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(.) todos temas vivido a enorme satisfagio de poder estar construindo, num esforgo co- mum, uma nova proposta pedagogica na Se cretaria Municipal de Educagdo. No impor ta que, por nosso compromisso, tenhamos, de yeu em quando, experimentado agonias e 50 feimentos. ‘As pessoas gostam ¢ tém direito de gostar de coisas diferentes. Gosto de escrever e de ler Esorever e lar fazem parte, como momen tos importantes, da minha luta, Coloquei es: te gosto a servigo de um certo desenho de so- ciedade, para cwa realizagao venho, com um ‘sem mimero de companhetros e companhet- ras, participando na medida de minhas pos: sibilidades. 0 fundamental neste gosto de que falo & saber a favor de que @ de quem ele se feu gosto de ler e de ascraver se dirige a uma fcerta utopia que envolve uma certa causa, um certo tipo de gente nossa. & um gosto que tem que ver com a criagdo de uma sociedade menos perversa, menos disoriminatoria, me nos racista, menos machista que esta. Uma sooiedade mais aberta, que sirva aos interes es das sempre desprotegidas e minimizadas classes Populares e no apenas aos interes: se8 dos ricos, dos afortunados, dos chamados "pem-nascidos' Sou leal ao sonho. Minha ago tem sido coe vente com ele. Exigente com a ética, consi- ero que ela tem a ver com a coeréncia com que se vive no mundo, coeréncla entre 0 que 8 diz a 0 que se faz. Por iss0, no temo a cri tica ao trabalho que se realizou na secreta- ria nestes dois anos e meio em que aqui esti ‘ve como secretario, Considero que a critica, quando feita de manetra ética © competente, faz que as nossas agdes se aprofundem ou se reorientem. Aprendemos com elas. hav 0 788524490424 ata a: gee CAST Fw uonleze idade na C @ > CORTEZ AM AULO FREIRE fez 70 anos ‘dia 19 de setembro de 1991. Se me perguntassem quem Paulo Freire, a primeira co 5a que eu diria 6 que ele @ um homem feliz, que fala com as mAos. Ele fala com fa convicgdo de quem geredita na edu- cago e sempre viveu como militante ‘dessa sua crenga. Naocou om Recife, Pernambnen, esse rasileire que, desde cedo, conheceu a pobreza do Nordeste do Brasil, uma ‘amostra dessa extrema pobreza na qual ‘estd submensa a América Latina. Hoje ele @ um eidadéo do mundo. ‘Desde a adolescencia Paulo Freire en- ‘gajouse na formagao de Jovens ¢ adul- tos trabalhadores. Formou-se em Direl- to, mas no exerceu a profisséo, prefe- indo dedicar-se a projetos de slfabeti- zago de adultos. A partir dessa sua prtica, oriou 0 método que o tornou co- nhecido no mundo todo, fundado no principio de que o provesso educacional deve partir da realidade que cerca 0 educando; “Nao basta saber ler que “Bva viu a uva’, diz ele. B preciso com: preender qual a posigio que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem luera com ‘esse trabalho”” Foi esse “método” que 6 mais uma teo- ria do conhecimento, que o levou para © exilio em 1964 apés ter passado 75 dias na prisio, acusado de “subversivo fe ignorante", Passou pouco tempo na, Bolivia, 4 anos no Chile ¢ um ano nos Rstados Unidos, Bm 1970 foi para G A Educacd na Cidade Dados internacionais de Catslogacso ne Publicado (CP) (Cémara Brasilia do Livro, SP, Basi). rie Pan 2d a ty "Avedueagfo na cidade / Paulo Frege; reftcio de Mosc Gadot © Carlos Alberto formes nota de Vicente Chel. — Sto Pas Cortez, 1991. Bibliogaia, ISBN'E5-249-0424-0 1. Educasso ~ Brasil ~ So Paulo (SP) 1. Titulo. 91-2806 cop-370.981611 {indices para catélogo sistemético: 1. Sto Paulo : Cidade: Educaso 370,981611 PAULO FREIRE A Kdueacao na Cidade Preficio de Moacir Gadotti e Carlos Alberto Torres Notas de Vicente Chel CORTEZ € €DITORA ‘A EDUCAGAO NA CIDADE Paulo Freire Capa: Catlos Clémen Preparacéo de originaie Vicente Chel Revs: Maria de Lourdes de Almeida, Rita de Céssia M, Lopes Composigie: Dany Eaitora Leda Coordenagao ediseriak Danilo A. Q. Morales [Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplcada sem autorizasio expressa do autor e do editor. © 1991 by Paulo Frere Dircitos para extaedigéo ‘CORTEZ EDITORA Rua Barca, 387 — Tel: (011)864-0111 05009 — So Paulo — SP Impreso no Brasil — desembro de 1991 INDICE Consideragdes preliminares . Paulo Freire, Administrador piiblico, por Moacit Gadotti (USP) € Carlos Alberto Torres (UCLA) PRIMEIRA PARTE EDUCAR PARA A LIBERDADE NUMA METROPOLE CONTEMPORANEA 1. Os déficits da educagio brasileira 2. Para mudar a cara da escola 3. Projeto pedagdgico ... 4, Perguntas dos trabalhadores do ensino . 6. Alfabetizac4o de jovens € adultos . SEGUNDA PARTE REFLEXOES SOBRE A EXPERIENCIA COM. TRES EDUCADORES 1, Autonomia escolar e reorientagéo curricular 2. A educagio neste fim de século 3. Ligdes de um desafio fascinante EPILOGO ‘Manifesto 4 maneira de quem, saindo, fica . u 2 27 4 49 57 67 7 79 89 99 143 ‘A todas € a todos que, fazendo a escola municipal de $40 Paulo, conosco, da limpeza do chao a reflexao teérica, deixaram claro que mudar é dificil, mas é possivel € urgente. Fraternalmente Paulo Freire S. Paulo, Primavera 1991 CONSIDERAGOES PRELIMINARES O livro que ora entrego & curiosidade de possiveis leitoras e leitores ¢ que apareceré quase simultaneamente aqui ¢ na Franga um livro despretensioso mas que me agrada. Se no fosse assim, ‘nao 0 publicatia. Esté composto de entrevistas realizadas entre os primeiros meses de haver assumido a Secretaria Municipal de Educagio de Sio Paulo ¢ os comecos do segundo ano de nossa ‘Alguns dos temas tratados numa ou noutra entrevista no tiveram o desenvolvimento que esperivamos, enquanto a maioria dos assuntos discutides se firmou na pritica, cresceu, tomou corpo. ‘ Este é, na verdade, uma espécie de livro introdutério sobre © que sonhamos ¢ 0 que fizemos ¢ continua sendo feito, em equipe, na Secretaria Municipal de Educag4o de Sao Paulo, Ou- tos trabalhos virdo até mesmo como exercicio do dever que temos de prestar conta 4 cidade ¢ a0 pais do que fizemos ¢ do que nio nos foi possivel fazer. Paulo Freire Sido Paulo, Primavera 1991 Paulo Freire, Administrador Puiblico |A Bxperiéncia de Paulo Freire na Secretaria da Educagio da Ci- dade de Sao Paulo [1989-1991] Moacir Gadotti (USP, Sao Paulo) Carlos Alberto Torres (UCLA, Los Angeles) Por mais de quinze anos desenvolvemos, por vias paralelas, um estudo € exposigéo biogréfica, heuristica, critica ¢ interpreta- tiva da perspectiva teérica e da pritica pedagégica de Paulo Freire. Hoje cabe-nos, com prazer e atrevimento, prologar um livro de Paulo muito especial. Um livo que surgiu no calor de uma experiéncia politica ¢ administrativa na Secretaria Municipal de Educagio de Sao Paulo, nna administraséo de Luiza Erundina, sob a efigie politica do Par- tido dos Trabalhadores (PT) ¢ com Paulo Freire como Secretétio ‘Municipal de Educagao. : Quando a 15 de novembro de 1988 0 Partido dos Traba- Ihadores ganhou as eleigées municipais, o triunfo apanha o PT de surpresa. Os planos de governo haviam sido feitos no calor ideol6gico da confrontacio (para marcar as diferengas, estabelecer os limites das outras possiveis gestées administrativo-politicas), porém no tinha havido tempo nem espago mental para definir planos técnicos mais detalhados de governo. Para a nova administragio municipal foi muito simples escolher quem dirigiria a Secretaria Municipal de Educacio — a secretaria cujo orcamento implica um tergo da receita do muni- cipio, emprega mais de um tergo do total dos funcionarios mu- nicipais, € possivelmente seja uma das entidades governamentais mais presentes na vida cotidiana dos setores populares em So Paulo. i Paulo Freire era a opsio mais légica. Membro-fundador do PT, membro da Comissio de Educagio do partido, presidente da Fundacio Wilson Pinheiro, do PT, e um verdadeiro mito vivo da pedagogia critica. Os trabalhos de Paulo Freire tém reconhe- cimento nacional e internacional. A obra de Freire tem suscitado miiltiplas polémicas, convidando & experimentagéo educativa ¢ a inovagio. Enfim, sua obra tem sido objeco de leituras, textos académicos, teses doutorais, no Brasil ¢ no mundo inteiro, Freire era o simbolo da mudanga educativa que 0 PT pro- punha para a populagéo de Sio Paulo. Ademais, esse educador, que viera de um exilio de mais de quinze anos, encontrava-se em Sio Paulo, tenho reaprendido o Brasil apés regressar e viajar in- cessantemente, dando palestras, ouvindo o professor, 0 dirigente sindical ¢ politico, camponés, a mulher trabalhadora, 0 traba- Ihador industrial, 0 morador da favela, 0 “Gramsci popular” — como ele disse anos atrés a Carlos Alberto Torres. No comego da administragdo petista, ele era um simbolo, ¢ ainda segue sendo-o. Mas também uma realidade. Vigorosa, ima- ginativa, capaz de sentar-se para discutir as premissas epistemo- Togicas do novo modelo de educagdo que queria implancar com sua equipe de trabalho em jornadas de longas horas, como visitar uma escola ¢ ouvir pacientemente o zelador, © professor, 0 vigia, © pai de familia, ou entio discutir com as criangas que o aprender € gostoso porém requer disciplina. Capar de sentar-se paciente- mente em seu escrit6rio para assinar quatrocentos memorandos disrios, enquanto comentava, com saudades, como desfrutaria esse tempo telendo os chissicos da Filosofia ou escrevendo os trés ou quatro livros que planejava escrever no momento em que foi con- vidado por Luiza Erundina, ‘Apés dois anos da implementagio de um novo modelo edu- cativo, consolidando uma equipe de primeira linha, mais expe- riente e amadurecido que no principio, cheio de entusiasmo, me- do ¢ ousadia, ¢ depois de suportar todo tipo de criticas dos jornais, de diferentes setores antigovernamentais (incluindo membros de 12 seu préprio partido) e da burguesia paulista, Freire decidiu que era tempo de reencontrar-se com os clissicos, na intimidade de sua biblioteca. Também era tempo de continuar sua peregrinagio intelectual, desta vez no s6 como uma figura pedagégica muito significativa, mas sim como um “embaixador ad honorem’ da Se- cretatia de Educagio de Sao Paulo. Freire ndo se retira da Secretaria Municipal de Educagio porque o modelo que ajudou a tracar ¢ implementar tenha fra- cassado. Ao contritio, ele se retira com a convicgéo de que sua tarefa, pritica e simbélica, jA estava consumada. Aos setenta anos, © autor de Pedagogia do Oprimido decide voltar & sua biblioteca as suas aulas na Pontificia Universidade Catdlica de Sio Paulo (PUC-SP) Prosseguindo com nossas atividades de elaborar uma biogra- fia intelectual do educador Paulo Freire, pudemos estudar essa sua etapa como tomador de decis6es, como administrador. Nossas cexperiéncias de estudo sio diferentes. Durante esse tempo, Moacit Gadotti desempenhou, primeiro, 0 cargo de chefe de Gabinete e, depois, foi assessor especial, desfruranido ¢ também softendo as peripécias da administragao publica. Por sua vez, Carlos Alberto Tortes, professor da Universidade da California, em Los Angeles (UCLA), EUA, efetuou, com apoio de uma bolsa da National ‘Academy of Education — Spencer Fellowship ¢ do Centro de Estudos Latino-Americanos da UCLA, uma pesquisa sobre 0 pro- cesso de tomada de decisées na politica educativa municipal em Sio Paulo. Como secretério de Educagéo, Paulo Freire nfo passou tanto tempo refletindo teoricamente sobre 0 poder ou teorizando sobre a politicidade da educacio, mas exercendo 0 poder — se bem que delimitado ou fragmentado — mas poder educativo, enfim. Uma nova etapa de Freire como tomador de decisées no Brasil, do mesmo modo que havia sido hé vinte ¢ seis anos antes como coordenador da Comissio de Cultura Popular. 