You are on page 1of 9
a 4 OMARXISMO Assim como os historiadores da escola metédica, dita “positivista”, ¢ como 0s fildsofos da critica da razao his- t6rica, 0 marxismo pretendeu recusar as filosofias da his- t6ria e fundar a “hist6ria cientifica”. S40 caminhos diferentes que visam a realizagao de um mesmo objeti- vo. A histéria metédica, esperamos té-lo demonstrado, ainda conservava implicitamente uma filosofia da hist6- ria iluminista pré-revoluciondria na Franga e, na Alema- nha, um hegelianismo “relativizado”; a filosofia critica da hist6ria quis substituir Hegel por Kant, mas ainda a integravam ideais da filosofia hegeliana. Teria o marxis- mo conseguido romper definitivamente com a filosofia da hist6ria e criado a histéria-ciéncia? Vilar (1982) esta convencido de que sim. Segundo esse autor, marxista e do grupo dos Annales, a afirmagdo do materialismo filo- séfico, agora hist6rico, contra as filosofias idealistas que © precederam foi 0 primeiro e fundamental passo na- quela direcdo. Para o materialismo histérico de Marx, 0 material histérico é analis4vel, observavel, objetivavel, quantificdvel. Esse material assim “objetivamente traté- vel” ndo séo as expressdes do Espirito ~ a religido, 0 Estado, a cultura, a arte, trataveis intuitivamente ~, mas as “estruturas econdmico-sociais”, consideradas a raiz, de toda representacdo, de todo simbolismo, de todo o sentido de uma época. Para Vilar, a hipétese fundamental de Marx seria: “A matéria histérica é estruturada e pen- sAvel, cientificamente penetravel como toda outra reali- dade”. (1982, p. 383) Seu objetivo, prossegue Vilar, seria a ctiagdo de uma Giéncia da hist6ria ao mesmo tempo coerente, gracas a um esquema tecrico sélido e comum, total, capaz de nao dei- xar fora de sua jurisdigao nenhum terreno de andlise itil, eenfim dinémica, pois, nao existindo nenhuma realidade eterna, torna-se preciso descobrir o principio das mudan- $as. Marx nao teria posto o problema a que as duas ten- déncias anteriores se dedicaram, se as ciéncias humanas se aproximam ou se afastam das ciéncias naturais. Para ele tal divisio seria conseqiiéncia da separacao do homem da natureza: reintegrado a ela, a ciéncia seria uma s6,a do homem natural, a da natureza hist6rica (FREuND, 1973). Para Vilar, o marxismo nao uma filosofia da histé- ria, embora seja uma “filosofia”: néo € positivista, pois no recusa a metafisica com outra metafisica; nao ofere- ce um lugar sistemtico ao incognoscivel ~ 0 inexplicavel hoje s6 nao foi explicado ainda. Supor um “sentido” para a historia, considera Vilar, equivale a supor que a histé- tia € “racionalmente estruturada” e pensavel; portanto, algo que nao implicaria necessariamente uma filosofia da historia. Mark teria criado uma “teoria geral” do mo- vimento das sociedades humanas. Essa teoria geral seria uum conjunto de hipéteses a serem submetidas a andlise logica ea verificacao. Suas hip6teses principais so: (a) a Produtividade é a condigao necesséria da transformagao historica, isto é se as forcas produtivas néo se modifi. cam, a capacidade de criagao da vida humana se imobili- 2a, e se elas se modificam tudo se move; (b) as classes Sociais, cuja luta constitui a propria trama da historia, do se definiriam pela capacidade de consumo e pela renda, mas por sua situacio no proceso produtivo; (c) a correspondéncia entre forcas produtivas e relagdes de produgio constitui o objeto principal dabistéraiincia,que a aborda com os conceitos de “modo de produgao” e “for: macdo social” (Vitar, 1982, p. 356). Esses ts momentos interligados constituem uma “hipotese geral” sobre o movimento das fae objeto da histriaciéncia: uma formagéo social concreta, que € uma estrutura contraditéria, uma totalidade eal consigo mesma, tendendo a desintegracdo. A es tia éncia trata da luta de classes no quadro do desenvolvimen- to das forcas produtivas. A abordagem desse objeto € “conceitual” ~ através do conceito maior de “modo de pro- dugéo" e de uma série de conceitos mediadores. Portanto, a tealidade hist6rica estruturada: grupos de homens, que ocupam lugares contraditérios no processo produtivo, en- tram em relacéo de luta—um grupo busca manter as oe divisées de papéis, outro tenta o rompimento de tal divi- sio. Permanéncia e mudanga formam uma eae ese explicam reciprocamente. A abordagem da am a terial” seria “cientifica’. Aquela realidade nao expres sio do Espirito, mas algo em si, concreta, materialis ei historiador, ao abordé-la, nao realiza a reflexao ea tuinte da autoconsciéncia do Espirito. Entre a realidade concreta e 0 pensamento ha descontinuidade: 0 ense- mento quer conhecer “conceitualmente” a realidade dada = que nao € a exteriorizagao do pensamento, es Hegel. O conceito, em Marx, é uma reconstrugio ideal de algo exterior a ele, a realidade hist6rico-concreta. Consideramos que, talvez, Marx recupere uma i egeliana e a “cientificisa”. Para Hegel, as agdes humaras revelam a intencdo de um sujeito e expressam tember igo que 0 sujeito ignora, a vontade do Espitito. A ago, vt dual ou coletiva, possui dois niveis: consciente e inconsci ente, Onivel inconsciente, em Hegel, é 0 Espirito; em Marx, 6 a estrutura econémico-social, que limita e circunscreve a ago do sujeito individual ou coletivo. Essa tese marxiana, ia Parece-nos, é fundadora da cigncia social. A tese primeira da ciéncia social seria a versio materialista marxiana de uma idéia idealista hegeliana: os homens fazem a historia — ha uma multidao de eventos, uma dispersao de iniciati- vas produzidas por individuos e grupos - e no sabem que a fazem ~ esta “aco livre” esté condicionada pela estrutura econémico-social, que sé pode ser conhecida conceitualmente. A acao concreta dos individuos se expli- ca por um “real abstrato”, as estruturas econémico-sociais, O papel da ciéncia social é revelé-las pelo trabalho do con. ceito. Os grupos atuantes, imediatamente, nao conhecem a estrutura maior que os circunscreve, pois essa 56 € apre- endida pelo pensamento, pela mediaco conceitual, Omarxismo, enquanto ciéncia da histéria, tomaré como objeto as estruturas econdmico-sociais, invisiveis, abstra. fas, gerais, mas “chao” concreto da luta de classes e das iniciativas individuais e coletivas. Para Marx, os indivi. cluos s6 podem ser explicados pelas relagées sociais que mantém, isto é, pela organizacio social a que pertencem e que 0s constitui como eles sao (cf. Tese VI sobre FEvERBA- cH). Cada mod6 social de producio criaria os individuos de que necessita. Nao haveria um homem “universal”, mas © concretamente “produzido” pelo conjunto das relagdes sociais de producto. Para se compreender o processo his. t6tico, o conceito principal deixa de ser o de “conscién. cia”, que supée a hipotese do sér espiritual da hist6ria, ¢ tomna-se o de “produgio”, que supde a hipétese materiae lista do “ser social"; um ser relacional situado em um tempo e em um lugar. Embora antimetafisico, Marx trata de um objeto exterior, de um “ser” —o ser social organizado Para a producao e reproducao da vida imediata. Esse “ser social” € materialista, objetivo, concreto, exterior a0 pensamento. A ontologia marxista é “relacional” —o ser social ndo é uma “coisa”, e sim relacées histéricas determi- nadas. Ao mesmo tempo que absolutamente historicizado, esse ser conservaria um residuo intemporal, presente em todas as formagdes sociais einultrapassavel: