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(Capernos cexu, Série2 -n°8 = 1997 ATRAVES DA ROTULA : SOBRE MEDIACOES ENTRE CASAS E RUAS* Paulo César Garcez Marins™ Resumo: O artigo discute o caréter mediador de um elemento arquitet6nico que guarnecia macigamente portas e janelas das construgSes urbanas, a r6tu- Ja, © que passaram a ser alvo de combates normativos em vérias cidades brasileiras, depois da transmigragao da familia real para o Brasil, em 1808. Os relatos de viajantes, a historiografiae textos académicos classicos como os de Gilberto Freyre ¢ Roberto Da Matta enfatizam a dicotomia entre espagos domésticos ¢ logradouros piblicos, entre casa e rua, recorrendo sempre a esteredtipos comportamentais das elites da América Portuguesa, para quem © recato € © pudor constitufam condigdes definidoras de sua existéncia, so- bretudo em um contexto trespassado pela escravidao. O exame do papel da r6tula permite ver uma continuidade entre casa € rua , que se contrapie visio dicotomica. Palavras-chave: rétula; casa/rua; dicotomia/continuidade: O presente trabalho prende-se a intengéio de oferecer elementos para abor- dar criticamente a relago entre casa e rua, entre espagos domésticos e aqueles de uso comum, da forma como se apresenta consagrada em grande parte da produgo dos historiadores, mas também de arquitetos, antropélogos e sociélogos. Tais situ- ages espaciais — casa e rua — foram concebidas, na maior parte dos estudos relati- vos aos perfodos colonial e imperial, como dimensdes essencialmente dicotmicas, cujas préticas sociais perfilavam-se de maneira distinta. O exame de fontes textuais, e iconograficas permite entrever contudo mediagées intensas entre esses espagos ~ casas ¢ ruas (optamos deliberadamente pelo plural) ~ que vaio ao encontro de trabalhos recentes que apontam formas bastante diversas de habitacao ¢ sua rela- gio com 0 uso de largos ¢ ruas das cidades brasileiras, distantes dos esterestipos vinculados a familias estaveis ou As das elites." O uso persistente de rétulas, treligas de madeira que guarneciam quase a totalidade das construgdes urbanas brasileiras até a chegada da familia real portu- * “Trabalho upresentado no 23° Encontro Nacional de Estudos Rurais e Urbanos, maio de 1996. ** Pés-graduando em Hist6ria Social, Universidade de Sao Paulo /Faculdade de Filosofia, Letras e Cigncias Humanas, Departamento de Hist6ria, Este texto apresenta aspectos da tese de doutoramento em fase de finalizagao, desenvolvida sob a orientagao de Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias. 1 Abordamos alguns desses aspectos em: MARINS, PCG. Gelosias ¢ muxarabis: arquitetura, sociabilidade e poder piblico em Sao Paulo (1820/1886). No prelo. 52 MARINS, Paulo César Garces. Através da rétula: sobre mediagSes entre casas © ruas. guesa em 1808, ¢ que persistiria intensamente nas cidades mesmo sob constantes interdigGes legais, seré aqui o ponto de referencia para a interpretagio nao da dicotomia, mas da intensa continuidade entre casas e ruas. Gilberto Freyre, no classico Sobrados ¢ Mucambos, intentou a primeira grande tentativa de compreender a multiplicidade das formas de habitagao nas cidades brasileiras, as clivagens que permeariam o uso dos espagos domésticos ea convivéncia entre essas mesmas formas de habitagao no tecido urbano. Entretanto, seu livro, que foi editado em 1937, consolida certas abordagens jé presentes nos trabalhos de arquitetos ligados a historiadores como Oliveira Lima e Luiz Edmundo ao movimento neo-colonial, que retiravam dos relatos dos viajantes estrangeiros o estereGtipo da casa claustral, refiigio dos valores morais, e dos anseios de discri- 40 e distingo que eram ambicionados pelas familias. Tais anseios naturalmente prendem-se nao a totalidade dos segmentos que compunham as sociedades urbanas contidas no espago geogréfico brasileiro, mas enfaticamente aos seus segmentos de clite. A énfase dos estrangeiros nas descri- gGes das residéncias que os recebiam, quase sempre raras, foram tomadas posteri ormente como paradigma do arranjo social e do préprio habitar brasileiro. O sobrado ea ma eram inimigos, disse G. Freyre em Sobrados e Mucambos?, As rotulas, treligas de madeira herdadas da ocupagdo moura na