13 que se fez nesses dois anos € 0 que se continua fazendo sob a vigorosa ¢ entusiasta diregdo do filésofo Mario Sérgio Cor- tella, sucessor de Paulo Freire como secretétio de Educagdo na Municipalidade de Sao Paulo? ‘A administragao educativa da cidade de Sado Paulo nao ¢ uma tarefa to facil. No infcio de seu mandato, Freire encontrou 700 escolas, muitas delas em condigdes bastante precérias, uma educagio municipal de pouca qualidade, servindo a 720 000 alu- nos distribuidos, por partes iguais, entre educagao infantil (4-6 anos) e educacio fundamental (7-14 anos). No total, 39 614 fun- cionarios da educagdo municipal (professores, administradores ¢ pessoal de apoio), que representam 30% do toral de servidores pulblicos da cidade de Sio Paulo, constituem um desafio & ima- ginagio administrativa ¢ pedagégica. ‘A cidade de S40 Paulo, a segunda maior da América Latina depois da Cidade do México ¢ uma das cinco maiores metrépoles do mundo, tem 11,4 milhées de habicantes, dos quais 1,2 milhao sao analfabetos. Sio Paulo é 0 centro financeiro do Brasil e 0 Municipio de Sao Paulo contou com um orgamento, para 1990, de 3,87 bilhdes de délares, A Secretaria de Educagio Publica, que por lei muni- cipal deve receber 25% dos impostos arrecadados no municipio, contou com um orgamento educativo de meio bilhao de délares. Quatro objetivos marcam a agéo da administragio Freire em ‘Sao Paulo: 1) ampliar 0 acesso ¢ a permanéncia dos setores po- pulares — virtuais tinicos usudtios da educagéo publica; 2) de- mocratizar 0 poder pedagégico ¢ educativo para que todos, alu- ros, funcionatios, professores, técnicos educativos, pais de familia, se vinculem num planejamento autogestionado, aceitando as ten- sdes € contradig6es sempre presentes em todo esforgo parti tivo, porém buscando uma substantividade demoeratica; 3) in- crementar a qualidade da educagdo, mediante a construgio cole- tiva de um curriculo interdisciplinar ¢ a formagio permanente do pessoal docente; 4) finalmente, 0 quarto grande objetivo da gestio 14 — nao poderia ser de outra maneira — € contribuir para eliminar 6 analfabetismo de jovens e adultos em Sao Paulo, iversos instrumentos ¢ politicas foram implementados para cumprir esses objetivos, incluindo-se desde atividades de reparo ¢ restauragio de edificios ¢ bancos escolares, profundamente afe- tados pela falta de investimento na educagao devida a administra- cao anterior, de Jinio Quadros, até um incremento do material didatico para alunos ¢, especialmente, professores, requisitos indis- pensdveis para avangar no sentido de uma educagio de qualidade. Entre os instrumentos mais audazes contam-se: a implemen- tagio, a fundo, dos conselhos de escola, criados mas nao imple- mentados na administragio de Guiomar Namo de Mello no tem- po de Mario Covas (1983-1985), onde a gestio democratica da escola se negocia (sempre entre tensdes de indole variada); a im- plementagio de um ambicioso plano de reforma curricular basea- da na nogio de um tema gerador compreendido como uma pers pectiva interdisciplinar e sustentado num mecanismo de formagao permanente dos professores ¢ pessoal de avaliagio; ¢ a criagio do Movimento de Alfabetizacéo de Jovent ¢ Adultos de Séo Paulo (Mova), iniciativa dos movimentos sociais de Sio Paulo, como uma maneira de estabelecer uma parceria entre movimentos so- ciais € 0 setor piblico. © modelo politico-pedag6gico que inspira essa administra- cdo popular em educasio € a nocéo de escola piiblica popular. Num primeiro documento elaborado pela administragao Freire ¢ publicado no Didrio Oficial do Municipio de Séo Paulo em 19 de fevereiro de 1989, com o titulo “Aos Que Fazem a Edu- casio Conosco em Sao Paulo”, se definem os eixos diretores da proposta de escola publica popular: “A qualidade dessa escola deverd ser medida no apenas pela quantidade de contetidos transmitidos ¢ assimilados, mas igualmente pela solidariedade de classe que tiver construldo, pela possibilidade que todos os usuérios da escola — in- 15, cluindo pais ¢ comunidade — tiverem de utilizé-la como tum espago para a elaboragio de sua cultura. “Nao devemos chamar 0 povo 3 escola para receber inscru- g6es, postulados, receitas, ameacas, repreensdes ¢ punigics, ‘mas para participar coletivamente da construgio de um sa- ber, que vai além do saber de pura experiéncia feito, que leve em conta as suas necessidades € 0 torne instrumento de lta, possibilitando-Ihe transformar-se em sujeito de sua pré- pria hist6ria. A participagio popular na criagdo da cultura ¢ da educagio rompe com a tradigio de que s6 a elite € com- petente ¢ sabe quais sao as necessidades e interesses de toda a sociedade. A escola deve ser também um centro itradiador da cultura popular, & disposigio da comunidade, no para consumi-la, mas para recrié-ba. A escola ¢ também um espago de organizagio politica das classes populares. A escola como tum espaco de ensino-aprendizagem ser entio um centro de debates de idéias, solugées, reflexes, onde a organizacio po- pular vai sistematizando sua prépria experigncia. O filho do trabalhador deve encontrar nessa escola os meios de auto- ‘emancipacdo intelectual independentemente dos valores da classe dominante. A escola nao € s6 um espago fisico. E um clima de trabalho, uma postura, um modo de set. “A marca que quercmos imprimir coletivamente as escolas privilegiard a associagio da educagdo formal com a educagao ndo-formal. A escola nio € 0 tinico espago da veiculagao do conhecimento. Procuraremos identificar outros espagos que possam propiciar a interagao de pricicas pedagégicas dife- renciadas de modo a possibilitar a interagio de experiéncias. Consideramos também priticas educativas as diversas formas de articulagio que visem contribuir para a formagao do su- jeito popular enquanto individuos criticos e conscientes de suas possibilidades de atuacio no contexto social.” (Diério Oficial do Municipio de Sao Paulo, 01.02.89.) 16 Os textos de Paulo Freire recolhidos no presente volume podem ser divididos em duas grandes partes: “Educar Para a Li- berdade Numa Metrépole Contemporinea” e “Reflexdes Sobre a Experiéncia Com Trés Educadores”. Sio textos de briga, de batalha, do cotidiano pedagégico, politico e administrative. Nao constituem uma avaliagdo sistema- tica de Freire sobre esses dois anos e meio de administragdo edu- cativa, Essa avaliagio sera feita num préximo livro seu, Cartas a Cristina, que Freite foi escrevendo durante a tiltima década. Os primeiros resultados da politica educativa sio positives. A taxa de retengio foi aumentada de 77,45% em 1988 para 81,31% em 1990 — o melhor indice dos iiltimos dez anos. A imprensa paulista, a partir de suas proprias pesquisas, informa que a Secretaria de Educacéo de Séo Paulo é orpio mais po- pular da Prefeitura Municipal. Os salétios do magistério tém sido melhorados substantivamente — talver. seja este um dado que explique a maior produtividade do sistema. Esti em fase final de claboracio 0 primeiro esboco de um Estatuto do Magistério, pri- meira medida desse tipo na histéria da educagio publica muni- ipal de Séo Paulo. Mais de 90 movimentos sociais assinaram convénios com a Secretaria de Educagio como parte do Mova. Enfim, esses sio apenas alguns indicadores da primeira metade da gestio do PT em educacio, sob a condugio direta de Paulo Freire. Resta, € claro, a necessidade de se fazer uma avaliagio rigorosa, uma vez completado todo 0 mandato. Nao resta diivida de que a nogio de politicidade da educa- 40, a qual Paulo Freire no deixa de repetir, ¢ a nogio da edu- casio como um ato de conhecimento, tém estado intimamente presentes na pritica cotidiana de Freire como secretirio de Edu- casio da Cidade de So Paulo. Confiamos em que a leitura destas paginas oferecerd ao leitor uma oportunidade ‘excelente para dialogar com um grande edu- cador sobre a educagio na cidade. Sao Paulo, 6 de julbo de 1991. 