a relagio in- superdvel entre homeme natureza. Mas essa relacao trans- historica muda permanentemente de qualidade nos diferentes lugares e épocas. Assim, Marx ndo seria meta- fisico, pois ndo rastreia substéncias originais, primeiras, mas 6 ontélogo, pois se refere a um “ser” — as relacdes sociais que constituem 0 modo de produgio capitalista (Scena, 1976}. Enquanto “ciéncia” da histéria, omarxismo apresenta irés hip6teses principais: (a) enfatiza o papel das “contradig6es”, priorizando © estudo dos “conflitos sociais”. Hobsbawm con- sidera que essa é a hipétese mais original de Marx, a contribuicao espectfica de Marx a historiogra- fia, pois as teorias histéricas anteriores prioriza- vam a harmonia, a unidade, a continuidade, entre as diversas esferas sociais (Hosssawm, 1982); (©) omarxismo foi uma das primeiras teorias “estru- turais” da sociedade. Ele é um estruturalismo ge- nético, que afirma a contradi¢ao presente na estrutura, que a levara a transi¢do a outa estru- tura: Assim, abandonou a énfase no evento e abriu: © caminho da histéria “cientifica’.O conhecimen- to da sociedade deixou de ser o conhecimento das atividades individuais e coletivas em si, de claradas explicitamente, organizadas em discur- 50s universalizantes, legitimadores, expressas em eventos transitérios. A “verdade” de uma sociedade no esta em seu “aparecer”, intencional e factual, mas na inserg4o do aparente, visivel, explicito, em uma esirutura econémico-social que nao é mais o Espirito, mas uma correspondéncia entre forcas produtivas e relagdes de producdo. Essa estrutura econ6mico-sociel, invisfvel e abstrata, mas real, é © objeto da historia-ciéncia, que a apreende con- ceitualmente, A ciéncia social, no século XX, discutiré a compre- ensdo marxiana dessa estrutura, duvidaré do con- ceito de modo de producdo e recusar4 a determinacio, em tiltima instancia, das relagées Sociais de producdo, mas reteré a tese central: os eventos histéricos e sociais se explicam pela “es- trutura” ~ conceito cuja compreensio variaré de escola para escola ~ que os sustenta e condiciona, Tal estrutura é sempre um “real abstrato”, apreendi- da pelo conceito. Para Vilar, passar A pesquisa de mecanismos que ligam a sucesso dos eventos A dinamica das estruturas, eis a lenta conquista dos melhores historiadores do século XX. No es- Sencial, ela conduz a Marx (1982, p. 374; Russ, 2000). Marx iniciou a busca de regularidades na hist6- tia, ou seja, da estrutura invisivel, o solo dos inti- meros fatos que constituem a realidade vistvel, A realidade historica é uma “estrutura em proceso”, Pois internamente contraditéria. E regular e irre- gular, permanéncia e mudanca, e sua abordagem Precisa reconstruir a dialética de sua sinctonia e sua diacronia. Seu método de abordagem dessa “estrutura-processo” é “cientifico” e consiste na descoberta da estrutura interna das formacées so- ciais, 0 modo de producao, que se oculta sob o Seu funcionamento visivel; o modo de produgio é uma estrutura invisfvel que subjaz e dd sentido as relagdes vistveis. Nao que os eventos da superficie sejam estranhos ou irrelevantes: eles sio a estru- fura em seu aparecer e, portanto, nao se identifi. cam a “erro e mentira”. O método cientifico deve atravessar as relagdes visiveis em diregdo as relacées © mais profundas, invisiveis, e reintegrar o visivel no invisivel. Essa elaboragao da realidade hist6- rica 6 inteiramente mediatizada pelo conceito, pela reproducio ideal, pelo pensamento, da realidade conereta que Ihe é paralela, exterior (GoDsLIER, 1974), Para Vilar, as ciéncias humanas t€m inicio com a Economia Politica inglesae, principalmente, com O capital, que nao é um livro “sagrado”, mas inaugural da ciéncia social (1982, p. 352) mesmo sem o saber, mas podendo vir a sabé-lo, os homens “fazem a histéria” e nao so suporte de qualquer sujeito metafisico. Pela praxis, pela in- tervencéo, livre e condicionada na e pela estrutura econémico-social, os homens transformam o mun- do ea si mesmos. Sua agéo se dé no contexto de uma luta, sua intervencao ésempre um golpe numa uta, seja contra a classe adverséria,seja contra a natureza. Entretanto, parece haver, nesse “contra! © outro social e natural, certa “asticia” da légica dessa lua, pois os ataques “contra” as posigdes par- ticulares constroem a “com” ~ unidade universal. ‘A emancipagio da humanidade seria o resultado dessas lutas particulares, de classes contra classes, de homens contra a natureza. O “motor” do de- senvolv:mento histérico em direco & emancipa- cdo da humanidade nao é o “espirito”, mas a energia natural-humana investida e despendida em um processo de luta interna. Conclui Vilar: isto néo impede de reconhecer como uma quase-evidéncia Le] que 0 motor da historia, quase sta definigao, é a cons- trugdo dohomem ede seu espsto pela sua tomas dana reza, isto ¢ pela produsio, pelo trabalho. Mas a tarefa d Fistoriador é explicar a passagem deste motor elementar as formas mais complexas das sociedades e das civilizacbes. (2982, p. 368) Essa “teoria geral” da sociedade, o marxismo, jé foi interpretada a partir de perspectivas as mais contradite- tias, excludentes e surpreendentes, gracas, sem diivida, & imensa riqueza epistemol6gica e pratico-politica da cria. Sao de Marx (ANDEtsoN, 1984). Entretanto, a possibilida- de de leituras. tao diversificadas de uma mesma teo! i Permite-nos duvidar de seu propalado “rigor tesrico”, de seu “caréter paradigmatico”, Stoianovitch considera, Por exemplo, que ha trés tipos de histéria principais: a exemplar, a evolutiva e a funcional estruturalista-(1976, P. 19-24). Até 0 século XIX, a maior parte das sociedades teria praticado a histéria exemplar, pragmética, que ins, tui o cidadao e guia sua aco; no século XVIII ed 7 de européia criou, embrionariamente, a histéria funcional-estruturalista; jé no século XIX, a histéria evoluti- va prevalecerd e a funcional-estruturalista s6 viré a . " dominar no século XX. Conelui Stoianovitch: 0 mandvne oscilow entre esses trés paradigmas e foi, de acordo com as circunstancias, exemplar, evolucionista e funcional truturalista, Entretanto, propomo-nes a analisar a tempo. talidade marxista, brevemente, a partir de duas leturas Possiveis da obra de Marx: (a) enfatizando-se seu fence semancipador ie oa ea Marx se tornaré uma filosofia \ ando-se cetual, Max sors fundador da inca social tao de foe es jason ae compreender a temporalidade, que tem conseqiiéncia a elaboragao de estratégias diferentes para “escapar-lhe”” ventas Lefort, em seu artigo “Marx: dune vision de ire a l”autre” (1978), apresentou essas duas leituras Possiveis do texto marxiano, que seguiremos, apresentan- do nossas consideragées pessoais. Segundo Lefort, hd di formas de compreensio do marxismo, que as obras de Mase no contestam: a primeira apresenta uma visio vevotutiva” da historia; a segunda, uma visio “repetitiva” da histdria ‘A visio evolutiva, continuista, da hist6ria em Marx 6 aquela do Manifesto Comunista. O fio condutor dessa perspectiva é a tese de que a hist6ria de todas as socie- dades até nossos dias é a histéria da luta de classes. Para Lefort, o fio da histéria pode romper-se, mas ele se res- tabelece sempre. Se atores desaparecem, 0 conflito no cessa € convoca novos. A humanidade é una no tempo. ‘A continuidade do drama nao deixa diivida, apesar das pausas e regressGes (1978, p. 