haendel, os ¢ os vienenses, Mendelssohn, Schumann, Chopin e Brahms, rejeitou Berlioz, Liszt, Wagner e Verdi, ignorou toda a masic anterior a Bach e degradou toda a posterior a Brahms Os temas de seus principais estudos analiticos foram extraidos preporderantemente dos estibulos dos ca- valos de batalha das orquestras sinfénicas e das coe- Iheiras do professor de piano (nao tocou na 6pera). Um compéndio sobre andlise, de autoria de um jovem teérico americano que nada tem de tolo, Jeffey Kresky, pode ser citado como exemplo, entre muitos outros, de um conservadorismo semelhante em auto- res recentes.* Do caminho reto e estreito em que se alinham, de um lado e de outro, a obrigatéria invengao de Bach,a Lied de Schubert, 0 prelidio e amazurca de Chopin, 0 intermezzo de Brahms e os movimentos de sonata de Mozart e Beethoven (aPatética), Kresky nao se aventura além de La Fille aux cheveux de lin, de Debussy, e uma passagem de 55 compassos de A Val- quiria. Na sua conclusao, Kresky dedica algumas palavras a Schoenberg e apresenta uma breve demonstragao com exemplo musical. Alguns teéricos tonais pude- ram ampliar sua atividade com consideravei energia misica de Schoenberg, Stravinsky, Bartk e outros, Com excegées triviais, entretanto, eles — ou os te6ri- cos de qualquer outra escola — nao dedicaram aten- ao 4 misica anterior a Bach. Nos tiltimos 50 anos, a misica mais antiga tem sido amplamente editada, to- cada, radiodifundida e gravada; tornou-se parte da experiéncia de todo ouvinte. Ignorar isso é enterrar a 92 Musicologia cabega na areia. Ninguém, penso eu, se dara ao tra balho de argumentar que a musica de Dufay, Josquin, Byrd e Monteverdi é fragil demais, primitiva demais para andlise, ou inartistica demais para promover a resposta estética que, como insisti, quase sempre esta subentendida na andlise. Como veremos, os tedricos de vanguarda argumentaram que a Ppreocupagao com o modelo tradicional e seus padrées por parte dos tedri- cos tonais distorceu-lhes a visao da musica mais mo- dena. Seja como for, 0 caso é que parece té-los desli- gado da masica mais antiga. Esse descaso pela musica do passado mais ou menos distante — 0 mesmo passado que produziu Dante e John Donne, Botticelli e Velasquez — pare- ce-me uma acusagao bastante séria que pode ser en- deregada a teoria atual. A ela se alude menos freqiien- temente do que a acusagao paralela, a qual pode ser ainda mais séria —a de que a musicologia despreza a musica do presente. 4 Em suas atitudes para com 0 modelo tradicional da miisica, os analistas podem distinguir-se nitidamente daqueles music6logos que se ocupam do mesmo ma- terial (ou dos musicélogos em geral, se a questao for concebida em bases ideolégicas mais amplas), Os mu- sic6logos esforcam-se por ver essa musica em seu contexto histérico pleno: um contexto inundado de musica menos importante que os tedricos ignoram, colorido por condigées de performance historica dife- rentes das que hoje aceitamos, informado por comple- xas forgas econémicas, sociais, intelectuais e psicolé- gicas, e sombreado pela intertextualidade — pelas Andlise, teoria e mtsica nova 93 referéncias que os compositores fazem numa obra a outra, como modelo reconhecido ou influéncia nao- reconhecida. Tal é, pelo menos, 0 ideal dos musicélo- gos. Mesmo que para eles o contexto histérico con- firme a centralidade e o valor de grande parte do modelo dos analistas, existe uma diferenga de enfo- que basica. Enquanto a atengao dos analistas esta cen- trada no funcionamento interno de uma ob ra-prima, a dos musicélogos- difunde-se através de uma rede de fatos e condicdes que nela influem Por certo, j4 houve oportunidade de se verificar até que ponto os musicélogos tém, em geral, ficado aquém desse ideal. Esse é 0 problema. Sobretudo nos anos do p6s-guerra, a concentragao deles em limitadas tarefas positivistas teve 0 efeito evidente de deixar de fora “a musica propriamente dita”; com excessiva fre- qiiéncia, 0 embate deles com pecas musicais atu: pareceu apressado e desapontadoramente superficial, E porisso que a anilise, apesar de todas as suas paten- tes limitagdes, tem fascinado aqueles que tentaram desenvolver uma critica musical séria em nosso tempo. O que aanilise faz pode ser limitado, mas elao faz extremamente bem. De fato, os criticos estao fas- cinados demais pela andlise. Estou pensando na obra de Edward Cone, Charles Rosen e Leonard Meyer, e, com algumas reservas, penso também na minha pro- pr Pois, se o defeito caracteristico dos musicélogos é a superficialidade, a deficiéncia dos analistas 6 a mio- pia. A concentragao obstinada desses ultimos nas re- lagoes internas numa tnica obra de arte 6, em iiltima instancia, subversiva, no que diz respeito a qualquer visdo razoavelmente completa da misica. A estrutura auténoma da miisica é apenas um dos muitos elemen- 94 Musicologia tos que contribuem para seu significado e importan- cia. A preocupacao com a estrutura € acompanhada da negligéncia em outros aspectos vitais — nao s6 todo o complexo histérico acima referido, mas também tudo 0 mais que torna a mtsica afetiva, tocante, emotiva € expressiva. Ao retirar-se a partitura de seu contexto a tim de examind-la como organismo auténomo, 0 ana- ista retira esse organismo da ecologia que 0 sustenta. Dificilmente parece possivel, em nosso dias, ignorar essa sustentacao. Nos anos do pés-guerra, entretanto, uma poderosa atracao foi exercida por analistas —e exatamente por aquelas correntes de andlise que se apoiavam de modo sumamente dogmatico num tnico princfpio, um monismo ou (como foi por yezes expresso de ma- neira reveladora) um “segredo” de forma ou coerén- cia musical. Os analistas que diferiram fundamental- mente em seus sistemas analiticos eram, nao obstante, monistas nesse sentido, Pensa-se, com destaque, em Schenker; também em Rudolf Reti, o mais influente, embora nao fosse em absoluto o primeiro expoente da andlise “tematicista”; e ainda em Alfred Lorenz, autor do requintado Das Geheimnis der Form bei Richard Wagner [O Scgredo da Forma em Richard Wagner], um estudo imenso e imensamente complex, origina rio da década de 20, que desfrutou prestigio conside- ravel durante muitos anos antes de ser demolido por especialistas recentes em Wagner. E, embora a musi- cologia e a analise possam ser vistas como contradit6- rias e até como abordagens rivais da musica, amba foram planejadas para prosperar na atmosfera intelec- tual do neopositivismo. O atrativo da andlise sistema- tica era propiciar uma visio positivista da arte, uma critica que poderia apoiar-se em operagdes precisa Andlise, teoria e mtisica nova 95 mente definidas e aparentemente objetivas, e repelit os critérios subjetivos (e que, geralmente, sequer se autodenominava critica), Isso era tao verdadeiro quanto a andlise tematicista nas maos dos seguidores de Reti, Hans Keller e De- ryck Cooke, em Londres, como quanto a andlise schenkeriana nas maos dos discipulos de Schenker, Felix Salzer, Ernst Oster e Oswald Jonas, em Nova York e Chicago. Era igualmente verdadeiro quanto ao sistema analitico de base psicolégica esbogado por Leonard Meyer em Emotion und Meaning in Music, de 1956, depois da analise “tedrica de conjunto” de Allen Forte e, ainda mais recentemente, quanto A andlise semiolégica de Jean-Jacques Nattiez."