17 PRIMEIRA PARTE Educar para a liberdade numa metrépole contemporanea 1 Os déficits da educacio brasileira’ Nao me parece possivel a nenhum educador ou educadora que assuma a responsabilidade de coordenar os trabalhos de uma Secretaria de Educagéo, no importa de que cidade ou Estado, escapar ao desafio dos déficits que a educagio brasileira experi- menta. De um lado, 0 quantitativo; do outro, 0 qualitativo. A insuficiéncia de escolas para atender & procura de criangas em idade escolar, que ficam fora delas, ou a inadequacidade do cur- iculo entendido 0 conceito no maximo de sua abrangéncia. E importante salientar também que uma politica educacional critica nao pode entender mecanicamente a relagdo entre estes déficits — 0 da quantidade € 0 da qualidade — mas compreendé-os, dinamicamente, contraditoriamente. E impossivel atacar um des- ses déficits sem despertar a consciéncia do outro. Se se amplia a capacidade de atendimento das escolas em face da demanda, cedo ou tarde haverd pressio no sentido da mudanga do perfil da esco- la. Se se tenta a democratizagio da escola, do ponto de vista de sua vida interna, das relagdes professoras-alunos, direcio-profes- sores etc. e de suas relagdes com a comunidade em que se acha, se se busca mudar a cara da escola, cresce, necessariamente, @ procura acl, * Entrevista concedida 3 revista LETA, Sio Paulo, 19 de feverciro de 1989. a , Se nio apenas construirmos mais salas de aula mas também as mantemos bem-cuidadas, zeladas, limpas, alegres, bonitas, cedo ou tarde a prépria boniteza do espago requer outta boniteza: a do ensino competente, a da alegria de aprender, a da imaginagio criadora tendo liberdade de exercitar-se, a da aventura de criar. £ fundamental, creio, afirmar uma obviedade: os déficits re- feridos da educagéo entre nds castigam sobretudo as familias po- pulares. Entre 0s oito milhdes de criangas sem escola no Brasil go hd meninos ou meninas das familias que comem, vestem € sonham, E mesmo quando, do ponto de vista da qualidade, a escola brasileira nao atenda plenamente as criangas chamadas “bem-nascidas”, so as criangas populares — as que conseguem chegar & escola e nela ficar — as que mais sofrem a desqualidade da educagio. Tomemos aqui ¢ agora, nesta conversa, um momento apenas € muito importante, da pritica educativa, 0 da avaliagao, 0 da aferigio de saber. Os critérios de avaliagio do saber dos meninos € meninas que a escola usa, intelectualistas, formais, livrescos, necessariamente ajudam as criangas das classes sociais chamadas favorecidas, enquanto desajudam os meninos € meninas popula- res. E na avaliagao do saber das criancas, quer quando reoém-che- gam & escola, quer durante o tempo em que nela estio, a escola, de modo geral, no considera o “saber de experiéncia feito” que as criangas trazem consigo. Mais uma vez, a desvantagem & das criancas populares. E que a experigncia das criangas das classes médias, de que resulta seu vocabulétio, sua prosédia, sua sintaxe, afinal sua competéncia lingiiistica, coincide com 0 que a escola considera o bom € 0 certo. A experiéncia dos meninos populares se da preponderantemente nio no dominio das palavras escritas mas no da caréncia das coisas, no dos fatos, no da agao direta. Democratizando mais seus critérios de avaliagio do saber a escola deveria preocupar-se com preencher certas lacunas de ex- periéncia das criancas, ajudando-as a superar obstéculos em seu processo de conhecer. f ébvio, por exemplo, que criangas a quem 22 falta a convivéncia com palavras escritas ou que com elas tém pequena relacio, nas ruas € em casa, criangas cujos pais nao [em ros nem jornais, tenham mais dificuldades em passar da Ii guaguem oral a escrita. Isto nao significa, porém, que a caréncia de tantas coisas com que vivem crie nelas uma “natureza” dife- fente, que determine sua incompeténcia absoluta. Um sonho que tenho, entre um sem-niimero de outros, € “semear” palavras em dreas populares cuja experiéncia social nao seja escrita, quer dizer, éteas de meméria preponderancemente oral. Os grafiteiros que fazem tanta coisa bonita nesta cidade bem que poderiam ajudar, na realizagdo desta s4 loucura que os ho- mens da industria e do comércio poderiam financiar. No Chile, quando é vivi no meu tempo de exilio, os “se- meadores de palavras” em dreas de reforma agréria foram os pré- prios camponeses alfabetizandos, que as “plantavam” nos troncos das drvores, as vezes, no chao dos caminhos. Gostaria de acompanhar uma populagio infantil envolvida hum projeto assim e observar seus pasos na experiéncia da alfa- betizagao. . Mas, voltemos a0 comeco de nossa conversa. Ao assumir a Secretaria de Educagio da Cidade de So Paulo nao poderia deixar de estar atento aos déficits de que estamos falando. De qualquer maneira, antes mesmo de pensar na construgio de salas ou de unidades escolares & altura da demanda — caso dispuséssemos, para este ano, de dotagées orgamentérias ou recutsos extraordi- nirios — teriamos de enfrentar o desafio enorme com que a administracao anterior nos brindou. Cerca de cingiienta escolas em estado deplorivel — tetos caindo, pisos afundando, instalagées elétricas provocando risco de vida; quinze mil conjuntos de car- teitas escolares arrebentadas, um sem-ntimero de escolas sem uma carteira escolar, sequer. E impossivel pedir aos alunos de escolas to maltratadas assim ¢ no por culpa de suas diretoras, de suas professoras, de seus zeladores ou deles, que as zelem. Nem uma das diretoras de todas essas escolas quase devastadas deixou de 23 —— solicitar varias vezes a quem de direito 0 reparo das mesmas. Pretendo a partir de marco préximo realizar comicios ou assem- blgias pedagégico-politicas nas reas populares em que mostrarei ‘em video o estado em que recebemos essas escolas convidando 0 povo para uma participagio efetiva no cuidado da coisa publica Por todos este ano pretendemos sobretudo restaurar as uni- dades arrasadas, fazendo o possivel para manter cuidada a rede toda. ‘Ao mesmo tempo, porém, comecamos a trabalhar seriamente com vistas & reformulagao do currfculo de nossas escolas, cuja coordenagio entreguei & professora Ana Maria Saul, da PUC (Pontificia Universidade Catélica) uma das mais comperentes especialistas brasileiras em Teoria do Curriculo. Pretendemos na verdade mudar a “cara” de nossa escola. Nio pensamos que somos os tinicos ou os mais competentes, mas sabemos que somos capazes ¢ que temos decisio politica para fazé-lo, Sonhamos com uma escola ptiblica capaz, que se va cons- tituindo aos poucos num espaco de criatividade. Uma escola de- mocritica em que se pratique uma pedagogia da pergunta, em que se ensine e se aprenda com setiedade, mas em que a seriedade jamais vire sisudex. Uma escola em que, ao se ensinarem neces- sariamente 0s contetidos, se ensine também a pensar certo. Evidentemente, para nds, a reformulagio do curriculo nao pode ser algo feito, elaborado, pensado por uma dizia de ilumi- nados cujos resultados finais sio encaminhados em forma de “pa- cote” para serem executados de acordo ainda com as inscrugdes guias igualmente claborados pelos iluminados. A reformulagio do curriculo € sempre um processo politico-pedagégico e, para nés, substantivamente democritico Considerando o que hi na pritica educativa de gnosiolégico, de politico, de cientifico, de artistico, de ético, de social, de co- municagio, comecamos a constituir durante janeiro ¢ fevereiro grupos de especialistas, sem dnus para a Secretaria, professores ¢ 24 professoras universitarias do mais alto nfvel, com quem vimos aprofundando interdisciplinarmente uma compreensio critica da pritica educativa Fisicos, mateméticos, bidlogos, psicélogos, lingiistas, so logos, tebricos da politica, arte-educadores, fildsofos, juristas en- volvidos em programas de direitos humanos e, mais recentemente, uma equipe de educadores e psicblogos que trabalham a proble- mitica da sexualidade. No fim deste més teremos a primeira reu- nigo com todas essas equipes quando faremos uma avaliagio do trabalho até agora realizado, No comego de marco estaremos, através das diferentes ins- tancias da Secretaria, estabelecendo didlogo franco, aberto, com diretoras, coordenadoras, supervisoras, professoras, zeladores, me- rendeiras, alunos, familias, liderancas populares. Esperamos com cesses encontros ajudar a formagio € a solidificagao dos conselhos de escola. ‘Numa perspectiva realmente progressista, democritica e néo- autoritéria, nfo se muda a “cara” da escola por portaria. Nao se decreta que, de hoje em diante, a escola seré competente, séria € alegre. Nao se democratiza a escola autoritariamente. A Adminis- tragdo precisa testemunhar ao corpo docente que o respeita, que no teme revelar seus limites a ele, corpo docente. A Admi- nistragdo precisa deixar claro que pode etrar. $6 nao pode € mentir. ‘Outra coisa que a Administragéo tem de fazer em decorrén- cia de seu respeito a0 corpo docente e a tarefa que ele tem é pensar, organizar ¢ executar programas de formagio permanente, contando inclusive com a ajuda dos cientistas com quem temos trabalhado até agora. Formagio permanente que se funde, sobre- tudo, na reflexdo sobre a pritica. Seré pensando a sua pritica, por exemplo, de alfabetizadora, com equipe cientificamente pre- parada, seré confrontando os problemas que vém emergindo na sua pratica didria que a educadora superard suas dificuldades. 25, E claro que nada disso se faz da noite para o dia e sem luta Tudo isso demanda um grande esforco, competéncia, condigoes materiais e uma impaciente paciéncia. As veres no posso deixar de rir, quando certas criticas dizem que nio penso “nada de concreto”. Havera muitas coisas mais concretas do que lutar para reparar 50 escolas esfaceladas? Haveri algo mais concreto do que pensar teoricamente a reformulacéo do curriculo? Sera que é vago e abstrato visitar tanto quanto pos- sivel as escolas da rede, e discutir seus problemas concretos com diretoras, professoras, alunos, 2eladores? Finalizando esta conversa gostaria de dizer aos educadores ¢ as educadoras com quem tenho agora a alegria de trabalhar que continuo disposto a aprender e que € porque me abro sempre 4 aprendizagem que posso ensinar também. ‘Aprendamos ensinando-nos. 26 2 Para mudar a cara da escola’ Escola Nova: © que difere, na pritica, a proposta do PT* em relagio as demais propostas pedagégicas? Paulo Freire: Apesat de me saber um educador petista’** —aderi ao PT quando ainda me achava na Europa — nao gos- taria de dar 4 minha resposta a cor do discurso de quem fala em nome de meus companheiros. Sem pretender, de maneira ne- nhuma, dar a impressio de ser personalista, prefiro falar um pou- co de como penso, convencido de que, substantivamente, me coloco no horizonte de aspiragées do PT. Por outro lado, nao gostaria tampouco, de fazer paralelos, eu mesmo, entre 0 que penso ¢ 0 que faco, como educador petista, ¢ 0 que pensam e fazem educadoras ¢ educadores de outros partidos. Falarei de al- = Entrevista concedida 8 revista Eieola Nous, Sto Paulo, de 26 de feversiro de 1989. ** Partido doe Trabslhadores, o PT foi fundado em 1980, em plena derrocada da ditadura militar que governou o pafs desde 1964. Divida externa, inflagio clevada e miséria constitufam o clima propicio para a intensa movimentacio operdria na periferia de Sio Paulo, sob a égide do lider metaldrgico Luts Ignicio (Lula) da Silva. A organizagio politica dos operitios em partido teve respaldo significativa e eucesso gragas & participagio de intelectuais de esquer- dda, A vitéria de Luiza Erundina, prefeta de Sio Paulo, & um exemplo. Petits & 0 simpatizante ou fliado a0 PT. 27 Buns Pontos, que me parecem fundamentais & politica educativa de um partido que, sendo popular, nao € populisee, endo revolu- ciondrio, nao € autoritdrio; sendo democrata, nao é democratista, sendo educador, se