195). Nessa perspectiva, o modo de produsio capitalista resulta da sucesséo dos modos de produgao anteriores & promove o transito a um modo de producdo mais “evolu- fdo”, que ocupacé um lugar qualitativamente superior na escala evoltive dos modos de producso. Nessa escala evolutiva, o modo de producao capitalista ocupa o lugar de tiltimo modo de produgio centrado sobre a luta de classes. O préximo modo de produgio traré a superacéo dessa luta entre os homens e inaugurard uma nova fase da hist6ria humana, Tal modo de produgao seria, por um lado, uma ruptura, pis nao teria como motor a luta de classes, ¢, por otitro lado, uma continuidade, pois engendrado pelo curso dialético dos modos de produgio que o precederam. Enfim, a histéria possui uma ordem evolutiva racional, em que as fases sucessivas que a constituem engendram umas as outras em diregio a utopia comunista. Os soviéticos eram os sustentadores dessa leitura de Marx. Para eles, a dialéti- ca marxista ndo nega a idéia de evolugdo, compreendida como “desenvolvimento em geral”. Haveria uma ligacdo profunda entre evolucio e revolugao no processo de de- senvolvimento: a evolucao seria constituida pelas mudan- gas quantitativas que engendrariam as mudangas qualitativas revolucionérias; a revolucéo vitia coroar a sé- rie de mudances quantitativas evolutivas. Evolugdo e revo- lucdo formariam a estrutura do “desenvolvimento” da hist6ria em ditegdo a sintese qualitativa superior no futuro. Essa versdo evolutiva do man uma filosofia da historia, das posigdes de hegeliano: Darwin. O aspecto heg ‘xISMO O constitui como Tealizando uma combinagao s, iluministas, de Comte e de eliano: © real & ra y icional em s} : a sua contraditoriedade, nega-se a si mesmo, em busca da eman. acdio: ct is : " (ia eg APEC iluminista progressista: as fases da his- @ umana sd0 evolutivas, umas superiores as outras, em direcdo a sociedade i m - s justa, livre e comunitéria; to iluminista revoluciona ete lucionario: a transicdo de uma época 3 outra constitui um peric ra de lise Periodo de “crise” — a luta dk chega ao paroxismo, uma “ mecieee , uma “vontade geral” se hepa a0 se estabelece e ce de sobre o fim da sociedade atual ¢ o nascimento da ai : ai eva ° aspecto comtiano: a evolucao implica a substitui- ce 2 religido, da especulacio, do mito e da imaginacso lo espirito positivo; 0 as : © aspecto darwinista: a evolucao é Pelo spi olucao & fia de ene Ratural de methoria da espécie. Como filoso~ falas stiri © marxismo 6, portanto, uma sintese de las as grandes filosofias da historia de sua ép, : ia historia de sua é aa spoca: a ne- pueda hegeliana, a vontade geral revolucionéria de agcali © Progresso racional iluminista, a superagdo da faa artista © evolucionismo darwinista. O sent lo da dria é 2 2 fe ree {2 gmancipagio dos homens pela aco de Sujeito coletivo ~ 0 proletariad: lo ~ que implantaria universal humano, fazendo cessat a luta de classes. por ee ee Lefort, nao é desmentido 7 ot da histéria eda vida social, um malo que ds een” ee Tepeticao” do que a “evolucdo”. Em sua andlise dos nodos de produgao pré-capitalistas, os Grundrisse, M, nao mostra como esses contributra séncia do modo de produgao capitalista ¢ talista. O modo de producéo capit im para a emergéncia 0s distingue do capi talista, entio, nao teria dos modos de pro- resultado ‘do desenvolvimento evolutivo. ducao anteriores, mas de uma ruptura cor Pectiva, nao 6 a continuidade do processo hist capitalismo faz aparecer, resultado de uma mudanca de formas comandada por uma contradigao fundamental Mas uma descontinuidade radical, uma mutagéo da hu- manidade [...] (Leorr, 1978, p. 197). A anélise que Marx faz dos modos de