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82 Took D'Assungko Bansos historiogréfica projetada para o futuro no futuro. Minha intengao foi apenas a de imaginar, diante da permanente reconfiguragao dos campos histéricos nos tempos recentes, que também os curriculos de graduagao que séo oferecidos 20s historiadores em formagao precisam atentar para as- pectos que se referem a uma reformulagao de sua propria linguagem. Que novas modalidades historiogréficas ainda estdo por ser geradas e desenvolvidas pelos historiadores de agora e do futuro? E como o ensino de graduagdo em Histéria acompanhara ainda esta expansio que no cessou de ocorrer, e que vem a encontrar no ambito da prépria pro- dugdo textual ¢ midiética as diltimas fronteiras a serem ex- ploradas mais criativamente? 5 FONTES HISTORICAS: OLHARES SOBRE UM CAMINHO PERCORRIDO* O debate scbre as “fontes histéricas” remete-nos a um dos dois fatores que constituem a mais irredutfvel singularidade da Historia como campo de conhecimento. De fato, se por um lado a Histéria pode um dia ser definida por Marc Bloch, nos anos de 1940 como a “Ciéncia que estuda os homens no tempo”, a obrigatoriedade do uso de “Fontes histéricas” pelo historiador, como tnico meio de atingir diretamente este homem que se inscreve no tempo, é certamente o segun- do fatot inseparavel do conhecimento histérico. A “centra- lidade da dimensao temporal’, neste tipo de conhecimento que é a Hist6ria, e a “utilizagdo das fontes’, pelo historiador que 0 produz, sio precisamente os dois fatores que fazem com que a Hist6ria possa ser distinguida de qualquer outro campo de saber. * Conferncia proferida em 13 de novembro de 2009, para abertura da Semana de Cepaq “Historia, Cultura e Linguagem’, Universidade Federal de Mato Grosso, Campus de Aquidavana (UFMT). 0 texto foi publicado na Revista Albuquerque (BARROS, .D’A. “Fontes histricas: um camninho percorrido e perspectivas sobre os novos tempos”. Revista Albuquerque, vol. 3,m. 1,2010)- 1. BLOCH, M. Apologia da Histria, Rio de Janeiro: Zahar, 2001 (Original publicado: 1949, péstumo; original de produgio do texto: 1941-1942] 84 Jost D'AssuNgAo Bannos A BKPANSKO DA HISTORIA 85 Sem problema nao ha Histéria Comegarei por lembrar que Seignobos, em um manual do inicio do século XX, um dia registrou uma frase que ter- determinada maneira, as proprias fontes historicas também devolvem algo ao historiador. Dito de outra forma, pode-se dizer que, na operacao historiogréfica, o sujeito que produzo minou por se tornar célebre: “Sem documento nao hé histé- 4 conhecimento ¢ os meios de que ele se utiliza interagem um ria” (1901). Com isto buscava situar a fonte histérica como sobre 0 outro, de modo que, no fim das contas, se o historia- prinefpio da operacio historiografica. A frase seria contra~ posta, décadas depois, por uma outra que seria criticamente | pronunciada por Lucien Febvre: “Sem problema nao ha his toria’ O historiador dos Annales, com isto, queria mostrar Lembremos aqui um interessante texto escrito por Carlo que 2 operagao historiografica principiava na verdade com a4 Ginzburg em 1979, com o titulo “Provas e possibilidades”® formulagdo de um problema. Seria um problema construf- | no qual o micro-historiador italiano chama atengéo para dor sempre escreve seu texto de um lugar no mundo social e ho tempo, ao mesmo tempo ele mesmo pode se transformar 4 partir da sua propria experiéncia com as fontes. do pelo historiador o que permitiria que ele mesmo constit [uma questao peculiar. Embora reconhecendo que o traba- tufsse as suas fontes, agora deslocadas para o segundo passé, Iho do historiador é inicialmente direcionado por um cer- da pesquisa. Flo “imaginério historiogréfico” (tal como propos Hayden Hoje, decorridas muitas décadas apés os primeiros “com White em Meta-Histéria) e também por um lugar social (tal © como postula Michel de Certeau em “A operagao historio- contra uma Historiografia que denominaram “positivista pode-se perceber mais claramente que os dois elementos = “Problema” ¢ a “Fonte” — acham-se frequentemente entré aril 0 historiador também se modifica pela interatividade com relagao & alteridade trazida pela documentagao (GINZBURG, 1994a: 196). Vale dizer, nado é apenas um determinado lugar weial-institucional, e uma certa “imaginagao_historiogréfi- 61” ou 0 seu presente —o que dé uma direcZo ao trabalho do | historiador. © proprio passado, através das especificidades de E aut documentacao, traz ao historiador vozes com as quais este Interage, colocando-o em contato com aspectos que passam, Fa Integrar a sua propria experiéncia, e com elementos varios ), Ginzburg esmera-se em perscrutar 0 fato de que caso das “fontes dialégicas’, aqui entendidas como aq} que permitem 2o historiador que sejam acessadas div GINZBURG, C.*Provas e possibilidades” A micro-histéria e outros en~ vozes nas sociedades por ele examinadas. a Ylis. Lisboa: Difel, 1994, p. 179-202, Os exemplos nos mostram que, se 0 “problema” pro BY, CURTEAU, M.“A operagao historiogrifia” A Escrita da Histéia, Rio to pelo historiador permite que ele constitua suas fonte Fe lancito: Forense Universitaria, 1982, p. 65-119 [original: 1974}. P p q & P. 86 Jost D'Assusko BanKos que 0 reconstroem como sujeito de investigagao. Desta for- ma, a propria documentago examinada traz a sua contribui- 20 adicional para o resultado do trabalho historiogréfico, nao apenas como objeto que se configura em testemunho ou dis curso de sta época, mas também abrindo certos caminhos de Enssios Biografias Poosia Discursos compreensio e, para além disso, enriquecendo mesmo, como experiéncia, o proprio historiador, que momento mesmo inicial da pesquisa. ¢ vé modificado no (Ga Genealogias Estas questdes so importantes, ¢ ao final da palestra volta- remosa elas. As fontes politicos Doser privados ist6ricas,além de permitirem que o his- toriador concretize o seu acesso a determinadas realidades ou representagdes que ja ndo temos diante de nds, permitindo que se realize este “estudo dos homens no tempo” que coincide com a propria Historia, também contribui para que o historiador aprenda novas maneiras de enxergar a Historia e novas formas de expressdo que poder empregar em seu texto historiografi- co. Neste momento, conforme discutirei ao final desta palestra, estabelece-se uma misteriosa possibilidade de contato entre as fontes que instauram a pesquisa eo texto final que o historiador oferece ao seu leitor. Lidar com variedades de fontes hist6ricas, veremos adiante, também instrui o historiador acerca de dife- Documentos Decretos Relasrios Laie A EXPANSAO DOCUMENTAL g E S22] Documents CChancelaias Documentos rentes € novas possibilidades de expresso — uma questo que cada vez mais tem sido abordada nos tempos recentes. De fato, foi assim que, 20 passo em que foi descobrindo novas possibi- lidades de fontes hist6ricas, o historiador também se viu diante de novas possibilidacles teGricas e expressivas: sao apenas alguns exemplos o “olhar longo” da Historia Serial, a “escrita poliféni Documentos Administacdo interna Tatas desalirios | Listas de pregos Region comer 180 sé XK ste XIX 1930 a” das fontes dialégicas, o “olhar microscépico” proporcionado por fontes intensivas como os proces sos criminais, ou mesmo a “escrita cinematogréfica” que pode ser assimilada por aqueles que estudam o cinema. > > — => 88 Jost D'Assuncxo Barros _ Antes de chegar a estas questées mais recentes, vamos discutir algumas questoes fundamentais para a compreen- so desta “revolucao documental” que ainda nao cessou de Ocorrer na Historiografia desde que esta passou a se postular como disciplina cientifica, Abordarei, a seguir, alguns aspec- tos interligados: “expansio documental”, a multiplicacao de abordagens das fontes hist6ricas, sobretudo a partir do século XX, e a crescente explicitagio do didlogo com as fon- tes no texto historiogrético. Expansdo documental Ja € lugar comum dizer que o século XX conheceu uma extraordindria expansio na possibilidade de tipos de fontes hist6ricas disponiveis ao historiador. A expansio documental comega com a gradual multiplicacio de possibilidades de fon- tes textuais — isto 6, fontes tradicionalmente registradas pela escrita ~e daf termina por atingir também os tipos de supor- te, abrindo para o historiador a possibilidade de também tra- balhar com fontes nao textnais: as fontes orais, as fontes ico- nogréficas, as fontes materiais, ou mesmo as fontes naturais. Com o desenvolvimento de novas tecnologias, pergunta-se se J4 ndo teremos em pouco tempo um ntimero significative de trabalhos também explorando as fontes virtuais De certo modo, a histéria da Historiografia tem conhe- cido duas expansoes paralelas no universo das fontes histo- rlogréficas: de um lado, as fontes textuais, que sempre foram Yio amplamente empregadas pelos historiadores, avancam na sua diversificacao; de outro lado, pode ser percebido um contraponto importante que ¢ 0 da expansio das fontes com novos tipos de suporte. Concentremo-nos por hora no es- forgo de mostrar a complexidade que abarca a expansio das AuxpAvsho Da Hisroxta 89 possibilidades de fontes textuais. O quadro ao lado procura registrar visualmente esta expansdo: na verdade uma expan- so que termina por se voltar sobre si mesma. © esquema visual parte de algumas das fontes que, um tanto impro- priamente, chamaremos de “fontes realistas” (1) - que sto aquelas que se apresentam aos historiadores como discursos narrativos que tentam prestar conta de acontecimentos que se deram realmente, ou que, de sua parte, tentam convencer 0s seus leitores da natureza real do objeto de suas narrativas. Dos relatos denatureza historiogréfica aos relatos de viagem, pasando pelas hagiografias, cronicas e biografias, neste tipo de fontes costumava se concentrar 0 trabalho dos historia dores até o século XIX. ‘A partir daqui, podemos dizer que ocorreré a primeira revolugéo documental da Historiografia — ou, se quisermos, a primeira fase de uma revolugio historiogréfica que mais, adiante teria, no século XX, o seu segundo tempo. O século XIX, efetivamente, introduz o trabalho dos historiadores — para além das fontes que jé eram utilizadas anteriormente ~ no vasto mundo dos arquivos que comegam a ser montados por toda a Europa em um monumental esforgo incentivado pelos governos nacionais. Os “Documentos politicos” (2) notadamente da “grande hist6ria politica” ~ os “documentos diplométicos” relacionados a intrincada dialética da guerra ¢ da paz (3), a documentagao governamental (4), com suas leis ¢ atos governamentais diversos, passardo a constituir a base do trabalho do historiador, que comega a desenvolver as suas primeiras técnicas de critica documental. Por muitos dos historiadores oitocentistas, embora nem todos, estas fontes serao tratadas sobretudo como depésitos de informagées. De todo modo, pode-se dizer que a critica documental tornou-se 90 Jost D'Assuncxo Barnos uma contribuigdo inestimvel desta interacio entre o histo- riador e as fontes politico-institucionais. Com elas o historia dor aprendeu o “olhar meticuloso” tao precioso para a pré- tica historiogréfica. Uma segunda revolugio documental inicia-se nos anos de 1930. Ou, se quisermos, podemos