reconhece educande dos movimentos sociais Populares. A educas4o que um partido assim precisa de pér em ritica € aperfeigoar ¢ tio politica e se acha to “grivida” de ideologia quanto a que qualquer partido conservador planeja ¢ executa A natureza da pritica educativa, a sua necessétia direti dade, os objetivos, os sonhos que se perseguem na pritica nao Permitem que ela seja neutra, mas politica sempre, E a isto que cu chamo de politicidade da educagao, isto é, a qualidade que tem a educagio de ser politica. A questo que se coloca é saber que politica ¢ essa, a favor de qué e de quem, contra © qué € contra quem se realiza. E por isso que podemos afi mar, sem medo de errar, que, se a politica educacional de um Partido progressista ¢ sua pritica educacional forem iguais s de um partido conservador um dos dois esté radicalmente er. rado. Daf a imperiosa necessidade que temos, educadoras ¢ educadores progressistas, de ser coerentes, de diminuir a dis. fincia entre © que dizemos ¢ © que fazemos. Nao que esteja Pensando que os educadozes ¢ as educadoras progressistas vi- temos anjos ou nos santifiquemos na busca da absoluta coe. réncia que, em primeiro lugar, faria da vida uma experiéncia sem cheiro, sem cor, sem gosto e, em segundo lugar, ndo nos permitiria sequer saber que éramos coerentes, pois que nao haveria a incocréncia para nos ensina Mas, 0 que € preciso é essa procura constante, critica, para compatibilizar 0 dito com o feito. Redizer o dito quando 0 que fazer exif. O que ndo € pessivel, para mim, é falar no respeito Pelas bases populates, mas, ao mesmo tempo, considerar que elas nao tém suficiente maioridade para dirigir-ses é falar de uma esco. 'a democrética ¢ manietar as professoras, em nome de sua pouca 28 competéncia, com “pacotes"* emprenhados por nossa sabedoria. O que nao é possivel € negar a prética em nome de uma teoria que, assim, deixa de ser teoria para ser verbalismo ou intelectualis. mo ou negar a teoria em nome de uma pritica que, assim, se artisca a perder-se em tomo de si mesma. Nem elitismo teoriciiza nem basismo praticsta, mas a unidade ou a relagao teoriae privica ‘Vejamos outro ponto importante no rol destas consideragbes. Se ha algo em que 0 educador progressista sério se identifica com um educador conservador, igualmente sério, € que ambos tém que ensinar, Por isso mesmo ambos tém que saber 0 que ensinam. Mas, ao nos determos sobre isso que os identifica, isto é, 0 ato de ensinar um certo contetido, imediatamente percebemos que, a partir do que os identifica, comegam a distinguir-se. Nao quero dizer que 4x4 sio 16 para um professor progressista e 14 para tum professor conservador. O que quero dizer & que a prépria compreenséo do que é ensinar, do que é aprender ¢ do que € conhecer tem conotag6es, métodos e fins — diferentes para um € para outro. Como também 0 tratamento dos objetos a serem ensinados ¢ a serem apreendidos pata poderem set aprendidos pelos alunos, quer dizer, os contetidos programéticos. Para 0 educador progressista coerente, 0 necessitio ensino dos contetidos estaré sempre associado a uma “leitura critica” da realidade. Ensina-se a pensar certo através do ensino dos conteti- dos. Nem 0 ensino dos contedidos em si, ou quase em si, como S€ 0 contexto escolar em que sfo tratados pudesse ser reduzido a uum espago neutro em que os conflitos sociais nao se manifestas- sem, nem o exercicio do “pensar certo” desligado do ensino dos contetidos. Pact, icnicameise, signifies lis ou decets batados pars dteeminador fins, sempre numeroos, pois 0 Brat € um pals de marcedatradia bare ca € famoto por seu exagerado nimero de leis afin, alem de srem jonalmente volves 29 E essa relagio dindmica, processual, que pretendo estimular nas escolas municipais. Mais ainda, para um educador progressista coerente nio é possivel minimizar, desprezar, 0 “saber de expe- riéncia feito” que os educandos trazem para a escola. A sabedoria desta esté em fazer compreenstvel que a ruptura que o saber mais exato, de natureza cientifica, estabelece, em face daquele saber, rio significa que ele seja desprezivel. Pelo contrétio, € a partir dele que se alcanga 0 mais exato. ‘Alongando um pouco mais estas consideragées, talvez. eu pu- desse dizer que, enquanto numa pritica educativa conservadora competente se busca, ao ensinar os contetidos, ocultar a razdo de ser de um sem-ntimero de problemas sociais, numa pritica edu- cativa progressista, competente também, se procura, a0 ensinar ‘5 contetidos, desocultar a razio de ser daqueles problemas. A primeira procura acomodar, adaptar os educandos ao mundo dado; a segunda, inquietar os educandos, desafiando-os para que percebam que o mundo dado € um mundo dando-se € que, por isso mesmo, pode ser mudado, transformado, reiventado. Devo concluir esta questio dizendo que os educadores pro- gressistas sabem muito bem que a educasio nio é a alavanca da transformacio da sociedade, mas sabem também o papel que ela tem nesse processo. A eficicia da educagio esté em seus limites. Se ela tudo pudesse ou se ela pudesse nada, no haveria por que falar de seus limites. Falamos deles precisamente porque, no po- dendo tudo, pode alguma coisa. A nés, educadores ¢ educadoras de uma administragio progressista*, nos cabe ver 0 que podemos fazer para competentemente realizar. Escola Nova: O senhor realizou uma campanha de alfabeti- zagio como a que fez antes do golpe militar de 1964? Paulo Freire. Creio que seria interessante comegat a respon- der a essa questio fazendo referencia ao documento oficial que Freire se refere 4 administragio petista da Prefeiura de Séo Paulo, da qual dle assumiu a Secretaria da Educagio a 1? de janeiro de 1989. 30 foi publicado apés uma Conferéncia Internacional patrocinada pela Unesco, em 1975, realizada em Persépolis, de que participei fe que se chama Carta de Persépolis. Um dos objetivos principais, se no o principal da reunigo, era a avaliagio das campanhas de alfabetizagio realizadas em diferentes freas do mundo. O texto sublinha a relagio entre o éxito maior ou menor das chamadas campanhas de alfabetizagio de adultos e 0 processo de transforma- ‘gio social e politica, verificando-se ou no nas sociedades em que as campanhas se dio, O problema me parece ébvio. Uma coisa ¢ fazer uma cam- panha de alfabetizagio numa sociedade em que as classes sociais populares comecam a tomar sua histéria nas mos, com entusias- ‘mo, com esperanga, a outra é fazer campanhas de alfabetizagio em sociedades em que as classes populares se acham distantes da possibilidade de exercer uma participagio maior na prefeitura de sua sociedade. Em 1964 0 Brasil no havia feito revolucdo nenhuma, é verdade. Viviamos a experiéncia populista do governo Goulart*. Mas viviamos um momento também de profunda inquietacao, de curiosidade, de presenca popular nas ruas, nas pracas. O mo- delo populista vivia sua ambigilidade fundamental. De um lado, estimulando a presenga das classes populares, mesmo manipula- das, sem as quais nio existiria, de outro, correndo o risco de desaparecer, ou porque a esquerda, através delas, se viabil ‘ou porque a direita, por causa delas, acabasse a festa. Foi is que se deu. Mas, o importante € considerar que, naquele pequeno periodo, havia uma vontade popular, no importa que muito mais pra rebelde que pra revoluciondria, ¢ uma curiosidade também, + Jose Goulart (1918-1976) assumiu a prsidéncia do Brasil como vce de Janio Quadros, que renunciou apés ses meses de um obscuro governo de intenges golpitaz. Goulart, epigono do nacionalismo ¢ herdeiro de Getilio Vargas, pasia a nacionalizar setores da economia ¢ do Extado, culminando seus dois anos de governo com o golpe militar de 1964 31 ae que deram bases para os planos que coordenamos a partir do ministétio da educagao em Brasilia, Hoje, depois de tantos anos, a coisa € diferente, mesmo reconhecendo © que representa de esperanga a vitéria do PT em grande ntimero de cidades brasi- leiras. Me parece que ndo deverfamos trabalhar em termos de campanhas, cuja significagio mais profunda sugere algo emergen- cial, mas atacat 0 problema sem dar a ele este cardter. Por outro lado, na medida mesma em que, aqui ¢ ali, enfrentemos © pro- blema, € necessétio que, desde 0 principio, procuremos it mais além da alfabetizagao, construindo com os préprios educandos populares alternativas no campo da educagio popular. Dentro do espitito de sua pergunta ha ainda algo a dizer. No momento, uma equipe intersecretarial — Secretaria da Cultura, Secretaria da Educacio, Secretaria da Satide, Secretaria da Habitagdo, Secretaria do Bem-Estar Social, Secretaria dos Esportes — trabalha em relagio direta com movimentos sociais na elaboragio de projetos de educagao popular. © ponto de partida de um desses projetos € uma pesquisa participance que nos dard uma espécie de repertério dos anseios, dos sonhos, dos desejos da populagio da drea em que a pesquisa se fard. Uma das vantagens de um trabalho assim esté em que a prépria merodologia da pesquisa a faz pedagégica e consciei zante. Talvez to importante ou até mais do que esse cariter referido da pesquisa € 0 esforgo, & a deciséo politica de as secte- tarias trabalharem juntas, Apostamos nisso Excola Nova: Qual é a porcentagem do otgamento municipal que serd destinado 4 educagio? Paulo Freire: © orcamento-programa aprovado em 1988, em execugao neste ano, prevé aplicar 27,1% das receitas tributd- ras em despesas voltadas para o ensino. Entretanto, desse per- centual, 4,6% so despesas com programas suplementares de ali- mentagdo ¢ satide, as quais a nova Constituigio determina que sejam financiados com outros recursos orgamentirios e 1,7% sio 32 despesas de Secretaria do Bem-Estar Social com creches, centros de juventude ¢ unidades de atendimento a0 menor, que tém ca- iter mais assistencial que educativo. Excluidas essas despesas, ape- nas 20,8% das receitas tributérias sio realmente destinadas para © ensino, Vale lembrar que essas receitas sio apenas 51,5% da receita total orcada (35% seriam provenientes de empréstimos). Escola Nova: Quais séo as suas metas? Paulo Freire: Tenho falado muito, desde antes mesmo de assumic a Secretaria de Educagio Municipal, no nosso sério em- penho de mudar a cara de nossa escola, incluindo as escolas de Educagéo Infantil. Pretendemos na verdade, ¢ para isso j4 come- samos a trabalhar desde os primeiros dias de nossa gestio, ir trans- formando as escolas em centros