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6167 A MULHER NO MAGISTERIO BRASILEIRO: UM HISTORICO SOBRE A FEMINIZACAO DO MAGISTERIO Amanda Oliveira Rabelo Anténio Maria Martins Universidade de Aveiro RESUMO Este artigo tem como objetivo principal realizar um histérico de como © magistério se tormou um “gueto” profissional feminino. Vale a pena lembrar que 0 mesmo foi inicialmente uma profissdo, mascuina, onde somente os homens estudavam ¢ ensinavam, Portanto, estudaremos como a mulher passou a se dediear a esta rea e como esta passou a ser vista como uina profisio feminina por excelénca, inclusive associando-a & necessdade de qualidades “femininas” como, por exemplo, a maleridadee sensibilidade. Analisarems também como esa ea passou a se desvalorizar a pati da insergio feminina e como as separagies e discriminagdes efetundas com base nas relagdes de género se amaigaram na insituigo escolar (baseadas ms condigbessociais que a miler tnha na sociedad) Quindo a muther entra no mercado de trabalho, a nogdo de que ela deve ser controlada est implicita nas alividades que ela exerce e que sempre exercou na sociedade (as tarefas domésticas © sun Submissio ao homem), assim, mudar as relgfes excludentes de genero nfo dependia somente da 0 da mulher como docente, E importante destacar que € através do magistério (hoje considerado um trabalho feminino, por exceléneia) que « mulher brasileira pode abrir camino ao exerecio profissional, pois esta passou a ser uma das primeiras atividades profissionas dignas 2 mulher e que possbiitavam conciliar com as aividades domésticas. Maso controle e a administaga fava sob geréncia masculina, Por mais que a educagao tena passedo por algumss desvalorizando o papel da mulher docente ano apés ano. E 0 homem continuou se distanciando das salas de aulas infantis. Percebe-se como a escolha profissional acaba sendo influenciada pelas representagdes existentes na sociedad, que t8m suas bases na histéria da feminizagaio do magistéro, que divulga que as profissdes consideradas movidas pela “emogao” seriam proprias das mulheres e as ligadas & “inteligéncia” seriam patriménio exclusive dos homens. Por fim, percebe-se como as mulheres acabam sendo influenciadas por receber essas representagdes € azem de acordo com elas. Os meandros da escolha profissional docente, as influéncias que as mesmas sofreram, a visd0 dos atriburos que a muther teria para 0 magistério, sio questdes que devem ser pesquisadas para que haja luma tentativa de escolha profissional por uma “paixZo”, mas que esteja atrelada & luta por uma educagao melhor € nio & simples accitagao de uma condigao imposta socialmente. A mulher no deve deixar de ter amor pela profissao. porém um amor que nio seja “cego”, quer dizer, que no a impeca de ver as imposigies sociais para que ela se submeta, que nio lute. Investir na educacio é Iutar pelo possivel, pela mudanga, dessa educago que cada vez mais quer cada um no seu “devido lugar”, estagnado ¢ obediente, Fi necessario que a subjetivagio que a sociedade exerce sobre a mulher nao seja maior do que seus impulsos pessoais ¢ a vontade de lutar por ideais. Afinal, no hé coisa methor do que fazer do seu oficio um prazer e um modo de batalhar pelo que se deseja, " Doutoranda da Universidade de Aveiro ~ Projecto de Investigacdo Financiado pela Fundagio para a Ci ‘Tecnologia ~ FCT - Portugal 6168 ‘TRABALHO COMPLETO A escola, como um espago social que foi se tomando, historicamente, nas sociedades urbanas ocidentais, um focus privilegiado para a formagio de meninos © meninas, homens ¢ mulheres é, cla prépria, um espago gencrificade, isto é, um espago atravessado pelas representagées de género. Em nosso pais, como em virios outros, esse espago foi, & principio, ‘marcadamente masculino (LOURO, 1997, p. 77 Este artigo visa fazer um breve histérico bibliografico do papel da mulher na educagao, esclarecendo que a feminizago no magistério nfo se resume ao aspecto quantitativo das mulheres que ‘umentou nos Ambitos