dizer que 0 universo das fontes historicas comega a se expandir novamente. Para além das fontes j4 acumuladas pela revolugdo documental anterior, a multiplicagao de objetos histéricos — agora ilumi: nando aspects sociais e econdmicos ~ permitiré que alguns setores da Historiografia comecem a centrar a sua atengao. nos documentos administrativos (5), comerciais (6), ecle- sidsticos (7), cartoriais (8) ~ fontes que logo seriam explo- radas pelos historiadores a partir de uma nova abordagem, serial ou quantitativa, Na Franca, um pais cuja historiografia exerceu grande influéncia sobre a historiografia brasileira, 6 destacado o papel que a “histéria serial” exerceu até os anos de 1970. Um inquestionavel fruto colhido pela historiogra- fia a0 entrar em contato com as fontes seriais, mas também Preseuite uas diversas modalidades historiogréficas que pas- saram.na mesma época a trabalhar com a “longa duragao” foi um novo tipo de olhar sobre a hist6ria: ese “olhar longo” ue se estende sobre a “série documental” ou sobre grandes extensGes de tempo ou de espaco e que, a partir dat, aprimo- ra-se na habilidade de identificar permanéncias, de perceber ciclos, de avaliar pequenas variagdes no decurso de uma série de dados. © “olhar longo” junta-se assim ao “olhar meticulo- 80°, de modo que o historiador torna-se aqui um pouco mais completo, Novos métodos costumam sempre acompanhar cada expansio no universo de fontes historiogréficas. Quando Acxeawsio pa Histoxta, 91 assistimos nos anos de 1980 a um crescente interesse dos his- toriadores pelas fontes juridicas (9) e policiais (10), a exem- plo dos processos-crime e da documentagio de inquisicao, logo os historiadores aprendem a tirar um maximo partido destas fontes que so ao mesmo tempo intensivas —isto ex- traordinariamente ricas de detalhes ~ e dial6gicas, no senti- do de que sfo espagos de manifestagao para muitas vozes so- ais, Surge tanto uma Escrita da Hist6ria polifynica, voltada para a explicitagao das varias vozes sociais, como também 4 Micto-histéria - uma modalidade historiogréfica que se mostra pronta a mergulhar no projeto de enxergar grandes quest6es sociais a partir de uma escala de observagio reduzi- da, porém com um olhar intensivo, que aproxima o historia- dor do olhar do detetive ou do criminalista que investiga indicios, mas também do médico que tenta enxergar a gran- de doenca por trés dos pequenos sintomas. Vamos denomi- nar a este novo olhar que se oferece aos historiadores dos anos dg 1980 de “olhar interior’, pois se ele € um olhar capaz de captar os detalhes mais reveladores, é também um olhar capaz de apreender a complexidade interna das realidades examinadas, além de captar a polifonia interna que se oculta em todas as formagées sociais, Mais uma vez o historiador desenvolve a sua completude: “olhar meticuloso”, o “olhar longo” e o “olhar interior” agora se integram como possibil dades para a constituicio de uma historiografia mais plena, As tiltimas conquistas, talvez sob a égide de uma historio- grafia que traz para 0 centro do cenario histérico o mundo da cultura —estéo nas fontes que se relacionam a vida priva- da (11) ea todos os tipos de literatura (12). Também nao € por acaso que,em um mundo que ¢ invadido pelo discurso, intensifique-se nesta mesma época a interdisciplinaridade 92 Jost D’Assoncko Barnos com a Linguistica, a Semiética e as Ciéncias da Comunica- ¢40, oportunizando aos historiadores novas metodologias de analise textual e discursiva que hoje jé se tornaram patrimd- nio da historiografia contemporanea. Ao mesmo tempo, po- de-se dizer que, de alguma maneira, o historiador também conseguiu incorporar com estas novas experiéncias um certo “olhar estético”. A si mesmo, comegou a se perceber como literato, e muitos passaram a buscar aprimorar novas formas de expressao na elaboragao do seu texto historiogréfico, con forme mais adiante discutiremos. ‘Tal como jé assinalei, um esquema como 0 que estou uti- lizando com vistas a representar a complexidade das fontes historicas ndo pode ser senio circular: uma figura que se desdobra sobre si mesma. As fontes narrativas realistas (1), das quais haviamos partido, oferecem nos anos de 1980 no- vas incorporagées através dos jornais, e o chamado retorno da histéria politica permite que os historiadores também in- corporem, as fontes politicas (2) com as quais ja lidavam, a documentacio de partidos politicos e os discursos proferi- dos nestes mesmos ambientes. ICONOGRAFICAS FONTES DA. AO SUPORTE ‘TIPOS DE FONTES HISTORICAS COM RELAGAO. Fontes nao textuais depoimentos Asampliagdes no universo de possibilidades das fontes tex- tas, jé 0 disse, sfo acompanhadas de um movimento parale- Io. Se os historiadores haviam comecado a diversificar as suas fontes textuais, ja desde principios do século XX, também co- megam a ser exploradas em um ritmo crescente as fontes com novos tipos de suporte. Refiro-me aqui aqueles tipos de fontes que nao apresentam como seu elemento basico o “textual”, As imagens, por exemplo, logo deixariam de ser apenas objetos temiticos para os historiadores que ja se interessavam VIRTUAIS 94 José D’Assuncxo Barsos pela Historia da Arte, e passaram a ser também fontes para historiadores interessados em checar todo o tipo de questdes sociais, econdmicas e politicas através das fontes iconografi- cas, Entre as fontes iconogréficas, obviamente, devemos in- cluir todas as possibilidades que apresentam no seu centro de caracterizacdo a “imagem”. Pinturas, fotografias, imagens desenhadas em uma ceramica, charges, ilustragées, iluminu- ras ~ esses e outros tipos de fontes podem ser categorizados como fontes iconograficas. A Hist6ria Oral, também nos anos de 1980, conquista o seu lugar no campo da Historiografia, e reaviva mais uma ver «um didlogo com a Antropologia, com a qual a Historia ja ha- via estabelecido tantas vagas de contatos interdisciplinares. As fontes de cultura material, de igual maneira, passam cada vez mais a atrair a atengao de todos os tipos de historiadores, e nao apenas dos arquedlogos. Poderfamos também seguir adiante na enumeracio de conquistas historiograficas relacionadas as fontes nao textuais: arquivos sonoros, cinema, cultura mate- rial e mesmo fontes naturais ~ aqui entendidas como a natu- reza interferida pelo homem — abrem-se como possibilidades. Podemos hoje nos perguntar pelas fontes virtuais. Como os historiadores passardo a trabalhar com este tipo de fontes? (Cf. quadro na pag. anterior O exemplo das fontes intensivas ‘Trataremos, em seguida, de um exemplo muito especifico entre as abordagens de fontes hist6ricas trazidas pelos tempos mais recentes. O exemplo permitird examinar, exemplifica- tivamente, como 0 trabalho com um novo tipo de fontes, ¢ a partir de uma nova abordagem (no caso a chamada “redugio da escala de observaso”), terminou por permitir que os his- Anxransio ba HistOnth toriadores ndo apenas experimentassem novas formas de ver a Historia como também novas maneitas de elaborar o seu texto historiogréfico. Trataremos aqui da abordagem micro-historio- sgifica relacioneda as possibilidades de tratamento intensivo das fontes, ou ao seu modo peculiar de ler aqueles indicios a partir dos quais se busca construir uma realidade historiogré- fica e interpreté-la. O modo de tratar as fontes que predomina na Micro-hist6ria, de fato, € aquele que Carlo Ginzburg cha- mou de “paradigma indiciério™, Implica também naquilo que se denomina “andlise intensiva” das fontes. Logo veremos que, para lidar com estas novas fontes e abordagens, 0 historiador precisou desenvolver novos talentos em si mesmo: 0“talento do investigador criminal” ¢ 0 “talento do psicanalist Uma ver que deseje ou precise empreender uma anéli- se intensiva de suas fontes, 0 historiador deve estar atento a tudo, sobretudo aos pequenos detalhes. Jé que, em diversas oportunidades, ele estaré trabalhando ao nivel da realida- de cotidiana, das trajet6rias individuais, das estratégias que circulani sob uma extensa rede de micropoderes na qual os atores sociais sevelam-se em toda a sua humanidade possi- vel, o historiador-analista deve estar preparado concomitan- temente para as contradigdes que iré enfrentar. O ser humano s6 nao € contraditério quando se reveste da formalidade pablica ou privada, quando se esconde por tras de documentos oficiais, quando oferece ao pilico coerentes declaragies ptblicas; ou entdo quando ele se transforma em um ntimero na documentagao explorada pela Hist6ria Serial 4, GINZBURG, C. “Raizes de um paradigma indicitrio”: Mitos, emblemas ¢ sinais, Séo Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 143-179 original: 1986] 96 José D'Assurcxo Bannos de cunho quantitativo. Além disso, 0 ser humano também perde as suas ambiguidades, as oscilagdes ¢ tateamentos que se integram & sua vida individual e intersubjetiva quando se incorpora a uma multidao. ‘A multidao é espontanea; vista de fora e de cima ela rea liza atos unidirecionais: avanga para invadir um palécio de governo ou foge diante da policia, até que se dispersa e deixa de ser multidao; unifica-se no aplauso ou na vaia a um poli- tico ou a um artista (ao ouvi-la de longe, um espectador ird ignorar que possivelmente existem ali vozes minoritérias que silenciam ou aplaudem enquanto a maioria vaia, de modo que este se torna o ruido aparentemente unidirecional da multidao). Ao contemplarmos uma multidao em disparada, visualizamos um movimento homogéneo em uma tinica di- regio, e s6 perceberemos os individuos que cairam e foram pisoteados quando a multidao se afasta e deixa um claro atrds de sis ou, entio, poderemos identificar estes acidentes e dissonancias se apontarmos para o meio do tumulto uma camera dotada de objetiva, que € mais ou menos o recurso, metaforicamente falando, utilizado pelo micro-historiador. Quando um individuo é focalizado na sua trajet6ria indivi- dual, nos seus gestos cotidianos, agindo sob pressio em certas circunstincias, negociando a sua vida diatia e o direito de pros- seguir no seio de determinada comunidade ou ambiente social, escalando as suas oportunidades no emprego e desviando-se dos outros para evitar entrechoques definitivos, ou para reafirmar aqueles que sao inevitaveis quando isto Ihe convém... nestes mo- ‘mentos 0 individuo mostra-se humano em suas ages, experi: ‘mentador, oscilante, ambiguo, exercendo seu pleno direito de ser contraditério, de refazer o seu caminho, de mentir, esquivar-se, arrepender-se das suas ages. Para inserir-se nas milltiplas redes Asxransho a Hisrénta 97 de solidariedade devera ser contraditério, poder fazer inimigos a0 se tornar amigo de um outro, ou poder conquistar o direito de se tornar simultaneamente amigo de dois inimigos adminis- trando bem estas tens6es, Colocado na situagao-limite de ser acusado de um crime, de ser inquirido por um inquisidor, ou mesmo de ser convo- cado como testemunha (quando tera de se pronunciar sobre algo que podera afetar o grupo ou outros de seu campo de solidariedade), o individuo poderd ver potencializado ainda mais 0 seu cardter contraditério. Se a situagio-limite envolve varios individuos, cada qual mergulhado na sua intersubje- tividade e no seu circuito de ambiguidades pessoais, temos