! Existia uma pessoa que nao era nem analista siste- miatico nem monista, apesar de seus freqiientes rom- pantes de dogmatismo johnsoniano, que se chamava Donald Tovey. E dificil saber qual de seus tragos exasperava mais os tedricos da década de 50 —sea sua abordagem levemente empirica da anilise, se a sua impaciéncia com a teoria sistematica, se os seus ape- los ostensivamente populistas e, no entanto, algo sus- peitos ao “ouvinte ingénuo” ou se, enfim, seu uso 11. As principais obras de Nattiez sio Fondements d'une sémiologie de la musique (Paris: Union générale d’éditions, 1976) e “Varese's ‘Density 21.5’: Study in Semiological Analysis”, publicado de forma revisada em tradugdo inglesa em Music Analysis 1 (outubro de 1982), pp. 243-340, Objegdes fundamentais a abordagem geral de Nattiez, sentidas por mui- tos, foram expressas por Allan R. Keiler: “Two Views of Musical Semio- ties”,em he Sign in Musicand Literature, org. de Wendy Steiner (Austin, Texas: University of Texas Press, 1981), pp. 138-68. Para uma opinido mais favorivel, ver Jonathan Dunsby, “Music and Semiotics: the Nattiez Phase”, Musica? Quarterly 69 (inverno de 1983), pp. 27-43, e “A Hitch Hiker’s Guide to Semiotie Music Analysis”, Music Analysis 1 (outubro de 1982), pp. 235-49, 96 Musicologia imperturbavel e incessante de metéforas freqiiente- mente extravagantes para evocar sentimentos e emo- goes musicais. A obra de Tovey péde ser ignorada nos Estados Unidos, onde nao era muito influente. Mas na Inglaterra, onde ele vivia, tinha que ser repudiada. O positivismo, na erudi¢ao musical, foi original- mente um movimento do século XIX, um movimento que deixou sua marca indelével nos primeiros tempos da musicologia. Schenker, organizador de uma admi- ravel edigao critica das sonatas para piano de Beetho- ven, nao entrou em conflito com a musicologia positi- vista. Mas um dos primeiros e proeminentes musicé- logos, Hermann Kretzschmar, apurou 0 ouvido para um outro tambor oitocentista e desenvolveu um sis- tema de “hermenéutica” musical, o que proporcionou a Schenker ensejo para uma extensa polémica no c mego do presente século. Se alguma vez tivesse ocor- rido a Schenker dar uma olhada para o que se passava do outro lado do Canal, ele teria reagido com igual vigor contra Tovey, com sua referéncia a tonalidades “escuras” e “brilhantes”, suas “manchas purptireas” de harmonia prolongada e suas estouvadas metaforas pelas quais os acordes dominantes “murmuram”, os motivos “vacilam”, as frases sio “apanhadas no im- pulso de um planeta em sua 6rbita” e assim por diante. Ja em nossos dias, Tovey publicou seu proprio ana- logo do notério Fthrer durch den Konzert-Saal [Guia para a Sala de Concerto] (1887-90), de Kretzschmar, com 0 titulo de Essays in Musical Analysis (1935-44); esse titulo infeliz, que talvez tenha pesado seriamente contra a difusao do ponto de vista de Tovey no nosso tempo, teria certamente causado apoplexia em Schenker. Para Schenker, a mtisica nunca esta envol- vida em metaforas de “sentimento” ou “‘expressao”, | | Andlise, teoria e misica nova 97 mas tem a ver unicamente com as relacdes intemnas dos elementos musicais. Musica é estrutura. O dis- curso musical deve ser puramente musical. Ninguém explorou com mais insisténcia esse tema do que Milton Babbitt, que raras vezes perdia uma oportunidade de ridicularizar o uso de enunciados “incorrigiveis” sobre mtsica. A linguagem é a dos positivistas légicos, de cuja doutrina Babbitt nunca conseguiu escapar. Vimos no capitulo 1 como, sob a diregao de Arthur Mendel, Princeton assumiu uma lideranga explicita na musicologia positivista. Tor- nou-se também um centro de propagagao do sistema de Schenker; isso, por sua vez, forneceu um impor- tante incentivo ideolégico a 4 teoria de composigao de vanguarda, que foi a criacdo genuina de Babbitt e do grupo em torno de Perspectives of New Music. Yale, sob a orientagao de Allen Forte, tornou-se um outro desses centros. A redescoberta de Schenker em Prin- ceton e Yale, na década de 50, representa um verda- deiro elo oculto entre o neopositivismo americano em miisica e 0 movimento alemao original do século XIX. 5 A primeira variedade de teoria tonal que examina- remos, entretanto, 6 uma que nunca se firmou oficial- mente no establishment académico americano. Se- guiu, antes, um caminho tortuoso da Europa para os Estados Unidos, dai para a Inglaterma, e talvez agora mais uma vez de volta aos Estados Unidos. O longo nostra culpa recitado por Wallace Berry na Society for Music Theory (aquele sobre babelismo, arlequinismo, dogmatismo, etc.), rematou com a con- fissao melancélica de que os teéricos nado costumam 98 Musicologia lermuitoas obras uns dos outros. E possivel que assim seja, mas as coisas nao podem nem de longe estar tao ruins quanto em 1951, quando Rudolph Reti, um re- fugiado austriaco de 66 anos, que vivia em Montclair, Nova Jérsei, publicou The Thematic Process in Mu- sic.* As teorias segundo as quais a forma, numa peca, depende da afinidade fundamental do material rela- tivo ao tema e ao motivo —o que os alemies designam por Substanzgemeinschaft [Comunhao da substan- cia] e a que eu chamarei “tematicismo” — ja circule vam ha muito tempo. Nas maos de Hoffmann, como ja vimos, essa idéia era a base para as primeiras demon: tragdes quase analiticas da estrutura organica da mii- sica. Principalmente sob o impulso da psicologia da Gestalt, essas teorias proliferaram em estudos de mui- tos tedricos alemaes das décadas de 20 e 30. Com efeito, os escritos de Schenker dos anos 20 mostram fortes tendéncias tematicistas. Mas Reti parece nao ter lido nada desse material. E, embora freqiientasse a 6rbita do circulo de Schoenberg 4 época da Primeira Guerra Mundial e ainda admirasse a mtsica do com- positor, nao cita Schoenberg uma s6 vez. Coube a obseryadores subseqtientes tragar uma ligagdo entre as idéias de Reti e a bem conhecida discussio de Schoenberg acerca do principio da “variagio em de- senyolvimento” em Brahms, pelo qual uma “forma basica” ou Grundgestalt se difunde pela composicao inteira, Contudo, em 1951, as idéias de Schoenberg ainda nao eram bem conhecidas e The Thematic Process in Music atraiu consideravel atengao. Na Inglaterra, 0 livro parece ter deflagrado a tinica lufada coerente de atividade teérico-musical dos anos do pés-guerra. Seu lider foi Hans Keller, um critico que ja fizera nome na Andlise, teoria e musica nova 99 vociferantes tivamente, Inglaterra como um dos primeiros e mai defensores de Benjamin Britten e, signific de Schoenberg. O mais rigoroso dos artigos analiticos de Keller* fo i. evidentemente, a resposta a uma espécie de desafio, quando fora convidado pelo editor da Music Review a escrever sobre 0 mesmo concerto para piano de Mo- zart (em D6 Maior, K. 503) que Tovey havia tratado num ensaio classico 50 anos antes. De modo um tanto injusto—embora ele tivesse um Ppropésito em vista — Keller qualificou os escritos de ‘Tovey sobre musica como meramente “descritivos”, tautolégicos na me- dida em que “a deserigao fornece um relato verbal do que ouvimos e é essencialmente desnecessdria”. A verdadeira andlise mostra a unidade “organica” im- plicita na diversidade explicita, notadamente na ques- tao dos contrastes tematicos. Ao manipular os temas e motivos do concerto de Mozart de varias maneiras — selecionando parte deles e omitindo outros, mudando os ritmos, lendo as notas as avessas, de tras para diante, de cabega para baixo ou com a ordem alterada — Keller nao teve muito trabalho em mostrar como estao todos relacionados, como derivam todos uns dos outros. “O tinico ponto essencial a respeito de um te € sua unidade”, afirmou ele; e na grande miisica, de fato, “quanto mais solta for a integragao manifesta, mais estrita é a unificagao latente demons- travel”. Para Keller, esse era um critério analftico demonstrivel ¢ objetivo de critica avaliatéria, A metodologia de Keller baseou-se especi a 12. Citagées neste pardgrafo: Hans Keller, “The Chamber Music”, em The Mozart Companion, org. de H.C, Robbins Landon e Donald Mitchell (Londres e Nova York: Oxford University Press, 1956), pp. 90-91. 