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Sob o Risco do Real Jean-Louis Comolli Um. Nossas fantasias ¢ nossas necessidades so roteirizadas. Uma mao invisivel alinha os processos supostos a nos conduzir. As sociedades deslizam-se vagarosamente da época das representagdes — teatro das instituigSes, comédias ou tragédias dos poderes, espeticulo das relagdes de forga ~ Aquela das programagées: da cena ao roteiro, Ao cidadio nao é mais solicitado tanto ser um espectador ~ engrenagem da representago e, ao mesmo tempo, ator por delegaco ~ quanto a permanecer no seu lugar de consumidor, impotente até mesmo para compreender o programa do qual ele participa. Demasiadamente desigual, 0 jogo nao & mais um jogo. Face a esta crescente roteirizagio das relagdes sociais e intersubjetivas tal como é divulgada (€ finalmente garantida) pelo modelo “realista” da telenovela, 0 documentério nao tem outra escolha a nao ser se realizar sob o risco do real. O imperativo de “como filmar” — coragio do trabalho do cineasta — coloca-se como a mais violenta necessidade: no mais como fazer o filme, mas como fazer para que haja filme? A pratica do cinema documentirio nao depende, em ultima andlise, nem dos circuitos de financiamento, nem das possibilidades de difus4o, mas simplesmente do bem querer ~ da boa graga— de quem ‘ow o qué escolhemos para filmar: individuos, instituigdes, grupos. O desejo est no posto de comando. As condigées da experiéncia fazem parte da experiéncia. Abrindo-se aquilo que ameaga sua propria possibilidade (o real que ameaga a cena), 0 cinema documentério resgata, ao mesmo tempo, a possibilidade da continuidade da representagdo: é a trilha do documentério que serpenteia de “Alemanha Ano Zero” (Roberto Rossellini) a “E a Vida Continua” (Abbas Kiarostami), de “Pela Continuago do Mundo” (Pierre Perrault) a “Pouco a Pouco” (Jean Rouch). Os filmes documentarios nao sdo somente abertos para 0 mundo: eles sao atravessados, furados, transportados pelo mundo. Eles se apresentam de uma maneira mais forte que eles mesmos, maneira que os ultrapassa e, ao mesmo tempo, os funda. Dois. Hoje em dia os roteiros ndo se contentam mais em organizar o cinema de fiego, 08 filmes de televisfo, os jogos de video, as agéncias matrimoniais, os simuladores de vo. A ambigdo deles ultrapassa o dominio das produgdes do imaginério para colocar em sua responsabilidade as linhas de ordem que enquadram aquilo que se deve precisamente nomear “nossas” realidades: da bolsa de valores as pesquisas, passando pela publicidade, meteorologia e comércio. Os “previsionistas” nao sio utopistas ¢ o poder dos programadores nao é virtual. Assim, mil modelos regulam os dispositivos sociais ¢ ‘econémicos que nos mantém em sua dependéncia. Mas todos procedem de um motivo ‘nico: o homem, ser da linguagem que a linguagem ultrapassa, manifesta que esté, niio faz muito tempo, em condigdes de assegurar a maestria sobre o mundo, traduzindo-o numa “lingua”, aquela do roteiro, que ser, ela, inteiramente governdvel (como podem ser a linguas da cibernética, da informatica, da genética, da estatistica....) Por isso é que os roteiros, que se instalam em todo lugar para agir (e pensar) em nosso lugar, se querem totalizantes, para ndo dizer totalitérios. Programas que ndo se ocupam daquilo que est no real e Lhes escapa, que se imaginam sem restos, sem exterioridade, sem tudo que seria fora do calculo (como se fala de extra-campo ou extra-cena). A versio do mundo que eles nos propdem é acabada, descrigdo fechada. Ora, é uma sorte (para nés) que ‘o mundo tomado na tela dos célculos esperneia, permanece impalpivel, além do perfeito e