educacionais, mas também & concepgio da profissio docente na sociedade que est sempre associada ds caracteristicas femininas e, por isso, esté sendo cada vez mais desvalorizada. Por isto toma-se importante refletir sobre desde quando a feminizagio do magistério tem acontecido, além entender hoje 0s fatos que Ievam a essa condigio e quais suas conseqUéncias. Ressaltamos, de acordo com a epigrafe inicial, que a educaedo, durante longo tempo, eta fungao estritamente mascalina: os alunos eram do sexo masculine e 0 ensino era exercido principalmente por religiosos (por padres, como os jesuftas) © por homens que estudavam e eram Contratados como tutores pelas pessoas com melhores condigdes financeiras Mas, aps a Revolugio Francesa, com a ascensio da burguesia, a mulher & chamada a assumir 0 seu “papel social” na educagao dos filhos (FREITAS, 2000). Poréim, iio & a sua entrada no magistério que permitiu que as separagdes e discriminagdes efetuadas com base mas relagoes de gener nao estivessem presentes na escola, Elas jd estavam arraigadas na instituigao escolar e mudar as relagdes excludentes de género nao dependia somente da aceitagao da mulher Como docente. Como conseqiiéncia da abertura do magistério &s mulheres, desqualifica-se e desvaloriza- se a mulher através do discurso da falsa igualdade dos géneros, limitando suas qualidades profissionais, invocando um papel feminino, um suposto “dom” de um comportamento emocional ¢ moral. Esse dom era considerado inadequado para outras fungdes do dimbito publico. A mulher, assim, fica restrita a esfera privada, pelo simples fato de ter nascido mulher e poder gerar a vida (ARCE, 2001). io a um “dom” ou a uma “wocagdo” feminina baseia-se em explicagdes que relacionam © fato de a mulher gerar em seu ventre um bebé com a “conseqlente fungo materma” de cuidar de criangas; funglo esta que seria ligada & feminilidade, 2 tarefa de educar e socializar os individuos durante a infincia. Dessa forma, a mulher deveria seguir seu “dom” ou “voeagio” para a docéncia. No Brasil, essa catacterizagao da mulher como educadora dos filhos nao se dew de forma imediata, Na colonizagao, 03 portugueses vieram para o Brasil trazendo seus modelos de comportamento e dominagao, Esse dominio era patriarcal, tipico na cultura ocidental judaico-crista, € foi aperfeigoado durante anos. pelo sistema capitalista em ascensdo. A sociedade patriarcal determinava que as mulheres fossem subjugadas pelos homens: pelo pai, pelo marido e pelas regras claboradas por estes (FREITAS, 2000), © paternalism fazia com que a mulher restringisse sta atuagdo a esfera privada de sua casa, © sta agao publica se limitava a participar das atividades da igreja, O impacto dessa resttiga0 Jevou a mulher a se recolher ao ambito doméstico, & condigao de mera reprodutora, tornando-se apenas um objeto de dominio masculino. ‘A mulher nik los aritméticos bist precisava ter boa formagio, bastava-the aprender as primeiras letras € os os para assegurar as tarefas do far, Numa visd0 muito peculiar a mulher era cil Ver CATANI, 1997 e FREITAS, 2000. 6169 apresentada como fentagdo permanente que deveria ser “domada” para tornar-se uma boa mie € para que nao desviasse 0 homem do caminho correto (FREITAS, 2000). Esse pensamento era baseado na explicagao biblica da primeira mulher, Eva, ter incentivado o primeiro homem, Adio, ao pecado e, por isso, os dois teriam sido expulsos do paraiso, Mello e Leite (2000, p. 38-39) nos mostram como houve uma tentativa de controlar essa mulher “pecadora Assim, alicergada os postulados cientificos aristotélicos de “incompletude a Igreja Catélica estabeleceu_um “modelo de cristandade permanente, no qual consolidow uma postura valorativa da mae, cou sefa, da mulher enquanto elemento procriador em constante analogia com Maria que aceitou “docilmente” sua miss, Em um polo oposto estaria Eva, inferioridade intrinseca — era “a pecadora” — cuja sedugéio maligna desviou o homem do caminho correto e extirpou do paraiso o destino de toda a humanidade