100 Musicologia mente (ainda que nao muito profundamente) nas ope- ragdes seriais tal como foram desenvolvidas por Schoenberg, e sua filosofia recorreu ao “‘contetido la- tente do sonho manifesto”, conforme a teoria de Freud. Mas, sejam quais forem as superestruturas in- telectuais, oua auséncia delas, todas as teorias temati- cistas estritas se assemelham em sua tendéncia para exagerar a importancia das configuragdes de temae de motivo, as quais sdo concebidas como a esséncia da unidade organica da misica. Harmonia, ritmo, fra- seado, proporgdes e até a ordem em que temas afins sao apresentados — todos esses elementos sao des- considerados. O modelo de Keller para um concerto de Mozart parece ter sido uma espécie de campo rela- cional estatico, ou pelo menos nao-dirigido. O modelo de Tovey era narrativo, ou melhor, dramatico, razio pela qual os contrastes Ihe importavam tanto quanto a unidade e por que pelo menos tentou lidar com todos os outros elementos. Digo “tanto quanto a unidade” porque os instintos organicistas de Tovey eram tao fortes quanto os de Keller — ou de Schenker; ele simplesmente tinha um ideal diferente de unidade musical. “Ha um Siem ambos”, costumava ele dizer, zombando dos tematicistas de seu proprio tempo. No que lhe dizia respeito, eles estavam moldando seu pr6prio tipo de tautologia gigante, a partir da propria miisica. Keller era um critico nao inteiramente desprovido de bom-humor, que atraia a atengao para suas idéias tanto pelo estilo abrasivo em que as apresentava quanto por seu contetido intrinseco. Epater les An- glais poderia ter sido a divisa no brasao desse es' geiro polémico que tinha a petulancia de catequizar os ingleses a respeito de Elgar e Britten (e futebol!), Andl , teoria e mtisica nova 101 enquanto espicagava suas vacas sagradas mus Como resultado légico de sua aversao 4 prosa tautolé- gica mascarada de discurso musical, Keller desenvol- veu um estilo inteiramente nao-verbal de apresentar suas idéias analiticas. Fragmentos de uma composi- cao eram tocados em seguida a outros tematicamente relacionados e a versdes “intermediarias” especial- mente compostas, as quais se presumia guiariam 0 ouvido do manifesto ao latente sem o recurso da pa- lavra. Algumas amostras dessa “An: Funcional sem Palavras” foram transmitidas pela BBC (onde Keller trabalhava), e uma delas foi publicada.'3 Como resultado légico dessa posigao, Keller foi desistindo de escrever sobre musica, e nao chegou a produzir 0 livro abrangente sobre anilise e critica que outrora planejara. Dois pequenos livros dessa espécie foram publicados na década de 60 por um seguidor dele, Alan Walker: A Study of Musical Analysis eAn Ana- tomy of Musical Criticism (este tltimo, aparente- mente sem referéncia a Northrop Frye). “Os ingleses sao antiteuténicos ao maximo em sua desconfianga acerca de teorias ambiciosas sobre mti- sica”, escreveu Arnold Whitall numa pesquisa muito realista sobre a andlise musical na Inglaterra realizada ha poucos anos.'* E “a preocupagao inglesa tem sido, certamente, muito mais com primeiros planos do que com tltimos planos, mais com temas e motivos do que com a estrutura tonal ou harménica”. Mas alemaes e 13. Hans Keller, “FA N.° 1: Mozart, K. 421", The Score 22 (fevereito de 1958), pp. 56-64. Enquanto este livro estava no prelo, apareceu uma outra das anilises funcionais de Keller, na King’s College London Music Analy. sis Conference de setembro de 1984. 14, Amold Whittall, “Musicology in Great Britain since 1945”, Acta Musicologica 52 (abril de 1980), pp. 51-62. 102 Musicologia americanos, bem como os ingleses, mais do que me- ramente suspeitosos, repudiam os tematicistas que foram tao longe e com tanta ambigao quanto Reti, Keller ¢ Walker. Por outro lado, se 0 tematicismo foi aceito, num espirito ndo-dogmatico, como uma téc- nica analitica entre outras, pode produzir resultados importantes; e provavelmente pode-se dizer que os analistas ingleses tiraram maior partido disso que os americanos, muitos dos quais foram preconceituosos em relagio ao tematicismo, como resultado de sua concentragao na visao organica um pouco diferente de Schenker. A énfase em temas e motivos é evidente em obras tio diferentes quanto o estudo junguiano Wag- ner’s “Ring” and its Symbols, de Robert Donington, e o polémico estudo etnomusicolégico How Musical Is Man?, de John Blacking.* Ambos os autores prestam tributo especifico a Deryck Cooke, que em 1959 es creveu um tratado sobre expresséo musical — The Language of Music, tao criticado quanto influente: (ele também ficou famoso por completar 0 rascunho inacabado da Décima Sinfonia de Mahler). Cooke acreditava que tipos tematicos fornecem a base para um vocabulario — que ele tentou compilar — dos estados emocionais que se expressam na misica, Um impressionante, ainda que possivelmente um tanto inesperado, exemplo de andlise tematicista sen- sivel pode ser apreciado em The Consort and Key- board Music of William Byrd (1978), de Oliver Neighbour.* O primeiro instinto do leitor seria quali; ficara obra de Neighbour como de musicologia, nao s6 porque trata de um perfodo historico que os analistas tém negligenciado de modo muito flagrante, mas também porque levanta problemas musicolégicos ca- racteristicos que aqueles sempre contornaram, como Andlise, teoria e mtisica nova 103 as fontes, as influéncias sobre 0 compositor e seu desenvolvimento diacrénico, Mas Neighbour, faltan- do-lhe os beneficios de um treinamento musicolégico formal, como 4 maioria da sua geragao na Inglaterra, teve de apoiar-se no que aprendeu ao longo dos anos através de seu estudo de Schoenberg para elaborar sua “teoria”. Nas fantasias de Byrd e nas de seus predecessores, como Robert White, Neighbour mostra como os largos periodos de obras secionais aparentemente difusas sao unidos e modelados pela sutil transformagao sucessiva na configuracao dos mo- tivos. E um exemplo classico, embora restrito, de “va- riagao em desenvolvimento”, o que poderia ter sur- preendido 0 inventor do termo, se bem que nos agrade pensar que tal exemplo nao lhe teria desagradado. Além disso, Neighbour nao hesita em tratar as fanta- sias, pavanas e galhardas, In Nomines e outras compo- sigdes instrumentais em prosa “descritiva”, nem em caracterizé-las e avalid-las. The Consort and Key- board Music of William Byrd é, de fato, um dos mais impressionantes modelos que possuimos em inglés para a critica hist6rica modema. 6 Enquanto para os tematicistas a unidade de uma composi¢ao musical depende do modo como suas par- tes (sobretudo motivos e temas) se relacionam entre si, para Heinrich Schenker isso dependia do modo como as partes se integravam no todo. Queressa teoria merega ou nao ser qualificada de “organica”, nes' 6poca em que estamos aprendendo cada vez mais acerca do modo como os organismos realmente fun- cionam, ela desfruta claramente de uma vantagem na 104 Musicologia riqueza das relagdes consideradas. Adicione-se a abrangéncia e a sistematizagao a essa articulacdo su- perior, € nao fica dificil entender por que a anilise schenkeriana exerceu muito mais efeito nos Estados Unidos, que o tematicismo e, mais tarde, também na Inglaterra. Por outro lado, Schenker nao teve reper- cussio apreciavel em casa, isto é, na Alemanha e na Austria (segundo Adomo!