do imperieito, Se precisasse de um exemplo cruel, este seria aquele da guerra modema, cada vez mais programética (propagandista) ¢ programada (idealizada), porém, da mesma maneiza, trincada pela distancia que no se deixa encurtar entre as telas dos computadores e a lama dos caminhos. Longe de “toda-ficgfio de tudo”, 0 cinema documentirio tem, portanto, a chance de se ‘ocupar das fissuras do real, daquilo que resiste, daquilo que resta, a escéria, 0 residuo, 0 excluido, a parte maldita. Pensemos, por exemplo, “nessas pessoas dos barracos” filmadas por Robert Bozzi, mas também em “Julia”, filmada por Dominique Gros, ou nas criangas de “Grandes como 0 Mundo”, de Denis Gheerbrant ~ mas poderiam ser ainda os herdis de ‘Moi, un Noir”, Jean Rouch, ou mesmo aquele heréi de “Nanook”, Robert Flaherty. Estes personagens sio precisamente aqueles que produzem buracos ou borrdes nos programas (programas sociais, escolares, médicos ou mesmo coloniais), que escapam da norma ‘majoritiria, assim como da contra-norma minoritéria cada vez melhor roteirizada pelos poderes: contudo, eles vivem, nao Ihes faltando nem sofrimento nem alegria, presenciando angistias, dividas ou felicidades que no s4o, ou so pouco, aquelas dos modelos englobantes. Eu creio que a renovagao contemporainea do documentirio na Franga ¢ na Europa tem a ver com esta necessidade (entre outras) sentida por todos nds: que as representagdes que nés fabricamos do mundo deixaram de dé-lo por acabado ou definitivamente domado e disciplinado por nés. A sua maneira modesta, o cinema documentirio, ao ceder espago ao real, que 0 provoca ¢ o habita, s6 pode se construir em friegdo com 0 munde, isto é, ele precisa reconhecer o inevitavel dos constrangimentos ¢ das ordens, levar em consideracio (ainda que para os combater) os poderes ¢ as mentiras, aceitar, enfim, ser parte interessada nas regras do jogo social. Servidao, privilégios. Um cinema engajado, diria eu, engajado no mundo Trés. Sobre a questo “o que é o documentario”? nao hé outra resposta seniio a questo posta por André Bazin: “o que é 0 cinema?” O cinema nio é 0 jomalismo, se bem que este como aquele pertengam & ordem das narrativas. Somente nossa cegueira e nossa surdez, provocadas e/ou escolhidas, podem explicar que nés tomemos as informagdes agenciadas por um jornal ou por um programa (televisual ou nfo) como a afirmagao transparente do que aconteceu, Uma testemunha, uma palavra, um documento e a propria narrativa podem remeter aos fatos, a eles fazer referéncias e estabelecer relagdes, contudo, separam-se deles por meio de uma elaboragao que, ainda que Ihes seja relativa, processa-os nas formas que nao sio mais as deles. Nada do mundo nos é acessivel sem que os relatos nos transmitam uma versio local, datada, histérica, ideolégica, A critica maior que nds devemos dirigir midia, agentes da informagao, se refere & crenga na chamada “objetividade”, por meio da qual cla mascara frequentemente o cardter eminentemente precério, fragmentario e, por fim, subjetivo, do que é to somente o seu trabalho. Subjetivo é o cinema e, com ele, 0 documentirio. Nao necessdrio recordar essa verdade — contudo, geralmente perdida de vista — que o cinema nasceu documentario ¢ dele conquistou seus primeiros poderes (Lumiere). Ele converge para o jornalismo, para o mundo dos acontecimentos, dos fatos, das relagées, elaborando a partir deles ou com eles as narrativas filmadas; e se separa do jomalismo na medida em que ndo dissimula estas narrativas, ndo as nega, mas, ao contrério, afirma seu gesto, que é o de rescrever os acontecimentos, as situagdes, os fatos, as relagdes em forma de