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MICHEL ONFRAY Contra-histéria da filosofia I AS SABEDORIAS ANTIGAS ‘Traducio: Monica Stahel wmfmartinsfontes stomano ae manprinancarnnc tt, ii toga en Eater rt “wepmmitfetcrseeitmnat inert ca ay nh ae ‘eng Catan de iin Erte ‘op ives etn ote rs i 0 sari chy. oa orn om » SUMARIO. POR UMA CONTRAHISTORIA DA FILOSOFIA Preibulo gral hstrografia, uma are da gue n ‘WAnsneyai a paeenone 2) Nes sm as 3) A tis ac ) Adee 8) Aa ps ‘mores 6) Opec oa Introduce: Sobre pocras de stos 25 ‘WAcaaattpspreatics2 jp as aes 3A pe ot PRIMEIRA PARTE: AS SABEDORIAS ANTIGAS, ‘PRIMEIRO TEMPO ~ Tragor de dtomos em wm vaio de hax © materalismo abderitano 1. Levoo eA auzonia aureyriea” 39 1) Ss cs ints op 2 Fea. mateo e679 fe tains mss ca cat aba 1. DesocuTo £0 pewsR oRTDO CoNsiCO MISMO" .. 49 1 Gras 2) St oraat dr oe 3) ‘arb Ochr ges 8A ts) ‘ance cop ad 7) Oa eos nena 8 Eas marae 9 080 1. Hrgnco £8 MAIS PRAZERONA DAS DAS” ‘ymesctub aber 2 ase ante IV. ANsxatoo ESUARATUREZA APUNONADAFELO GOO" 79) ‘Notreasorapeinatrgs 2} ONG teres ‘SEGUNDO TEMPO — Uses teropticos do verbo: « mfeticnantifoviona ‘V.ANTIFON “A ARTE DE ESCAPARA ARUICKO™ 85 “cece sk 2 Ati Stes 3)A > ae 9 Orme ats 8) eer ete Bs 2 ‘states TTERGEIRO TEMPO —A invenpio do praser: file de Arstipo de Cirene VI. Anisnro £"a voutMA Que nscA™ 103 1) Otc asa 2) 0 ng sme 3) Pras 302 ‘Suber 8) Poe seb) Rss ‘Zarora 1) fat qa cme Uses.) Odom poe Hee eect 0 Oscars? (QUARTO TEMPO Praser do dexjo resohide ‘ etelagi cin VIL Dioceses E“vesrmvTak 0 meazex Dos LASOFOS” 120 10st arom 2) Epo a pee rat 3) Un maee [enocnta Pu passe (QUINTO TEMPO - Savor pea polémica: (rts mosquteiroshedowistas VIL. Pusno e von mse” 43 ‘uta amas 2 On a} a ‘ata Penna oe mane 1X. Eepdxo #“o ono nest pana TopO «= 15 ‘ised Pa 2a est) Me onarraesacu neces 159 X. Proton A 430408" 10 Fs ao 2) ge sas 3) Omer ane ashe sms ‘SEXTO TEMPO ~ Sob o sign do poreo= «epicurimo grecoromano XI. Encuo “0 ruse sureewo" 7 ‘WFetpua tt 2) par ptr 9) ries {Bra oat tg som 8) Asp oars a0? ‘reco mot 7) Seca oe ests) Doar {29 etre ttn ee 1) Ph 9.1) Grape tapes} Oe armen fares?) Aaa vocgon emperors 14) 680 a at ess 16) imo a ica Pa 8) Pes xl Fi.o0eo De GADARA A COMUNIDADE HEDONSTA 217 Werte cc 2) Oru, oreo 3) Lor Dov iveun oeerana 8 Bago as esc 8) Ao pia? ‘enone go 6) an deer 7) Caan a crane rpm tensa a ate oc foncoan 1M) Urasuac poe XII, Lucaécio A vouwrta RIN 27 eso es a ons 3 Oe cee ‘ana npagng 8) onpiva de a Cac deo fe Pom ne Bsn ace 1) Arcam oe 4) Dona 3 ore 1). 0 mi 0 ao 12) laps is ape 1) Dene pce 4) pa en 18) vos rage 1) Um cas aa1c3 XIV. DiOc#NES De ENOANDA°A ALEGRE DE NOS avuneza" 287 serves pass 2 Osetia ees 3) Umer yao) ‘Osean! 8) Oates Bibigrafia 207 Cromolgia 307 Indice remssivo 313 Predimbulo geval ‘A historiografia, uma arte da guerra 1 ‘Anistoriografia, uma polemologia. \historiografia€ do Ambito da arte da guerra. Nao é de espantar, €n- tio, que nos arredores reine © dosdefesa, A disciplina participa fnologia: como encararo combate, medi Te fovea, elaborar uma estratégia, uma ttica part oe dinsla, geri as informacdes, car silencian ents TEENS belo, fingin, € tudo o que supoe enfrent vat jos capares de determinar vencedor ¢ vencide? ‘S historia mostra que € Gores e impiedosa com os perdedores *Keaplemas: a historiografia da flosofia no ec pr cea Tet do género. A filosofia wm pou) 2 ee, muitas ves segura ce si mesma, Dasani wane icaes, apresentase habitualmente como 2 aque coroa todasas outas. Os funcionsros fo geral no se privam de ambiente dos segre portanto da pole isrelagdes ‘complacent com os ganhit dlisciplin da matériaativos na Inspect n una EO AS SABEDORIAS ANTICAS sfrio ¢ de justificar seu ensino apenas SETS a do i ch ante ae arpara poe camera a ios: Peo visto ae nem isa poe Ineo gum que flat rierres 0 opal bre ion cents abe ade conser po ea dn epteol cit Po sa 7 tad er par em ua Pol TAGE chs da vaca! Pos no € do Steinert ques lain exer a cerer de SxNGiuimtend a ria desu ila so ee schuadede un sao erie capar desea como damancia pela gual xi or quae eno sala coloca emis ao emo de a hitoriograiar Qual € eres tm dsr on segreton de aria de un eo psn? © gue escnde ayo de mane {ado dara aocinane o proceso de cons Goode un ht da fsa areenada Src canine ot unos neon Pos posraseem 0 ma dil agen = feat ett eptemologia atrpolo cae pot, ete = ov no endo centes ds Gn dias humanasum stor dda 30 eae domes de eri. Em nen ga tenogaseo pressor dos autores ie ee ‘emansora, poant,de eraimanci, ae Dest um at, un donna, m se tte, um a ete 0 exe quando inserts nm proceso hist jo prontaaa criticar os a maneira de 12 e__~ i .@©— A HISTORIOGRAFIA, UMA ARTE DA GUERRA Histéria da filosofia, certamente, mas também histo- ste. Cacla momento se Ie ~ se liga ~ em jim movimento, O ponte dado de um tempo filos6fi- co funciona na dialética de uma longa duracio. Que autor invisivel conta ao puiblico a odisséia em seus Getalhes? Quem escreve a historia da filosofia, em ‘outras palavras: quem diz a verdade filos6fica? Onde se esconde seu demiurgo? ria simples 2 Mentiras sem autores. A historiografia parece uma aventura sem autor identificével. Nenhuma hist6ria da filosofia impoese como tinica, a nao ser num pais totalitirio que da sua versio oficial. No entanto, as- ‘sim como 08 manuiais escolares ditigidos por pessoas diferentes, até mesmo escritos por individuos desse- melhantes, publicados por editoras concorrentes, contam a mesma epopéia, muclando apenas alguns detalhes, a forma, as historias da filosofia com fre- aqiiéncia passam w Mesmos autores, mesmos textos de referencia, mesmos esquecimentos, mesmas negligéncias, mes mas periodizagdes, mesmas ficcOes contudo apont ddas mas repetidas & larga - por exempl ‘encia de um Demécrito pré-socratico, por dé rior a Sécrates, mas que Ihe sobrevive em trinta a quarenta anos! Por que entio esses objetos diferen tes para exprimir uma versio idéntica de um diverso no entanto profuso? Por que esses instrumentos ideolégicos que sem- pre sio os manuais, as antologias, as historias, as en- iclopédias que, certamente, fazer as mesmas afir- rmacies,silenciam sobre as mesmas informacées? 13, [AS SABEDORIAS ANTIOAS avez numa publicagio falta sempre Guero andogo em que, além do sas see aamo, Informacdes importants ais, in Pde nega: onde esta parte volun asso bj acdos E onde o wabalho do incons ene istriogrtico? ie sti pos di Aide: por quaimatuer a fegio de um corpus fecha de pre gue mane peat da iredusbldade da centena ce eer tpaetas esse exercitocadtico de que al- Pe cues ulrapassamn a priodizacio que the & aerate: Por que razio Plaao nunca cita Demic arnntts obra completa, a0 paso que todo 0 si te guna pode ser ldo como uma maquina de gue Elineada contra o matrialiamo? Como explicar [ue munca se explore ainformacio dada por Didge- Ae Laci que relatao desejoenfurecido do autor do Fon de desir num auto-def@ todas as obras Jusamente de Demécrito? Por que dar erédito& fi fra de un Sécratesplatonizado quando uma ima- fem mais proxima de Didgenes de Sinope ou de ‘Sisupo de Gene permite abordar a obra do stro Ultrapasando o simples apoio A Kdéia platonica? Como compreendero silencio que se observa a rex peito de Aripoe do pensamento cirenaico em to- fos os ddlogos de Plato? O pensador de Cirene aparece nees uma 36 ver, com malevolencia: Pla Uo sublinha aindignidade de sua auséncia no dia da mone de Séerates...O mesmo para a inexstencia dos ilésofos efnicon no corpus do filolo ideals © que conch dante dinermacio que presen os Soistas como