®, “em parte devido a certas leviandades de que era culpado, em parte por causa de seu nacionalismo vulgar’). No caso de Schenker, como ja sugeri, 0 fetiche que ele compartilhava com Reti e Keller a respeito da unidade da musica é mais compreensivel em fungao de sua antipatia pelo Modernismo, 0 qual trouxera a primeiro plano 0 espectro da quebra da unidade em musica. Seria interessante conhecer algo sobre a e: periéncia pessoal de Schenker com a composicéo antes de ter renunciado a ela precocemente, mas a extensa bibliografia de Schenker virtualmente nao inclui nada acerea de sua biografia. Também a biblio- grafia é “puramente musical”. Enquanto Keller buscava a unidade implicita por tras de temas aparentemente contrastantes, Schenker foi além do nivel em que os temas se manifestam. Niveis ou camadas hierarquicas sao fundamentais para seu método analitico. Este comega porabstrairou reduzir fendmenos “superficiais” explicitos, como ses e periodos musicais, As suas areas har- ménicas subjacentes (talvez.a melhor tradugao para os Stufen [intervals] de Schenker). Passa entao a redu- zir os Stufen a um padrao simples e invariante que 15. Theodor Adomo, “On the Problem of Musical Analysis”, trad. de Max Paddison, Music Analysis 1 (julho de 1982), pp. 168-88, Andlise, teoria e miisica nova 105 Schenker logrou descobrir em cada nivel de toda e qualquer composigao tonal. E a Ursatz [tonalidade basica], uma espécie de formula de cadéncia muito expandida. A parte mais aguda, melédica da Ursatz, a Urlinie ou “linha basica”, provou ser 0 desdobra- mento “horizontal”, num certo periodo de tempo, das notas do acorde perfeito ou triade, notas que na pro- pria triade estao dispostas “verticalmente” — isto é, soam simultaneamente como um acorde. Schenke: acreditava que 0 acorde maior era o “acorde da natu- reza”. Lembramos a observacao de Lewin sobre a atragao da teoria pela lei natural. Por conseguinte, um tinico “principio”, o da triade, governa as extensdes verticais e horizontais da altura do som musical, 0 simultaneo ¢ 0 sucessivo, o detalhe © 0 todo. Que a extensao vertical (harmonia), em certo sentido, é “governada” pela triade, constitui uma idéia bastante tradicional, embora Schenker nao a formulasse tradicionalmente. Todos os acordes assu- mem sua fungao ou significado harménico em relacéo a. triade tonica do tom (que é 0 tiltimo acorde, 0 acorde de pausa, na cadéncia final de uma peca). Que a exten- sao horizontal (melodia, ou frase) também é gover- nada pela triade foi um conceito mais radical. Na teo- ria de Schenker, todas as notas de uma melodia podem ser explicadas como diminuigées, ornamentos, “tons vizinhos”, prolongamentos e varias outras categorias técnicas que entremeiam as notas “estruturais” da Urlinie, a qual desenvolve a triade ténica no tempo. Com efeito, todos os milhares de notas de uma peca podem ser explicados como elementos de miultiplas linhas desdobrando-se numa ou noutra camada hie- rarquica. Além disso, o modo como o desdobramento ocorre — por meio das regras da primeira voz linear do 106 Musicologia contraponto estrito —é o mesmo tanto naUrsatz como em todas as demais camadas estruturais, do plano de fundo ao primeiro plano. As camadas sao simétricas. Um exemplo simples podera ser util. Na melodia para a Ode a Alegria no finale da Nona Sinfonia de Beethoven, a Urlinie 3-2-1 (fa sustenido-mi-ré, na to- nalidade ré maior) pode ser ouvida na superficie das shina ea palavras “[sanf|ter Fliigel weilt” —ou seja, na cadén- cia real da melodia; num nivel estrutural ligeiramente 3 eve profundo, em “Alle Menschen... Fliigel weilt”; mai 3 no nivel da melodia como um todo em “Freude, 2 schéne Gétterfunken... Deine Zauber... Fliigel 1 weilt”. Na maior profundidade, na extensao dos 20 minutos do finale inteiro, trés tons marcam a Urlinie a nivel do plano de fundo basico. Todas as outras notas da pega, dezenas de milhares delas, podem ser siste- maticamente ordenadas em numerosas camadas, em relagao a essas trés. Assim, todas as partes estao orga- nicamente integradas num todo. Este pequeno exemplo extraido de Ode a Alegria também pode servir para introduzir trés criticas cor- rentes de Schenker. Em primeiro lugar, uma nota como 0 la grave em “[streng Ge}teilt”, que qualquer ouvinte percebera como vital para a forma e o carater da melodia, nao recebe lugar especial na analise (em- bora, 6 claro, tenha a sua importancia), A andlise schenkeriana menospreza repetidamente as caracte- risticas salientes da mtisica. Em segundo lugar, a nota seguinte, fa sustenido, em “Al[le]”, adquire énfase Andlise, teoria e mtisica nova 107 especial em decorréncia de sua colocagio ritmica na sincopagao, assim como de sua associagao a tinica palavra que Beethoven, ao que parece, queria acen- tuar acima de todas as outras, A andlise schenkeriana ignora consideragées ritmicas e textuais. Em terceiro lugar, o segundo distico, que comega com “Wir betre- ten, feuertrunken”, para musica quase idéntica a do quarto e ultimo distico, “Alle Menschen”, é tratado, nao obstante, de modo diferente na andlise. Por que razio, quando esse distico faz sua cadéncia com “Hei- ligtum”, devemos interpretar isso como estrutural- mente diferente da cadéncia idéntica em “Fliigel weilt”? Na questao crucial da colocagao dos tons es- truturais nas varias camadas, da qual tantas coisas mais dependem, Schenker carece repetidas vezes de critérios persuasivos e parece arbitrario, Nao é este o lugar para uma extensa discussio do sistema de Schenker. As criticas acima nao foram sufi- cientemente fortes para neutralizar os atrativos muito reais que ele pode oferecer a um certo tipo de menta- lidade. Oferece uma estética proto-estruturalista que parece légica e até elegante, sejam quais forem as suspeitas sombrias que possam surgir, de tempos em tempos, de que Schenker, tal como os tematicistas, esta convertendo toda a misica tonal numa gigantesca tautologia. E oferece um método claro, com senso objetivo. A andlise schenkeriana nao é facil — requer muito trabalho e exercicio constante de julgamento musical — mas é eminentemente exeqtiivel. Mostra- nos como nos ajustarmos a tarefa e como localizar com precisio todas as notas numa composigao sobre (ou em) os intersticios entre os graficos desta ou daquela camada hierarquica. Os famosos grificos de Schenker, usando principalmente a notagao musical, evitam a 108 Musicologia necessidade de muita prosa na andlise; com efeito, uma de suas tiltimas publicagdes foi um folheto con- tendo apenas Ftinf Urlinie-Tafeln [cinco tabuas de linhas basicas}.-A analogia com a Andlise Funcional sem Palavras de Keller foi assinalada por Whittall e outros. Ambos almejavam tornar suas andlises “pura- mente musicais”. O tematicismo e a andlise schenke- riana, como eu disse, foram bem calculados para flo- rescer na atmosfera positivista da década de 50. Quando o jovem tedrico Allen Forte foi nomeado para Yale em 1959, proclamou uma adesao ideologica a Schenker e um programa de trabalho que faria dessa universidade 0 centro mundial da disseminacao e ex- tensio do pensamento do teérico austriaco. “Schen- ker’s Conception of Musical Structure”, ensaio que os schenkerianos consideram um classico, foi publicado no Journal of Music Theory, uma publicacao fundada em Yale em 1957 e dirigida por Forte na década de 60.* Em minha opiniao, 0 exemplo escolhido nesse ensaio para ilustrar 0 método analitico de Schenker nao é sé de uma anilise fragil em si mas também vulneravel as mesmas trés criticas correntes mencio- nadas acima a respeito da Ode d Alegria. '® Seja como for, a andlise —é da mintiscula cangao de Schumann Aus meinen Thranen spriessen [Das minhas lagrimas brotam], do ciclo Dichterliebe [Amor de Poeta] — impressionou muitos mtisicos, e a formulagio incisiva por Fortede cinco “problemas nao-resolvidos de teo- ria musical”, a que os métodos de Schenker poderiam ser proveitosamente aplicados, foi sem duvida levada rio por numerosos tedricos americanos. Sao eles, 16. Ver Joseph Kerman, “How We Got into Analysis and How to Get Out”, Critical Inquiry 7 (inverno de 1980), pp. 311. Andlise, teoria e mtisica nova 109 nas palavras de Forte: (1) construir uma teoria de ritmo para a musica tonal, (2)determinar as fontes e 0 desenvolvimento da tonalidade triédica, (3) obter in- formagies sobre a técnica de composigao, (4) melho- rara instrugao tedrica e (5) compreender a estrutura de obras modernas problematicas. Vinte € cinco anos depois, apés consideravel tra- balho de acordo com essas cinco diretrizes, os resulta- dos sao mistos. Sem divida, muito se conseguiu em (4); como de costume, a ortodoxia de ontem esta en- cerrada nos compéndios de hoje. A importante obra do proprio Forte foi dedicada ao problema (5), embora o caminho