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Chamam-lhe o amigo mais íntimo do sol: de acordo, se o sol for obstinado e severo. Cha-
mam-lhe poeta: de acordo, se as palavras nos trazem notícia da veemência do sangue. Cha-
mam-lhe difícil: de acordo, se notarem a bondade de menino na pomba do sorriso que de
tempos a tempos acende os passos seus e os nossos e nos mostra a única vereda que cami-
nha a direito, macieiras fora, na direcção do rio. Não conheço ninguém com gestos tão longos
e com uma tão aguda inteligência de alma. Onde poisa a atenção do ouvido tudo se torna
búzio. Onde descansa os dedos tudo se torna gato comedido e atento. Onde os olhos lhe nas-
cem aprendemos com ele o intransigente júblio do mundo. E no entanto que geografia de
dor no país do seu rosto, que discrição no sofrimento, que impediosa dignidade medida em
cada sílaba. A total ausência de vaidade do seu orgulho foi o que, ao encontrá-lo pela primei-
ra vez, mais profundamente me comoveu.
José Cardoso Pires, que não tinha admiração fácil, contou-me do poema que Eugénio compôs
na morte de José Dias Coelho, quando os heróis retrospectivos se calavam de medo nos anos
de alcatrão sujo da ditadura. Não um panfleto, não um manifesto, não um grito: apenas a
serena voz de um homem falando de outro homem, fitando-nos da sua altura terrena e, por
consequência, desmedida. Um dos seus livros intitula-se Rente ao Dizer e esse rente ao dizer,
despido do que não é corpo, devolve-nos a nós mesmos na condição de bichos sublimes em
que nas páginas que acede a publicar nos tornamos.
Ainda que em guerra Eugénio reconcilia-nos connosco ao deixar entrever os degraus que nos
falta subir para estarmos lá em baixo, no lugar que é o nosso, manchados da comovida urina
e dos líquidos obscuros que nos protegem ao nascer e nos esperam, na sombra da morte, a
fim de nos ajudarem a partir, pobres criaturas mudas vestidas de ranho e de poeira celeste.
Para além da amizade que nele é dura e nobre, isto lhe devo também: o retrato da minha
condição e a certeza de que algo para além de mim continuará nos seus versos, seja pássaro,
nuvem ou laranja madura.
Escrevi um dia que quando o coração se fecha faz mais barulho que uma porta. Não imagina
como lhe agradeço, Eugénio, que o seu se mantenha calado num vigilante desvelo, convidan-
do-me a entrar onde uma máscara de bronze nos aguarda para ficar connosco, naquela sala
“Estive sempre sendo nesta pedra aberta rumo às palmeiras da voz. » (1)
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água. António Lobo Antunes, sobre Eugénio, num retrato de um amigo, na semana em que lembra-
O lago é o tanque daquela idade mos o nascimento de um poeta que de forma imensamente bela nos deu a musicalidade e os
em que não tinha coração limites do coração perante o tempo.
magoado (porque o0 amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso, (1) António Lobo Antunes, «Bom Dia Eugénio», in Segundo Livro de Crónicas, Págs. 301-302,
tão feito de privação). Estou onde D. Quixote
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica “A pureza, de que tanto se tem falado a propósito da minha poesia, é simplesmente pai-
por onde corre apenas o silêncio.” xão, paixão pelas coisas da terra, na sua forma mais ardente e ainda não consumada.”
Eugénio de Andrade, Poesia. Coimbra: Modo de ler, 2011. [Auto-Retrato], in Aproximações a Eugénio de andrade. Porto: Asa, 2002.
Boletim Bibliográfico - março de 2023 - Eugénio de Andrade
de um nome o teu:
amor do mundo,
amor de nada.”