Peninsula Ibérica que cobriam a quase totalidade das casas coloniais brasileiras, serviam para selar a inimizade entre tais espacos. Suas sombras permitiam o olhar furtivo, resguardando mulheres nas residéncias lacradas pela tirania mis6gina do citime dos maridos e pais. Ver sem ser visto, € 0 mote que percorre grande parte dos relatos ¢ trabalhos que se debru- garam sobre a comunicagio entre ruas ¢ casas, essas quase sempre surpreendidas com suas donas em auséncia, Na mesma linha de G. Freyre, mas ainda mais generalista, esté o texto de Roberto Da Matta, denominado em sua versio definitiva Casa, rua e outro mundo: 0 caso do Brasil. Nele, Da Matta interpreta casa e rua como espagos bindrios antagénicos, opostos, que em suas miltiplas exclusdes abrigariam metéfora da sociedade brasileira, Ope casa e rua—e a escolha do singular aqui é importante - por contraste de cores fortes, que se definiria pela prética segregada de atividades aeles consideradas como narmais. “Nao dormimos na rua, néo fazemos amor nas varandas, no comemos com comensais desconhecidos, néio ficamos nus em piibli- co, no rezamos fora de igrejas, etc...”, escreveu Da Matta? 2 “O patriarcalismo brasileiro, vindo dos engenhos para os sobrados, niio se entregou Logo a rua; por muito tempo foram inimigos, o sobrado ea rua. E a maior luia foi travada em torno da mulher por quem a rua ansiava, mas a quem o pater familias do sobrado procurou conservar 0 mais possivel trancada nas camarinhas e entre as mulecas”. FREYRE, Gilberto M. Sobrados e mucambos: decadéncia do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano, 6aed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981, p. 34. 3 DAMATTA, Roberto. A casae a rua. So Paulo, Brasiliense, 1985, p. 35."..embora existam muitos brasileiros que falem uma mesma coisa em todos os espagos sociais, 0 CADRRNOS CrRU. Série 2 -n° 8-197, 33 Optando por uma expectativa recente, caracteristica a partir da Repablica, ainda assim demarcada socialmente, Da Matta generaliza no tempo e nos espago uma segregacdo que estranharia Vilhena ou a infinidade de atas camarérias das principais cidades do Brasil Colonial e Imperial que justamente queixavam-se da- quelas priticas serem executadas em piblico, na rua, especialmente pelos escravos ¢ forros despossufdos, que nao participavam ou nfo alcangavam os cédigos ambi- cionados por partes, bem dito, das elites locais. O carter a-hist6rico dessas abordagens excludentes leva 4 compreensiio dessas miiltiplas préiticas e apropriagdes dos espagos urbanos como patologias, disfungGes de uma sintaxe consagrada por Da Matta como normal, como 0 espera- do pela maior parte da populagao. As excegies que elege reforgariam esse mesmo sentido, visto que afirma nao serem de fato todos participes desta clivagem, e para tanto langa mao da figura dos “malandros, meliantes, pilantras ¢ marginais em ge- ral”, esquecendo-se de largas parcelas da populagao que encontram na rua nao 0 espago da prética da violéncia mas sim de sua propria sobrevivéncia, As ruas cram, e ainda sfio, o espago de permanéncia senfo continuo, mas pelo menos o que ocupa maiores horas de muitos mais do que os tipos elencados por Da Matta.’ Prossegue ainda demarcando a dicotomia entre casa e rua numa escala de dimensOes urbanas, afirmando serem as zonas ocupadas por pobres ou pelo meretricio como segregadas espacialmente, singulares, distantes do restante do tecido urbano’, Lembra aqui de forma indireta 0 mesmo paradoxo forjado por Gilberto Freyre, aquele do sobrado e do mucambo, tipos rigidos ¢ diametralmente opostos que deixam escapar, como também no texto de Da Matta, nao sé os muitos que habitam as proprias ruas, mas a multidao de casas térreas que povoavam as cidades coloni- ais, imperais e republicanas, as chogas precdrias como os prprios mucambos, ¢ os incontaveis cortigos e sobrados abrigando sob teu telhado nfio mais a tnica familia de elite, mas familias ou individuos que habitavam em conjunto. Eram estas formas de habitar que eram partilhadas pela maior parte das populagées urbanas do Brasil, e estavam nao segregadas mas espalhadas por todo o tecido urbano. A idéia, e a pratica de segregacAo é caracteristica dos anseios da era republicana, inspirada