de criatividade, em qué se ensine Se aprenda com alegria. Nao pretendo dizer, ao fazer esta afit- maglo, que ndo haja escolas na rede municipal, hoje, em que as ctiangas nao se sincam bem. O que é preciso, porém, é generalizar esse clima que, por sua ver, para ser criado e mantido, demanda a confluéncia de um sem-ntimero de fatores. jes materiais condignas — salérios decentes, as esco- las conservadas, teparadas em tempo, agilizagao das medidas bu- rocriticas indispenséveis ao bom funcionamento das escolas. Res- peito aos educadores, aos educandos, a todos. Como, porém, re- velar respeito as criangas, aos educadores e as educadoras, & dire- sao da escola, as metendeiras, aos zeladores, aos pais, as mies, 4 comunidade local, se as escolas vio se deteriorando dia a dia, ameagando a satide, a paz de todos, apesar da insisténcia com que as direroras solicitam durante meses o indispensével reparo da escola? Como ensinar e aprender com alegria numa escola cheia de posas d’égua, com a fiacio ameagadoramente desnuda, com a fossa entupida, inyentando enjéo ¢ néusea? Ese € um problema sério com que nos defrontamos agora em face das 50 ou mais escolas que encontramos em estado de- 33 D plordvel. Os mecanismos burocréticos que af esto, 0 sem-ntimero de papéis — um tomando conta do outro — a morosidade com que andam de um setor ao outro, tudo contribui para obstaculizar © trabalho sétio que fazemos, A uma administragio como a do PT se impée uma transformacio radical da méquina burocritica. A que esté af pode até prejudicar também uma administragio conservadora. A uma administragio progressista, como nos cumbe fazer, essa burocracia perversa aniquila ¢ emudece. E nds nfo vamos permitir que iss0 ocotra Uma das formas talver de comecar a fazer a transformacio de que falei é a criagio do que uma de minhas assessoras chama de “frente de trabalho” para executar uma determinada tarefa de forma répida ¢ correra, Estamos fizendo isto agora com relagio a n projetos e:criaremos na préxima semana uma dessas frentes para enfrentar a questio do reparo das escolas que vai exigir bem mais dinheiro do que j& conseguimos. Frente composta por pes- soal de, no minimo, trés secretarias — a de Educagio, a de Obras ea de Finangas. Como vocé vé, nao podemos falar das metas educativas sem nos teferirmos as condigées materiais das escolas. E que clas nfo so apenas “espitito”, mas “corpo” também. A pratica educativa cuja politica nos cabe tracar, democraticamente, se dé na concre- tude da escola, por sua ver situada e datada ¢ no na cabesa das pessoas Em tiltima andlise, precisamos demonstrat que respeitamos as criangas, suas professoras, sua escola, seus pais, sua comunidade; que respeitamos a coisa puiblica, tratando-a com decéncia. Sé as- sim podemos cobrar de todos o respeito também as carteiras esco- lares, as paredes da escola, as suas portas. Sé assim podemos falar de principios, de valores. © ético esta muito ligado ao estético. Nao podemos falar aos alunos da boniteza do processo de co- nhecer se sua sala de aula esti invadida de agua, se 0 vento frio entra decidido ¢ malvado sala a dentro € corta seus corpos pouco abrigados, Neste sentido é que reparar rapidamente as cscolas é 34 SS jd mudar um pouco sua cara, nao sé do ponto de vista material mas, sobretudo, de sua “alma”. Precisamos deixar claro que acre- dlitamos em quem e respeitamos quem se acha nas bases. Reparar, com rapidez, as escolas é um ato politico que precisa de ser vivido com consciéncia e eficicia, Mudar a cara da escola implica também ouvir meninos e meninas, sociedades de baitro, pais, mies, diretoras de escolas, delegados de ensino, professoras, supervisoras, comunidade cien. tifica, zeladores, merendeiras etc. Nao se muda a cara da escola por um ato de vontade do secretirio, Para concluir, eu diria que nos engajamos na luta por uma escola competente, democratica, séria ¢ alegre. Escola Nova: O que o senhor fari diante da evasio escolar, que € muito grande? Paulo Freire: Em primeito lugar, eu gostaria de recusar 0 conctito de evasd. As criangas populares brasileiras nfo se evadem cla escola, ndo a deixam porque querem. As criangas populares brasileitas sio expubsas da escola — nao, obviamente, porque esta ou aquela professora, por uma questo de pura antipatia pessoal, expulse estes ou aqueles alunos ou os reprove. Fa estrutura mes: ma da sociedade que cria uma série de impasses e de dificuldades, ‘uns em solidariedade com os outros, de que resultam obsticulos ‘normes para as criangas populares nao sé chegarem A escola, mas também, quando chegam, nela ficarem e nela fazerem 0 percutso a que tém direito, Hi raz6es, portanto, internas ¢ externas a escola, que explis cam a “expulsio” e a reprovagio dos meninos populares, Atacaremos, ao nivel da Secretaria da Educagio, sobretudo, as intetnas, perseguindo: 0 uso bem-feito do tempo escolar — fempo para a aquisigao e produgao de conhecimento, a formacio permanente dos educadores, 0 estimulo a uma pritica educativa ec provocadora da curiosidade, da pergunta, do isco inte- lectual. 35 i Nesse aspecto, como em tudo © que tem que ver com a pratica escolar, espero ouvir de diretoras, professoras, de supervi- soras, de coordenadoras pedagégicas suas sugestées no sentido de minimizarmos as negatividades da escola que contribuem para a “expulsio” dos alunos. J4 agora em margo*, 15 dias depois de reabertas as aulas, comecarei, primeiro, a visitar escolas em duas manhas por semana, néo como quem quer, com certo gosto “ins- pecionista’,** flagar professoras ou servidores faltosos, mas como quem se sente no dever, enquanto secretério, de colaborar com 6s que lutam nas bases. Segundo, a me encontrar em cariter sistemético, tio assiduamente quanto possivel, com delegados de ensino, com professoras, com diretoras, com supervisoras, com merendciras, com zeladores. Os temas da expulsio e da reprovagio serdo.tratados sempre ‘em busca de solugdes ou encaminhamentos realistas ¢ eficazes. ‘Mais uma ver, nio acreditamos que sozinhos, no Gabinete, por mais competentes que sejamos, possamos fazer tudo. Escola Nova: Que mudangas 0 senhor pretende introduzit no curriculo da escola? Paulo Freire: Respondendo a uma pergunta anterior, fei do empenho em que nos achamos de mudar a cara da escola Mudar a cara da escola que, no nosso caso, é nos darmos ao esforgo de fazer uma escola popular, necessariamente passa pela mudanga curricular. Ninguém, contudo, numa perspectiva demo- crética, muda 0 curriculo das escolas de uma segunda para a ter- ga-feira, Feita auroritariamente, de cima para baixo, a partir da © ano letivo, no Brasil, comesa, em geral, em fins de fevereiro ou inicio de rmargo, conforme os graus escolaes ‘Alusio irdnica a Jinio Quadros, o qual como prefeito precedeu o PT na cidade de Sio Paulo. Em seu afi de auto-afiemar-se administrador, Jinio, personalise « ditador, efetuava visitas surpresas nas escolas € em outs setores pata pani possiveis deslies, 36 vontade de especialistas iluminados, a transformagao curricular, além de constituir uma contradigao inaceitavel do ponto de vista de uma administragao petista, nao tem eficécia. Duas coisas fundamentais acho que posso dizer agora. A primeira é que, em linhas gerais — ¢ agora tenho de me repetit ~ sonhamos com uma escola que, sendo séria, jamais vire sisuda.| A seriedade nio precisa de ser pesada Quanto mais leve é a se- riedade, mais eficaz € convineente € ela, Sonhamos com uma escola que, porque séria, se dedique a0 censino de forma competente, mas, dedicada, séria ¢ competente- mente ao ensino, seja uma escola geradora de alegria. O que hi de sétio, até de penoso, de trabalhoso, nos processos de ensinar, dde aprender, de conhecer nao transforma este quefazer em algo triste, Pelo contririo, a alegria de ensinar-aprender deve acom- panhar professores e alunos em suas buscas constantes. Precisamos € remover os obstéculos que dificultam que a alegria tome conta de nds € ndo aceitar que ensinar ¢ aprender sio priticas necessa- riamente enfadonhas ¢ tristes. E por isso que na resposta anterior cu falava de que 0 reparo das escolas, urgentemente feito, jé serd tum pouco mudar a cara da escola, do ponto de vista também de sua “alma”. Sonhamos com uma escola realmente popular, que atenda, por isso mesmo, aos interesses das criancas populares ¢ que, tio tapidamente quando possivel, iré diminuindo as razbes em seu. seio para a “expulsio” das criangas do povo. A segunda coisa que posso dizer agora € que, durante todo més de janeiro ¢ 0 de feverciro, trabalhamos na Secretaria com pes de especialistas, fisicos, matematicos, psicdlogos, socidlo- jos e cientistas politicos, lingiistas ¢ literatos, filésofos, arte-edu- lores, juristas ¢ especiafistas emt sexualidade. Analisamos dife- rentes momentos da pritica educativa — a questo gnosiolégica, 4 politica, a cultural, a lingiifstica, a estética, a ética, a filosdfica, 1 ideologia em n reunides com estes especialistas, professores da 37 USP, da PUC-SP ¢ da Unicamp* que vém dando sua contribu fo sem énus para a Secretaria. No dia 27 deste més** teremos a primeira reunido plendria interdisciplinar em que avaliaremos os trabalhos até agora reali- zados e discutiremos a participagio desses cientistas na etapa que a se iniciar’ — a em que comecaremos 0 nosso didlogo no centro das escolas € nas Areas populares em que elas se situam. © semindrio com alunos da 5# série que deveremos ter ainda em margo faz parte desse processo. Assim como 0 que realizare- mos na Zona Leste"**, ouvindo representantes de movimentos populares. A estes se seguirdo encontros especiais com dirctoras de escolas, professoras, coordenadoras etc. Nossa intencdo € possibilitar um didlogo entre grupos po- pulares ¢ educadores, entre grupos populares, educadores da rede € 05 Cientistas que nos assessoram. No momento é o que Ihe posso dizer em torno de sua per- guna. Escola Nova: ... ¢ em relagéo & formagio do magistério? Paulo Freire: Todos nés sabemos como a formacio do edu- cador ou da educadora vem sendo descuidada entre nés. ‘Uma das preocupagées centrais de nossa administragio ndo poderia deixar de ser a da formacio permanente da educadora. Nao se pode pensar em mudar a cata da escola, no se pode pensar em ajudar a escola a ir ficando séria, rigorosa, competente e alegre sem pensar na formagio permanente da educadora. Siglas como sfo conhecidas, respectivamente a Universidade de Sio