vendedores de relatvidade, en quanto se reduzem seus nomes aos que servern de ti- tulo a didlogos... de Plato? O que dizer, nesse arm aque fata por um nas seguintes de 14 A. UMA ARTEDA GUERRA simo do sofista habitualmente biente, do pensamento importan! [Antifon = inventor da psicanalise! A ceserita dos vencedores. Poderiamos cont ta das ilustracdes, todas testemunhando no mes sentido: a escrita da hist6ria da filosofia grega ¢ pl tonica, Amplicmos: a historiografia dominante no Ocidente liberal é platdnica. Assim como se escrevia a historia (da filosofia) apenas do ponto de vista marxista-leninista no Império soviético do século passaco, em nossa velha Europa os anais da discipli- na filoséfica se estabelecem do ponto de vista idealis ta, Conscientemente ou nio. ‘Como um erro ou uma distorcdo da realidade re- petido dez vezes, cem vezes, mil vezes, tornase ver~ dade (ainda mais quando sua proliferago emana dos grandes, dos poderosos, dos oficiais, das institu (gbes), esse tipo de mentira piedosa passa por certeza definitiva. Essa ransfiguracio do interesse politico das civilizagdes judeo-cristas ~ elas celebram 0 que as legitima e as justifica ~ constitui a razio de Estado da io filosofica. Platio reina entio como mestre porque o idealis- mo, fazendo os gatos mitolégicos serem tomados por lebres filosoficas, permite justificar 0 mundo . convidar a se dewiar do ca embaixo, da vida, deste mundo, da matéria do real, para ficcées com as quais se compdem as hist6rias para criangas a (que se reduzem todas as religides: um céu das idéias puras que escapa ao tempo, a entropia, aos homens, 2 historia, um além-mundo povoado de sonhos aos 15 _ASSABEDORIAS ANTIGAS sui mais realidace do que 20 real, uma qa ab aa os homens do pec de alma imatera UM posibilidade para o hommo sa. encarnacio, um el escruputosamente toda sta vida Bins que conser avo, de conhecer @ felicidad uanto vivo, de con ” 2 OTT en sm = € outras to ‘gia de um destino postanort oF aoe conte ua visio de mundo mitologica ti qual muitos ainda esto estagnados storia da filsofia empenhamse em mostrar aera das variagdes sobre ese tema idealist. Es: aren que o problema nio esta variacao mas no Ce ie Citnnte, Platio nio é Descartes, que nao é Kant thus eves ts, parihando vinte séculos de mercado idealsa, agambarcam a filosofia, ocupam todo 0 I gy e nao deisam nada para o adversério, nem mes Fro migalhas.O idealismo, a filosofia dos vencedores ‘esd o tiunfo oficial do cristianismo que se tomon, pensamento de Estado ~ Deus, como Nietasche, tem favo em considerar © cristianismo um platonismo para uso da populacal -, pass traicionalmente por sera nica ilosofia digna desse nome. Hegel, o batedor desse mundo, dedica uma louca cenergiaaafrmar em suas Ligies sobre ahistia da fl sofa dadas na Universidade ~o lugar ad hoc ~ que s6 existe uma flosfia (adele, evidentemente!), que > dasas do pasado a preparam pois evoluem organic mente segundo um plano ~ uma espécie de filod ial -, que essa construcio afirma a onipoténcia da ae Hira, certamente, mas a Razio se sobre poe também a outras palavras: 0 Conceito, a Idéia Ga Dew A loot conficada deseo also demo pela Universidade, Templo da Razio hey aida quase sempre como uma “igncia da logics" 16 A HISTORIOGRAFIA, UMA ARTE DA GUERRA ‘As pessoas estabelecidas nada tém a temer pelt so- brevivéncia de seu mundo prospero: depois de Pit goras, o Fidon de Plavio thes ensina a imortalidade da alma, o 6dio ao corpo, a exceléncia da morte, 0 JGdio aos desejos, aos prazcres, as paixdes, & libido, & vida; a Cidade de Deus nsiste ad nauseam em um mes ‘mo dio ao mundo real em nome, é claro, de um, Deus de amor e de misericérdia; nao contemos com a Suma teolégica de (santo) Tomés de Aquino para defende idéias semelhantes, reformuladas