nos modelos haussmanianos de representagao e zoneamento social que, como todos sabemos, esti longe de ter dado resultados concretos na maior parte das grandes cidades e capitais brasileiras contemporéneas E justamente essas mesmas casas térreas, ¢ esses sobrados que jé nao abri- gavam seus primeiros habitantes que permitem —¢ em grande escala—o repensar da dicotomia forjada por Freyre e acentuada por Da Matta, Nao eram todos os sobra- normal ~ o esperado e legitimado ~ & que casa, rua e outro mundo demarquem fortemente mudancas de atiaude, gestos, roupas, assuntos, papéis sociais e quadro de avaliagao da existéncia em todos 0s membros de nossa sociedade.” Idem, p. 41. 4 Idem, p. 35, 41, 43, 47. 5 Ibidem, p. 39. 54 MARINS, Paulo César Garcez. Através da rotula: sobre mecliagées entre casas © ruas. dos inimigos das ruas, nem mesmo todas as casas avessas ao trato intenso com as ruas. Da Matta exagera o paradigma de Freyre, onde este disse sobrado (forma arquitetnica e modus vivendi), aquele interpretou ¢ expressou casa (genérica c... singularmente)*, As ambig6es de reclusio, de diferenciagfo social pela exclusfio do olhar, daquele ver sem ser visto pudico e senhorial, daquela oposico entre sobrado ~e no necessariamente casa - e ruas ndo era _necessariamente partilhado pela maior parte dos habitantes das cidades. ‘A continuidade entre espacos, a indefinicao entre casas ¢ ruas, entre ruas € ruas, entre reas que iam em espectro do densamente construfdo ao mais densa- mente rural, nas periferias que enredavam-se e interpenetravam-se com as ruas mais fronteiras, todos eles eram espagos propicios as vidas que nfo se prendiam aos pardmetros econdmicos e comportamentais dos segmentos de elite, mas justamente aqueles vastos que dependiam da sobrevivéncia improvisada no dia-a-dia, das fugas do fisco, das fugas das milicias, dos senhores de escravos. 7 Eram vitivas, solteiras e amancebadas pobres e remediadas, brancas, pardas enegras, livres, forras ¢ escravas, quitandeiras, aguadeiras, lavadeiras ¢ feiticeiras, escravos ¢ escravas fugidas, homens e mulheres chefes de fogos miserdveis, aquilombados nos matagais dos terrenos destapados e nas matas, mas também alojados fortuitamente nas casas pobres das cidades, vivendo como podiam de trabalhos ou furtos. Homens pobres ¢ forros privados da ascensio social, de car- ‘gos, ou de meios de vida seguros e est4veis. Todos eles — que siio muito numerosos = no podiam ou nao se serviam da dicotomia entre casa e rua, do controle portanto que se poderia estabelecer em espacos tio demarcados.* E justamente nas habitagdes desse vasto espectro social que podemos perceber através das fotografias ¢ representagées pict6ricas a maior resisténcia no arrancamento das rétulas, aquelas mesmas que segundo quase a unanimidade dos relatos de viajantes, das crénicas, ¢ ainda dos trabalhos académicos, serviriam ao ver sem ser visto, Acreditamos nao ser 0 pudor ¢ 0 recato distintivo que moviam a resisténcia do uso das rétulas, que passaram a'ser perseguidas por motivos varios a partir da chegada da Corte de Maria I ao Brasil. O vidro compulsério era caro, sem duivida, para a maior parto dos bolsos dos cidadaos, mas para aqueles que viviam no provi- s6rio, no discreto ¢ no fugidio, as sombras das rotulas eram abrigo seguro. Mas 0 uso das rétulas em gelosias e balcSes era também — o que gostarfamos de ressaltar especialmente neste trabalho — aquele que permitia, nao a reclusao total da luz, da segmentacao total de espacos domésticos ¢ piiblicos, mas aquele uso que permitia 6 Ibidem, p. 46-7. 7 Acsse respeito ver a abordagem para o caso paulistano em: DIAS, Maria Odila Leite da Silva, Quotidiano e poder em Sao Paulo no séc. XIX. Sao Paulo, Brasiliense, 1984. 8 Idem. Tb: WISSEMBACH. M. Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivencias ladinas: escravos e forros no municipio de Sdo Paulo, 1850-1880. Sio Paulo, USP, 1989. (dissertagao de mestrado) Canexnos Creu. Série? -n° 8 - 1997 55 uma intercessdo turva, que permitia olhares ¢ tratos sem que os limites materiais entre casas € ruas fossem transpostos. De certo que os pudores ¢ recatos eram apandgio das elites urbanas, porta- doras de tradigio mourisca sim, mas muito mais de uma intensa necessidade de diferenciagao social numa sociedade trespassada pela escravido ¢ pelos precon- ceitos a ela associados. Eram também a nostalgia dos decafdos ¢, afinal, os distin- tivos daqueles que queriam ascender socialmente, como era ironicamente o senho- rio aos forros que empenhavam-se em logo comprar seus prdprios escravos. Ro6tulas podiam oferecer a ilusio, portanto, de diferenciagao social, mas seus intersticios permitiam, mais que os namoricos platénicos consagrados pela literatura roméntica, o trato entre aquelas mulheres forgadas ao comércio de seus favores ou A mancebia sem que precisassem sair de suas casas, devassarem-se pelos vidros ou janelas destapadas, ou permitir a entrada de qualquer um. As Venus vulgivagas notadas em intenso mimero por Vauthier no Recife de 1840, e'por Saint- Hilaire em Sao Paulo, resguardavam sua “degradagdo” aos olhos dos habitantes tio preconceituosos quanto elas préprias, habitando as casinhas dos arrabaldes ou das ruas centrais, portadoras quase invariavelmente das r6tulas perseguidas. Estudos recentes apontam escravos e escravas fugidos mimetizados intensa- mente aos forros e fortas, e escravos de ganho que povoavam as ruas € casas das grandes cidades. Espiar 0 movimento das ruas para poder perceber momentos ade- quados de entrar ¢ sair das casas abarrotadas de todo tipo de gente era algo possivel através das rétulas, sem que a comunicagio com os passantes fosse interrompida. Mesmo para os integrantes das elites urbanas, ou para os remediados, € impossfvel compreender sua existéncia sem que essa reclusio intensa fosse parti- da, mediada, numa mera formalidade que, ao preservar a diferenciago, ainda permi- tiaa comunicagao, uma sociabilidade intensa e diferente daquela dos saldes marca- dos pelos modelos franceses da era da Ilustragao. Ou seriam entio todos por de- mais ensandecidos, em anos de uma absoluta reclusao urbana privada das largue- zas espaciais da vida agraria, nos engenhos ou fazendas. As representagdes iconograficas de estrangeiros como, dentre muitas ou- tras, as muito conhecidas de Jean-Baptiste Debret, ¢ descrigdes minuciosas como as que 0 engenheito francés Vauthier deixou em cartas escritas no Recife, permitem de imediato a constatagdo de que a alegada extingo das rétulas postas na ilegalida- de ndio se processara rapida e eficazmente, em nenhuma das grandes cidades do perfodo joanino e no préprio Império.” Mas esses testemunhos possibilitam ainda verificar que a propria configura- ¢4o material do artefato permitia nao a separagao total entre o espago visual das Tuas € casas, privilegiando ainda esta ultima no assimétrico ver sem ser visto, mas sim uma notavel iluminagao dos interiores domésticos. A manutengo das rétulas permitia a continuidade, 0 continuum, entre casas ¢ ruas, assegurando a possibili- 9 DEBRET, J.B. raté torrado”, ass., 1826. 56 MARINS, Paulo César Gareez. Através da rétula: sobre mediagSes entre casas € ries. dade de comportamentos e formas de vida como as que citamos acima, As palavras de Vauthier, a quem atribufmos muita argiicia na observagao e relato das miltiplas formas de habitagao do Recife, permitem uma intensa correspondéncia com as re~ presentacées iconogréficas que selecionamos na pesquisa que subsidia a elabora- dio de nossa tese por concluir. Diz Vauthier que: (...) um trago earacteristico das cidades brasileiras, nas partes de construgao mais recente, onde o terreno nao € ainda disputado tio avidamente, € a casa que s6 tem o rés-do-chio, a casa terreia [sic], que s6 por si enche ruas inteiras. (...) A sala da frente, por onde se entra, abre sobre a rua por uma grande porta dispondo de dois modos de fechamento: um, colocado por deniro, 6 um batente inteirigo que 86 se cerra A noite; outro é uma porta de caixilho com treliga de madei- ra. O caixilho superior, que ocupa de dois tergos de altura, abre-se independentemente da porta e de tal maneira que se pode, nao sé reconhecer 0 visitante, mas também confabular com ele antes de 0 introduzir.(...) Algumas vezes, sobretudo nas casas de estilo antigo, o fechamento exterior das janelas tem outra disposigao. Séo folhas duplas de rétula, abrindo-se por baixo e deixando, para cima do vio, uma parte completamente vazia, que varia de um tergo a um quarto de altura, Essa disposicdo € encontrada ainda nas janelas dos andares superiores, quando estas ndo se abrem sobre uma sa- cada ou varanda antiga. (...)