adicionalmente uma rede dial6gica, polifonica, na qual esta- a0 expressas diversas vozes a serem decifradas. ‘Muitas vezes o historiador que trabalha com este nfvel humano mais imediato, mais sublunar, precisaré de uma argticia especial. Pode ser que encontre as respostas nos de- talhes aparentemente secundarios, nos elementos que habi- tualmente so pouco percebidos (e que por isto mesmo so menos sujeitos a falseamentos). O criminoso, na maior parte dos casos, é apanhado a partir dos pequenos detalhes, jé que 0s elementos que ele considera mais importantes sao cuida- dosamente ocultados apés a execugao do crime. Da mesma forma, um psicanalista vai decifrando a personalidade do seu paciente — que inevitavelmente iré mentir, esquivar-se, dissimular ~ a partir dos pequenos gestos, das hesitagoes de fala, das expressbes que deixa escapar, dos atos falhos. Os pequenos gestos inconscientes e involuntarios, para ele, se- ro muito mais eloquentes do que qualquer atitude formal. ProfissSes como a de investigador policial ou de psicanalis- ta (investigador de almas) pouco valeriam se aqueles que a clas se dedicam nio fossem capazes de extrair a informacio 98 Jost D’Assuncio Bansos primordial do pequeno detalhe que normalmente passa des> percebido para os homens comuns. Vislumbramos, aqui, um | novo modelo de investigagao da realidade: 0 do microanalista, Os exemplos abundam na literatura, que parece té-los descoberto antes da ciéncia, Modelo de microanalista impe- cével é, por exemplo, um dos personagens do filme O siléncio dos inocentes — o psicanalista canibal que € capaz. de avaliar a origem de um individuo pelo seu sotaque, o seu estado de Animo pelo ritmo respirat6rio, e que é capaz de ler as contra- dig6es entre um sapato caro e um “andar caipira’, entre um modo de falar e 0 gesto que o acompanha* 5.0 filme O siléncio dos inocentes & baseado no livro de mesmo titulo, Nesse romance de autoria do escritor norte-americano Thomas Ha policial, Clarice Starting, uma estagidria do FBI, precisa conquistar a con- fianga de um perigoso psicopata - 0 Doutor Hannibal Lecter, psiquiatra canibal que esta preso em uma cadeia de seguranga maxima pois s6 ele pode ajudé-laa capturar um serial killer que esté aterrorizando uma cida- de ao esfolar sucessivas mulheres. Os melhores momentos do filme, e do livro, dao-se em torno dos didlogos travados entre estes dois personagens. A capacidade de observacio e andlise de Hannibal Lecter, o psiquiatra canibal, ébrilhante e surpreendente. Na passagem que acima menciona- 1mos, ele consegue fazer uma acurada anélise das condigdes sociais, das origens familiares e da psicologia de sua interlocutora, apenas examinan- do alguns indicios, etalhes e pequenas contradigées, como o sobreniome, ‘0 sotaque, o modo de andar, ou mesmo a contradiglo entre a bolsa cara € 0s sapatos baratos que sio usados pela detetive: “Voce gostaria de me analisar, polical Starling, Vocé muito ambiciosa, nlo 6? Sabe 0 que voce ime parece, com sua bela bolsa e seus sapatos baratos? Parece uma caipia. Uma ceipira melhorada, impa, com um pouco de bom gosto. Seus olhos sio como pedras baratas do més ~ tudo € brilho superficial quando voce consegue uma pequena resposta. E por trés delas vocé é brilhante, nao & Desespera-se para néo ser como sua mie. Uma boa nutrigéo deu-the coss0s mais longos, mas voct nao est fora das minas hd mais de uma gera- so, policial Starling, Voce é dos Starlings de West Virginia ou de Oklaho- mat Houve uma decisio de cara ou coroa entre a universidade e Corpo Feminino do Exército, nao houve?” (HARRIS. Osiléncio dos inocentes). Anxeavsio pa Histomia 99 Outro microanalista arguto, este citado por Carlo Ginz- burg em seu artigo sobre “o paradigma indiciario” (GINZ- BURG, 1991: 143), é certamente Sherlock Holmes, o famoso detetive inventado pelo escritor Conan Doyle. O detetive in- glés era capaz de descobrir o autor de um crime apenas com base em indicios imperceptiveis para a maioria das pessoas, incluindo entre suas habilidades desde a de interpretar pega- das na lama até a de decifrar metodicamente as cinzas de um cigarro, sem contar as habilidades psicanaliticas de enxergar a alma humana através do corpo, das quais se revelava possui- dor ao decifrar rostos ou mesmo ao desvendar origens sociais e naturalidades a partir do discurso das vestimentas. Sherlock Holmes, enfim, era capaz de identificar e de conectar indicios aparentemente isolados para elaborar dedugées magntficas. © ancestral comum a Sherlock Holmes e ao psicanalista- canibal de O siléncio dos inocentes 6 certamente o célebre per- sonagem de Voltaire chamado ZadigS, que nao raro se metia em aputos por causa de sua inacreditavel capacidade de en- xergar 0 que ninguém percebia. Nao satisfeito em identificar a espécie e 0 genero de uma cadela que nunca vira, apenas a partir dos tragos e pegadas que ela havia deixado na areia, Zadig ainda era capaz de perceber que ela manquejava de uma das pernas, jé que as impresses deixadas na areia por ‘uma das patas eram menos fundas do que as das outras trés! s exemplos abundam nesta obra ficcional de Voltaire, que constitui muito mais do que uma histéria curiosa. 0 que 0 fil6sofo iluminista estava sugerindo através de seu persona- gem era, na verdade, um novo paradigma de investigagio gue poderia ser aplicado nao apenas na vida cotidiana, como 6. VOLTAIRE. Zaiig, ov destino. Sao Paulo: Escala, 2006, 100 José D'Aseuwgho Banos também nas varias esferas do saber. O desenvolvimento ple; no deste “paradigma indiciério’, tal como o chamou mai tarde 0 micro-historiador italiano Carlo Ginzburg, ficaria % cargo dos séculos seguintes. ij ‘Aonde estes modelos nos levam? Em primeiro lugar, 0 mis cro-historiador que trabalha “ao rés do humano” tem que ter urtt pouco de Zadig, de Sherlock Holmes, ou do psicanalista-canibal {que devora almas. Quando ele lida com fontes de natureza dial6= aca, como 0s registros de inquisigao ou como os inquéritos po- , por vezes tera de “espiar por cima dos ombros do inqui- sidor’ como dizia Ginzburg’, jé que tanto o historiador como 0 inquisidor irmanam.-se na intengio de empreender uma andlise intensiva dos materiais que tém & sua disposicio — o inquisidor contando com os contraditérios depoimentos orais de réus etes- temumhas, historiador tendo a sua disposigéo apenas o registro escrito destes depoimentos orais, j filtrados pela primeira per- cepgao do inquisidor. De igual maneira, ao examinar como fon- te um inquérito policial, o historiador ver-se-4 tentado a espiar por trés dos ombros do delegado, mas munido da consciéneia de que o proprio delegado é mais uma das vozes contraditérias que se juntam ao processo. ‘Abre espacos para intimeras complexidades a “situagio- limite” de um crime que daré origem a um processo, no qual seré investigado um suspeito, depois transformado em acu- sado e finalmente em réu, ¢ no ambito do qual serio ouvidas testemunhas que poderio ser simpéticas, neutras ou hostis a0 acusado, Digno de nota 0 fato de que os depoimentos de certos individuos — réus, acusadores ou testemunhas ~ poderdo ser 7. GINZBURG, C.“O inquisidor como antropélogo’: A micro-histéria outros ensaios. Lisboa: Difel, 1994a, p. 201. tégias, motivar-se em atitudes preventivas ¢ arrependimentos, Axeawsio pa Histéxta 101 ‘diferentes em um momento e outro, revelar ou ocultar estra- em receios de se verem comprometidos (tanto no que se refe- te ao réu como a algumas testemunhas), sem contar as redes de solidariedade ¢ rivalidades que processos como estes per- item que aflorem, ou os preconceitos que encontram um terreno proficuo para se extravasarem. Jé nem mencionarei o fato de que, independente das estratégias e acées preventivas, a meméria dos individuos ¢ complexa e contraditéria. Boa- tos costumam frequentemente influenciar individuos: alguém ouviu falar de certo acontecimento, ou sabe de qualquer coisa muito pot alto, e em certo momento ja seria capaz de jurar que tem certeza de ter presenciado um evento. Ambiguidades diversas sio tipicas de fontes como os pro- cessos criminais,¢ elas sio ricas precisamente porque sio dia- logicas. Por vezes, ao se mostrarem repletas de contradigées a serem examinadas, estas fontes sao por isto mesmo revelado- ras daquilo que hé de mais humano nos seres humanos que ali esto retratados. A tarefa do historiador, certamente, nao sera a de julgar um crime, mas avaliar representacoes, expectativas, motivagSes produtoras de versdes diferenciadas, condigoes de produgao destas vers6es, além de captar a partir da documen- tagdo detalhes que serao reveladores do cotidiano, do imagi- nario, das peculiaridades de um grupo social, das suas resis- téncias, das suas praticas e modos de vida. Pode-se dar ainda que o historiador encontre fontes dia- ogicas e ricas de indicios reveladores nao apenas nos pro- cessos criminais relativos a individuos isolados. As subleva- «goes € movimentos populares também podem dar origem a processos e registros judiciais, porque, quando no sio em-sucedidas ¢ mudam o curso da histéria de uma sociedade 102 Jost D'ASSUNGxO BaRzos (transformando-se em “revolugées” propriamente ditas), as insurreig6es so quase sempre convertidas em crimes coleti- vos pelos seus repressores, gerando todo 0 aparato de regis- tros ¢ inquéritos criminais a que tém direito os crimes co- muns, Ciro Flamarion Cardoso, em uma frase feliz, ressalta que “uma revolta que escapa a repressao escapa & histéria”®, Assim, as sublevacées reprimidas, dada a massa de docu- mentagio que produzem apés a sua debelacéo, podem gerar fontes preciosas para os historiadores. £0 que vemos, por exemplo, em um dos capitulos de Visdes da liberdade, de Sidney Chalhoub?, em que o autor analisa in- quéritos sobre sublevagdes de escravos ocorridas no Rio de Janeiro entre 1870 e 1880. Os escravos ~ que habitualmente chegam aos historiadores como um mimero nos inventérios das fazendas escravistas —jé nos inquéritos que apuram suble- vag6es comegam a adquirir um rosto, um nome, caracteristi- cas pessoais, visbes de mundo que s4o pacientemente extraidas de seus inquiridores para documentar o proceso repressivo”. 8. CARDOSO, CF & BRIGNOLI, H.-C, Os métodos da Historia, Ri de Janeiro: Graal, 1983, p. 384, ‘9, CHALHOUB, S, Visdes da liberdace ~ Uma hist6ria das dltimas décadas da escravidao na corte, Sao Paulo: Cia das Letras, 1990. 