narrativas, consequentemente, de rescrever o mundo, mas do ponto de vista de um sujeito, escrita aqui e agora, narrativa precria e fragmentéria, narrativa declarada e que faz dessa confissdo seu proprio principio. Tais — aleatorios ¢ frageis — sem divida, foram ¢ ainda so para alguns os roteiros do cinema de ficgo (de Renoir ¢ Rossellini a Kiarostami, passando por Godard); mas cada vez menos frégeis, se posso dizer, na medida em que instrumento do roteiro é retirado do quadro das ficgdes cinematograficas para servir As ficgdes politicas, econémicas, sociais ou militares. A partir dai, logico retomo das coisas, um funcionalismo estreito, um programa rigido rege cada vez mais as ficgdes industriais (da televisio ao cinema ¢ das séries dos “Navarro” ao “Titanic”). Triunfo da sociedade do espeticulo a constatar-se neste duplo movimento de generalizagaio ¢ de enrijecimento do roteiro. Assim como o mercado, espetaculo incita a estandardizagaio. ‘Quatro, Passando e repassando pelas dobras, sempre mais lisas no caso da ficgdo, o cinema perdeu, em parte, seu pé sobre o mundo. Programitico, o cinema nao se anuncia mais como © profeta do desconhecido de um mundo por vir, mas ele o ajusta sobretudo como uma repetigdio do conhecido. Nada se assemelha ao cinema documentario. Nenhum roteiro que o sustente. O projeto documentirio se forja a cada passo, se debate frente a mil realidades que, na verdade, ele ‘no pode nem negligenciar nem dominar. Nem recalque, nem forclusio: afrontamento. Cinema como prixis. Longe dos fantasmas do controle ou da onipoténcia que marcam cada vez mais os roteiros, ele, © documentario, nao pode avangar sem suas fraquezas, que so também perseveranga, preciso, honestidade. Tanto quanto as realidades, os homens, que é levado a filmar, nio dependem dele, mesmo se, a0 filmé-los, ele os transforme. O que se passa com aqueles que filmamos, homens ou mulheres, que tornam-se, assim, personagens do filme? Eles nos fazem conhecer e reter, antes de tudo, que existem fora do nosso projeto de filme. Somente a partir daquilo que fardio conosco desse projeto (e, is ‘vezes, contra nés) que se tornarao seres do cinema. Isso demonstra 0 quio pouco, na entrada do jogo, estamos em condigdes de thes dar ordens (podemos oferecer, no méximo, indicagées), de chacoalhar sua propria mise-en-scéne (ao contritio, trata-se de deixd-la aparecer em primeiro plano), de interromper ou alterar o curso de suas ages (a nao ser 0 tempo suspenso de uma filmagem). Estes homens ou estas mulheres que nés filmamos, que nesta relagio aceitaram entrar, nela iro interferir e para cla transferir, com singularidade, tudo o que carregam consigo de determinagdes ¢ de dificuldades, de pesado e de graga, de sua sombra — que, com eles, no sera reduzida —, tudo o que a experincia de vida neles tera modelado.... Ao mesmo tempo, alguma coisa da complexidade e da opacidade das sociedades alguma coisa da excectio irremedivel de uma vida, Isto quer dizer que nés filmamos também algo que nao é visivel, filmAvel, nao é feito para o filme, ndo esté ao nosso alcance, mas que se encontra lé com 0 resto, dissimulado pela prépria luz. ou cegado por ela, ao lado do visivel, sob ele, fora do campo, fora da imagem, mas presente nos corpos e entre eles, nas palavras ¢ entre elas, em todo o tecido que trama a maquina cinematogrifica. Filmar os homens reais no mundo real representa estar tomado pela desordem dos modos de vida, pelo indizivel das vicissitudes do mundo, aquilo que do real se obstina a enganar as previsdes. Impossibilidade do rot Necessidade do documentétio. ‘inco. Desta dificuldade que Ihe é imposta de alguma maneira “de fora”, o