." A tapagem parcial dos viios de janelas ¢ portas permitia uma iluminagio suficiente para 0 reconhecimento ¢ o trato de dentro para fora, e também o inverso, ampliando a insolago que a propria rétula, vazada como é permite, atingir os interi-~ ores que guarnece. Seja para aqueles habitantes presos aos padrdes paradigmiticos praticados pelas elites, ou para aqueles que simplesmente prescindiam das diferenciacdes ¢ segregacdes rigorosas entre casas e ruas, a persisténcia das rétulas auxiliava 0 prosseguimento de suas formas de vida ao longo do séc. XIX, paulatinamente perseguidas pelas autoridades institufdas no poder piblico, que combatiam as for- mas de convivio, trabalho e sociabilidade estabelecidas no tumulto organico dos arranjos sociais distantes dos padrdes estéveis das elites. Acreditamos, portanto, que a persisténcia das rétulas alinha-se a resistén- cia intensa que os segmentos sociais oprimidos pela escravidao ¢ pela insurgéncia do fortalecimento do poder paiblico — imbusdo de novos padrées filtrados das matri- zes das capitais burguesas européias — apresentavam em diversas cidades brasil 10 VAUTHIER, L.L. “Casas de residéncia no Brasil”, (FREYRE, G. ed.) In Revisia do Patriménio Hist6rico e Artistico Nacional, 7:169-70, 1943. Capernos cexu, Série? -n® 8 - 1997 37 ras justamente ao processo de constituigtio de uma diferenciagaio rfgida entre casas eruas. Os textos de Gilberto Freyre e Roberto Da Matta parecem prender-se mais a propria experiéncia vivida por seus proprios autores nas cidades em que vivemos, ja muito marcadas por esse anseio diferencial, do que propriamente pela historicidade das localidades a que seus trabalhos se referem genericamente. Se, contemporaneamente, bairros inteiros de favelas, numerosissimos corti- 08, verticais ¢ horizontais, mendigos c sem-tetos em geral, meretrizes, migrantes € marreteiros fazem parte integrante do tecido das cidades brasileiras, permeando as. ruas centrais ¢ dos bairros, extrapolando e muito os c6digos “normais” eleitos por Da Matta na apropriagio e prética de casa e rua, a experiéncia passada destas mesmas cidades brasileiras apontam formas de convivio muito distante de dicotomias. A persisténcia de um simples detalhe arquitetGnico permite entrever panora- mas muito mais complexos que um sossegado ¢ harmOnico arranjo entre casas ¢ ruas, Importante por afinal mediar os miiltiplos espagos e arranjos domésticos e as diversas préticas das ruas das cidades brasileiras, através das rotulas ligavam-se dimensdes nem sempre muito distintas. Da Matta alertara j4 para o papel mediador das janelas “entre 0 espaco interno das casas ¢ 0 espago externo das ruas” , ao lembrar 0 relato de Ewbank que descrevia os pregociros ¢ mercadorias dos ambulantes passando “por baixo das janelas” ''. Cumpre entretanto buscar a compreensio interpretativa de espagos no to antagonicamente mediados, néio aquilo que passava por baixo das janelas, dos sobrados portanto, mas aquilo que se continuava através de janelas, portas e rétu- Jas que abrigavam a maior parte das populagdes urbanas, pouco presas aquela descontinuidade. Abstract: This article discusses the mediating character of an architectural clement of urban constructions, which furnished massively windows and doors, the “rétula”. Itbecame object of prohibition by government rules after the transference of the Portuguese Royal Family to Brazil in 1808. The voyagers’ accounts, the historiography and classical studies (among others, those of Gilberto Freyre and Roberto Da Matta) point to the dichotomy between house and street, making use of behavioral stereotypes of elites of the Portuguese America, to whom the modesty and chastity were the defining conditions of their existence, above all in a context marked by the slavery. ‘The role of the “rétula” analysis allows us to consider the continuity between house and street instead of a dichotomic view. Key-word étula”; house/street; dichotomy/continuity 11 DA MATTA, op. cit., p. 49.

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