10. Na obra citada, Chalhoub pretende recuperar 0 processo histérico de aboligdo da escravidio na corte através da analise intensiva das lutas aque se desenvolviam em torno das visbes ou definigoes de liberdade de cativeiro. Suas fontes sfo nfo apenas os jéreferidos inquéritos sobre sublevagoes de escravos, mas também toda uma sorte de outras fontes que incluem,além dos procestos criminais e das agdes cives de liberdade, também fonteslitrérias como os tratados sobre a esravidio ¢ os relatos de viajantes escritos na época. A idela, portanto, € interconectar Fontes diversas, eixando que elas se iluminem reciprocamente (diferentemente de sua primeira obra ~ Trabalho, lar e botequim — na qual o autor procu- rou se restringir As fontes criminais e judiciais) Anevansho pa Histéata 103 Ao lidar com estes tipos de fontes, ou com outras que permitam uma andlise intensiva e atenta aos pormenores, 0 historiador comunga com a argiicia de um Sherlock Holmes, do psicanalista devorador de almas, de um expert em falsifi- cages que é cepaz de identificar a falsidade de um quadro nao pelos seus tracos principais ~ os quais séo de resto cuida- dosamente trabalhados pelo falsificador -, mas sim pelos de- talhes aparentemente insignificantes, e que por isto mesmo foram descuidados, da mesma maneira que um criminoso inadvertidamente abandona a ponta de cigarro no local de um crime. E preciso examinar, nestes casos, “os pormenores, mais negligenciveis” (GINZBURG, 1994a: 144). Esta atengdo simultanea aos detalhes e pormenores, de um lado, € as muitas vozes de um texto ou as muiltiplas verses de um processo, de outro, corresponde ao que chamaremos aqui de uma “anélise intensiva das fontes”. Frequentemente, 6 necessério pér as fontes a dialogar em registros de intertex- tualidade, deixar que uma ilumine a outra, permitir que seus siléncios falem e seus vazios se completem. O olhar micro-his toriogratico necessita desta anilise intensiva, incisiva, atenta tanto aos pequenos pormenores como as grandes conexdes. Trabalha-se ao nivel das contradigées e ambiguidades ~ néo contra estas ambiguidades, mas sim tirando partido delas. Lidando com fontes dialégicas Na impossibilidade de discutir, nos limites desta con- feréncia, todas as diversas abordagens que surgiram para tratamento das novas possibilidades de fontes — estas cuja imensa variedade foi exposta no esquema sobre a “Expansio documental” - escolhi discorrer sobre um campo especifico de abordagens que tem se desenvolvido na historiografia das LOA José D'AssvuGxo Bantos iiltimas décadas: 0 campo metodolégico que se abre para 0 tratamento das fontes dialégicas. Entenderemos como “fontes dialégicas” aquelas que en- volvem, ou circunscrevem dentro de si, vozes sociais diver- sas. O dialogismo de uma fonte a0 mesmo tempo um limite € uma riqueza: 0 historiador deve aprender a lidar com isto. No limite, ¢ claro, toda fonte— assim como todo texto ~ com- porta uma margem de dialogismo, pois se acompanharmos as reflexes de Mikhail Bakhtin, em seu ensaio Estética e cria- ¢ao verbal, nao existem textos que nao estejam mergulhados em uma rede intertextual, isto 6, em um didlogo com outros textos. O ato mesmo de analisar um texto, assevera-nos Eliseo Vern em seu livro A produsito do sentido”, jé introduz algum tipo de dialogismo, uma vez que nao € possivel analisar um texto em si mesmo, e que, mesmo sem perceber, o analista esta sempre comparando o texto de sua andlise com outro texto. Mas nao é deste tipo de dialogismo que estaremos falando neste momento, e sim das fontes histéricas que po- dem apresentar uma forma mais intensa de dialogismo em decorréncia da propria maneira como estio estrutu- radas, ou em fungao dos préprios objetivos que as mate~ rializaram. Fontes dialégicas por exceléncia, entre varias outras, 0s processos criminais e inquisitoriais que envolvem depoi- mentos de réus, testemunhas e acusadores, mas também a figura destes mediadores que so os delegados de policia ou 0s inquisidores, e também os advogados para 0 caso dos processos juridicos modernos. Estas também séo fontes que, 0 TIL BAKHITIN, M. Estetica da criagto verbal So Paulo: Martins Fontes 2003. 12. VERON, E.A produgio do sentido. S40 Paulo: Cultrix, 1980. Anxpansho Da Hisrona 105 além de dialégicas, so “intensivas”: fontes que permitem apreender e dao a perceber muitos detalhes, particularmente aqueles que habitualmente passariam despercebidos ou aos quais, em outra situagdo, nao se costuma dar qualquer impor- ‘tancia (lembremos os investigadores criminais vasculhando as Iatas de lixo). Os processos também envolvem um esforgo de compreender a fala de um outro, de dar a compreender esta fala, embora também impliquem na manipulagio da fala. Para o Brasil do periodo colonial, constituem fontes dia- logicas de grande porte os livros de devassas, produzidos pe- las visitagdes do Santo Oficio da Inquisigao. Alguns historia dores brasileiros os utilizaram amplamente, tal como Laura de Melo e Souza em sua investigacao historiogréfica intitu- Jada O diabo e a Terra de Santa Cruz (1994)*. Fontes como a documentagao inquisitorial ou os processos criminais — dada-a sua intensividade, ou a sua capacidade de apreender € expor ao pesquisador um grande mimero de detalhes ¢ de relagdes dialégicas interindividuais em um contexto intensi- ficado ~ proporcionam a rara possibilidade de se empreen- der um apurado rastreamento do cotidiano, do imaginério e dos ambientes de sociabilidade relativos. Da mais recondita intimidade do lar & exposigdo da agitada vida humana que transita nas ruas, a leitura de processos como estes pode aos poucos descortinar os ambientes de sociabilidade, ou revelar no apenas a vida concreta e cotidiana ~ com seus modos 13.No Brasil, o trabalho com processos-crime comega a ser realizado na <écada de 1970 por autores como Maria Silvia de Carvalho Franco em omens livres na ordem escravocrata (1974); José de Souza Martins em Subsibio (1992); eSidney Chalhoub em Trabalho, lar e botequim (1984). 14, SOUZA, LM. 0 diabo ea Terra de Santa Cruz ~ Fetiariae religiosi- dade popular no Brasil Colonial, Sao Paulo: Companhia das Letras, 1994. 106 Jost D’Assuxcko Bannos de alimentacio, indumentéria, cultura material, habitos € formulas de comunicacéo -, mas também a vida imaginéria € as formas de sensibilidad invejas, desalentos desesperos'*, © mesmo ocorre para os processos criminais do periodo moderno. £ importante se ter em vista que, nestes casos, € de menor importincia chegar a conclusoes sobre as razbes de um crime ou a culpabilidade do réu. A fungao do historiador no é a de desvendar crimes — tarefa do delegado de policia — nem tampouco emitir julgamentos sobre o mesmo (tarefa do juiz). Um processo, bem como uma devassa inquisitorial, per- mite rastrear a vida de testemunhas, vitimas e réus. A partir do registro intensivo deste tipo de fontes o historiador pode recuperar 0 dia a dia de andnimos do passado, aos quais néo teria acesso por outros meios. Em seu texto “O Dia da Caga’, um dos pioneiros do Brasil no que se refere a esta abordagem, o socidlogo José de Souza Martins pde-se a acompanhar os passos do réu de um crime no seu dia a dia, seguindo ele mesmo os pasos do delegado 's medos, crengas, esperangas, que tenta recuperar “o percurso trgico do criminoso, nos dias ¢ horas que antecederam o crime” (MARTINS, 1992: 299-353), De nossa parte, podemos acompanhé-lo, como 15. Os processos criminais einguistoriais, apesar de se prestarem particu: Jarmente bem & andlise qualitativa em vista de sua textura intensiva ~ dis- ponibilzadora de uma grande concentrasao de detalhes- também podem ser utilizados em grandes séres, contanto que o problema e a tematica exa- ‘minada assim o permitam. Para exemplo de andlise qualitaiva de proces so-crime, entrecruzando-o com a documentagao jornalistica que a ele se refere, cf. 0 capitulo inicial de Trabalho, lar e botequim (1984), de Sidney Chalhoub. CE tb. o capitulo sete de Subsirbio, de JS. Martins, intitulado “O Dia da Caca — O cotidiano das relagbes de classe num caso de duplo homicidio em 1928” (MARTINS, 1992: 299-353). Aaxpavsio pa Histonia 107 Ieitores, na sua paciente montagem de um mapa que revela 0s varios traje:os didrios do operdrio que ¢ acusado do cri- me. E esta instigante interposicao de mediadores -leitor, au- ton, delegado, depoentes, personagens da cena-crime-, cada um dos quais seguindo os passos do outro em uma autén- tica arqueologia de textos que se recobrem uns aos outros, o que traz a estas fontes uma espécie de “dialogismo trans- versal”. Mas é também na multiplicagio das vozes no plano sincrénico ~ correspondente, no contexto mais imediato do préprio crime, & contraposicao das vozes do réu, das teste- munhas, das vitimas ~ que iremos encontrar 0 dialogismo fi- nal, constituinte da trama que corresponde a tiltima camada arqueol6gica que o processo criminal nos oferece. 0 dialogismo presente nas fontes processuais, as diferen- tes verses que através delas se conflituam, as vis0es de mun- do que os atores sociais encaminham uns contra 0s outros, as redes de rivalidade e solidariedade que daf emergem, as identidades e preconceitos, é todo este vasto e dialégico uni- verso —néio apenas capaz de elucidar as relagées interindivi- duais, como também de esclarecer a respeito das relagoes de classe — 0 que se mostra como principal objeto de investiga- Gao para a andlise micro-historiogréfica que se torna possivel a partir deste tipo de fontes"*, Além dos processos criminais, juridicos e inquisitoriais, existem varios outros tipos de fontes dialégicas. Existem 16, Assim nos dizo socislogo José Carlos Martins em seu texto “O Dia da Caga’ a0 colocar em relevo as potencialidades da fonte-crime examina- da para uma compreensio das relagdes sociais:“(..] através das relacoes entre o réuasteternunhas ea vtima o caso nos mostra o que eram as re- ages sociais de todo dia na vida local. E como essas relagbes interferiam nas relages de classe” (MARTINS, 1992: 299). 108 Jost D’AssuNcio Barnos inclusive as fontes de “dialogismo implicito, aquelas que dao vor a individuos ou grupos sociais pelas suas margens, pelos seus contracantos, ou mesmo através dos seus siléncios € exclusbes. Assim, por exemplo, 0 periodo do escravismo colonial no Brasil conhece a pratica do estabelecimento de “irmandades” (de homens negros, pardos, brancos, escravos oulibertos, de portugueses ou brasileiros). Andlogas as con- frarias medievais no que concerne ao fato de que acomoda- vam dentro de si grupos de individuos em quadros auxiliares de sociabilidade e solidariedade, elas cortavam a sociedade a partir de um novo padrao, Essas irmandades geraram muita documentagio que pode ser examinada com vistas a apre- ender o seu dialogismo implicito: cartas de compromisso, atas, documentos varios que revelam seus procedimentos de incluso e de exclusio. No interior da populagao africana ou afro-descendente que havia sido escravizada, elas deixam en- trever os diversos grupos identitarios que se escondem sob 0 rétulo do “negro”, Jodo José Reis, que as estudou em detalhe, observa o esta- belecimento de uma discreta arena de disputas interétnicas na Irmandade do Rosrio dos Pretos da Igreja da Conceigao da Praia, na Bahia de 1686. Dela participavam irmaos e irmas angolanos e crioulos (negros nascidos no Brasil) na época de seu primeiro compromisso. “Embora sem explicitar isto, previa-se a entrada de gente de outras origens, inclusive os brancos e mulatos, mas s6 crioulos e angolas eram elegiveis, em ntimeros iguais, a cargos de diresao””. Jé na Irmandade do Rosério da Rua de Joao Pereira, a associagdo se estabelecia 17. REIS, JJ.“Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras nos tempos da escravidao” Tempo, vol 2, n. 3, 1996, p. 14, Rio de Janeiro. Acxravsio oa Hernia 109 entre benguelas ¢ jejes. © que nos revelam estas fontes em termos de vozes sociais? Através delas, dos seus termos de compromisso e documentago corrente, os grupos sociais e as identidades so postas a falar, mesmo as que sio silen- ciadas através da exclusao. O poder é partilhado por grupos especificos dentro da escravaria mais ampla. Algumas outras identidades sio aceitas, mas em um segundo plano; outras sdo exclufdas. As redes de solidariedade e as rivalidades ter- minam por falar. Mesmo quando silenciados através da ex- clusio, alguns grupos deixam soar a sua voz, nem que seja para dar a entender que s4o odiados, temidos, desprezados, ou que, de sua parte, também odeiam e desprezam. O gru- po social aparentemente unificado pela cor, como queria 0 branco colonizador, revela através do dialogismo implicito a sua pluralidade de vozes internas. A parte estes exemplos, estaremos nos referindo em se- guida as fontes de “dialogismo explicito”, como € 0 caso da- queles documentos ou textos nos quais um determinado agente’ ocupau-se de por por escrito as falas de outros. S20 fontes dialogicas nao apenas porque sav varias estas “falas de outros”, mas também porque o mediador, compilador da fonte ou o agente discursivo que elabora um texto sobre 0 texto, representa ele mesmo também uma voz (quando nao um complexo de varias vozes, ja que através do mediador pode estar falando também uma instituigao, uma pritica es- tabelecida, uma comunidade profissional, para além de sua propria fala pessoal). Com base nestes aspectos, podemos definir as fontes que se caracterizam pelo “dialogismo explicito” como aquelas que sio atravessadas de maneira mais contundente por um mediador, o qual tem consciéncia de estar situado diante de 110 José D’Assungio Baxnos uma alteridade, diante da necessidade de uma mediagao, de uma “tradugao do outro” que precisaré ser feita em si mesmo e depois, possivelmente, oferecida a novos leitores. Os relatos de viagem, por exemplo, comportam a sua margem de dialogismo, Pensemos naqueles viajantes euro- peus que estiveram percorrendo a Africa, a América do Sul € particularmente o Brasil, nos anos do século XIX em que as viagens aos demais continentes constituiram uma nova moda romantica. Estes viajantes entram em contato com culturas que lhes sdo totalmente estranhas, e fazem um esfor- 0 sincero de transmitir suas vivéncias a um leitor — que eles idealizam como estando sentado confortavelmente em uma residéncia europeia. Querem informé-lo sobre as estranhe- zas que presenciaram, as bravatas e desafios que tiveram de enfrentar por serem europeus aventureiros em terras tropi- cais e selvagens, ou em cidades ruisticas, habitadas por novos tipos sociais to desconhecidos deles como de seus leitores. ‘Marco Polo, em seu O livro das maravilhas, escrito no sé- culo XIII", jé trazia a literatura 0 seu proprio relato de via- gens, nos quais descortinava aos seus leitores europeus um mundo completamente distinto de tudo o que eles até ento haviam visto. A China e outras terras do Oriente surgem nos seus relatos com toda a sua imponéncia dial6gica, benefi- ciando 0s europeus de sua época de um choque de alterida- de que mais tarde Ihes seria muito util, quando precisaram submeter as populagdes incas, maias e astecas nas Américas do século XVI. Exemplos particularmente interessantes de fontes dialégi- «as, de que nio trataremos neste momento, sio as organizacoes 18, MARCO POLO. O livro das maravithas, Porto Alegre: LPM, 1999. Arxravso oa Htsrésia 111 mediadas de “falas dos vencidos” £ 0 caso dos depoimentos de astecas que soferam impactos da conquista da América, no século XVI, ¢ que foram elaborados pelos préprios astecas sob a orientasao do padre jesuita Sahagiin, Estas fontes, ha- bitualmente conhecidas como “os informantes de Sahagéin’, pretendem dar voz. aos astecas que foram vencidos e massa- crados pelos conquistadores espanhéis liderados por Hernan Cortez, no século XVI”. Ao serem elaboradas tanto no idioma nativo como em espanhol, estas fontes nao apenas procuram dar voz a uma cultura, mas também Ihe superpdem um outro texto, uma outra cultura e uma outra visto de mundo: a do padre jesuita que, por mais bem-intencionado que estivesse em dar vor aos vencidos, nao tem como extrair-se,a si mesmo, do discurso dos astecas a cujas falas ele traz uma organizagao. Antes de prosseguirmos, podemos nos perguntar: © que se precisa ou pode-se aprender com estes tipos de fontes que icialmente que, aqui, seré So as “fontes dialégicas”? Direi i necessério um novo talento: 0 “talento arqueolégico”. Nao me refiro, porém, a capacidade de lidar com as diferentes ca- ‘madas de terra, mas a algo ainda mais sutil: a habilidade de decifrar diferentes camadas de filtragens. © talento de perceber uma coisa a partir da outra — ou uma coisa por trés da outra ~ 6, de alguma maneira, uma habilidade poli- fonica (a mesma que se torna necessdria ao ouvinte de mii- sica que se poe a escutar composigbes musicais constituidas por varias vozes que avancam paralelamente, uma por sobre a outra, como nas composi¢des de Johan Sebastian Bach). 19. Uma coletinea dé textos extraidos dos informantes de Sahagiin foi publicada em LEON-PORTILLA, M.A visto dos vncidos~ A tragédia narrada pelos astecs. Porto Alegre: LPM, 1985, 112 Jost D’Assuncio Barnos As fontes produzidas por missionérios, World» — rid ~ um texto que recebeu de Eric Hobsbawm alguns interessantes c Arios criticos no artigo intitulado intes comentérios criticos ‘igo intitulado | P6s-modernismo na Floresta”. Vale a pena refletir sobr re este ie oo ¢ também sobre os comentérios de Hobsbawm, vis eles st ‘ac ‘ ioe a servirio como ponto de partida para elucidar los e potencialidades metodol6 . lologicas envolvi no trabalho com as fontes dial6gicas ses enelies ° i ; estudo de Richard Price refere-se as sociedades sara. is, ic ; ce pose constituidas no Suriname nos séculos a partir de quilombolas x que conse; : ‘ guiram se partar do sistema escravista e construir uma sociedade em novas bas i ses no interior daquela regido sul-americana. Os su ramakas, os “ne; ° ae 2 “neg da mata” do Suriname, nao eram cris- ieee a; mas com eles tiveram de interagir os pena — ‘as suas tentativas de evangelizacao, Gai roam extensadocumentagio a repete a 20 oe se utilizou Richard Price com . i quisa ¢ andlise. Dois problema: Surgem, € aqui o tomaremos como exemplifica: ; problemas a serem enfrentados pelos hisotiadors doje so {rato com as suas fontes. Os irmaos morévios, conservadores mas suas fontes. Os i 3S > 20. PRICE, R. Alabi’s Worl ae World. Balt imore: John Hopkins University Press, 21. HORSRAVIN, Ee M, Baap Sle ofthe Forest a. ed Saves ofthe Fors Nev ir men 46-48 (republicado em “Doomnio ie pe a pre Histéria, Sao Paulo: Companhia das L “2005, p. 201-208) {rial do tivo: 1987, orginal do artigo: soo” P 201200) AS fa como o padre | esata Sahagtin, sempre colocam em pauta 0 datogionn a is : se e também seré 0 caso das fontes que foram trabalhadas Pelo etno-historiador Richard Price em seu livro Alabi’s | Asxpansko pa Histoma 113 [p ultrarreligiosos, deixam inevitavelmente transparecer nas fontes que produziram o seu fracasso em compreender aque- Ja estranha sociedade saramaka que pretendiam catequizar. F Bles enxergam 0 mundo saramaka a partir do seu proprio filtro, da sua prépria visio de mundo, e, ainda que sinceros no seu esforgo de compreender a alteridade com a qual se defrontam, enfrentam a ébvia dificuldade de estarem presos a horizontes mentais que nao Ihes permitem compreender adequadamente certos aspectos da sociedade saramaka. Por outro lado, um outro filtro deve ser enfrentado pelo historiador que hoje toma as correspondéncias dos missio- narios mordvios como fontes para compreender as socieda- des saramakas do Suriname da segunda metade do século XVIIL. Tal como Hobsbawm assinala, e aqui trago suas pa- Javras entre aspas, para os pesquisadores modernos “a visio de mundo de fanéticos carolas como 0s moravios, com seu culto sensual ¢ quase extico das chagas de Cristo, é certa- mente penos compreensivel que a visio de mundo dos ex-escravos” (HOBSBAWM, 1990: 47-48). Desta maneira, a anilise deste tipo de fontes implica um dos cuidados para 0 qual mais devem estar atentos os historiadores de hoje: lidar com uma fonte (ou constitui-la) implica lidar com filtros, com mediagoes, inclusive as que fazem parte da propria sub- jetividade e condig6es culturais do pesquisador que examina 0 outro a partir do outro. Consideragdes andlogas sao desenvolvidas por Carlo Ginz~ burg em seu famoso texto “O historiador como antropélogo”, escrito em 1989. Toma-se como ponto de partida o mesmo 22, GINZBURG, C.“O inquisidor como antropélogo” A micro-histbria e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1994. 114. José D'Assuncio Banos problema metodolégico enfrentado por Richard Price ni obra anteriormente citada: trata-se de dar um uso historio! grifico a registros escritos de produgdes orais — no caso espe: cffico de Carlo Ginzburg, as fontes inquisitoriais do infcio Idade Moderna. As fontes inquisitoriais ~ que nos trabalho’ de Ginzburg adquirem um novo sentido ao se ultrapassar 0 antigo enfoque nas “perseguig6es” em favor do enfoque no apresentam precisamente a especificidade de se- 1 rem mediadas pelos “inquisidores”. Ou seja, para se chegar ‘ a0 mundo dos acusados é preciso atravessar esse filtro que & discurso © ponto de vista do inquisidor do século XVI. de outro, de modo que temos aqui trés polos dialégicos a se- rem considerados: 0 historiador, o “inquisidor-antropélogo”, 0 réu acusado de priticas de feitigaria, O limite da fonte — 0 desafio a ser enfrentado~é 0 fato de que o historiador deverd lidar com a “contaminagio de este- re6tipos”. Entrementes, uma riqueza da mesma documenta cdo €4 forma de registro intensivo que é trazida pelas fontes inquisitoriais — uma documentagao atenta aos detalhes, as margens do discurso, e fundada sobre um olhar microscé- pico. Isto, para além do forte dialogismo presente, seja de forma explicita ou implicita. Quanto a estratégia metodolé- gica que aproxima inquisidores do século XVI ¢ antropélo- ‘gos modernos, a que dé o titulo ao artigo, é exatamente a de traduzir uma cultura diferente por um cédigo mais claro ou familiar (GINZBURG; 1994: 212). que nos ensina Ginzburg com o seu trabalho historio- grafico sobre estas fontes, e com suas reflexdes tebricas so- bre as mesmas? Antes do mais, fica claro que o historiador deve formular indagagoes sobre os seus mediadores, tanto E necessirio empreender 0 esforgo de compreender um mundo através | Amxnansho Da Hisrémia 115 para compreender os seus “filtros” como para fazer a criti- cade autenticidade e veracidade relacionada a sua mediagao dos depoimentos dos réus. Fica claro para 0 autor, e esta é j& + uma resposta a indagago inicial, que existe no inquisidor uma vontade real de compreender, o que o leva a inquirir o detalhe ¢ a dar efetiva voz ao acusado, Ao mesmo tempo, a.este inquisidor — em que pese o seu desejo de apreender 0 ponto de vista do réu — nada resta sendo tentar entender os depoimentos ou a cultura investigada adaptando-os as suas proprias chavese esterestipos. A fonte inquisitorial, por estes dois fatores, torna-se intensamente dialégica (isto é: ela en- volve 0 didlogo entre muitas vozes sociais). O artigo “O inquisidor como antropélogo” (1989) it cia-se com um pequeno balango de Carlo Ginzburg sobre a apropriacao historiogréfica