na esco- listica transcendental dos “postulados da razao pric tica’, etc, Pessoas de boa sociedad, herdis e a da historiografia dominante, {cones dos programas. oficiais, quebra-cabecas preferides dos aspirantes a doutores em filosofia ou dos avidos por uma agre ‘Gio ~ nos dois sentidos do termo =, essa reserv plantel de lista de autores no program perigo o mundo como esti Aisa dewma cones. si fc com pecender que Afed North Whitcheat exrevs rn Frcs end ey [Procese rea) (102) que “is sepa descr de conju da ada liar eq icone mse fede arouries a Maso Nowese eve dca le fla da tdi O wo des pla supoe x euste cia de uma contratradicao, um avesso dessa historio- ‘grafia dominante que cita, comenta e glosa Platio 0 Tongo do tempo. Esta Contrahistinia da filosofia pro: 7 As saBEDORIAS ANTICAS pée thar do ou lad do expo Petco Pars :paisagens alternatives dace pax vencedores, dante da do fae a tt da historiografia dominante, mimes em part ta ara OPO tna historia dos vencidos, uma his aa fox dominados, uma dove torografa ds pensamen oe Rematia. Lgicamente, € evidente Lr oat, costume ds seores da guer ae enc, Logis do massacre integral obriga pee ong nao fazer aqui a hstria dessa detain Exe our (belo) tema merece um livro desc apontara papel da Tgreja oficial a nos ttncvo séclos da era comm na organizacio vo- Prin delberadaeprogramada desa erradicacio te todo pensamento anterior a seu reinado tempo- er Guindy enfeudado a seu sstemaideolegico: des ruled dos manuscritos, queima das biblioteca, percguigao aon ildsofos,fechamento de suas esco Ep aisassinio dos recalctrantes ~ Hipécia como ‘xemplo emblematco,coficagaojuridica (Teodé- So. Justiniano) do anigilamento a cultura pag * iso seria preciso arescenar reflexes sobre © pape dos cops (quase sempre monges...), sobre 2 purticpacio do aleatrio das condicoes de sobrev- tenca do que estapou ao furor vindalo dos crstios (potes noscosescondidos no desert egipcio de Nag Fisch, bbtonecas epics em vas cober tase protepdas pea erupeao do Ves), sem sees Auecer de clebrar os intmigos que ctam abundan temente os textos de suas vias (Origenes, deb tendo em vio tomos 0 Conta os estes de Celso faz grande pane dele pasar & poxeridade!), ou de anaisaro papel das mudangas de suporte (do papiro 18 |AIISTORIOGRAFIA, UMA ARTE DA GUERRA para o papel, do grafismo manuscrito para a impres- sio, do livto para eruditos para a publicacao de massa, dda grafosfera para a midiasfera, etc.). Esta Contrarhi tiria deixa de lado, infelizmente, essa parte impor- tante das condicdes histéricas ¢ sociolégicas de pro- ducio de um discurso filos6fico dominant (s seis volumes que proponho obrigam & modés- tia do propésito apesar da extensio em niimero de paginas: nao se encontrario nem a exaustividad evidentemente, nem a anilise profunda de uma sé- rie de autores, menos ainda a microleitura ~ que se tornou esporte nacional da Universidade européia ~ deste ou daquele, tampouco a versio definitiva de uma anilise das correntes arquipeligicas que trago a luz 0s gnésticos licenciosos ou 0 epicurismo cristo, ow mesmo 0s libertinas barroces, os ultras das Luczs, 0 50- cialismo dionisiano ou 0 nietschianismo de exquerda, entre ‘outros arquipélagos, no caos da filosofia como mate rial bruto, vivo, evoluindo menos segundo o principio dalinha (hegeliano) do que do rizoma (deteuziano). Desejo que esta Contrasistora seja lida, evidente- mente, como uma histéria. Da mesma maneira como, por antifrase, meu Antimanual de filsofia propoe, do o fim do manual ou a aboli¢ao do genero, mas sua revolucdo metodolégica, este projeto de enciclo- pédia voluntariamente mutilado visa a emergénci de um continente submerso, de uma cidade afunda- dda ha séculos, para Ihe devolver a luz e a vida voltan- doa