desde 0 seu Contemporary Tone Structures (1955) até The Harmonic Organization of ‘The Rite of Spring’ (1978) se distancie dos métodos schenkeria- nos para adotar um método individual de “andlise te6rica do conjunto”, o qual foi importante porméritos proprios. O problema (3) foi consideravelmente elu- cidado, como veremos em maior detalhe no préximo apitulo, Mas isso aconteceu a despeito do interesse dos schenkerianos pelo assunto, creio eu, ou pelo menos 86 indiretamente como resultado dele. Quanto ao problema (2), um ou dois artigos tendenciosos sobre mitisica pré-tonal fizeram muito pouco para ali viar a acusagao, que citei acima, de conservadorismo dos analistas na questao do repertério. Eles simples- mente nao sao sérios a respeito de qualquer musica anterior 4 do modelo tradicional. Embora oJournal of Music Theory tenha sempre publicado artigos sobre teoricos ¢ teoria do passado, esses artigos foram escri- tos por musicdlogos — historiadores da teoria — nao por schenkeriano: O problema (1) continua sendo uma questio de suma importancia para os schenkerianos. E dificil es- 110 Musicologia capar ao fato de que, embora um certo dinamismo esteja embutido na idéia de “desdobramento” da Ur- satz, Schenker virtualmente nada diz sobre ritmo, proporgées de duragdo ou quaisquer outras questées temporais. Basicamente, ¢ apesar de varios protestos em contrario, esse modelo de musica é tao estatico quanto o dos tematicistas. E a idéia de construir uma teoria do ritmo por analogia a teoria da altura do som de Schenker, e ao sistema dodecafénico de Schoen- berg para a altura do som parece ser excessivamente conveniente e de uma submissao 6bvia a idéia avant garde do pés-guerra de derivar os procedimentos se- riais para duragao, dindmica ete. A teoria estritamente hierirquica (embora escassamente schenkeriana) de ritmo enunciada por Grosvenor Cooper e Leonard Meyer, em The Rhythmic Structure of Music (1960), nunca satisfez a comunidade da teoria, O mais obstinado de todos os problemas tem raizes no idealismo de Schenker, em sua determinagao de buscar a esséncia de toda misica tonal, antes numa invaridvel formula abstrata do que em sua infinita, concreta e magnifica variedade. Como assinalou Charles Rosen: seu método assume a forma de uma reducao gra- dual da superficie da musica a sua frase basica [a Ursatz], e a andlise desloca-se numa direcio que a distancia do que é realmente ouvido e a apro- xima de uma forma que é mais ou menos amesma para todas as obras. E um método que, apesar de tudo 0 que revela, concentra-se num tnico pecto da misica e, sobretudo, torna impossivel a contribuigao de outros aspectos. A obra parece esgotar-se na forma secreta oculta dentro de si Andlise, teoria e misica nova lil mesma. E esse 0 impasse de todo método critico que situa a fonte de sua vitalidade numa forma implicita... A critica nao é a redugao de uma obra as suas simetrias individuais, interiores, mas 0 movimento continuo do explicito para o impli- cito, e vice-versa. E deve terminar onde comegou —na superficie,'7 Extremamente- sensiveis & acusagao de reducio- nismo, os seguidores de Schenker, embora nao este- jam preparados para percorrer todo 0 caminho ascen- dente até a superficie, afirmam, nao obstante, que o que conta nas andlises deles, e na do proprio Schen- ker, nao é obackground, mas 0 “plano intermediario”, em especial 0 processo de transformagio entre as va- rias camadas. Mas aparentemente Rosen se manteve imperturbavel diante de tais manifestagdes de rept- dio (¢ ele nio foi o tmico), A servigo de sua visao idealista, Schenker estava pronto a desbastar nao s6 os detalhes salientes de composigoes individuais, mas também as distingdes entre composigoes, compositores e periodos. A forma de um preltidio de Bach é, em principio, igual ao movimento de uma sonata de Brahms, De fato, como vimos, ele estava disposto a desmantelar a maior parte da historia da misica; para 0s musicdlogos, 0 mai: desconcertante e 0 mais irritante aspecto do pensa- mento de Schenker é sua concepgao de histéria da musica como um altiplano absolutamente raso, flan- queado de abismos insondaveis por todos os lados. isso faz dele uma figura dificil, da qual 0 histo- les Rosen, “Art Has its Reasons”, New York Review of Books, 17 de junho de 1971, p. 38, 112 Musicologia riador ou 0 critico quase nada pode extrair. Essa é, pelo menos, a minha experiéncia pessoal. Existem (alguns) musicélogos que afirmam admirar Schenker, mas nao consigo me lembrar de qualquer estudo im- portante de critica historica que tenha se baseado de forma substancial em sua obra. O importante estudo de James Webster, “Schubert’s Sonata Form and Brahms First Maturity”, por exemplo, que usa grafi- cos de Schenker muito simplificados com bom efeito, emprega-os apenas para ampliar um insight de Tovey que nada deve a Schenker.* % Ao discutir teorias musicais, ou quaisquer outras teorias, esta sempre presente a tentacao de conferir excessiva atencio aos monistas. Pois est na propria natureza deles, como monistas, desenvolver teori: altamente articuladas, que tanto podem ser apreendi- das com facilidade como criticadas ou adotadas. Tam- bém é da natureza deles atrair di scipulos, e estes sao propensos a emitirruidosas e nada realistas avaliacoes sobre ostatus do credo que comungam. Tal status ora € conspiratoriamente rejeitado, ora é aceito por todos Os que “estao por dentro”. Deve-se resistir 4 tentacdo, pois existem relativa- mente poucos discipulos em comparacao com os ana- listas desvinculados — aqueles que reconhecem prontamente sua divida para com um ou mais te6ricos sem que por isso se sintam na necessidade de segui-los rigorosamente. FE. impossivel evitar uma sensacdo de exorbitante massacre em face do ataque em grande escala desencadeado por Eugene Narmour contra ichenker em seu livro Beyond Schenkerism (1977), Andlise, teoria e mtisica nova 113 com suas demonstracées légicas elaboradas, refuta- goes e sua polémica esgrima cheia de estocadas e paradas.* Narmour marca alguns pontos importantes contra a teoria de Schenker, sobretudo no tocante ao conceito manifestamente vulneravel da Ursatz, mas nao deixa de ser perturbador que tenha tao pouco a dizer sobre a pratica de Schenker. Ha muito a apren- der nos insights analiticos de Schenker a nivel de detalhe, considerados a parte de sua teoria, como, por exemplo, em seu estudo sobre as tiltimas sonatas para piano de Beethoven, anteriores ao desenvolvimento do conceito de Ursatz. (Foi o ultimo elemento impor- tante da teoria de Schenker a ajustar-se-lhe.) Segundo um musicélogo profundamente interessado na teoria € que nao é admirador incondicional de Schenker, “a colegao de ferramentas analiticas & disposigao dele para conceituar procedimentos da menor e menos im- portante escala da misica tonal deve ser impressio- nante para qualquer um, quer se esteja inclinado a amé-la ow a deixa-la, quer se esteja preparado ou nao para segui-lo desde 0 primeiro plano até as camadas mais profundas, e quer suas andlises particulares pa- regam convincentes ou nao”.'8 Narmour traga uma distingao util entre duas classes de seguidores de Schenker, uma que aponta para uma atragao ulterior, a nivel mais sofisticado, que sua obra exerceu sobre um outro tipo de tedrico, A distingdo baseia-se na concepgao que fazem da Ursatz. Os “schenkerianos”, em que se incluem os diseipulos diretos e indiretos de Schénker, véem a Ursatz como 18. Lewis Lockwood, “Eroica Perspectives: Strategy and Design in the First Movement”, em Beethoven Studies 3, org. de Alan Tyson (Londres e Nova York: Cambridge University Press, 1982), p. 93. 