produgio pré- capitalistas é ldgica e nao exige a sua observagao empiri: ca: a partir da estrutura do capitalismo, ele péde constituir teoricamente seu outro, os modos de producio pré-ca- pitalistas. Assim, elaborou dois modelos que se opem: (a) © modelo capitalista, com trabalho livre trocado por dinheiro para reproduzir e valorizar esse dinheiro e com separacio do trabalho livre das condigdes objetivas de sua realizagao; (t) o modelo pré-capitalista, em que 0 trabalhador nao é exterior & terra, possui as condigées objetivas do seu tzabalho e nao é exterior & comunidade; os homens esto :mersos na terra e na comunidade. Tal modelo teria sido invariante em todas as suas expres- sdes: tribal, asidtico, antigo e feudal. Considerando os dois modelos, entre 0 modo de produgio capitalista e os modos de producio pré-capitalistas, nao hé “evolucio”, mas ruptura radical. E, entre 0s modos de produgio pré- capitalistas, Marx ndo estabeleceu nenhuma filiacao de um a outro, A mutacao ¢ efeito combinado de acidentes, guerras, migracées, limites geograficos, dificuldades cli- miticas. A mutacdo € produzida do exterior, mas, ape- sar das variagdes, mantém-se o modelo: trabalho na propria terra, vida comunitéria. ‘As duas possibilidades de interpretacao da obra de Marx, ainda segundo Lefort, tanto se excluem quanto se combinam. Na histéria evolutiva, 0 capitalismo 0 pon to de chegada e de passagem de uma histéria que cami- nha inelutavelmente em diregio A utopia comunista; na historia repetitiva, hd ruptura entre 0 modo de producio capitalista e os modos de producto pré-capitalistas, ndo ha continuidade, e ertre os modos de producao pré-capitalistas hd uma “repeticao” do mesmo modelo estrutural. Dessa forma, essas interpretagdes da hist6ria se excluem — mas podem se combinar também: hé evolucio e repeticao, tanto nos modos de producao pré-capitalistas quanto no modo de produgdo capitalista. Nos modos de produgao pré-capitalistas, a evolugao 6 a destruigao lenta da socie- dade, a erosdo das instituigdes, a aparigaio de novos fato- res de diferenciacao interna, a agressao de comunidades estrangeiras; a repeticio € a conservacdo do modelo es- trutural: dinastias se desfazem, guerras se sucedem, ca- tAstrofes acontecem, e a estrutura econdmico-social permanece intocavel ~ homens ligados a terra e A comu- nidade. Portanto, considerando as sociedades pré-capi- talistas, sobretudo as asidticas, Marx reflete sobre uma historia que rompe com a idéia de devir regido ineluta- velmente pelo desenvolvimento das forcas produtivas e com a idéia da inelutavel dissolucao de toda estrutura social. Ele decifra um mecanismo de autoconservacio, de uma historia guiada pela repeticio e nao pela evolu. so. No modo de producio capitalista, evolucio e repe- tigo também se combinam, contudo predomina o aspecto evolutivo. O modo de produsio capitalista 6 revolucio- nario e, por isso, constitui uma ruptura com as socieda- des pré-capitalistas, que séo conservadoras. E revolucionario porque sua induistria esta sempre insatis- feita com seus tiltimos indices de produtividade e tende 2 superd-los de modo vertiginoso. E onde apareceria a “repeticao” aqui? No seu “medo” dessa vertigem: con- frontados ao novo constantemente, os burgueses nao o Suportam e dissimulam a novidade, refugiando-se nos modelos do pasado, deixando-se envolver pelo espiri- to dos mortos. O presente se traveste de passado, o real € ocultado pela ideologia ~ que 6 a ilusdo de racionalida- de ¢ universalidade, fuga da particularidade de um Iu- Bar — que petrifica o real (LauRENT-AssouN, 1978). Lefort afirma: “A histé:ia que se realiza sob 0 cama to das forcas produtivas é ainda uma histéria