das fontes da Inquisicao. Um historiador, ao aproximar-se de suas fontes, nao se obriga ne- cessariamente historiar 0 uso historiografico que até aquele momento foi feito de suas fontes, mas em todo 0 caso esta poderia Ser uma boa recomendagao metodolégica. Estender um olhar sobre a Historiografia que precede o proprio his- toriador com relagdo ao seu tema e ao uso historiogrifico de suas fontes, permite que o analista aprofunde a conscién- cia hist6rica sobre si mesmo: saber em que ponto situa-se 0 seu trabalho, ao lado e contra que campos de possibilidades, diante de que redes intertextuais e inter-historiograficas. Os modos como pretende se aproximar de suas fontes repe- tem experiéncias anteriores? Aprimora-as, inverte-as, recusa-as em favor de novas diregdes? © quadro, na pagina seguinte, propde um roteiro para 0 tratamento de fontes dial6gicas. Os itens indicados nao ne- cessariamente precisam ser percorridos como etapas, ¢ nao suGESTAO DEUM = ROTEIRO. ONIA DAS FONTES Asxeansio pa Hisronia 117 apresentam uma ordem fixa; alguns so mesmo opcionais. Tra- igestdes, de um esbogo dos lw se apenas de um conjunto de jrocedimentos que podem ser titeis aos analistas de fontes ti- picamente dialogicas, como as que até aqui vimos discutindo. © primeito item a comentar é um destes que apresento como alternative, mas de todo modo 0 deixarei como su- yestdo. Trata-se de tragar, tio dedicadamente quanto possi- vel, um pequeno hist6rico do tratamento historiografico até entio dispensado as fontes que agora se toma como corpus documental. Retomemos o texto de Carlo Ginzburg. Ele nos conta logo no inicio do artigo que ¢ (surpreendentemente) tar~ 0 para finalida- dia a utilizagao dos arquivos da Inqui des historiograticas (GINZBURG, 1994: 203). Os primeiros historiadores da Inquisicao se aproximaram da tematica da Inquisicao de uma perspectiva da “historia da repressao in- quisitorial’; foi sob a limitagao imposta por este horizonte de expectativas que buscaram apreender as fontes que po- deriam ser constituidas pelos processos da Inquisicao ~ de zenas de milhares na Italia, ¢ cerca de dois mil processos de julgamentos inquisitoriais s6 no Friuli, que foi o universo investigado por Ginzburg. Eram de um lado historiadores protestantes de periodo posterior, que desejavam iluminar o heroismo de seus antecessores frente a perseguigao catélica; ow que estavam interessados em revelar tragos da crueldade dos repressores que pertenciam a tradigao adversaria. Por outro lado, os historiadores que assumiam a pers- pectiva catélica de uma Historia da Igreja eram compreen- sivamente relutantes em se aproximar historiograficamente daqueles processos, tanto porque Ihes era algo penoso des- cortinar © papel de seus irmaos de f€ como torturadores, 118. José D’AssUNGAe Banos observacao do proprio Carlo Ginzburg (1994; 204). Por fir os historiadores liberais, que nao se posicionavam reli eclesiasticamente, também nao se interessavam pelos pros cessos de inquisigao. Ginzburg nos explica por que: Sempre se considerou que as provas de bruxariay fornecidas pelos julgamentos, eram um misto déf extravagincias teol6gicas e superstigées popularesif Estas eram, por definicio, irrelevantes; aquelas po, diam ser mais facilmente encaradas nos tratados: demonol6gicos. Para os estudiosos que pensavam que 0 tinico tema histrico “vélido” era a persegui 40, e ndo o seu objeto, percorrer as longas e muito provavelmente repetitivas confissOes dos homens e das mulheres acusados de feitigaria era, de fato, uma tarefa fastidiosa e indtil (GINZBURG, 1994: 204). Ginzburg coloca com particular clareza o problema, neste Pequeno balango inicial da “histéria da apropriaszo histo- riogréfica das fontes inquisitoriais” Esta historia — paralela a historia de como a bruxaria “passou da periferia para o centro das questées histéricas ‘validas” (GINZBURG, 1994: 205) — mostra-nos nos seus primeiros momentos um inte- resse meramente eclesidstico (a favor ou contra a Reforma) ‘Trata-se de uma apropriacao historiogréfica das fontes que & realizada ainda da perspectiva de uma historia eclesial - de uma Historia da Igreja, examinada por um lado ou pelo ou- tro ~ endo ainda da perspectiva de uma histéria religiosa, de uma historia da religiosidade, e muito menos de uma “hist6- ria do discurso religioso”, para nao falar das possibilidades de uma “histéria cultural” que toma estas fontes inquisitoriais como um caminho interessante para indagar sobre muitas ‘Wvos e inusitados caminhos para a exploragao de novas po- Asxeansio pa Histénia 119 tras coisas pata além da religido ou das praticas religiosas simesmas. O que nos mostra Ginzburg no seu balango € que uma ova pergunta ou uma nova énfase podem abrir significa tencialidades em uma fonte ou tipo de fonte. Na histéria da apropriacdo historiogréfica das fontes inquisitoriais,a estag- nagdo ou o desinteresse dos primeiros tempos s6 puderam ser efetivamente superados com o deslocamento do enfoque na “perseguigdo eclesifstica” para o enfoque no discurso, no cotidiano, nas praticas culturais, bem como nos novos agentes histéricos (os que entretecem uma histéria vista de baixo) ~ enfim, toda uma série de novas perspectivas que motivava a fazer com que o olhar historiogréfico fosse deslocado da per- seguigdo para 0 depoimento dos acusados. Nesta virada para um novo enfoque se insere o seu proprio trabalho. ‘Um balango como 0 realizado acima— que de resto é reco- mendyel como procedimento stil para o trabalho com qual- quer tipo de fonte historiogrifica, e nfo apenas para as dia- l6gicas — permite que um historiador adentre o seu tema em maior nfvel de consciéncia historiogrética. Por vezes uma lei- tura como esta sobre a produgao historiogréfica anterior vol- tada para o tema, ou em torno das fontes escolhidas, permite quese tenha uma maior clareza sobre o que se ganha eo que se perde com a adogao de uma ou outra perspectiva: Colocat-se diante (e dentro) da hist6ria de uma produgio historiogréfica ajuda a escolher o caminho adequado, com plenos beneficios . Por isto indico este procedimento como um para a pesqui item alternativo, mas a meu ver importante. segundo item recomendado no roteiro ~ 0 qual pode ser visto no tope do hemisfério superior do esquema proposto, 120 José D’Assungio Banos © que na verdade € 0 ponto de partida dos itens obrigaté- rios ~ corresponde a “descri¢ao das fontes”. Sua forma tex- tual, seu suporte material, o idioma, o tipo de vocabulétio, 0 padrao de contetido ~ trata-se aqui de se aproximar de uma compreensio o mais abrangente e complexa quanto possivel das préprias fontes, 0 que de resto prosseguiré nos itens se- guintes. Se tratamos com processos inquisitoriais do século XVI, teremos que nos familiarizar com a estrutura do proces- so inquisitorial, compreender seu dialogismo, sua dinimica interna, os tipos obrigatorios que o articulam (acusadores, investigadores, réus, testemunhas), e ainda as priticas que 0 estabelecern (investigagao, inquérito, eventualmente a tortu- 1a). Se utilizamos como fontes historiogréficas os relatos de viagem, seré preciso compreender 0 que so os “relatos de viagem” como género literdrio realista, e também compreen- der mais propriamente estes relatos de viagem especificos que tomamos para nossas fontes. Quem é 0 emissor desta fonte? Genericamente, quem € o “viajante”, e especifica- mente quem é este viajante? A que publico se destina um sclaty como este? A que praticas culturais este género de texto atende? Se ¢ um processo — embora isto seja ébvio que finalidade ele cumpre? Questées como as envolvidas na “descrigao das fontes”, remetem a necessidade ou possibilidade de alguns textos serem examinados como “processos comunicativos”, 0 que envolve as figuras do emissor e do receptor, a existéncia de uma mensagem, os objetivos desta (comover, divertir, mani- pular, seduzir, persuadir, impor, esclarecer, mover, paralisar). No que concerne a processos criminais ou inquisitoriais — documentacéo complexa que se articula em diversos tipos de texto e em varios niveis -, ndo se trata de compreender as Arwspassko pa Histoata 121 instancias de um processo comunicativo, mas sim compre- ender o papel ce cada um dos seus agentes discursivos, ¢ de perceber nao propriamente uma mensagem, mas uma fina- lidade do processo como um todo, para depois, talvez por dentro, retornarmos 4s mensagens através dos depoimentos que instauram discursos especificos. 0 terceito item recomendado no roteiro, logo em se- guida a este, refere-se ao “contexto das fontes”. Para 0 caso das fontes de Richard Price sobre os saramakas, seria 0 caso esclarecer as “condices de produgéo” daquelas cor- respondéncias pessoais dos missiondrios mordvios, que foram tomadas como documentagao central. Se possivel, é interessante levantar nao apenas 0 contexto mais imediato das fontes, mas também a sua histéria como fonte: 0 con- texto que as precede (uma pritica dos missiondrios mo- rivios de registrar relatos e se comunicar com suas bases através de correspondéncias deste tipo) e também a his- t6ria posterior: como estas fontes chegaram até nés, que caminhos percorreram até encontrarem seu pouso mais estavel em algum arquivo? Para o caso dos “Informantes do Sahagiin’, seria 0 caso de nos aproximarmos da historia de uma pratica jesuitica, de verificar casos que precederam a experiéncia do jesufta Sahagtin junto aos astecas subme- tidos pelos conquistadores espanhéis. Se isto for possivel, claro. Depois, verificar como estas fontes chegam até nés, historiadores atuais. Hi ainda o“contexto” nao da produgao da fonte, mas dos fatos ou processos a que ela remete ou se refere. Se se trata de um processo, teremos de esclarecer os aspectos que en- volvem o crime ou a acusagio de heresia: especificamente este crime ou esta acusacao de heresia com a qual estamos 122 José D'Assungio Baxsos lidando. Quem sio os personagens envolvidos na tr Que posigao ocupam, uns em relacdo aos outros? Que re Gdes de solidariedade e rivalidade emergem destas relacbe Algumas destas perguntas serdo preenchidas aos poucos, decorrer da investigacao historiogréfica e da andlise das fo tes, mas apenas as situamos aqui como possibilidades para’ constitui¢éo do contexto. Mais ainda, e mais importante: qual é 0 grande contexto? © que embasa esta sociedade, e o que define os seus grandes horizontes, dos quais nenhum dos atores envolvidos pode escapar, por serem estes os horizontes intransponiveis de sua sociedade e de sua época? Comegamos a lancar aqui as bases ara entretecer uma histéria. Se ha varios personagens en- volvidos, talvez seja mesmo itil construir o contexto de cada tum deles; se ndo aqui, a0 menos no momento da investiga- G40 em que isto se fizer necessan De igual maneira, quando o que investigamos sao as pré- ticas ou as repercussées de uma pratica, é preciso delinear também 0 contexto desta pratica especifica — e nao apenas © dos atores suciais que estao com ela envolvidos, ou 0 con- texto dos acontecimentos que tomaram forma através destas relagdes. A propria pratica herdada de outras culturas, quan- do deslocada para uma nova sociedade, torna-se uma outra coisa, e precisa ser recontextualizada, Pensemos nas herangas medievais