A concepgao de que a mulher & motivo de “tentagio” estava presente na meméria das mulheres de outrora, Meméria que tena se recriar nos objetos, nos vestigios, nas lembrancas que essa mulheres guardavam para rememoragio de prazeres e bem querencas que ficaram em algum lugar do passado (CATANI, 1997, p. 43). Elas realizavam varias tentativas de registrar, e de divulgar em. didrios, agendas ete, essa meméria, no decorrer de suas vidas, Aqui & possivel inguirir: mas os homens nao tentam também registrar suas lembrancas? ‘Sim, mas no decorrer da histéria os registros masculinos cram feitos muito mais para marcar as datas de guerras, acontecimentos, descobertas, do que para falar de scus prazeres ¢ angtstias. Isso pode ter acontecido porque a meméria esté atrelada ds vivéncias de cada individuo ¢ os homens, no passado, estavam muito mais direcionados para seus trabalfios do que para uma auto-anélise ou reflexio de sua vida sentimental. De acordo com Catani (1997, p. 44) a mulher apresenta uma memoria diferente da dos o se da nio por ela pertencer a um dos géneros: nao & 0 fator bioligico que especifica 0 tipo de meméria, mas as experiéncias e trajet6rias de vida de cada sexo. Ou seja, 0 fato de a mulher ser subjugada ao ambito doméstico acaba fazendo com ela tenha mais tempo para refletir sobre suas vivéncias e, assim, possa tentar registrar, com detalhes, seus momentos de prazer, ativando sua meméria, Linhares (1997, p. 125-126) assinala que a meméria é um “tesouro” disputado hii tempos pelo poder e, por isso, a mulher muitas vezes era penalizacla e controlada, pois se considerava que ela tinha uma intensa capacidade de lembrar, devido a influéncias “demontacas” A memria sempre constitu um tesouro, [..| pela sua importincia foi disputada e controlada politicamente, tanto em sua forma oral como sob a forma eserita, monumental e ritual, [..] Nao € por outa razo que vamos encontrar ainda na Idade Média tentativas de controle da meméria e de suas expressdes. Encontramos, por exemplo, medidas administrativas de algumas ‘municipalidades, que vincularam a si os jograis e jouralesas, para controlar & Ccomunicagdo e a difusio de seus relatos. Quantos deles foram punidos — até com a morte — pelo exercicio de uma meméria convincente que cra percebida como mais ameacadora, pelas possiveis conexdes com o prazer sexual [..] A velha suspeita jé, registrada na Grécia, no didlogo a que é exposto Tirésias quando indagado sobre a ordem superior de prazer que as mulheres poderiam ter. Parece voltar ao medievo a suspeita de que a ‘memria potente das mulheres se explicaria por pactos sectetos com o deménio que s6 a fogueira poderia aplacar... A fogueira era 0 castigo aplicado as mulheres (principalmente) porgue teriam uma ‘meméria potente, ¢ convincente, ligada muilas vezes com o prazer que era considerado perigoso. O| 6170 prazer, que era associado com a memétia das mulheres, deveria ser controlado, Neste sentido, Foucault nos mostra que, desde a antiguidade, vérias praticas foram desenvolvidas em torno do ato sexual “No final das contas, vimos que 0 ato sexual parece ter sido considerado desde hé muito tempo como perigoso, dificil de ser dominado ¢ custoso; a medida exata de sua prética possivel e sua insergfio num regime atento foram exigidas desde hi muito tempo" (2001, p. 233) ‘A meméria era perigosa e mais ainda se viesse da mulher que era submissa a0 homem. A rmeméria era perseguida, pois pressentia-se nela um perigo, nela se manifestava a liberdade de Pensamento tao temida pela igrejae pelo poder ‘A Inuisigéo farejava os pontos nodais da liberdade do pensamento ©, certamente, ainda que isto ndo fosse assim formulado, j@ a memvria era pressemtida como ess argamassa organizativa que vai configurando experiéneias € aprendizagens, absorvendo ¢ se apropriando do patrimdnio cultural, construido coletivamente ¢ sempre em negociaglo com as memérias individuais. Meméria que se fortalece A medida que é compattilhada, narrada (LINHARES, 1997, p. 126) [Nao