regida pela repeti¢ao”. (1978, p. 218) a A determinagao natural aparece no espago social, a sociedade se toraa uma grande estrutura mecainica, e as selagdes sociais so refiadas, No momento em que a continuidade se rompe, os homens, diante do inédito, inventam um pasado que os defenda contra a vertiger que engendra sua propria ago. Mas, mesmo saul onde Lefort aponta 0 caréter repetitive do modo de produc capitalista, pode-se perceber 0 seu outro lado evolutive: na verdade, éa ago burguesa que teme sua propria revo lugdo e se refugia no passado, mas a classe pro faa recusa radicalmente 0 presente e 0 passado, “retira-s da historia”, em directo ao futuro, A repeticio aparece no modo de preducéo capitalista pelo seu lado burgués, pelo retorno ao passado, defendendo-se da angistia que suscita a iniciativa histérica acelerada, que pode levar & morte ou a dominacio. Essa leitura antievolucionista restitui’a obra de Manx toda a sua originalidade enquanto uma das aus do novo “ponto de vista” da ciéneia social ee ale Marx nao parte da idéia de um sentido universal Ba por antecipagdo aos homens. Sua dialética materialist nao é teleolégica. A historia € uma sucesso de proces sos particulares, que recomecam sempre depois de = ruptura e terminam em outrai Nessa perspectiva, nao, hé-em Marx.a totalidade absoluta que se expressarig em totalidades parciais, como o Espitito hegeliano. Mio haveria, em Marx, “negacio da negacio", salto qualita tivo, sintese dialética, continuidade, evolucionismo, mas ruptura, descontinuidade entre as estruturas Hiei 0s modos de produgio. Aqui, Marx teria rompido radical mente com as filosofias da histéria. Entretanto, resta a ambigitidade do marxismo: fun- dador da ciéncia social e continuador das filosofias da historia emancipadoras. Enquanto dé prosseguimento & grande narrativa emancipadora, sua vivéncia da histori- cidade se aproxima da negatividade do Espirito hegelia- no, do progressismo e da “crise” iluminista, isto é, compreende a hist6ria como uma aceleragao do tempo em diregdo ao futuro livze, O presente é consumido pelo fu- turo, ndo pela evolucio gradual e pacifica, mas pela “crise Permanente”. Marx radicaliza a percepgao do tempo da modernidade, criado pela burguesia que, apés ter toma- do o poder, passou a recusar o futuro, que se transfor- mou em ameaca, a mesma ameaca que ela foi para a atistocracia. Diferentemente das estratégias anteriores de recusa da temporalidade ~ a atitude poético-intuitiva mitica, a atitude de pura intuicao da f6, a atitude racio- nal interpretativa, especulativa, das filosofias da histé- tia ~, Marx herdaré do Iuminismo revolucionario principalmente do Idealismo alemio, de Kant e Eichte, a “razao pratica”, a “praxis” a intervencao racional, critico- Concreta no mundo. A “destinagio do homem”, para usat- mos a expressao de Fichte, é construir-se, reencontrar-se, reconciliar “inteligéncia e coragio” pela aco, pela inter. vencao “critica”, tedrico-pratica, no mundo social, Essa estratégia de evasao da experiencia da tempo- talidade, que o marxismo adotou, expressa um otimis- mo insuperdvel. Através da aco critica da realidade social, que a destr6i e reconstr6i, os limites sublunares, a relatividade e finitude humanas poderiam encontrar con- forto, salvacéo, paz neste mundo mesmo, no futuro. Diante da angtistia, do vazio, da escuridao, do horror da expe- riéncia vivida, s6 haveria a possibilidade de os homens fomarem seu destino nas préprias mos. Pela praxis, a historia teria sua salvacao na propria historia, a utopia resgataria 0 tempo passado e presente de infelicidade, e a espécie humana seria imortal e se aperfeicoaria, supe: rando a finitude dos