Paulo, 2 Pontificia Universidade Catélica de Sio Paulo e a Universidade Estadual de ‘Campinas. Observe-e essa silat. de 1989, data desta entrevista A Regifo Leste € regio mais populoss e uma das mais pobres da cidade de ‘So Paulo. Fever 38 Para nés, a formagio permanente das educadoras se fard, tanto quanto possamos, através, preponderantemente, da reflexio sobre a pritica. Quando nos seja possivel, € espero que nio demoraremos em iniciar 0 proceso, juntaremos, por exemplo, professoras que trabalharem em alfabetizagio de criangas com especialistas com- petentes. O didlogo se dari em torno da pritica das professoras. Falardo de seus problemas, de suas dificuldades e, na reflexio realizada sobre a prética de que falam, emergiré a teoria que ilu- mina a prética. A teflexio sobre a pritica seré 0 ponto central, mas nao csgota 0 esforgo formador. Outras atividades serio programadas. Nesta semana que comeca, estarei criando mais uma frente de trabalho para comigo programar o proceso de formagio. Escola Nova: O que mudou na sua vida depois que 0 Sr. assumiu a Secretaria da Educagéo da cidade de Séo Paulo? Paulo Freire. Obviamente minha quotidianidade mudou. Anees cu vivia mansamente entre meu quarto de dormir, minha biblioteca, minhas atividades académicds, minha familia, De vez em quando, um congresso internacional, uma conferéncia. En- trevistas a revistas ¢ jornais nacionais ou estrangeiros. Viagens dentro € fora do Brasil Agora 0 ritmo € outro. Os desafios sio outros. ‘As dificuldades sio muitas. Nada, porém, me desanima, me lav arrepender-me de ter aceito 0 convite da prefeita. & um prazer para mim assumir 0 dever de fazer 0 minimo que possa fazer a0 lado de uma equipe excelente, competente ¢ incansavel. Aprendi muito neste primeiro pedaco de experiéncia, dois rmeses de Secretaria, lidando com uma burocracia malvada e amea- gadora, : Vale a pena! 39 2. 3 Projeto pedagogico Psicologia: Qual & 0 projeto pedagégico que esté sendo im- plantado pela Secretaria da Educagao na gestio da prefeita Luiza Erundina? Paulo Freire: Nao hd administracio ou projetos pedagégicos neutros. Nio seria, entio, a administracao da prefeita Luiza Erun- dina que faria excegao a esta regra. Isto nao significa, porém, que, pelo fato de ser sua administragéo marcadamente voltada para os anseios e para as necessidades populares, volte as costas, desde- nnhosa, aos apelos daqueles segmentos que, na cidade, por viverem bem, ndo fazem idéia, quase sempre, do que significa apenas s0- breviver. E interessante observar, porém, como os que vivem bem tendem a considerar os que simplesmente sobrevivem como in- capazes, incultos, invejosos, marginais perigosos ¢ a considerar também como propriedade sua 0 que a cidade tem de bonito e bem-cuidado. Para eles, os que sobrevivemenfeiam a cidade. Erundina pen- sa certo. Nao pensa assim. * Entrevista concedida ao jornal Puicologia, do Conselho Regional de Psicologia de Sio Paulo, em marzo de 1989. 41 © mesmo tipo de reflexio pode ser feito com relagao a0 projeto pedagdgico que estamos empenhados em realizar a frente da Secretaria Municipal de Educagio. Queremos uma escola pti- blica popular, mas nao populista e que, rejcitando 0 elitismo, nao tenha raiva das criangas que comem e que vestem bem. Uma escola publica realmente competente, que respeite a forma de estar sendo de scus alunos e alunas, seus padroes culturais de classe, seus valores, sua sabedoria, sua linguagem. Uma escola que rio avalie as possibilidades intelectuais das criangas populares com instrumentos de aferigao aplicados as criangas cujos condiciona- mentos de classe Ihes dio indiscutivel vantagem sobre aquelas. Como dizer de um menino popular, que se “saiu mal” na aplicagio de certa bateria de testes, que no tem senso do ritmo, se ele danca eximiamente 0 samba, se cle cantarola ¢ se acom- panha ritmando 0 corpo com 0 batuque dos dedos na caixa de fsforo? Se o teste para uma tal afericao fosse demonstrar como bailar 0 samba mexendo 0 corpo que desenha o mundo ou acom- panhar-se com a caixa de fésforos, possivelmente meu neto seria considerado pouco capaz em face dos resultados obtidos pelo me- nino ou menina popular. E preciso deixar claro, porém, que a escola que queremos do pretende, de um lado, fazer injustiga as criancas das classes chamadas favorecidas, nem, de outro, em nome da defesa das populares, negar a elas o direito de conhecer, de estudar © que as outras estudam por ser “burgués” 0 que as outras estudam. A criagZo, contudo, de uma escola assim, impée a reformulagao do seu curriculo, tomado este conceito na sua compreensio mais ampla. Sem esta reformulagio curricular no poderemos ter a escola piiblica municipal que queremos: sétia, competente, justa, alegre, cutiosa. Escola que vA virando 0 espago em que a crianca, popular ou no, tenha condig6es de aprender e de ctiar, de arris- car-se, de perguntar, de crescer. Antes mesmo de assumir a Secretaria comecei a trabalhar neste sentido, vivendo um primeiro momento da reflexio em tor- 42 no da reformulagio curricular. Momento que se intensificou em janeiro e fevereiro. Momento em que, com grupos de especialistas, do mais alto nivel, professoras e professores da Universidade de ‘So Paulo, da Pontificia Universidade Catélica de S40 Paulo € da Universidade Estadual de Campinas, discuti teoria do conhe- cimento ¢ educacio, arte ¢ educagio, ética ¢ educagfo, sexualidade ¢ educagéo, direitos humanos ¢ educacio, esportes ¢ educagio, lasses sociais ¢ educagio, linguagem, classes sociais, ideologia ¢ educagao. E importante salientar que esses intelectuais, fisicos, matemiticos, bidlogos, socidlogos, fildsofos, arte-educadores etc, que alcangam agora uma centena, vm dando a sua excelente contribuigio sem Onus para a Secretaria de Educagio. Recente- mente tivemos a primeira reunigo com todos esses especialiscas em que discutimos algumas hipéteses de projetos experimentais, no campo da mudanga curricular. E preciso afirmar que de forma alguma poderfamos pensar em estender as escolas — cuja vida didria, cujo mundo de relagées afetivas, politicas, pedagégicas, constituem para nds 0 espaco fundamental da pritica e da reflexdo pedagégicas — os resultados de nossos estudos de gabinete para) ser postos em pritica. Por convicgio politica e razto pedagégica | recusamos 0s “pacotes” com receitas a ser seguidas & risca pelas educadoras que estio na base. Por isso mesmo é que, nos mo- | mentos que se seguem, do proceso de reformulacio curricular, estaremos conversando com diretoras, com professoras, com su- pervisoras, com merendeiras, com mies ¢ pais, com liderancas | populares, com as criangas. E preciso que falem a nés de como | véem a escola, de como gostariam que ela fosse; que nos digam algo sobre o que se ensina ou no se ensina na escola, de como se ensina, Ninguém democratiza a escola sozinho, a partir do , gabinete do secretario. / Psicologia Qual € a forma mais adequada ou efetiva de con duzir, na pritica, esse projeto de educagio, para criangas € para adultos, na rede ptiblica municipal? Paulo Freire: Acabo de afirmar que jamais imporemos as escolas da rede municipal um perfil de escola, por mais que ele 43 exPresse a nossa opcdo politica ¢ © nosso sonho pedagégico. Pre- cisamente porque recusamos 0 autoritarismo tanto quanto a li. cenciosidade, a manipulasio tanto quanto o espontaneismo. E Porque ndo somos espontane(stas nem licenciosos, néo nos omi. timos. Pelo contratio, aceitamos que nao temos por que fugir 20 dever de intervt, de liderar, de suscitar agindo sempre com au. toridade, mas sempre também com respeito & liberdade dos ou tros, & sua dignidade. Nao hi para nés forma mais adequada ¢ efetiva de conduzir © nosso projeto de educagio do que a demo. crdtica, do que 0 didlogo aberto, corajoso. Creio que as teunibes que j4 tive com todas as diretoras na rede revelaram a decisdo Politica real com que venho aos encontros. Estou certo, igual- mente, de que esta decisio politica iré tornando-se cada vez mais clara, nas minhas visitas semanais as escolas, em que conversarci com todos ¢ com todas sobre a vida pedagégica da escola. Em que vi ficando comprovado que “cartio” nio funciona para, fe Findo o direito de alguém, servir indevidamente a outtor No podemos, na verdade, pensar em ganhar a adesio das Professoras a uma forma, por exemplo, de relacionat-se com os educandos, mais aberta, mais cientifica também, mais arriscada, impondo a elas 0 nosso ponto de vista. Precisamos antes de tude Convencer, quase converter. A formacdo permanente das educa. doras, que ndo poderia deixar de ocupar um- lugar singular em Noss0s projetos, € um dos momentos para a superacao necessaria de certos equivocos ou erros que obstaculizam a posta em pritica ficaz de nosso projeto Pricologia: Considerando que 0 seu projeto pedagégico pos- Sui cariter ideolégico e politico explicito, como esté sendo trarada 8 educagao ao nivel de informagées ou contetidos da ciéncia ¢ da cultura letrada ou erudita? Paulo Freire: Nao & prvilégio do nosso projeto pedagégico em marcha possuir cariter ideolégico e politico explicito. Todo Projeto pedagégico € politico se acha molhado de ideologia A Questo a saber € a favor de qué e de quem, contra qué e contra 4 quem se faz a politica de que a educasio jamais prescinde. Se- guindo 0 espfrito de sua pergunta me parece importante dizer da impossibilidade, em todos os tempos, de termos tido ¢ de termos yma pritica educativa sem contetido, quer dizer, sem objeto de conhecimentro a ser ensinado pelo educador ¢ apreendido, para poder ser aprendido pelo educando. E isto precisamente porque 1 pritica educativa é naturalmnente gnosiolégica ¢ nao é possivel conhecer nada a ndo ser que nada se substantive € vite objeto a ser conhecido, portanto, vite contetido. A questéo fundamental « politica, Tem que ver com: que conteiidos ensinar, a quem, a favor de qué, de quem, contra qué, contra quem, como ensinar. Tem que ver com quem decide sobre que contetidos ensinar, que \Gio tém of estudantes, os pais, os professores, os movi- ‘mentos populates na discussio em torno da organizacéo dos con- los programéticos. Esta ¢ exatamente uma das preocupagSes nossas e de que flei antes, no esforgo que fazemos para a refor wulagdo do curriculo das escolas municipais da cidade de Sio Paulo. Para nés, nao hd sombra de dtivida em torno do direito que\ ws criangas populares tém de, em fungao de seus niveis de idade, | ser informadas ¢ formar-se de acordo com o avango da ciéncia. | F indispensével, porém, que a escola, virando popular, reconheca | © prestigie 0 saber de classe, de “experiéncia feito”, com que a nga chega a ela, E preciso que a escola respeite ¢ acate certos métodos populares de saber coisas, quase sempre ou sempre fora dos padrdes cientificos, mas que levam ao ‘mesmo resultado. E preciso que a escola, na medida mesma em que vi ficando mais omperente, se vé tornando mais humilde. © conhecimento que ve produz social ¢ historicamente, tem historicidade. Nao ha co- | hecimento novo que, produzide, se “apresente” isento de vir a / ser superado. ; E preciso que a escola popular, sobretudo a que se situa no mais fundo das teas periféricas da cidade, pense seriamente a questo da linguagem, da sintaxe popular, de que falo e escrevo 45 faz tanto tempo. Faz tanto tempo € muitas vezes mal entendido ou distorcido. Aproveito agora uma dimensio de sua pergunta ¢ volo ao assunto. Nao é possivel pensar a linguagem sem pensar @ mundo social concreto em que nos constieuimos. Nao é possivel pensar a linguagem sem pensar 0 poder, a ideologia. © que me parece injusto ¢ antidemocrético € que a escola} |fandamentando-se no chamado “padtio culto” da lingua portu. guesa, continue, de um lado, a estigmatizar a linguagem da crian. 