e modernas de praticas pagas, nas sobrevivencias das praticas mégicas e da alquimia no século XVIII. Ser um alquimista na era de Newton (e 0 préprio Newton tinha 0 seu lado alquimista) 6 algo bem distinto de ser um alqui- mista nos tempos medievais de Nicolas Flamel (1330-1418). ‘Uma pritica deslocada precisa ser recontextualizada, reinse- rida em seu “contexto total”, Asxeansko pa Hisromia 128 ‘A construgio do “Contexto’, ¢ eventualmente o que Po- lerd ser entendido como uma “Recontextualizagao’ cs tui uma etapa extremamente importante para qualquer po de fontes (endo apenas para as dialogicas). Em um artigo que seri comentado mais adiante, Edward Palmer Thompson (1924-1993) chama enfaticamente atencdo para a necessidas de reinseri as evidencias, os discursos, as préticas ou 08 Pro cessos examinados em seu “contexto total’: Seu mote para a discussdo. desta questdo, do qual mais adiante nos aproxima- remos em maior nivel de profundidade, é a critica da sempre incorreta andlise descontextualizada dos folcloristas que exa- iminam rituaise préticas cuturais como meras permanen- cias de tradigdes anteriores, e a necessidade que ce see seguida pelos historadoresculturais de compreendr estes mesos rita pris uz das moves fang 0s coe sents que ess préticas asumem er outras sociedad" ‘Um antigo ritual pagio deslocado para uma sociedade cris industrial e para um ambiente urbano ja € uma outra coisa, que nao mais 0 que era nos seus tempos romanos. a = lagdo a esta preocupayao historiogrdfica ae is aut chamaremos de “recontextualizagao’, mais do que : “contextualizagio” ~ pois nest cso especfcotratam-se priticas que foram produzidas em uma configuracéo ee ‘mas deslocadas para outra — poderemos tomar emprestadas as irretociveis palavras de Edward Thompson: significado de um ritual s6 pode ser interpretado- quando as fontes (algumas delas coletadas por fol- cloristas) deixam de ser olhtadas como fragmento “ jlogia e Histéria Social”. As pecu- SAISON BP uldoce Atopic His aac ire ous aris, Cpe Uncap 20-23. 124 Jost D’Assins¢%0 Banos folelérico, uma “sobrevivencia? e sdo reinseridas. seu contexto total (THOMPSON, 2001: 238), Retomado 0 nosso esquema sobre a critica documeni 05 préximos procedimentos referem-se jé especificamenté fontes dial6gicas. Enquanto os quatro procedimentos até a Propostos referem-se @ todos 0s tipos de fontes (e nao ape as narrativas, como também as serializveis e outras) no sentido de que para toda fonte seré titil recuperar a historiogréfica que jé a abordou, empreender a sua descric: tao complexa quanto possivel, e adentrar os contextos tanté! da prépria produgio da fonte como do processo a que ela se refere -, os procedimentos seguintes so especificamente voltados para o trabalho sobre as fontes dialogicas. © quinto procedimento indicado refere-se & identifica sao € descrigao da “polifonia interna das fontes”. Trata-se de identificar as varias vozes que compoem esta trama polifoni- ca, situando-as em seus niveis arqueol6gicos (para utilizar a ‘metéfora de Michel Foucault). Almeja-se compreender cada uma delas em um nivel que se aproxima ou se afasta mais do historiador, perceber as mediagoes que Ihes sao interpostas Trata-se ainda de entrever os seus didlogos, perceber como se situam umas em relacao as outras nfo apenas nos termos da espacialidade arqueolégica do discurso (os niveis de me- diagdo), mas também como as diversas vores interagem na polifonia textual. SE ee ern rt Ihas formas podem expres Ses Sesvelhis podem cher ual diversas vozes soam juntas, sem que uma tenha prece- Fdéncia sobre as demais. Exemplos conhecidos sdo as fugas ou 08 corais de Johan Sebastian Bach e de outros compositores barrocos e renascentistas, em cuja misica hé baixos, tenores, sopranos e contraltos, ou ainda as composices nas quais di- . Arxenseko pa Hasréna 125 Lembremos aqui o que é uma “polifonia” na teoria mu- ical, campo que inspira esta metéfora. A polifonia € a mo- alidade de miisica, 0 método de apresentacao musical, no versificados instrumentos entoam melodias distintas. Uma fonte hist6rica “polifonica” serd aquela na qual se expressam efetivamente diversas vores ~ por vezes explicitamente, atra- vés de um espago que Ihes é concedido para a falas por vezes implicitamente, através do discurso de um outro que mesmo sem querer termina por permitir que outras vozes falem no interior de seu discurso. Trata-se de uma situacéo andloga ada jovem adolescente que vai ao psicanalista e na sua fala deixa escapar, diretamente ou através de atos falhos, a voz do pai, do irmao, da mae, do namorado que a traiu, do profes sor por quem nutre paixdes secretas. Perceber polifonias no discurso requer sensibilidade, mais ainda do historiador, jé que ele lida com planos polifénicos envolvendo varias épocas. Entre as varias vozes com as quais ira lidar esta a sua mesma. £ preciso nao deixar que esta su- foque as vozes histéricas sobre as quais tem ele a responsa- bilidade de trazer & vida, de recuperar a dimensao exata da sua miisica. E preciso evitar que a sua voz, com sua espe- cificidade e seus limites, contamine as demais. Isso seria 0 “anacronismo” - 0 pecado méximo do historiador, segundo Lucien Febvre-, que corresponde a deixar inadvertidamente que a melodia especifica da temporalidade presente tome 6 lugar das demais com seus ritmos e solugdes mel6dicas 126 José D’Assunsgg0 Basnos especificas. Temos aqui a historiadora feminista que em Safo reivindicagées que sio apenas suas, ou o historia revoluciondrio que quer enxergar o socialismo em John Ba ou ainda 0 historiador protestante que convoca para a causa reformista todos os hereges queimados pela Inqui 40. Mas a voz do historiador existe; é preciso lidar com el deixar que também se expresse, para que nao se caia na ih 50 positivista que destocava a melodia do historiador para austera posigao de um maestro protegido pela neutralidac cientifica, Recomenda-se refletir, para as fontes dial6gicas, sobre a varias vozes que adquirem vida através da investigacio. Dees ois, agrupé-las segundo as afinidades, consoante critérios que $6 poderao ser definidos pelo problema histbrico que esté orientando a pesquisa e a reflexao historiogréfica, Po- deremos agrupar as vozes por classes sociais, mas também or relacdes de solidariedade, rivalidade ou preconceito em telagio ao acusado que se senta no banco dos réus, Podere- mos partilhé-las por geracdes ou por géneros, se o problema da pesquisa apontar para uma coisa ou outra. Poderemos criar critérios que combinem o género ¢ as categorias pro- fissionais, de modo a distinguir as mulheres operdrias das que trabalham no comércio a varejo. Poderemos até mesmo criar um recurso para clarear o timbre de cada uma das vozes envolvidas, como fez Richard Price ao escolher um padréo tipografico para cada um dos atores sociais que so postos a falar em seu livro Alibi’: Word (1990). ‘Uma tarefa mais dificil do historiador dialégico ¢ a busca de dialogismos implicitos (item 6), Pela sua propria estru- tura, um texto pode registrar explicitamente a voz do ou- tro, como é 0 caso dos processos criminais ¢ inquisitoriais, Anxeaysko pa Histémia 127 adrao de perganta e resposta ndo deixa diévidas com re- 0. estruturacial6gica de uma situagao, embora também ihamos os cléssicos exemplos dos Didloges de Plato, a jondlogos disfargados em estrutura dial6gica do ane a P quer outra coisa, Excesio feita ao Banquete ~ obra dial6gi gn por exceléncia -, a maior parte dos diélogos Pltics penas forja uma estrutura de oposigao interativa. Isto ce : podia ocorrer, é preciso ressalvar, mesmo no dial osismo inquisitorial, nas ocasides em que “as respostas dos a a eram mais do que 0 eco das perguntas dos inquisidor /BURG, 1991: 208). Spo percepgao do “monddico” que se esconde cao aparencia polifdnica (ou do mondlogo que se escon ay estrutura de didlogo), como a percepgao do Sialogismo = plicito” (item 7), eis aqui algo que requer um nivel ie de sensibilidade do historiador. Com relagao a este ti a aspect, Ginzburg cita (dialogicamente) um texto de re Jakobson (1896-1982), o grande linguista russo que foi pi neiro da anélise estrutural da linguagem. Jakobson antecipa Bakhtin na sua percepsio radical do dialogismo a © nos diz que'‘o discurso interior éna sua esséncia um di log ¢ todo discurso indireto é uma apropriagao € uma =o = ao por parte daquele que cita, quer se trate da citagao ey alter ou de uma fase anterior do ego”. O dialogismo, enfim, pode se esconder mesmo no interior do discurso do “Eu {Ao sexto item do esquema de procedimentos para a anélise dialégica chamaremos de “critica de veracidade dos mediadores”, Pera entender este item retornemos agora a0 2 lexandre Koy JE JAKOBSON, R“Tanguage in Operation’ Milanges Alexandre Koy LEaventure de Psprite. Pars [se], 1964 p.273. 128 Jost D’Assungio Bannos texto “O inquisidor como antropélogo”, de Catlo Ginzbuy (1989), no sentido de avangar na compreenséo de certos Pectos relativos as fontes dial6gicas e extrair mais sugest de procedimentos a serem incorporadas ao nosso roteiro, Quando lidamos com fontes dialégicas, e particularmens ‘com fontes processuais, devemos tentar entender em um Primeiro momento 0 nosso “filtro”, os mediadores que se| interpdem entre nds ¢ 05 acusados, testemunhas, e outros: agentes emissores dos discursos que nos interessam em iiltie ‘ma instancia (isto, ¢ claro, quando nao estamos diretamente interessados no discurso destes mediadores: compreender 0 dlscurso emitido pelo proprio juiz, inquisidor ou delegado que conduz a investigagao criminal), Admitindo que nosso objetivo é atingir a outra camada arqueol6gica ~ a dos acusados da Inquisi¢ao, a dos astecas resgatados pelo Padre Sahagiin, a dos saramakas catequiza- dlos pelos missionarios moravios, a dos chineses relatados Pot Marco Polo, a dos nativos retratados por Debret ~ tere- ‘mos que passar obrigatoriamente pela camada mais prdxi- ma. Estes mediadores € que nos entregam os discursos dos outros, dos vérios atores cuj falas constituirao a base de nosso trabalho. E preciso indagar, antes de mais nada, pelo Seu interesse — destes mediadores ~ em relatar com veracida- de o que viram, em registrar com maior ou menor rigor os depoimentos que recolheram, em dar vou aos seus protegi- 40s, a0s seus reprimidos, aos seus vencidos. Mais do que isto, sera preciso indagar nao apenas se eles possuem interesse em agit no plano da veracidade, mas também se eles sao capazes de agir neste plano, se para tal estio dotados da necesséria “utensithagem mental” (para retomar aqui a antiga expres de Lucien Febvre). Acxpavsto pa Histéma 129 Vimos no exemplo de Richard Price, ao menos se levar- Ios em consideragao as citicas que Eric Hobsbawm dirige Ww seu trabalho, que 0s missionérios morivios nao na Fam grandes condigdes de compreender o estranho ae ° ths saramakas, Compreender a capacidade do “media a em se aproximar compreensivamente ou ndo de uma cul tues ow pratica cultural que the € estranha, ou 20 coe Inngar-uma indagagao sobre os niveis possveis ou os lim ie desta compreensdo, ¢ fundamental para nao nauftagarmos cam nossa viagem de exploragao. Como podemos ver nos ea mentétios de Hobsbawm sobre o ensaio de Price, trata-se de preciso que