individuos. O marxismo inspira, pela sua estratégia para solucionar o drama da ae confianga e esperanga. A utopia seré uma “cidade-fe! Ei humana e histérica, e ndo uma “cidade de Deus” ou do Espirito Absoluto. Nao se pode estranhar, entao, ei sua enorme repercussao, o seu carter de tempestade sobre a histéria. Entretanto, diante dessa sua estratégia ca nista”, as questées que se apresentam sao intimeras principal, a nosso ver: € possfvel que a hist6ria resgate a histéria? E possivel os homens se recuperarem ainc no tempo, vivendo a experiéncia da finitude? O marxista, eB a 10, estd seguro dessa possibilidade e consideraria absurdo, “um retrocesso”, a reposi¢ao de tal problema. Entretanto, parece-nos, esse é o problema fundamental, para o qual toda resposta deve ser posta com hesitacdo, com o senti- do da nuanca, sempre considerando a possibilidade do erro. Pois a resposta dogmatica, “bruta”, pode aumen- tar 0 nivel de dor da experiéncia vivida em vez de ali- vid-la. Antes de propor uma safda, uma solugao, uma resposta que se recuse a se rever pode reforcar as gra- des da priséo da historicidade. / © marxismo procurou evitar 0 que as ciéncias sociais fardono século XX:separat faire histoire de faire de l'histoire. O resultado foi a ideologizacao do conhecimento hist6- rico, que 0 manteve ainda na area de influéncia da filo- sofia da historia. Considerando que seu objeto de anélise 6 uma sociedace dividida e tensa, no se poderia estu- dé-la evitando-se essa sua fratura. O historiador, para ser objetivo mesmo, isto é, relativo a essa ea jeto, deveria refletir sua contradicao e ser parcial. Ao “tomar posicao", ele conheceria as razées do grupo que defende e as raz6es do grupo que ataca; estaria, portanto, inteiramente adequado ao seu objeto e, logo, produziria um conhecimento objetivo, embora parcial (cf. Sciiarr, 1971, p. 305 et seqs.). O marxismo chega a um enunciado surpreendente: a parcialidade a favor da classe revolu- cionéria corresponderia a objetividade no conhecimento Social € hist6rico, pois essa classe néo tem “interesse” em esconder as divisdes da realidade, em ocultar o pro- cesso social, pelo contrério, tem interesse em revelé-la em toda sua contraditoriedade, em seu cardter tenso, conflitual, Essa ideologizacio do discurso histérico poe sérios problemas ao carter “cientifico” da historia mar- xista, que se teria degradado em discurso legitimador de interesses particulares, dando-Ihes uma validade uni- versal. Entretanto, quando esse aspecto ideoldgico foi teconhecido e controlado, 0 marxismo apresentou um. Conjunto de hipsteses gerais, parciais e particulares, bem como conceitos que levaram, de maneira bastante fecun- da, a uma “ciéncia do real social”. Mas, entéo, enquanto “ciéncia social”, 0 marxismo evadiu-se da historicidade pelo “conceito’. O aspecto I6- gico, formal, do “puro conceito” se substitui ao aspecto hist6rico, temporal, concreto, na andlise da sociedade. A Versio althusseriana do marxismo é essencialmente con ceitual, formal’ por abandonar 0 movimento histérico Para tornar-se pura construgdo tedrica. O capitalismo deixa de ser uma realidade vivida e torna-se um sistema conceitual, logico, que se poderia analisar em si, sem qual- quer referéncia ao vivido. Portanto, o marxismo, em sua ambigilidade, oscilou entre a evasao da historicidade em direcao ao futuro e a evasio em direcao ao puro concei- to.'As solugdes intermediérias combinaram essas duas estratégias: a descontinuidade vivida foi transformada em “continuidade”, ou pela ligacdo do presente ao futu- ro ou pela inter-relacio necessaria da dispersio em con- juntos articulados de conceitos (THOMPSON, 1978).

You might also like