4 popular, de outro, ao fazé-lo, a introjetar na crianca um sen. ) timento de incapacidade de que dificilmente se liberta. Nunca eu/ disse ou escrevi, porém, que as criangas populates ndo deveriam aptender 0 “padrio culto”. Para isso, contudo, € preciso que se | sintam respeitadas na sua identidade, que ndo se sintam inferio- rizadas porque falam diferente. £ preciso, finalmente, que, a0 aprender, por direito seu, © padrio culto, percebam que devem fazé-lo nao porque sua linguagem ¢ feia ¢ infetior, mas porque, dominando 0 chamado padrao culto, se instrumentam pata a sua \luta pela necesséria reinvensio do mundo. / Psicologia: Em que converge ou volvidos por Darcy Ribeiro na Secreta Janeiro? verge dos Cieps, desen- da Educagio do Rio de Paulo Freire: Tenho grande respeito e enorme amizade a Darcy Ribeiro, intelectual para quem amar e imaginar, sonhar do so experiéncias antagénicas 4 seriedade e a rigorosidade cien- tficas. Nao penso em divergéncias ou convergéncias entre 0 que estamos projetando aqui e agora ¢ os Cieps. A mim me interessa, jd que voce fez a pergunta, deixar claro set impossivel pensar a prética educativa, portanto a escola, sem pensar a questio do tem- po, de como usar 0 tempo para a aquisigéo de conhecimento, ndo apenas na relagio educador-educando, mas na expetiéncia inteira, didria, da crianga na escola, A escola progressista, séria, nao pode estragar 0 tempo, botar a perder 0 tempo de a crianga conhecer, Mas s6 a partit, me 46 parece, de um limite minimo de tempo para a pritica escolar é posstvel pensar em como usé-lo de forma produtiva. Esse limite minimo, para mim, € de quatro horas. Nao vejo como trabalhar cficientemente com turnos de trés horas, a nio ser em situacées ‘emergenciais. Nestes casos — no momento vivemos em alguma ‘ou outra escola esta dramética situagio — é necessério que fique clara aos pais a razao de ser da situagdo de emergéncia. A questio do tempo esté posta no centro da concepcéo dos Cieps, 0 que jd Ihes da um indiscutivel crédito. Para a cidade de Sao Paulo eu preferiria, como estou prefe- rindo, fazer 0 posstvel para que vivamos intensamente, produti- vamente, criadoramente as 4 horas de atividades das escolas de 19 grau. Psicologia: Como lidar com as expectativas da clientela das cscolas (os préprios alunos ¢ os seus pais), que pode reagir de forma contréria, opositora ou indiferente as propostas pedagégicas dda atual Secretaria de Educagio? Paulo Freire: De forma democritica também, Devemos ini- ciar neste més de margo, nas 4reas populares, comicios ou assem- bléias pedagégicas, em que, de um lado, mostraremos o estado ‘leploravel em que encontramos cerca de cingiienta escolas, de outro, discutiremos os passos que estamos dando com relagéo & mudanga da “cara” da escola. Neste més, ainda, faremos um pri- meito encontro com 40 a 50 alunos da 58 série para ouvir deles © que pensam da escola ¢ falar um pouco a eles de como pensa- Ws. Haverd, obviamente, certas medidas, que serio tomadas por- que pé-las em prética € tarefa nossa. Mas, tudo 0 que for preciso iscutido o seré Psicologia: O- que se espera dos Conselhos populares de edu- cagio em relagio & qualidade do ensino? Freire: Em certo sentido a resposta esta contida na anterior. As assembléias ou plendrias pedagégicas, esperamos, terio uma 47 importancia fundamental. Através delas & posstvel que se dé em nivel profundo uma real participagio da comunidade de pais ¢ de representa de movimentos populares na vida inteira das escolas, Ja disse ¢ agora repito que a democratizagao da escola nao Pode ser feita como resultado de um ato voluntarista do Secre- trio, decretado em seu gabinete. 48 4 Perguntas dos trabalhadores do ensino’ Sindicato: Quem € Paulo Freire no atual contexto educa- cional brasileiro? Paulo Freire: Nio me sentitia 4 vontade falando de mim mesmo e situando-me no atual contexto educacional brasileiro. ‘A tinica afirmagio que posso fazer sem cair na imodéstia lamen- tivel ou na mais lamentivel ainda falsa modéstia, uma forma sem-vergonha” de ser imodesto, € a de que venho sendo um educador vivo, presente, no contexto educacional brasileiro. Isto me basta. Sindicato: O que & ser um trabalhador do ensino no Brasil de hoje? Paulo Freire: Nao h4 um trabalhador do ensino, no Brasil ou em qualquer sociedade, como algo abstrato, universal. O tra- balhador do ensino, enquanto tal, € um politico, independen- temente de se é, ou nfo, consciente disto. Daf que me paresa ) fundamental que todo trabalhador do ensino, todo educador ou educadora, tio rapidamente quanto possivel, assuma a natureza | politica de sua pritica. Defina-se politicamente. Faga a sua op¢i0 € procure ser co¢rente com ela. Encrevista concedida 20 Sindicato dos Trabalhadores do Ensino de Minas Gerais, em margo de 1989, 49 Desea forma, © que é set um trabalhador do ensino hoje no Brasil depende da sua posigdo politico-ideolégica, clara ou nao, De se € progressista, com este ou aquele matiz, de se & conservador ou reaciondtio, por ingenuidade ou conviccao. Nio € ficil perfilar 0 educador progressista ou 0 reaciondrio sem cotter 0 risco de cait em simplismos. Situando-me entre os educadores eas educadoras progressistas do Brasil, hoje, dria que nos assumir assim significa, por exemplo, trabalhar lucidamente em favor da ecole pidblias, ca favor da melhoria de seus padrbes de ensino, em defesa da dignidade dos dacentes, de sua formagio ‘permanente Significa lutar pela educagéo popular, pela participa- sao crescente das classes populares nos conselhos de comunidade, de baitto, de escola. Significa incentivar a mobilizaglo ¢ a orga. nizagao nao apenas de sua prépria categoria mas dos trabalhadores em geral como condigao fundamental da luta democritica com vistas & transformacio necessiria e urgente da sociedade brasileira Sindicata: Como vai a escola piiblica? Paulo Freire: As forcas ¢ 0 poder reacionétios deste pals enfermaram a escola piiblica. A politica educacional dos governos militares se orientou no sentido da privatizagéo do ensino, a que correspondia um descaso indiscutivel pelo ensino piiblico, repre- sentado, também, na falta de respeito a figura da educadora e do educador, A politica de privatizagao do ensino obviamente afetaria, em cheio, os interesses das classes populares, uma vez mais pagando © conforto ¢ as regalias das chamadas “favorecidas”, E interessante observar 0 movimento que uma mesma gera- $40 que se matricula num certo ano nas escolas de 19 grau no pals pode fazer. Em primeiro lugar, consideramos o ntimero as- sombroso de criangas em idade escolar que “ficam” fora da escola. Na verdade, néo ficam fora da escola, como se ficar ou entrar fosse uma questo de opgao. Sao proibidos de entrar, como mais adiante muitas das que conseguem entrar sdo expulsas ¢ delas se 50 fala como se tivessem se evadido da escola. Nao ha evasdo escolar, Ha expulsdo, Em segundo, consideremos o ntimero i criangas populares que entram ou que nao séo proibidas cnt = cscola publica ¢ © ntimero destas que conseguem pasar do pri- miciro ano para o segundo ¢ deste para o terceito do 1° grau. Pensemos também, no nimero dos jovens das jovens das classes populares que fazem o chamado supletivo de forma pre- ciria em cursos noturnos, na sua grande maioria pagos. _ Os meninos ¢ meninas das classes médias da mesma geragao\, terorem 0 seu curso de 18 e 2° raus em ecole pga, > | tems, e, 20 chegar o momento de ingresar na uniersiade fazem revises de conhecimentos ¢ capacitagio em “cursinhos para submeter-se a0 vestibular. J Neste exato momento, as que podem pagar ¢ cursaram esco— las privadas caras, vém para as universidades gratuitas federais ¢ «staduais, Os poucos jovens pobres que conseguiram, a duras pe- nas, chegar ao fim dos cursos médios, ndo podendo competir com 0 outros, no tém outro seio onde se abrigar, sendo o das fuculdades caras, quase sempre sem rigor nenhum. Z A escola piiblica ndo anda bem, no porque faga parte de sua natureza no andar bem, como muita gente gostaria que fosse ¢ insinua que é A escola publica basica no anda bem, repitamos, por causa do descaso que as classes dominantes neste pals tém por tudo 0 que cheira a povo.,Por isso enfatizei na resposta an- ra necessidade de lutarmos por ela, os educadores ¢ as edu- terior a neces iloras progressistas. 