superficie. Esta Contra-histinia nao pretende ser um fim, mas um inicio, uma exortacdo a constituir a historiogr fia como disciplina necessiria no ensino da filosofia Ela da oportunidad a uma nova jazida destinada a professores argutos, para purificar de seus miasmas 19 _ASSABEDORIAS ANTIGAS acl sera fim de arescenta 3 etantes - ue levem em conta uma ou- rh tn 5 “Avie 0 pensamento magic. que € e854 nove mae neira de filosofar? Uma Laney muito ange ve a cepa un eras Se Co at ne aap oe i tee ela crams dee ane an eens EE, acaten ge de nee te ate no Seca D essa! eae ene enon ‘Gio de si como uma subjetividade feliz num mundo eee on maka ae ee ere San ate ae oa eee 20 A ISTORIOGRAFIA, UMA ARTE DA GUERRA cultivar a obscuridade, dnicas garantias de conservar a seita hermeticamente fechada, intacta aos outros, indene ao mundo; nao tem nada a ver, pois, com a mania da corporacio que, com freqiiéncia, recicla 0 pensamento magico modificando apenas a embal- gem embrulhada com fitas brilhantes de novas pala- vras para uso clinico e tribal, Essa velha filosofia sempre ativa, nebulosa ¢ de elite, absconsa ¢ autista, salpicada de neologismos e saturada de brumas, v2. mos deixi-la aos saudosistas do mosteiro, 6 principio de Alfew. filosofia nao é 0 musew habi- ‘tualmente apresentado pela historiografia domin te, com um percurso determinade que, de sala em sala, conduz, de uma obrapprima a outra, das escul- turas do Partenon as desconstrucdes de um Picasso, visando 0 encerramento e 0 fechamento em si do. mundo visitado, Ela obedece mais a0 modelo dos ga- binetes de curiosidades caros aos filésofos, letrados, historiadores e colecionadores dos séculos XVI ¢ XVI: um actimulo de objetos raros ¢ insélitos, estra- hos e exdticos, bizarros e pitorescos! Nesse caso, 0 sentido nao é dado a priori mas a posteriori. Dionisiacas em seu puro “estar no mundo", pro- dugGes filoséficas tornam-se apolineas depois de uma operacao do espirito: a orcem decorre de um trabalho intelectual subjetivo. Reivindico essa subje- tividade ~ € nao creio na objetividade reivindicada plas belas almas que dissimulam a logica de suas se- lecdes, tio ideologicas quanto as minhas, A.diferenga entre elas e mim? A confissio de meus, pressupostos: proponho a histéria de uma filosofia 21 AS SABEDORIAS ANTIGAS a despeto dete Cos Como Expinos ot de wee, Nietzsche entre 0s dois, susten: oe cross no fer ‘ fe pe rinda no dominio dadeiramente 7! \cia da maldicao, flosotiaem que a came, petanét ; lei rad pron incon, eereempouco me pops responder de oe a expmosana, mas raze minha antes eo ue Pilea de pensadores qe can corpo que nao faze dee i com eared, alttado,abatido,O corpo ae er toa flowla€ sempre a autor cara Cs eonfsto (do corpo) de um fildsofo, Diora oa Niche na Gaia ni els uma Ver ‘oie de ontem promisora para aman. Mounds fon quer para ese efeito, eu dia cine polsprefereexcupir o corpo es panes Meare simplesmente os destrur ~ nfo € 0 lugar 2a para mtarar como oe artcla esa ligagio on plctante um corpo de fildsfo e seus pensamen: ‘Pensa vides de mundo, suas produces edricas. 0 foe da biografaexsencal pareceme bem mais Stopmdo pars nanvar nes Ake. Meu proced tmemto mmemetnase ais ao do geografo, que tem fi Iilladade com a superticies¢ ox planos, do que a0 do gedlog,hazuade tu perfurapdes, (© que sio pois minhas selegdes? Para que fins? Antes de responder, facamos um desvio pelo rio Al- feu. Ovdio conta 4 hstia em suas Matamoros Ale, atormentado por un forte deseo por Aret- sa, tenta seduzir a moga, a persegue € a cansa, se- guindoa até a ilha de Ortigia, perto de Siracusa. A Jovem pede ajuda a Diana, que transforma Alfeu em cou sem eles dele Gilles Dele 22 A HISTORIOGRAFIA, UMA ARTE DA GUERRA, rio € Aretusa em fonte, Sem se desapontar, Alfeu as- sim