se poxieria deixar que a memiria fosse compartilhada, pois assim ela seria construida coletivamente e teria ainda mais forga contra as instituigées estabelecidas. Entao, deveria ser extirpada, antes de se difundir. A memiria seria perigosa e, dessa forma, quem a tivesse possuiria um grande trunfo em suas “mos”, pois a meméria € um instrumento de poder. Assim, deixar que a mulher recriasse sua meméria *solta", ou mesmo trabalhando, era rado um perigo para sua integridade e para a integridade de sua familia, e do homem que sobre ela detinha o poder, pois a traigo era temida. B, portanto, a mulher era subjugada & superioridade ativa do homem, que devia controlé-ta, afastando essa tentagao, Desde a Antigilidade, a mulher deveria ser controlada e submetida & moral dos homens Para essa moral, ela era posse de um homem, tornando-se apenas um objeto no dominio masculino, conforme nos diz Foucault: “Trata-se de uma moral dos homens [..1. Conseqiientemente, moral vril onde as mulheres s6 aparecem a titulo de objetos ow no maximo como parceiras as quais convém formar, educar e vigiar. quando as tém sob seu poder [...” (2001, p. 24). F essa moral gue perpassa a Antigtiidade e que molda a moral Moderna, tendo importantes influéncias na meméria social Mesmo quando a mulher entra no mercado de trabalho, essa nogo de controle esti implicita nas atividades que ela exerce. Podemos perceber isso na afirmagio de Bruschini c Amado (1988, p. 6): “De uma forma velada, o controle da sexualidade feminina justificaria, dat por diante, que mulheres trabalhassem com criangas, num ambiente nao exposto aos perigos do mundo e protegido do contato com estranhos — especialmente 0s do sexo oposto.” Assim, 6 através do magistério, considerado um trabalho feminino, por exceléncia, que a ‘mulher brasileira pode abrir caminho ao exercicio profissional Alé a independéncia do Brisil nio existia educagio popular, mas depois dela o ensino, pelo menos nos termos da lei, se tomou gratuito e piblico, inclusive para mulheres. Isso aconteceu partir da primeira lei do ensino (datada de 1827) que deu direito a mulher de se instruir (porém com, contetidos diferenciados dos ministrados aos homens) e que admitiu o ingresso de meninas na escola, priméria (BRUSCHINI e AMADO, 1988), A partir dai a formagao de professoras do sexo feminino se fez necesséria, pois os tutores deveriam ser do mesmo sexo que seus altinos. © primeiro curso de ensino normal das Américas surgiu, entio, na cidade de Niterdi (RN), em 1835, ¢ tinha no seu estatuto alguns pré-requisitos para quem quisesse cursi-lo: a “boa morigeraglo [idoneidade moral] ¢ ter idade superior a 18 anos” (MARTINS, 1996, p. 70) Nessa época, 0 curriculo do estudo feminino era diferenciado do masculino: as mocas se dedicavam a costura, ao bordado e & cozinka, enguanto os homens estudavam geometria, As mulheres professoras cram isentas de ensinar geometria, mas essa matéria era eritério para estabelecer niveis de saldrio, portanto, reforgava-se com isso a diferenga salar Assim, as mulheres tinham diteito 6171 instrugdo, mas essa instrugdo acentuava também a discriminagdo sexual (FREITAS, 2000), Contudo, apesar do estudo passar a ser um direito garantido por lei, a maioria das mulheres nao tinha acesso a instrugdo, com excegao daquelas que pertenciam as elites e as classes ascendentes, pois a segrezaca0, dda mulher continuava presente na sociedade. Além de tudo, as mulheres eram requisitadas condigbes diferenciadas que atestassem ainda mais a sta ética e seus bons costumes, como: certidao de casamento, se casada; certidio de Gbito do cOnjuee, se viiva; sentenga de separagao, para se avaliar 0 motivo que gerau a separagao, no caso dda mulher separada; vestuario “decente”. A mulher s6 poderia exercer 0 magistétio publico com 25 anos, salvo se ensinasse na casa dos pais e estes forem de reconhecida moralidade, Ou seja, todos poderiam realizar o curso de formagio a partir dos 18 anos, mas havia uma diferenciagao na hora de entrar no mercado