nés compreendamos compreensio: ven mde e qe em sida compen compreensio que lhes foi possivel sobre os seus ina os seus nativos protegidos, seus saramakas, seus “outros ie tios tipos. Sobre seus proprios mediadores — 0 inquisidores do século XVI - Ginzburg tem algo a dizer: Foi a Ansia de verdade por parte do inquisidor (a sua verdad, dar) que permis ue chase at ns a documentagéo, extraordinariamente rica, em tra point erp po pres Wg esa a quo acsados tv sutos Hs nas pegunts dos jus, hates masque evidents 40 sabat das bruxas— que er, segundo os demonolo gistas, o verdadeiro cerne da feitigaria: quando assim acontecia, os réus repetiam mais ou menos esponta~ aeamente os esteredtipos inquisitoriais entao divul- gados na Europa pela boca dos pregadores, tedlogos, iristas ete. (GINZBURG, 1994: 206). Ginzburg expe alguns problemas nesta interessante pas- sagem. Fala-nos, por exemplo, da “contaminagao”. Ainda que reconhega a “veracidade” (ou a intengo de veracidade) dos 130 ose D'ASsuNGAa Bankos seus mediadores ~ aspectos que ja comentarei -, observa un limite a ser considerado pelo analista historiador, As pergun tas, por vezes, jd comportam respostas, ou se abrem a certos padrdes de respostas e no a outros. d Um certo vocabulério que se uti ana pergunta pode contaminar de alguma maneira a resposta; um certo imay nario pode passar daquele que indaga aquele que responde, Este aspecto é um limite, mas também é uma riqueza. O prd- prio inquisidor que indaga, talvez ele mesmo ja tenha sido contaminado pelos demonologistas, tedlogos ¢ pregadores de sua época. Mesmo que nao fosse, ainda assim o préprio réu pode jé ter sentado no banco da Inquisicao com conhe- cimento de certas imagens que fazem parte do outro campo cultural. Quando se estabelece o espaco da no comunicacao, quando ele se vé incapaz de transmitir uma imagem ou sen- sibilidade que s6 sua, e que nao existe no sistema cultural ou vocabular dos seus inquisidores, tentard romper o espa G0 de nao comunicagao ~ que de todo modo € extremamente perigoso para quem esté sob a ameaca de tortura —e talvez Tente encontrar junto aos seus inquiridores uma linguagem ou repertério de sensibilidades em comum, algo que percebew no seu horizonte de expectativas ou, de modo diverso, algo que escutou no mundo externo, e que supée ser compreenst- vel ao inquisidor. No caso do réu, por vezes ele quer escapar dali, nem que seja para a fogueira, Seu desejo é restabelecer um espago de comunicagao. O silencio é perigoso, e pode ser mesmo muito doloroso. Nao é apenas sob pressdo que a contaminagao ocorre. Quantas concessdes culturais tiveram de ser feitas pelos aste- cas, a quem o padre jesufta Sahagiin pretendeu dar alguma voz, quando percebiam que seu protetor nao conseguia penetrar no AvxpansKo pa Histoata 131 mundo? As palavras também sao mediadores, como as Imagens. Quantas aproximagées deverdo ter experimentado pura estabelecer uma ligagao entre dois mundos tao distintos como 0 dos europeus ¢ o dos astecas no século XVI. Alguns dlestes tateamertos para preencher um espago de nao comu- niicagao, com vistas a restabelecer a comunicagao solidaria entre o jesutta € 0s nativos oprimidos, devem certamente ter ficado registrados nos depoimentos que hoje constituem a chamada documentagio dos “Informantes de Sahagiin’. Quantas manobras discursivas, torcendo e retorcendo pnadroes de sensibilidade, nao terao sido feitas pelos quilom- bolas saramakas diante dos missiondrios mordvios que ten- lava catequizé-los, mas que se mostravam tao ineptos para «a fungao de mediacao que neles deveria ser perseguida como «principal virtude, se queriam mesmo trazer os saramakas para 0 seu mundo religioso. Como confiar diretamente no missiondrio mordvio, tomando por base a correspondéncia que trocava com outro individuo de sua mesma espécie? Para o seu universo dialégico, Ginzburg reconhece a“An de verdade” dos seus inquisidores. Existe outra passagem em seu artigo que é uma das mais brilhantes formas de descrever © dialogismo que também atinge o proprio historiador. © que os juizes da Inquisigdo tentavam extorquir &s suas vitimas nao é,afinal, tio diferente daquilo que nn6s mesmos procuramos ~ diferentes sim eram 03 meios que usavam e os fins que tinham em vista Quando eu estava a ler processos dos tribunais da Inquisigao, muitas vezes dava por mim a espreitar por cima do ombro do inquisidor, seguindo os seus passos, na esperanga que também ele teria, de que 0 réu confessasse as suas crengas — por sua conta e risco, claro. Esta contiguidade com a posigao dos 32. Ose D'AssUNGKO Bannos inguisidores nao deixa de entrar em contradicao com ‘a minha identificagao com os réus. Mas nao gostaria de insistir neste ponto (GINZBURG, 1994: 206), Claro, Ginzburg discorre aqui sobre as tensdes que se pro- duzem diante daquilo que se chama hoje de “politicamente correto”, Nao fica bem espreitar por cima dos ombros do in- cuisidor para escutar a sofrida voz do réu, embora seja exa- tamente isto que 0 historiador acaba tendo de fazer. Mas, de todo modo, ao confessar a identificagdo com a ansia de verdade do inquisidor, com o seu desejo de dar voz ao outro mesmo que para finalidades que © historiador reprovaria, & preciso também contrabalancar isto com a declaragio de identificagao com 0 réu. Nao € possivel aprovar nem os meios inquisitoriais nem os fins que se tinha em vista. Com esta frase, Carlo Ginz- burg dialoga com os leitores de seus livros. Também é dialogica esta relagdo entre um autor e seus leitores, Mas, enfim, também nao hé muito que insistir sobre este ponto. Deve-se atentar ainda, € isto pode ser registrado como um sétimo item a ser considerado para a abordagem das fontes dialégicas, a identificagao e anslise dos “instrumen. tos e procedimentos de mediagao”, A “tortura” em contextos como o da Inquisicéo ou o das ditaduras militares, é um pro: cedimento dbvio para os modelos de interrogatorio violen- tos, € esta relacionado a “assimetria entre as vores”, da qual falarei no proximo item. Mas ha também intimeros outros instrumentos de mediacao ou intervencéo que podem alte- rar o contetido ou o registro das vozes, Na documentacao policial, como por exemplo nas “ocorréncias”, deve-se consi- derar a intervengdo do escrivao que anota os depoimentos, mas que nesta operagio jd os altera eventualmente; e mesmo. um certo padrao prévio de maneiras de redigit pode estar ‘Awxeansio na Hisrénta 133 entre os elementos capazes de distorcer as vozes, menos ou mais levemente. ‘Uma recomendagao final ¢ recuperar a rede de poderes, e eventualmente de micropoderes, que se integra ao dialogis- ‘mo das fontes (item 8). Tal como nos mostra Carlo Ginzburg (GINZBURG, 1994: 208), o inquisidor € seu réu — embora se situem no plano do discurso como duas vozes de igual ressonincia para o historiador — esto em situacao de desi- gualdade, 0 mesmo ocorrendo com 0 antropdlogo € os seus nativos ou outros informadores. Aqui aparecem situagoes que envolvem poderes reais e simbélicos, mas que em todo 0 caso expoem uma assimetria entre as vozes examinadas. Ha também uma assimetria entre os quilombolas saramakas € 05 missionarios mordvios estudados por Richard Price, em- bora seja dificil dizer quem esta em posigao mais confortavel perante 0 outro. Sio assimetrias em que um poder nao se impoe sobre a voz oprimida, tal como é 0 caso dbvio da In- quisigao ou do poder simbélico que exerce o jesuita Sahagtin sobre os astecas ja sobreviventes de uma sociedade destro- cada pelos espanhéis, Entre os saramakas € os missionarios moravios temos poderes e micropoderes que se confrontam. O primeiro grupo se esquiva do segundo; este, por sua vez, acredita ter exercido algum poder simbélico, quando na ver- dade apenas foi empurrado para o mundo da nao comunica- ao. Nao hé poder mais sutil que o de enganar 0 antropélogo ‘ou o missionario. Os modernos processos criminais e inquisitoriais sao si- milares tanto no dialogismo como no fato de serem fontes intensivas, particularmente atentas aos detalhes, a0 que pode ser revelado subitamente através de um gesto, de um ato falho, daquilo que escapa pelas margens. Na seguinte passagem de 134 José D’Assuncho Barzos “O inquisidor como antropélogo”, Carlo Ginzburg express este tltimo aspecto, o da intensividade das fontes, com pare ticular clareza: £ verdadeiramente espantosa a riqueza etnograficn dos julgamentos do Friuli, As palavras, os gestos, @ corar suibito do rosto, até os siléncios ~ tudo era re gistrado com meticulosa precisio pelos escrivaes do 'anto Oicio, De fato, para os inquisidores, sempre Yo desconfiados, qualquer pequena pista poderia constituir um avango considervel no sentido da verdade (GINZBURG, 1994: 209). O quea fonte devolve ao historiador Concluo aqui esta reflexao sobre a expansio documental © particularmente, sobre as abordagens possiveis para o tra tamento dialogico de alguns tipos de fontes. Posso lembrar, como um comentario final, um aspecto interessante, ou mes- ‘mo curioso, Ao trabalhar com fontes de natureza diversa, no sentido de analisé-las, 0 historiador também termina por se beneficiar de um longo aprendizado relacionado a possibili- dade de incorporar, também nos seus modos de escrita, a lin- guagem ou recursos presentes nas fontes que analisa, Assim, podemos nos indagar a respeito daquilo que se aprende com is “fontes dial6gicas” em termos de formas de expressao, De alguma maneira, 0 historiador que se torna habil em decifrar as vozes internas de uma fonte dialégica torna-se potencial- mente apto a desenvolver uma “escrita polifonica”®. As expe- riéncias estao abertas, 26.Richard Price, no seu estudo sobre os saramakas, trabalha com quatro vozes que sao simbolizadas por quatro padraes tipogréficos, o que cons- titui também uma novidade em termos de utilizacio da visualidade da escrita (PRICE, R. Alabi’s World. Baltimore: [s¢.], 1990). 4 ESPAGO E HISTORIA® Ja se disse que “a Histéria é 0 estudo do homem no tempo” (ou dos homens no tempo). A defini fot pro- posta por Mare Bloch por volta de meados do século XX', mas hoje parece tio Sbvia que j deve ter sido mencionada intimeras vezes em obras de Historiografia, ¢ certamente na maioria dos manuais de Histéria. No entanto, quando Marc Bloch a propés, estava confrontando esta definigto a uma outra que também parecera perfeitamente dbvia aos historiadores do século XIX: “a Historia ¢ 0 estudo do pas: sado humiano”. / ‘A ideia de “estudo”, que aparece em ambas as definigées. aliés, € particularmente sintomitica, e assinala um momen- to no século XIX em que a Histéria passa a ser considerada uma ciéncia — uma ciéncia interpretativa, com seus métodos proprios e abordagens tebricas, e que deve se processar sob © métier de um novo tipo de estudioso e especialista que ¢ * Conferéncia proferida na Fundasio Universita Regional de Blamsenas (Farb).Blumenan, 26 de outro de 208, Postrioumente o eto fp blcado na revista Vara Misra (BARROS, LD'A. “Hist tempo © pag _teragbes neces’ VriaHitra— Revista de Histria da Uni- Tessidade Federal de Mings Gerais, vl 2, stl 36, dz/2006,p 460-475. 1.BLOCH, M. Apelogia da Historia, Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p55.

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