transfigurado prossegue sua viagem sob 0 mar, misturar seu fluxo de agua doce a salmoura. De pois desemboca na Sicilia e cumpre sua empreitada unindose a fonte. Qual € a ligdo para essa historiografia alternativa? Um fluxo pode nao se misturar ao meio ambiente, perseverar em seu ser e cumprir seu destino pela ma- nifestacdo obstinada de seu poder de exist, O mara ser atravessado? A filosofia idealista em sua forma plice platOnica, crista e alema. O fluxo? O tal rio AF feu? A filosofia hedonista: materialista, sensualista, existencial, utilitarista, pragmstica, atéia, corporal, encarnada, Proponho aqui contar os grandes episédios dessas aventuras profusas desde Leucipo até Jean-Francois Lyotard para o tiltimo dos grandes mortos, ou seja, mais de vinte € cinco séculos de cores, de luzes, de multicoloridos solares, de cromatismos vivos, de pen- samentos generosos, de sabedorias prédigas e exis tenciaimente ies. Inalterada, radiosa e huminosa, tudo levaa crer que essa filosofia da incandescéncia hedo- nista parece disponivel para novas aventuras. 28 INTRODUGAO SOBRE POEIRAS DE ASTROS 1 As arqueologias genealigicas. Vinte cinco séculos de hist6ria separam a mais antiga filosofia grega do tempo em que a lemos, 0 que significa que as condi es € circunstincias de sua transmissio merecem por si s6s uma obra. Evidentemente, algumas obras {jd ndo serio encontradas, definitivamente perdidas ‘ou apenas conhecidas por um nome, uma mencao, uma referencia, Outras, infelizmente, nos fara transmitidas em sua quase totalidacle ~ como os di logos de Platio, cuja influéncia € cujas devasta durante esses dois tiltimos milénios poder origem a uma enciclopédia dos danos... Um punha- do de fragmentos de um pensador que parece dos iis importantes ~ Leucipo ~ contra duas mil psigi- nas dedicadas a celebrar 0 ddio ao mundo ~ Platio ~ eis como uma civilizacio se o Juz ou para a escuridio, ta para 25 AS SABEDORIAS ANTIGAS Recolher esses fragmentos, encontrar ess pig, nas amassadas, estragadas, esses rol0s que se dest. zem em poeira, esses papiros esfacelados depen de sorte e acaso. A primeira arqueologia que perms, te ter acesso a esses tesouros €clissica, supde 6 stig ‘© canteiro, a escavacio com pas ¢ enxadas, depose, patulas ¢ estiletes, finalmente escovas © pinctis, Fy terrados como mortos que esperam 0 momento dy reencontrar a luz para falar, esses fragmentos san, gem as vezes de uma casa patricia dotada de biblia. teca. E descobre-e, no caso de um proprietitio erg dito ou de um lugar representativo da escola, uns, reuniio coerente de volumes temiticos: o epicure ‘mo campaniense na vila de Pisio em Herculane com 0s oitocentos rolos de papiro que constituian biblioteca de Filodemo de Gidara, os gndsticos egip ios num pote de Nag Hamadi contendo cingiient, tratados ainda com suas encadernacées em ¢ouro, As vezes 0s arquedlogos trazem a luz uma cidade ig. norada, perdida, esquecida, na qual se encontran inscrigdes lapidares: foi o que ocorreu com ui ‘muro em Enoanda, a Telmessos turca de hoje, no qual um fil6sofo chamado Diégenes mandou gravest destinados aos passantes, textos que resumem a filo sofia de Epicuro, Paradoxalmente, chegousse até a dar vida a frag ‘mentos empunhados pela morte: assim, em Oxirrin. co, no Egito, mtimias haviam sido enroladas em fa ass quais se acrescentavam cartonagens em que estavam inscritos alguns textos. Alguns triviis (con tabilidade, documentos administrativos), outros do maior valor: fragmentos de Homero, evangelho gnos- tico de Tomés, Sfoces e Pindaro autentieados. Cali ‘maco, mas também Safo, que poderia passar ~ se 0s 26 SORE FOFIRAS DE ASTROS poctas tivessem direito de cidadania nesta Contra- historia da filosofia! - por principal precursor do he: donismo. No depésito de