de trabalho, Essa valorizagao da moral tinha como objetivo tornar o ensino das mulheres voltado nao entendida como formagao intelectual, mas como uma tentativa adicional de disciplinar sua conduta. Isso fica claro na anise de Catani (1997, p. 28): [Lol a enfase do ensino feminino [era] nas boas maneiras, nas téenicas, na aceitagio da vigilincia, na sparéncia, na formagio “moralista, Coisa adequada quando 0 ensino fundamental se destinava as classes populares, pois o que estava em jogo nao era difundir as perigosas luzes do saber, mas disciplinar as condutas refrear a curiosidade. A profissionalizagao feminina foi incentivada pelo processo de industrializaga0, pela abotigao do trabalho escravo (em 1888) e pelo surgimento de uma nova forma de mao-de-obra: os assalariados. O progresso se evidenciava nas cidades, nas classes dominantes e médias, ¢ também nos centros urbanos que comegavam a se industializar: as repercussdes sociais do capitalism atingiam o Brasil nos itimos decénios do século XIX A educagio aliava-se a0 desejo de _modemizagao das classes. dominantes, pela necessidade que a produgao tinha de contar com trabalhadores especializados, Deste modo, cresceram as presses exigindo educagao, e, com elas, primeiramente comegow a expandirse 0 néimero de professores masculinos, simultaneamente acentuou-se a aclmissio de mulheres na Escola Normal, que rao inico Ingar em que elas podiam prosseguir os estudos de uma forma aprovada pela sociedade Porém, houve também um objetivo polit ico na ampliagio da partcipagao feminina no magistério: as mulheres ganhavam menos e, para que se pudesse expandir © ensino para todos, era necessério que © governo gastasse menos com os professores, OS homens mio aceitariam um salrio ‘menor, enti era necessério que a mulher assumisse esse posto, ndo pelo saliio, mas por sua suposta “vocagio” natural para essa profissio. Catani (1997, p. 28-20) mostra como esse pensamento era justificade: Para que a escolarizagio se democratizasse cra preciso que 0 professor custasse pouco: o homem, que procura ter reconhecido 0 investimento na formagio, tem conscigneia de seu prego e se vé com direito & autonomia — procura espagos ainda nio desvalorizados pelo feminino. Por outro lado, no se podia exortar as professoras a serem ignorantes, mas se podia dizer que o saber no era tudo mem o principal. Exaltar qualidades como abnegacio, dedicacto, altruismo ¢ espitito de sacrificio e pagar pouco: nio foi por coincidéncia que este discurso foi dirigido as mulheres. Com a Repiiblica (em 1889), essas presses impulsionaram ainda mais a necessidade de ampliagdo das oportunidades educacionais. Os lideres republicanos consideravam o magistério uma profissdo feminina por exceléncia, pois estavam influenciados pelas teorias positivistas © burguesas, que julgavam que a mulher estava “nnaturalmente” dotada da capacidade para cuidar das criangas. Esse pensamento estava aliado a necessidade de formagio de professores, tendo em vista que os homens tentavam buscar vantagens financeiras em outras areas, Dessa forma, as mulheres, 6172 sobretudo a partir da segunda década do século XX, comegaram a abragar 0 magistéto, principalmente as que provinham de uma sitaagao financeira precéria (como as érfas que tinham que trabalhar) ¢ as de classe média, Almeida (1996, p. 74) esclarece como isso aconteceu em Sao Paulo, ‘mostrando também as justficativas dessa insergio da mulher no magistétio: Quando inaugurov-se em Sao Paulo a seedo feminina da Escola Normal, segundo alguns historiadores, esta foi primeiramente destinada as jovens de ppoucos recursos ¢ ais Girls sem dote, as quais era interdito os sonhos de um bom casamento, dado que este apoiava-se necessariamente em bases econdmicas. Sendo dificil casar-se, precisavam essas mocas, para nao ser lum peso para a sociedade, conseguir um meio de subsisténcia proporcionado por una profissao digna, de acordo com o ideal femintino & que no atentasse contra os costumes herdados dos portugueses. de