114 Musicologia uma “estrutura profunda” empirica percebida em toda a musica tonal, ao passo que os “neoschenkeria- nos”, que incluem os principais tedricos da musica de vanguarda, véem-na como um axioma a priori mum sistema mais ou menos formal. Segundo Narmour, existe uma confusao basica entre essas concepgdes incompativeis no proprio pensamento de Schenker. Nammour é fascinado pelos neoschenkerianos, e com boas razées: ele propde um “modelo” tedrico proprio para a musica tonal, em substituigao ao “sistema” deles —um “modclo de implicagao-realizagao”, deri- vado da obra de Meyer. Por tras do schenkerismo esta implicito um novo monismo, 0 narmourismo: dai o ataque macigo e o massacre excessivo. Trataremos dos neoschenkerianos de Narmour brevemente. Mais do que qualquer outro grupo em musica, pro- vavelmente se concordara que os schenkerianos de Narmour se véem como os tinicos crentes verdadeiros e guardides da fé. Outros tedricos de inclinagdes menos monisticas chegam ao Mestre com um espirito niio-dogmatico; o pensamento dele alimentou ¢ esti- mulou obras de muitas espécies diferentes, com vé rios problemas, elementos musicais e repertorios. E muito mais sugestivo do que 0 tematicismo de Reti, por exemplo, que parece, em termos intelectuais, nao ir a lugar nenhum. Teéricos e analistas de todas os matizes puderam fazer uso de idéias e técnicas tais como prolongamento, redugao de passagens comple- xas a intervalos(Stufen) basicos, de conexées lineares de grande extensao, conceito de camadas hierarqui- s, entre outros. Tais tedricos certamente nao sao neoschenkeriano: no sentido de Narmour. Este nem mesmo 0s qualifica- ria de schenkerianos. David Epstein talvez pudesse Anilise, teoria e mtisica nova 115 ser chamado de schenkeriano ecuménico, pois em seu Beyond Orpheus (1977) tentou acomodar a anilise schenkeriana ao tematicismo e conjuga-los mediante uma teoria abrangente do ritmo (uma teoria nao- schenkeriana do ritmo, até onde me é dado julgar).* Em face dessa ambicao arrojada, possivelmente até ingénua, nao surpreende que, embora Epstein apre- sente numerosos e valiosos insights sobre musica to- nal, também deixe, ao mesmo tempo, muitas pergun- tas sem resposta. Na verdade, todaa sua argumentagao_ é reunida de modo esquemiatico; seumodus operandi dificilmente poderia diferir mais do de um teérico sistematico como Narmour. Mas esse é um dos méri- tos de um estudo que talvez possa ser considerado sintomatico de uma nova flexibilidade na teoria mus cal de hoje. O mentor escolhido por Epstein no tema- ticismo nao é Reti nem Keller, mas Schoenberg — um nome mais em voga, por certo, embora eu pense ser injusto atribuir a escolha somente a moda, O que realmente atraiu Epstein para Schoenberg foi, prova- velmente, 0 fato de a idéia do ultimo a respeito do Grundgestalt [forma primitiva] e sua “variagio em desenvolvimento” corresponder a pouco mais do que uma brilhante sugestao. Nunca foi elaborada de modo a converter-se numa teoria tematicista madura e ple- namente desenvolvida. Portanto, permanece como ferramenta flexivel, endo como um sistema dogmatico para ser usada por outros, como Epstein, da forma que mais Ihes convier. (E alguns anos depois 0 jovem musicdlogo Walter Frisch usou-a ainda de um outro modo, em Brahms and the Principle of Developing Variation,* a fim de tragar a evolugdo do método de Brahms na coordenagao dessa técnica local com « exigéncias mais amplas da forma classica.) 116 Musicologia De interesse para 0s musicélogos é um pequeno apéndice do livro de Epstein, “Middle-Period Beet- hoven: Motive Form and Tonal Plan”, 0 qual se pro- poe, com efeito, a localizar um certo procedimento musical dentro de um limitado repertorio histérico, notadamente as sinfonias, quartetos e sonatas do pe- riodo intermédio de Beethoven. Esse é 0 tipo de coi- sa que analistas anteriores, habituados a concentrar suas atengdes numa tnica obra isolada, raras vezes tentaram fazer, Uma vez mais, os resultados da de- monstragdo de Epstein deixam muitas interrogagdes (incluindo o que Epstein entende por periodo inter- médio de Beethoven); mas, de novo, 0 esforco parece sintomatico. Também € sintomdtico, para nao dizer irénico, que a mais reprovadora critica feita a Beyond Orpheus tenha partido da Inglaterra — de Amold Whittall, que parece considerar Epstein nao um schenkeriano ecuménico, mas um subversivo,!? na melhor das hipoteses. Em parte, gracas as atividades de alguns emigrados americanos, 0 prestigio e a in- fluéncia de Schenker estao subindo na Inglaterra no momento em que estio afundando, embora com dig- nidade, nos Estados Unidos. Entretanto, a exibigao da ericada ortodoxia de Whittall pareceria uma fase tran- sitéria entre os tedricos ingleses, a julgarmos pelos primeiros ntimeros de uma nova revista, Music Analy- sis, que ele ajudou a fundar. A cobertura ai é amplae audaciosa, e o tom intelectual notavelmente isento de dogmatismo. Também nova, no momento em que escrevo, 6 A Generative Theory of Tonal Music (1983), de Fred 19. Ver Arnold Whittall, critica a Beyond Orpheus, de David Epstein, Journal of Music Theory 25 (outono de 1961), pp. 319-26. Andlise, teoria e musica nova 117 Lerdahl e Ray Jackendoff, uma dupla de composito- res-lingiiistas, cujos artigos desde 1977 se situam na vanguarda da obra tedrico-musical, baseando-se em conceitos e metodologias da lingitistica.* Tal como Epstein, mas num estilo muito diferente, Lerdahl e Jackendoff procuram construir uma teoria abrangente da mtsica tonal que acomode altura de som e ritmo. Mas esses homens distanciam-se realmente de Schenker — embora sejam os primeiros a admitir que seu sistema redutivo de alturas de som acaba ficando muito proximo, pelo menos na forma, do dele. O ponto éque, em vez de partirem de Schenker, como Epstein ou Forte, eles desenvolvem suas préprias e cuidado- sas séries de redugao musical de novo, expressas em tridiagramas inspirados nos tridiagramas fonolégicos e sintaticos da lingiiistica. A primeira vista, pode-se perceber logo que a teoria deles evita —ou talvez a palavra deva ser “corrige” — muitos aspectos duvidosos da teoria de Schenker. Em primeiro lugar, embora a reducao de elementos da altura de som (“reducao prolongacional”) hao seja neles menos inexoravel que em Schenker, Lerdahl e Jackendoff, nao estéo preocupados em isolar camadas intermédias nem as de background. A énfase perma- nece no primeiro plano (foreground), de modo que nao existe tendéncia a menosprezar caracteristicas “superficiais” da misica. Néo postulam nenhum Ur- satz, nenhum “acorde da natureza”, Também se es- forgam por racionalizar e sistematizar critérios para determinar 0 status hierarquico de tons — para de- terminar quais tons sao estruturais; e a pedra de toque para isso € sempre 0 que o ouvinte intuitivamente percebe (dai uma atengao especial e nao-schenkeria- na ao primeiro plano). Uma classe especial desses 118 Musicologia critérios deriva de uma teoria totalmente articulada e parcialmente hierarquica do ritmo (envolvendo “re- dugao métrica”). Essa teoria, um claro aperfeigoa- mento em relagao 4 de Cooper e Meyer, pode muito bem mostrar ser a mais poderosa contribuicao de Ler- dahl e Jackendoff, A anilise detalhada da argumentagao intrincada e elegante desses autores obviamente nos distanciaria do nosso propésito atual. Acima de tudo, esse livro impressionante é de um nao convencionalismo re- frescante. Lerdahl e Jackendoff estéo sempre dispos- tos a assinalar vastas areas da mtisica e da experiéncia que decidiram deliberadamente omitir de sua teoria, e dizem por que; no decorrer do livro, eles tém coisas interessantes (ainda que por vezes leves) a dizer acerca do serialismo, resposta inata 4 musica, cogni- Gao, emogao e muitos outros temas. Como tedricos eles s6 sio convencionais na medida em que nada dizem a respeito de hist6ria. O que fica aquém do esperado. Depois de todas as omissées terem sido admitidas, e mesmo alardeadas, somos forgados a ob- servar que 0 que temos ai ainda constitui apenas uma outra teoria da estrutura musical, por sinal, cuidado- samente delimitada. De modo menos agressivo