lixo da cidade abandona- da apos a mudanga do sistema de irrigagio relative fis enchentes do Nilo, também foram encontrados ‘outros papiros ida arqueologia toma como objeto um li corpus filosofico. Da mesma maneira que no canteiro de escavacdes, visitam-se as obras salvas, ‘com lapis na mao, a espera do momento em que sur jam a frase, a palavra, a idéia, a expressio, o echo de paragrafo ou qualquer outra coisa que aja como. mével do arquedtogo: o fragmento a partir do qual se extrapola uma totalidade, uma forma acabada. As- sim, lendo Platao, Epicuro, Arist6teles ~ grande pro- vedor de doxografia -, mas também as compilagdes ~ aantologia palatina, a Suda, durante muito tempo tomada pela obra de um suida inexistente, a Gno- ‘mologia vaticana, ou ainda o incomparavel Didge- nes Laércio, mina de metais preciosos -, encontram: se infalivelmente passagens nas quais © autor cita comenta, extrai uma expressio ou uma idéia logo. atribuida ao personagem do qual é emprestada. Essa arqueologia dos livros faz vir & tona as pepitas danifi cadas, porque parcelares, mas com as quais 0 traba- Iho critico pode se iniciar. Assim, pois, fil6sofos ditos présocriticos cuja ext. ‘magio de papel, extremamente recente, data do ini- cio do século XX ~ 1903, exatamente. Ela se deve a dois arqueslogos singulares, Hermann Diels ¢ Wal- ter Kranz, fildlogos de formacio, que extrairam de seu contexto todas as afirmagdes atribuidas a Pitaigo- ras, Anaxigoras, Empédocles, Parménides, Hericlito, 7 [AS SABEDORIAS ANTIGAS ‘e outras a Leucipo ou Demécrito, companhadas «otras eden, SeRUHLTES,eDiKOH, nvtadores associados & aventura da filosofia apre nada como anterior a Socrates. De modo que een eles toda uma parte da flosofia grega sai das bi. ftiotecas como um muro revelado pelas escava de um sitio. Depois a meio caminho entre as faixas da mimi eosiléncio das salas de letura, entre 0 cemitério ow 6 desert egipcio ea universidade prussiana, ainda ¢ possivel fazer achados, especialmente em bibliotecas Universtirias onde dormem velhos fragmentos de pedra abandonados por pesquisadores do século IX. vajamtes que voltaram de seus périplos a sua i dade interiorana de origem que herdou suas cole (bes fits de pilhagens inocentes, de curiosidades de gabinete e de acimulosaleat6rios. Em tais amon, toados is vezes se encontram j6i ‘Assim foi com 0 tinico testemunho direto de Em pédoeles, de quem um manuscrito em forma de um papiro contendo setenta e quatro versos disperses em cingiienta € trés fragments foi encontrado em 1990 na biblioteca de Estrasburgo, que guardava cin. co mil papiros dos quais mil ¢ oitocentos gregos, em sua maioria inexplorados. O texto restita o que sub- siste de uma cépia completa dos livros I e Il da Fisica do filésofo, ou seja, um auténtico tesouro, uma ver que a obra do taumaturgo siciliano s6 € conhecida or citagdes de seus seguiddores, descoladas das obras € apresentadas em um poema fragmenta, incor pleto por isso dificil de entender. A descoberta per- mite estabelecer uma passagem entre as duas partes de sua obra até entio dificmente con idvels. Ar 28 SOBRE PORIRAS DE ASTROS e livros comple- queologia de sitio ¢ arqueologia de livros comp! tamse assim para dar a textos uma nova vitalidade, ‘uma existéncia revitalizada, (0 jogo dos contextos. O que subsiste dos canteiros de eseavagies tvio permanece por muito tempo como, material inerte. Os fragmentos destacados da obra original e recolocados em um contexto quase sem- pre polémico convidam & pru ta frase mur sical destacada de uma épera pode prestar n desservigo ao autor do opus des servigo quant membrado, Na melhor das hipsteses, 0 trecho ge- nial salva uma obra que pode, quanto ao mais, ser uma catistrofe; na pior, 0 excerto é ruim, servindo entio aos