aprisionar a mulher no tar € $6 valorizé-la como esposa e mae. Portanto, ser professora representava um prolongamento das. fungdes domésticas instruir € educar criangas, sob 0 mascaramento da missio © da vocaya0 inerentes as mulheres, significava uma maneira aceitivel de Sobrevivencia, na qual a conotagio negativa com o trabalho remunerado feminino esvaia-se perante a nobreza do magi No entanto, mesmo no inicio do séeulo XX, permanecia a distingdo na formagao de homens © mulheres, A’ mulher ainda nao era educada para um desempenho profissional, $6 era preparada para as atividades domésticas. Porém, aos poucos foi acontecendo a transigao da educaga0, doméstica para uma formago profissional, pois surgiu a necessidade de incorporar a mulher a0 projeto educacional da nag’ © magistério era 0 caminho possivel para a maioria das mulheres. brasileira principalmente para aquelas das camadas médias da poptlagao, pois, até os anos de 1930, era o Gnico trabalho considerado digno para elas, ¢ que podia ser atrelado as tarefas domeésticas. A sua instrugao deveria ser “aproveitada” pelo marido e pelos flhos, portanto, teria que estar atrelada as atividades do lar, conforme assinala Almeida (1996, p. 73) dizendo que a mulher deveria ser instruida: [1 de forma que o lar ¢ 0 bem-estar do marido ¢ dos filhos fossem beneficiados por essa instruclo.[..] Assim as mulheres poderiam ¢ deveriam ser educadas ¢ instrufdas, era importante que exercessem uma profissi0 —o magistério — © colaborassem na formagio de diretrizes bisicas da escolarizagdo manter-se-iam sob a lideranga masculina Todavia, a condugio da educagio nio era exercida pelas mulheres’, clas apenas lecionavam, A estruturag3o da mesma, os cargos administrativos ¢ de lideranga, cram geridos pelos homens. Desa forma, havia um grande controle sobre a atuagio das professoras, inclusive sobre sua. sexualidade, A escola continuava relegando a mulher a um plano secundério, perpetuando a submissa0 existente na sociedade patriarcal Os homens que se dedicavam & cducagio, no decorrer do século XX, apresentavam facilidades de promog3o na carreira do magistério € no sistema educacional cm geral. Jé as mulheres tinkam uma ascensio profissional muito dificil, 0 que as fazia continuar na carreira de professora, primaria por longo tempo. Isso acontecia também porque quem cursava o normal até a década de 1940 nilo podia ter acesso aos cursos superiores. Dessa forma, as mulheres (que jd eram maioria nessa drea) dos institutos normais no podiam aumentar seu estudo e, assim, tinham que continuar no magistério primario. Apés essa década abriu-se caminho para cursar alguns cursos de Filosofia, e, a partir de 1953, passou a se estender a ascensiio aos demais cursos superiores, * Até os dias atuais hi muitos homens nos setores administrativos da educ altos como, por exemplo, os ministros de edueagio, _ principalmente nos eargos mais 6173 ‘Mas, como jé estava consolidada a tendéncia de as mulheres se dedicarem & docéncia, houve um prolongamento dessa tradi¢ao a0 magistério secundsrio, As mulheres acabavam por optar por cursos de licenciatura nao apenas menos rigorosos na sua admisso mas também mais baratos, 0 que as levava a procurar as faculdades particulares, cujo custo reduzido de instalagao Ihes permitia se expandir de forma maior do que os outros cursos superiores (BRUSCHINI ¢ AMADO, 1988). ©s homens tinham priviléeios na érea educacional, pois eram considerados como melhores “Iideres” e freqiientemente ascendiam a outros cargos (como ditecao, inspegao, fungdes téenicas e administrativas, professores da Escola Normal), abandonando o “espago feminino” da sala de aula (DEMARTINIe ANTUNES, 1993) Os sistemas de gerenciamento © os procedimentos controladores (como programa curricular € outros) iam se aperfeicoando, ¢ as professoras absorviam @ ideologia do profissionalismo, que as tornava cada vez menos responsiveis por métodos ¢ téenicas, limitando-se a serem simples aplicadoras do que thes era imposto através de livis