que Narmour, Lerdahl e Jackendoff oferecem sua teoria em substituigéo 4 de Schenker; veremos se isso foi amplamente aceito. Se foi, sera simplesmente uma exposigio melhor da misica tonal de um tipo menos problematico — ou seja, uma miisica que constitui uma fragao da tradigao ocidental. Ela aborda somente aestrutura, e a aborda como um dado absoluto, fora de qualquer contexto histérico. E dificil determinar, pelo menos até agora, se os historiadores poderao tirar mais proveito dessa teoria do que da de Schenker. Anilise, teoria e mtisica nova 119 O momento histérico que focalizou e clarificou a obra de teéricos tonais como Schenker e Tovey tam- bém forneceu o ponto de partida para a teoria Je composicao modernista. Essa é a outra corrente da metafora mista de William Benjamin citada acima, a corrente que divide 0 espago com o schenkerismo (ou oneoschenkerismo)na mente dos tedricos modernos. Os primeiros passos dessa teoria dificilmente se distinguem das atividades de retragdo dos conserva- dores. Schenker publicou seu Harmonielehre [Ligdes cle Harmonia] em 1906, destinado, pela veneravel tra- digao pedagégica alema, a constituir 0 primeiro membro de uma grande trilogia tedrica; seu Kontra- punkt [Contraponto] apareceu em 1910-22 e Der freie Satz [Andamento Livre] em 1935. Tovey, sempre de- sorganizado, logrou, nao obstante, recompor-se o bas- tante para escrever uma série de artigos musicais para a 11.8 edigao da Enciclopédia Britdnica, em 1911. Mais ou menos na mesma época era publicado um outro Harmonielehre, 0 de Schoenberg.?° E claro, Schoenberg entrou na crise do Modernismo sob um ponto de vista diametralmente oposto ao de Schenker e Tovey: nao com um dedo na barragem, mas com todo © corpo estendido numa prancha, ao sabor da rebenta- cao da histéria. Entretanto, paradoxalmente, sua ne- 20. Henrich Schenker, Harmony, trad. de Elizabeth Mann Borgese, org. de Oswald Jonas (Chicago: University of Chicago Press, 1954), e Free Composition (Der freie Satz), trad. e org. de Emest Oster (Nova York: Longman, 1979); Donald Francis Tovey, Musical Articles from the Eney- clopaedia Britannica (Londres: Oxford University Press, 1944); Amold Schoenberg, Theory of Harmony, trad. de Roy E. Carter (Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1978). 120 Musicologia cessidade de escrever um compéndio teérico baseado em modelos tradicionais (0 que nao significa um com- péndio de teoria tradicional) nao era menos premente do que a daqueles. Assim, pelo menos comeca 0 que pode ser chamado de a historia oficial do longo e notavel envolvimento da teoria com a composigao de vanguarda neste século. Essa hist6ria é contada sucintamente na introdiigao a uma exemplar colegao de ensaios publicada em 1972, Perspectives on Contemporary Music Theory, organizada por Benjamin Boretz e Edward T. Cone.* A-voz soa mais como sendo de Boretz do que de Cone: A demanda de compositores contemporaneos tem sido no sentido da formulacao de teéricos prineipios adequados, principios em conformi- dade com o que empiricamente sabem ser-lhe: necessario... Que tal demanda deva ser uma cria- gao particular do nosso século é plausivel, em virtude da crise musical precipitada pelo apare- cimento de extraordinarios eventos composicio- nais, ap6s uma longa acomodagao a uma tradigao estavel e poderosa. Pois a prépria inexplicabili- dade desses eventos, no momento em que surgi ram, expés brutalmente o alcance conceitual e empirico inadequado da teoria tradicional exis- tente, ao revelar sua impoténcia para explicd-los, para torné-los justificaveis como desvios mais por extensao do que por descontinuidade... Schoen- berg, em particular, e em depoimento proprio, sentiu-se profundamente abandonado, conde- nado ao isolamento conceitual e a autoconfianca empirica, pelo fracasso de qualquer relato de misica tradicional em fornecer uma referéncia Andlise, teoria e mtisica nova 121 coerente para as evolugées que estavam tendo lugar em sua propria obra (pp. vii-viii). De acordo com essa histéria, Schoenberg foi 0 pri- meiro compositor a experimentar plenamente a an- gustia da alienagao modemista — 0 “isolamento con- ceitual”. Foi levado a reformular a teoria tradicional antes de poder elaborar uma teoria de composigaéo modernista de sua propria lavra. Esta seria o sistema dodecafénico, desenvolvido no comego da década de 20. Na teoria de Schoenberg, assim como na sua mu- sica, as téndéncias voltadas para o futuro sempre man- tiveram uma tensao fascinante com as voltadas para 0 passado. O tradicionalismo de sua musica foi rude- mente sublinhado em 1952, no notdrio panfleto de Boulez “Schénberg is Dead” (Schoenberg esta morto), 0 qual pedia sua rentincia como modelo de composigao em favor da miisica de Webern.?! Em teoria musical, 0 tradicionalismo de Schoenberg sig- nificou simplesmente que a nova teoria radical tinha de ser relacionavel com a teoria do passado. Como era de se esperar, essa demanda continuou encontrando eco na mente dos que escreveram sobre mitisica contemporanea na geragio p6s-Schoenberg. Figuras importantes nos Estados Unidos eram Roger Sessions, compositor destacado e também vitor muito influente sobre mtisica dos anos 30 aos 50, e Edward Cone, um devotado discipulo seu. E, sur- preendéntemente ou nao, muitos, talvez a maiori: 21. Pierre Boulez, “Schénberg is Dead” (1952), reimpresso em Notes of an Apprenticeship, trad. de Herbert Weinstock (Nova York: Knopf, 1968), pp. 268-76. 122 Musicologia dos jovens tedricos ainda estao pensando, ao que pa- rece, de acordo com a mesma orientacao geral. A obra de Cone é exemplar, ainda que a maior parte dela se ocupe de classicos da musica tonal, e sé uma parte menor se dedique aos mestres do século XX, Nao subscrevendo qualquer doutrina (como a de Schrenkcr) que o proiba de apreciar ou analisar a musica desses mestres, Cone procurou estabelecer métodos capazes de apreendé-los, comparaveis aos que lhe permitem apreender Bach, Schubert, Berlioz e Brahms. Assim, num de seus primeiros artigos “Stravinsky: the Progress ofa Method”, publicado em 1962, o “progresso” em questio pressupée uma con- tinuidade e nao uma ruptura entre 0 Stravinsky tonal de Sinfonias de Instrumentos de Sopro (1920) e 0 Straviusky serial de Movimentos (1959),* E 0 “mé- todo”, a formulagéio de Cone de uma “técnica stra- vinskiana basica” é construido em termos que se apli- cam 4 misica mais antiga. O préprio Cone menciona os Concertos de Bran- denburgo como um modelo vago para a primeira fase dessa técnica idiossincrasica, uma fase que ele chama segdes de misica nitidamente diferenciada em instrumentacao, registro etc., as quais se alternam de modo complexo, formando muitas camadas distintas de mtsica, cons tantemente interrompidas umas pelas outras — por vezes de maneira muito rude — embora sempre man- tendo algo de seus caracteres originais “Entrelage mento”, a associagao das sucessivas secdes de cada camada, e “sintese”, a associagao das proprias cama- das diferentes, sao fases adicionais da técnica basica, empregando recursos como as relagdes de motivo e as relagoes lineares de grande extensao (assim, poder- de “estratificagao”, Stravinsky justapoe Andlise, teoria e mtisica nova 123 se-ia dizer que Cone estava se apoiando em conceitos caros, respectivamente, a Reti e Schenker, mas de um modo que nem um nem outro consentiriam). Alguns aspectos do que Cone descreveu em Stravinsky ti- nham sido esbogados antes, mas ninguém ainda for- mulara os conceitos teéricos de maneira tao incisiva ou escrevera uma explicacao mais genuinamente elu- cidativa de qualquer pega de Stravinsky do que Cone, em sua andlise brilhante e expressiva das Sinfonias, com seu encarte desdobravel de 70 em. Na época de seu artigo sobre Stravinsky, Cone pa- rece ter sentido a necessidade de enunciar e desen- volver sua posicao numa série de ensaios que hoje sao classicos — “Analysis Today”, “Music: a View from Delft” e “Beyond Analysis”.