interesses daquele que se apossa dele € desqualifica o resto de um trabalho possivelmente superior a idéia dada pela frase isolada. Quem quer. {que se aproxime do material o faz dentro de um es pirito, com uma intencio, jamais com a neutralida- de benevolente de uma leitura inocente. Quando Aristteles empreence sua Metafisica, iguem duvida de que ele cita seus predecessores filoss ficos para tomar posicio com rekigio a eles: evidente mente escolhe os excertos em fungao dese interesse ideolégico. Prioritar sito. A citacdo sempre obedece au regimentagao. Utiizada com fins hagiogr: cos ou depreciativos, ea ilustra, testemunha contra ‘ou favor, mas sempre beneficia quem a tsa © contexto original ~ 0 da producio—desaparece sob um contexto ocasional. Uma escola filosética de- 29 As SABEDORIAS ANTIGAS tres nado an aa sera En plertxos ee Hes ns emer mae i et Quan cine desc Logue a Poneto €4 eo} ey dima nova perspectiva suscetivel de gerar contrad a no Pe nes «oan orcs sx blac el er eo ot 2 a cnovimete, tad ar ne rats eigedawenn pare pou wasamen i er dleu ira dlgea ee toe eee a Se ere eerie cen mean ad Sees omnes ecs moe ona proper er arenes ee eee eataresraren eect anscase a insas corps eta era aatmaoaees Socata muted quando vat cinco ‘Scan imam ene oo os oruniands eee ae ae alge ctees seisrsieeaani cuca date dena de une eauuiio stenica ote Suna irs shinee: terpon mu pene on. ten Aarguevlg incom aeons aspoie acon: omnia ee ge dds Stntuamenenapoutel de connec inde de condicdes partic las, figs Ou 30 SOBRE POFIRAS DE ASTROS A logica dos vencedores. No jogo dos contextos, um deles no € 6 menor: 0 das implicagbes ideolégicas que atravessam a historia das idéias e opdem uma tradicao hedon niga dlo ideal as- cético. De um lado, Leucipo, Demécrito, Aristipo, Didégenes, Epicuro, Luerécio, Horacio, etc. ~ aquele de que esta obra reiine pela primeira vez as grandes figuras -, do outro, como contemporineos exatos, Pitagoras, Parménides, Cleanto, Crisipo, Plato, Mar- co Aurélio, Seneca. Atomistas, monistas, abderitanos, materialistas, hedonistas contra idealistas, dualistas, cleatas, espiritualistas e defensores da linha ascética. A filosofia, em seu periodo grego, mas também de- pois, apresentou constantemente uma dupla fisiono- ‘mia da qual uma sé face é mostrada, apresentada, Pois, como ganhadores, Platio, os est6icos € 0 cris tianismo impdem suas ldgicas: ddio ao mundo terre- no, aversio as paixdes, 3s pulses, aos desejos, des consideragao a0 corpo, ao prazer, aos sentidos, culto, Ais forcas nowumnas, As pulses de monte. Dificil pedir aos vencedlores que eserevam objetivamente a hist6- ria dos vencidos. ‘A historia da filosofia tal como aparece nas ent clopédias ¢ nos manuais, tal como é ensinada € estu- dada na Universidade, tal como € editada, difundida ¢ promovida, confundese com a dos vencedores. Nio ha piedade para com os vencidos, que sio des. prezados, esquecidos, negligenciados: pior, Sao de- preciados por meio da caricatura. De modo que 0 ‘corpus pré-socriitico em sua versio hedonista & 0 pa- rente pobre do ensino € da edicio. Entio, nao se abordam com serenidade os conceitos essenciais, 31 AS SABEDORIAS ANTIGAS Besa tomo® O que pena ow dese Dy Pe yaa nee ner oo ee fey ae reser? E por alagia? Idem com relagio a dese? Qual A PARTE Pe ea Oar sacs _ Sa ee ernanes ean ep aimicrernaa coder cee FS ape tee aoe male tendo presG snore De mode que ler or Mls i Bees de amiguidede ce oboe As sabedorias sofos ca Antigua i ranm,procurar o hedor ‘ «ei ais x exon deren de obras ape : ae a oe forgar rat, fig tor ne dr momento, verdade de uma le antigas ee ee oe obrigar. Verd: tura, verdade de uma ‘smo ¢ relativismo que T pectiv entre os grandes antigos. 32

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