didticos, programas etc A concepgio tradicionalista de educagio vigente na escola almejava tanto instaurar um processo pedagégico modernizador quanto criar mentes déceis, disciplinadas para possibilitar a aceitagio da ideologia capitalisia. Os professores, em suas priticas, veiculavam esses. valores, distanciando a educagio da realidad dos alunos. Demartini ¢ Antunes (1993) lembram que as circunstincias que determinaram proc: de feminizagio do magistério foram marcatas por atitudes preconceituosas como diferengas salariai curriculares © 0 conceito de “vocagio”, induzindo as mulheres & escolha de profissées. menos valorizadas socialmente frente as profissdes masculinas, Esse processo que comegou na colonizacao, com a desvalorizagio ¢ subjugacio feminina, continuou na Independéncia, frisando a diferenciagio da educag3o por género, € se perpetuou na Repaitica com a insergao das mulheres nas salas de auilas infantis sob o comando dos homens, € permancccu dessa forma durante 0 restante do século XX. Apés a entrada maciga da mulher no magistério, o homem foi, até mesmo, impedido de ingressar nos cursos normais. Confirma-se esse fato com o decreto 7941, promulgado em 1943 no Distrito Federal (que na época era a cidade do Rio de Janeiro), que criou uma nova organizagio para © Curso Normal, proibindo 0 ingresso de pessoas do sexo masculino no Curso Normal do Instituto de Eiducagio do Rio de Janeiro (MARTINS, 1996), Com isso, a desvalorizacaio da profissio foi sumentando, junto com a justficativa de que «a mulher deveria ter 0 “dom” para o magistério e, assim, seu salério (que jé era pequeno) poderia ser ‘menor, até porque esse dinheiro ndo seria para sustentar a familia, pois caberia ao homem essa fungao, Entretanto, por mais que a eduicagao tenha passado por algumas mudangas na pratica escolar, a feminizagao do magistério continua se perpetuando mais e mais, desvalorizando 0 papel da mulher docente ano aps ano. E 0 homem continuot se distanciando das salas de aulas infantis € joptando por trabalhar em outras dea mais rentaveis, como as disciplinas expecificas (Matemétic: Historia, Geografia, Biologia etc.) ou os cargos de comando na educagio. Além disso, 0 paternalismo ainda condiciona essa profissio. Podemos perceber isso no comentério de Costa (1999), quando assinala que o professor € visto, na eitura dos artigos da revist nal “Nova Bscola”, Como o cientista, detentor do saber, e a professora como a carinhosa, la aos seus alunos eas aividades escolares, Assim, essa revista e outros textos que circilam na nossa sociedad acabam por promover, a representagio de que a mulher estaria sempre associada 8 afetividade, com um déficit no racioeinio. 4440 homem teria o dominio do saber técnico-ciemilic, saber este tao Valorizado em nossa soviedade ‘As profiss0es também seriam escolhidas de acordo com essa diferenciagao: as profiss0es consideradas movidas pela emogio seriam proprias das mulheres e as ligadas a inteligneia seriam patrimOnio exclusivo dos homens. * Concepgao vigente de forma exclusiva até meados do século XX. 6174 ‘As mulheres acabam sendo influenciadas por receber essas representagies © agem de acordo com elas. Os meandros da escolha profissional docente, as influéncias que as mesmas sofreram, a visio dos atributos que a mulher teria para 0 magistério e da diferenciago com 0 homem que escolheria a profissdo mais tarde (na faculdade), so quesides que devem ser pesquisadas nas falas das professoras para que haja uma tentativa de escolha profissional por uma “paixio”, mas que esteja atrelada & luta por uma educacio melhor ¢ nio a simples aceitagio de uma condigo imposta socialmente, Vale ressaltar aqui que ndo questionamos a opeao profissional por “gosto”, porém isso difere de achar que ha uma vocagao para essa profissao ou um dom inato. F preciso ter a conscigncia de que nio sio os fatores biol6gicos, muito menos, exclusivamente pessoais, que levam uma pessoa a fazer escothas na sua vida, principalmente a opgdo profissional A meméria