7 Sindicato: Como voce esta vendo o processo de municipa- lizagio do ensino em todo o pais? Aspectos: privatizagéo do en- sino, clientlismg politico, dupla geréncia de recursos humanos, qualidade do ensino, descentralizagio “as avessas”. Paulo Freire: Toda vez. que penso em municipalizagao 0 que tne anima centralmente e me pée de imediato a favor do processo 51 € exatamente 0 que pode haver nele (¢ por que devemos nos bater) de democritico, de descentralizador, de antiautoritdrio. Para mim, argumentos s vezes corretos, vilidos, perdem sua validade porque deveriam ser levantados, néo contra ela, mas con- tra possiveis distorgdes dela, confundindo-a com desobrigagio do Estado diante da educagao. As vezes se fala da municipalizagao como se ela tivesse uma certa natureza imutivel que necessaria~ mente criasse ¢ estimulasse, por exemplo, 0 “caciquismo” ao nfvel | da luta politica ou a visio ¢ a pritica antidialéticas do “focalismo” | a0 nivel da educagio, Na verdade, a politica clientelista, caciquis- ta, autoritéria nao estd esperando pela municipalizagio para exis- tit. A visio focalista tampouco. © argumento, por outro lado, de que as comunidades mu- nicipais no tém competéncia, quer dizer, nfo tém gente com- Petente para gerir seus negécios no campo da educacio, da cul- tura, da sade etc, também nao vale. E coisa dbvia que haja caréncia das dreas municipais, mas € Sbvio também que, tendo de enfrentar suas dificuldades, elas as superardo e s6 as enften- tando aprenderdo a marchar. © que se imporia era um esforgo de colaboragio efetiva do governo central e dos governos estaduais bem como uma politica de intercimbio entre municipalidades. Numa sociedade como a nossa, em que 0 autoritarismo corta as classes sociais (entre nés € to autoritario 0 académico arrogante que olha os demais de cima ¢ de longe quanto 0 porteiro que toma conta da porta de entrada da sala dos professores numa noite de conclusio de cursos universitérios), todo esforgo nosso em favor das priticas democréticas € importante. Sindicato: Existe “algo” na escola formal vigente que pode set aproveitado? Paulo Freire: Sim. § setiagao escolar, por exemplo. A inte- gragdo vertical ¢ horizontal dos contetidos, a co-educacdo em to- dos os niveis. 52 Seria urgente, porém, superar 0 sentido propedéutico da se- riagio — 0 ensino do 19 grau preparando para 0 do 29 € o deste para 0 3: Cada provincia de ensino deveria propor uma espécie de plenitude” em si mesma de tal modo que, quem fizesse 0 19 jyrau, apenas, bem feito, se sentisse capaz de mover-se com os conhecimentos dele recolhidos ¢ néo se sentir frustrado por se haver experimentado num tempo de preparagéo para algo que ‘vio ocorreu. Sindicato: A transformagio da sociedade passa pela escola? ‘Até que ponto? Paulo Freire: Tenho dito, desde faz muito tempo, que a educagio néo € a alavanca para a transformago da sociedade por- que poderia ser. O fato porém de no ser, porque poderia ser, nao diminui a sua importéncia no processo. Esta importincia cresce quando, no jogo democritico, partidos progressistas alcan- gam 0 governo e, com ele, uma fatia do poder. Neste caso, tudo © que for possivel fazer de forma competente, para introduzir tmudangas democriticas no aparato escolar, deve ser feito. Forma- io permanente das educadoras, sem manipulagao ideoldgica mas com clareza politica, deixando iluminada a opgao progressista da administragio,| Reformulagio do curriculo, participagio popular na vida da escola, associagbes de pais, conselhos de escola etc. Se a escola, de corte burgués, se preocupa apenas com o censino autoritério dos contetidos, ocultando, no processo, razbes de ser de fatos ou falando de falsas razées deles, numa escola de joverno progressista se torna imperioso 0 ensino dos contetidos,/ aque se junte a leitura critica e desocultante da realidade. Finalmente, s6 numa compreensio dialética da relagio esco- lu-sociedade € posiivel no s6 entender, mas trabalhar o papel fundamental da escola na transformagio da sociedade. Sindicato: Como ve a escola de tempo integral? 53 Paulo Freire: Hi dias passados, noutra entrevista, recebi per- gunta semelhante. Vou me dar 0 direito de, mais uma vez, repe- tir-me um pouco. Nao me parece possivel pensar a pritica edu- cativa, portanto a escola, sem pensar a questo do tempo, de como usar 0 tempo para aquisigio de conhecimento, nao apenas na re- lagio educador-educandos, mas na experiéncia inteira, didria, da crianga na escola. Em excelente dissertagio de mestrado, a pro- fessora pernambucana Bliete Santiago, hoje secretatia de Educacéo da cidade do Cabo, préxima ao Recife, analisou, recentemente com lucidez, 0 uso do tempo, na escola, contra a ctianga popular. A escola progressista séria nao pode estragar 0 tempo, botar a perder 0 tempo de a crianga conhecet. Mas, s6 a partir, me parece, de um limite minimo de tempo para a pritica escolar & posstvel pensar em como usi-lo de forma produtiva. Esse limite minimo para mim é de quatro horas. Nao: vejo como trabalhar eficientemente com turnos de trés horas. Neste sentido, uma escola formalmente chamada de tempo integral pode desperdicar 0 tempo, do ponto de vista aqui discu- tido. A designagdo tempo integral em si nao faz milagre. E preciso saber 0 que fazer do tempo .. Sindicato: Qual € 0 papel do educador consciente da reali- dade © que se sabe agente transmissor de ideologias? Paulo Freire: Acho que © papel de um educador conscien- temente progressista € testemunhar a seus alunos, constantemente, sua comperéncia, amorosidade, sua clareza politica, a cocténcia entte 0 que diz.e 0 que faz, sua tolerancia, isto é, sua capacidade de conviver com os diferentes para lutar com os antagénicos. E estimular a diivida, a critica, a curiosidade, a pergunta, 0 gosto do risco, a aventura de criar. Sindicato: Dé-nos um enfoque das escolas de Sio Paulo € a perspectiva do PT na administragéo municipal para essas escolas? Paulo Freire: Posso dizer alguma coisa sobre as escolas da rede municipal de Sio Paulo. S40 654. Destas, 55 recebemos em estado deploravel, Tetos caindo, pocas d’égua enormes nas salas, 54 io desnuda, fossas entupidas, ratos ameagadores, apesar da re- clamagdo que suas diretoras fuziam desde comecos do ano passa- «lo. Um descalabro, afinal, Mas, se 0 estado calamitoso alcanga 55, isto nao significa, dle modo nenhum, que as demais estejam todas em excelente forma. Todas elas exigem trabalho imediato de conservagio para «que no comecem a alcangar niveis de profundo estrago. Recebemos a rede escolar da cidade de Sao Paulo revelando 4s marcas de uma administragéo que nio apenas descuidou de forma abusiva, a coisa publica, mas intimidou e violentou as cons- ciéncias de educadoras, de serventes, de todos. Erundina encon- trou a Prefeitura endividada, as obras suspensas, os empreiteitos sem receber dinheiro desde meados do ano passado e a direita a acusa de incompetente porque as obras esto paradas ... Na Se- cretaria da Educagio, ao lado da luta imediata para a recuperagao clas escolas desfeitas (e sem dinheiro) teriamos, fidis & opgio de nosso partido, de comegar a pensar em reinventar a escola. Em mudar sua cara, Para isto, teremos que reformular 0 curriculo ¢, isto, ja estamos trabalhando. Por causa disto, por outro lado, ‘cmos também que repensar a administragZ0, melhorar os meios de comunicagio entre os varios setores, pondo-os todos a servigo «la escola, que 0 espago fundamental da Secretaria, em que a pritica pedagégica se dé. Estamos todos empenhados na luta por uma escola piiblica municipal competente, em que as criangas percebam — vivendo que estudar € tao sério quanto prazeroso. 55 “Terra NiioWai Como o senhor vé a situagao do Brasil hoje ~ de um lado, o desenvolvimento econémico que coloca o Brasil como uma grande poténcia, de outro, a miséria castigando de forma tio dura as maiorias populares? Nao creio que ninguém, com um minimo de sensibilidade, neste pals, nao importa qual seja a sua posigdo po- litica, possa conviver em paz com una realidade to cruenta € injusta quanto esta, Uma coisa, porém, € \Gigimentos manhosos — “a preguiga do povo", a incultura do povo". “Roma nfo se fez num dia” — de ago; a outra € quando vejo, sobretudo no Minha sensibilidade ferida faz mais, contudo, do que "neva concede mio de 1989 eva tina Tera Nona quando sei ue, entre os que conseguem entrar, a maior ¢ ainda edi dels quese sud a wok le oe quando percebo o ‘numa cidade como Sao Paulo, hd aptoximadamente um milhio de meninos © meninas nas ris. Ma junto ao horror : uma \llveitos sociais do cidaddo, ressaltando o diteito bésico & loca) jwiblica © popular. . Teae: Como os alfabetizandos deveriam ser envolvidos na eampanha? Vaulo Freire: Sendo ouvidos nas suas expectaivas, apresen- ‘anclo propostas, avaliando as experiéncias existentes (oficiais ou »). Nesse sentido € de fundamental importancia que 0s diversos stores — universidades, sindicato e principalmente a imprensa abram espagos,criem eanais para que os alfabetizandos possam We espressar, Acho que deveria ser uma das principais preocupa- ies ¢ iniciativas durante © ano da campanha, visto que até hoje {08 maioria dos eventos sobre a alfabetizasio tém participado ape- {ius allabetizadores ¢ educadores. Actedito que esté na hora de os wlabevizandos tomarem a palavra. Teae: Que Fangio o Icae pode ter no movimento de alfabe- vagao? 69 Paulo Freire: Actedito que o Icae deve excrcet sobretudo Fangio de estimular ¢ incentivar ages amplas e unitirias nos pal Para que eles tenham moradia, comida, trabalho? Paulo Freire: O analfabeto, ptincipalmente 0 que vi grandes cidades, cabe, mais do que ninguém, qual a Importing de saber ler ¢ escrever, Para a sua vida como um todo. No entant nao podemos alimentar a ilusio de que o fato de saber ler esctever, por si s6, v4 contribuir para alterar as condigées de me radia, comida e mesmo de trabalho, Essas condigbes 56 vao ser alteradas pelas hutas coletivas Celta por mudangas escruturais da sociedade. Sie oinilee Vara Balsa aihig yes sen “ ds classes oprimidas, _ trabalho do Ano Internacienal da Altbecizacte ee | n aspectos a ser considerados numa refleio sobre 0 te- psi ‘wn, Poderiamos discutt, por exemplo, a pedagogia do oprimido jvonvlo-se em prética no interior do sistema escolar brasileiro, da via de 12 grau, da do 2° ou 39, pensar em tomo dos obstéculos {ieriais, orcamento, condigées fisicas das escolas como pensar ‘9s mio menos materiais obsticulos, de ordem ideoldgica, quais nos confrontamos ao tentar por em prética uma yo cm favor da emancipacio das gentes. Poderiamos ainda © mesmo esforgo em favor de uma tal pritica educativa sistema escolar, no campo da educasio informal ¢ ou ‘lb Lohman: Como & possivel a Pedagogia do Oprimido hoje, considerando que a tealidade atual da educagéo bras totalmente diversa da do inicio da década de 60? Pile Freire Me parece dbvio que a pergunta se refere nao W livio Pedagogia do Oprimido, mas a uma certa compreensio th educagio que se compromete com a necesséria emancipagio © Hnievista concedida a El6i Lohmann 20 Jornal da Fandocst, Pundagio para » Dewenvolvimento do Oeste do Estado do Parand, do dia 30 de maio de n

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