* Em suma, Cone exige de qualquer espécie de musica alguma transformagao andloga, ou reconhecivel em termos de categorias como frase, cadéncia, “‘marcagio de tempo”, unidade, processo e teleologia. Todas e: 0 categorias que emergiram da nossa experiéncia com misica tonal. Cone descobriu tudo isso em Schoenberg, Stravinsky — tanto o Stravinsky da fase inicial quanto o da ul- tima—e é claro, em Sessions; ele est menos seguro a respeito de Webern; e tem certeza absoluta de nao encontrar nada disso na maior parte do que eu chamei de segunda fase do Modernismo, a misica de van- guarda da era pés-guerra. Num campo onde a obscuri- dade é freqiiente, a ofuscacao nao é desconhecida ea ostentagao é endémica, Cone é uma das raras vozes que sempre procura esclarecer e informar; mas existe, nao obstante, uma silenciosa pulsagao polémica sub- jacente ao seu discurso frio e elegante. Compositor e pianista, estava se aproximando da meia-idade quando comegou a escrever seriamente sobre musi 124 Musicologia € suspeita-se que nao 0 teria feito se nao tivesse opi- nides veementes acerca de Cage, por um lado, e Bab- bitt, por outro, para publicar, Poderiamos falar de uma ala tradicionalista ou, tal vez, “transformacionista” da -teoria modernista, na qual Cone ocupa lugar de honra. Sua obra formal mais importante é devida a George Perle. O titulo do se- gundo livro de Perle, Twelve-Tone Toyality, é signifi- cativo de sua orientagao tradicional; embora esse livro seja seu testamento pessoal acerca da teori de com- posigao — ou seja, de fato, uma leitura privada do Serialismo em que ele baseia sua pratica como compo- itor — e ainda que esteja em débito em relagao a Milton Babbitt, por sua teoria matematica radi al, Twelve-Tone Tonality é uma obra de teoria “prescri- tiva” para adaptar (e neutralizar) a terminologia intro- duzida por Cone em “Analysis Today”. O livro ante- rior de Perle, Serialism and Atonality, eu chamariade uma obra de teoria “descritiva”, tal como o ensaio de Cone sobre Stravinsky, na medida em que codifica Principios derivados da pratica de outros com posito- res, no caso Schoenberg, Berg e Webern. E 0 mais recente estudo de Perle, The Operas of Alban Berg,* é um trabalho de critica —nao sendo raro nos autores da ala transformacionista da teoria moderna um pendor. para.a critica. O volume 1 desse estudo, que se ocupa de Wozzeck, abrange nao s6 tarefas te6ricas correntes, como a ex- posigao da estrutura musical da 6pera como um todo e sua linguagem musical em detalhe, mas também ou- tras tarefas menos comuns: uma andlise dos antece- dentes das primeiras cangdes de Berg, por exemplo, bem como uma anilise dos aspectos da representacao e simbologia do complexo sistema de leitmotiv de Anilise, teoria e mtsica nova 125 Berg. Em outros escritos, Perle também se envolveu em tarefas tio pouco analiticas quanto a decodificagao das extraordinarias cifras musicais privadas desse compositor, em obras como a Sutte Lirica e 0 Con- certo para Violino.?* Uma preocupagao intensa coma teoria esta subentendida na critica de Perle, teoria que ele esta agora preparado para apre sentar, ndo por amor & teoria nem para seu proprio uso, mas com 0 intuito de explicar pegas de mtsica atuais em seu contexto historico. O estudo de Perle Wozzeck é um trabalho que os musicélogos deve admirar —a Ame- rican Musicological Society conferiu-The um premio —e também apreciar como um modelo geral para 0 trabalho que, mais cedo ou mais tarde, deverao reali- zarcom a musica do século XX. E evidente que um estudo como The Operas of Alban Berg sera muito mais lido que um Twelve-Tone Tonality —e arazio é mais profunda do que as respec- tivas densidades relativas de discurso matemitico. A critica volta-se parao exterior, para o publico do reper- tério musical, a teoria de composicao volta-se para dentro, para o reftigio privado da oficina do composi- tor. Ao contrario da teoria tonal, a teoria de composi- 40 é valorizada primordialmente pelo que possibilita ao tesrico fazer enquanto compositor de musica nova, € so secundariamente pelo que lhe diz, ou a qualquer outra pessoa, acerca da musica jA composta. Portanto, sua importincia é limitada para qualquer um, com excegéo do compositor-tedrico e de seu circulo de 22. George Perle, “The Secret Programme of the Lyric Suite”, Musical Times 118 layosto, setembro, outubro de 1977), pp. 629-32, 709-15, 809-13; Douglas Jarman, “Alban Berg, Wilhelm Fliess and the Secret Programme of the Violin Concerto”, ibid. 124 (abril dé 1893), pp. 218-25, 126 Musicologia colegas. Isso é tao verdadeiro quanto a teoria dodeca- fonica de Schoenberg — ou melhor, quanto ao que Perle e outros puderam formular em favor de Schoen- berg, com base na sua pratica —como quanto a propria “tonalidade dodecafénica” de Perle. E igualmente verdadeiro acerca da teoria modemista de Milton Babbitt e da Escola de Princeton. Assim, a discussdo que se segue é uma espécie de digressao, e o leitor até pode se perguntar por que razao, afinal de contas, irei ocupar-me da teoria de composigao. Nosso interesse aqui pela teoria ¢ pela andlise é o de apurar em que elas podem contribuir para 0 conhecimento, no para a criagio da misica. Uma razao para essa digressao, é claro, é uma pru- dente aposta de dois lados a respeito desses valores “primarios” e “secundarios”; é improvavel que algo que ajude a criagdo seja inteiramente initil na eluci- dagao. Uma outra razao, talvez nao tao boa, é que, nos Estados Unidos das décadas de 50 e 60, praticamente nada, em toda a esfera musico-intelectual, despertou tanto interesse e controvérsia quanto as idéias e as atividades de Babbitt. Babbitt, tal como Cone, também foi aluno de Ses- sions e colega de ambos em Princeton. Desde 0 co- mego opés-se 4 posi¢ao transformacionista deles diante de Schoenberg. Para ele, tonalidade e seria- lismo sao sistemas musicais radicalmente diferentes, s analogias entre ambos falaciosas. Ele trocou algumas palavras dsperas a respeito com Andlise, teoria e mtisica nova 127 seu velho amigo e serialista convicto, George Perle.?3 Uma questao tipicamente delicada (recorde-se 0 ti- tulo Twelve-Tone Tonality) gira em torno da organi- zagao estrutural por meio de areas harménicas — os Stufen de Schenker — que esta no Amago de todas as teorias da forma em misica tonal. Por exemplo, na Grande Sinfonia em D6 Maior, de Schubert, o tema principal do finale —que por sinal é composto a partir das sete notas da escala de dé maior, e nao de outras — retoma na recapitulagao em mi bemol maior, Essa transposigao incomum contribui nao s6 para 0 efeito expressivo impar da mtisica, mas também para sua incomparavel coeréncia estrutural. Nao poderia algo andlogo transpirar, pelo menos em termos de estru- tura, numa obra dodecafénica que principia com uma série cuja primeira nota é dé e que usa em sua recapi- tulagao (ou em algum ponto comparavel 4 recapitula- sao) a mesma série transposta, de modo que sua pri- meira nota seja agora um mi bemol? Nao, disse Babbitt varias vezes. Pois o que é essen- cial na transposigao de Schubert do tema de dé para mi bemol é 0 fato de que trés novos tons (si bemol, mi bemol e 14 natural) entram em jogo de maneira fun- cional, ao passo que trés dos sete originais (si, mie 1a naturais) séo postos de lado. No hipotético exemplo dodecafonico, por outro lado, como todas as 12 notas da escala cromitica ja existem na série original, ne- nhum novo “som” pode seradicionado a transposicao. “A analogia entre a transposicao de uma série [dode~ cafénica] e as de uma escala maior (ou menor) é insus- 23. George Perle, “Babbitt, Lewin and Schoenberg: a Critique”, Pers- pectives of New Music 2 (outono-inverno de 1963), pp. 120-7; Milton Babbitt, “Mr. Babbitt Answers” ibid. pp. 127-39,

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