coletiva interfere nas preferéncias individuais, A familia pode influenciar na escolha de uma profissao, uma pessoa que sitva de modelo pode servir de incentive para a opga0 profissional, Porém, destaca-se ¢ questiona-se aqui o fato das alternativas que se apresentam para. as ‘mulheres serem poucas, conforme Yannoulas (2001, p. 75) aponta E necessétio destacat a legitimidade da escolha das mulheres que, conscientemente, preferem ser donas de casa ou profissionais em dreas femininas por tradigio, no caso em que a escolha é verdadeira, Dito de outra forma, quando se baseia no conhecimento de toxda a gama de oportunidades € possibilidades de desenvolvimento pessoal inerentes a uma profissio ou ccupagio, O que se discute & a restrigdo das _possibilidades oferecidas/percebidas pelas mulheres © nao as escolhas baseadas. na liberdade pessoal (grfos da autora) A autora afirma que nio o estimulo as mulheres para ingressarem em ocupagdes tradicionalmente masculinas e de homens em profissies tradicionalmente femininas que levario a condigdes de igualdade no mercado de trabalho, Pois, esse estimulo nao consideraria “as necessidades, saberes ¢ habilidades de cada pessoa, ou os obstéculos culturais que deverio enfrentar, individwalmente[..1” (2001, p. $2), Almeida também considera que a profissio, apesar de ter sido desvalorizada com a entrada das mulheres no magistério, continua a ser escolhida por mulheres que, apesar de tudo, gostam da profissio, tém amor por ela. E nao é esse fato que interfere nos preconceitos sobre o magistério, pois gostar da profissdo nao impede de lutar para melhorar as condighes de exercé-ta [...] se por um lado educar e ensinar é uma profissao, por outro lado, néo ha melhor meio de ensino e aprendizagem do que aquele que é exercido de um ser humano para outro, isso também é um ato de amor. E indo mais além, gostar desse trabalho, areditar na educagio e nela investi como individuo também se configura como um ato de painao, a paixio pelo possivel [..] Talvez tesida a a extrema ambiatiidade do ato de ensinar e da presenga das mulheres no magistério (1998, p. 76). ‘A “extrema ambigiidade do ato de ensinar” esté presente na continuidade da mulher no magistério € no seu gosto pela profissio, a mulher nfo deve deixar de ter amor pela profissio, porém uum amor que nao seja “cexo", quer dizer. que nfo a impega de ver as imposig0es sociis para que ela se sulbmeta, que nfo lute. Investir na educagao & lutar pelo possivel pela mudanga dessa educagdo que cada vez mais quer cada um no seu “devido lugar”, estagnado e obediente, E necessério que a subjetivagio que a sociedade exerce sobre a mulher nao seja maior do aque seus impulsos pessoais ea vontade de Iutar por ideais. Afinal, ndo ha coisa melhor do que fazer do seu offcio um prazer e um modo de hatalhar pelo que se deseja.. E bom destacar que a meméria coletiva nio nos lembra que a docénca foi profissio masculina, e isso faz com que se ache natural a feminizagao do magistério. Assim, a meméria forma. 6175 tuma escolha inerente nas mulheres pelo magistério, A meméria coletiva deve ser vista nao s6 pelo vinculo com o poder, com seus processos de subjetivagdo que tentam constituir 0 individuo para controlé-lo, ¢ pela manutengéo da tradigo que quer conservar cada um “no seu local”, Se a memiria leva a esquecer as opgdes que nfo foram efetuadas © a demarcar as eleitas, é preciso que as alternativas searegadas da mem@ria sejam lembradas ou que as escolhidas sejam objeto de uma maior reflexio, baseada na luta pela formapdo de uma meméria nfo subjetivada ou singularizada. Refergneias Bibliogrificas ALMEIDA, J. S, de. Mulheres na escola: Alzumas reflexdes sobre 0 mapistrio fem dle Pesquisa, $a0 Paulo, n.96,p. 71-78, fev., 1996, Muther ¢ educagao: a paixao pelo possivel. So Paulo: UNESP, 1998, ARCE, A. A imagem da mulher nas idéias educacionais de Pestalozzi: 0 aprisionamento 30 ambito privado (doméstico) e 4 matemnidade angelical. 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