cinema documentério tira todas as suas riquezas. Obrigago de experimentar, de tentar aproximagdes ajustadas 4s armadilhas sempre novas do mundo a filmar. Obrigagio de imaginar, de testar, de verificar os dispositivos da escritura — inéditos na medida em que eles s6 podem estar intimamente ligados a um lugar particular, um trago do mundo. Além disso, esses dispositivos de escritura, cada vez contingentes a um estado determinado de lugares, so eles mesmos submetidos a pressiio do real. O movimento do mundo nfo se interrompe para permitir ao documentarista polir seu sistema de eseritura. As formas aplicadas sdo transfiguradas pela propria forma que elas tentam abarcar. O cinema, na sua versio documentiria, acompanha o real de maneira tal que, filmado, no é completamente filmavel, excesso ou falta, transbordamento ou limite ~ vazios ou bordas que de uma sé vez nos so dados a sentir, a experimentar, a pensar. Sentir isso que, mesmo do mundo, ainda nos ultrapassa. As narrativas ainda no escritas, as ficgdes ainda nfo esgotadas. Ao mesmo tempo em que se da, a matéria do cinema documentario lhe escapa. E por isso que cle deve inventar formas que possibilitem tomadas daquilo que ainda nao é cinematograficamente tomado. Obrigagii, diriamos: obrigagdo de criar. Mesmo se quisesse, a obra documental seria incapaz de reduzir o mundo a um dispositive que ela ja possuiria pronto. Melhor: ela nao pode se impedir de desejar, para ir ao fim desta légica de aprendizagem, ver seu dispositive chacoalhado pela irrupgio de dados inéditos ~ que nfo seriam aqueles através dos quais o mundo jé se oferece a nds, Eis porque os dispositivos do documentirio sao antes de tudo precarios, instaveis, frageis. Eles sfo uteis apenas para permitir a exploracdo do que ainda no é de todo conhecido. Os roteiros de ficgo sio frequentemente (cada vez mais) fobicos: eles temem aquilo que provoca fissuras, que os corta, os subverte. Eles afastam o acidental, o aleatério. Alimentados pelo controle, eles se curvam sobre si mesmos. Fechados. A falta de maestria do documentério aparece como a condigdo de invengdo. Dela, irradia a poténcia real desse mundo. No momento em que os grandes grupos internacionais se assenhoram de todos os lados do controle da produgdo, da distribuigo, da difusdo audiovisual, em que triunfam os modelos, os programas, os automatismos, os sistemas de vigilancia ¢ de previsio, em que o marketing, a publicidade, a propaganda impéem um novo magma ~ a “informagao-cultura-mercadoria” ~ me parece digno de nota que o cinema documentario vai bem e se desenvolve. Veja nessa conjungao um fato politico, A programagio e & precaugio generalizadas, se ope o risco inerente ao empreendimento do documentario. Os atos, os projetos, as obras, as construgdes nio se de célculo de méquinas humanas que aos desejos dos homens mecanizados. A sociedade do espeticulo triunfa, mas uma parcela obscura do espetiiculo mina o espeticulo generalizado. Denominemos esta parte aquela que cabe a arte, Cabe a ela, hoje em dia mais do que nunca, representar a estranheza do mundo, sua opacidade, sua radical alteridade, em resumo, tudo ‘© que a ficgdo em nossa volta nos esconde escrupulosamente: que nés somos antes de tudo pela destruig&io dos conjuntos fechados, que a cena é aberta, fendida, rompida, e é a esse prego que cla pode ainda pretender historicamente representar tudo 0 que neste mundo nfo 6 virtual, am reduzir mais a0 Publicado originalmente no site www.diplomatie.gouv fr Traduzido (por Paulo Maia e Ruben Caixeta de Queiroz) e publicado no catélogo do forumdoe.bh.2001.

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