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| OTe CCUM Ly mers Byes. ea) Pen ANTROPOLOGIA Rk JURIDICA Robert Weaver Shirley ww PO aot Leek me Re eo Mel Led ye ele oat eM oe Miri cs * Cree Mena cneh en sicr! dos, Faculdades de Direito, advog Oma tacia etic eaten wccs : Mieciucaemeceeerlret Co ee eee eC) Gate eyecare see meses estudando povos nativos, Pen ca aectene hemor} 7 aprender formas de procedimento juridi- ANTROPOL OGIA JURIDICA Cem oiler Meum cena: Ci Coe ee eset MeL Pc ecco eetetorce logos. Na Inglaterra, a antropolo dica, por muitas décadas, teve uma po- siglo especial, pelos estudos do direito CeO emcee Src} Ce Cm Meer cum ae TOUR ee aR a a) CU My Recett ceeae eter solo PMc lee Rca ae eat cts ue cure aCe) CUM ecu acncome ecu a COM eC eerie toon POMC EE Ince tncemek ences CM meee al (ae rel CRC se Cen (Cee PUM eet ate etekeliee OMG Our ae au ieee) objetivo, formam seus advogados entre Se icra ies UCC MC ec Ec ig desenvolvimento no mundo ocidental — Ome mene cic) Teco w ae mre art mun pTORIZ4, ea DOM U LOC LG eo Mise) Ce acc et to a e YCNPSTPTT eee renin ry i A % Pc mete Te orc ts esos ee SS & Moen mero oe oc WOEFOWA ArH Te ance DA ROBERT WEAVER SHIRLEY Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ANTROPOLOGIA JURIDICA 1987 Editora a Saraiva Dados de Catalogagao na Publicacao (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Shirley, Robert Weaver, 1936- $364 Antropologia juridica / Robert Weaver Shirley. — Sio Paulo : Saraiva, 1987, 1. Antropologia juridiea 2. Direito - Brasil 3, Direito @ antropologia 4, Sociologia juridica |, Titulo CDU-94:301 34(81) 87-1459 940,12 Indices para cathlogo nist Antropologia juridica 34/301 Brasil : Direito 34(81) Direito : Filosofia 340,12 Direito e antropologia 34:301 Filosofia do direito 340.12 Sociologia juridica 34:301 PaeeN= Editora Saraiva Avenida Marqués de Sao Vicente, 1697 — CEP 01199-904 — Tol PABX (011) 061.9344 — Barta Funda Daina Postal 2862 — Telex: 1126789 — Fax (011) 861-3908 —~ Fax Vondas: (011) 861-3268 — S, Paulo- SP Enderego Internet: htto:/Aww saraiva.com.br _—S00namaRjBaBnmnqmR_——r—r— ee Distribuldores Regionais AMAZONAS/RONDONIA/RORAIMA/ACRE. lua Costa Azevedo, 58 — Centro Fone/Fax: (092) 689-4227 / 633-4782 Manaus BAHIA/SERGIPE ua Agripino Dérea, 23 — Brotas Fone: (071) 381-5884 981-5895 Fax (071) 381-0959 — Salvador WAURUISAO PAULO Hua Monsenhor Claro, 2-85 — Centro Fone: (014) 234-5643 — Fax: (014) 234-7401 Hour DISTRITO FEDERAL, 8IG.OD 9 BI B «Loja 97 — Setor Industial Grético Fone (001) 444-2020/ 344-2951 Fine (001) 44-1709 — Bastia QOIAB/TOCANTINS Nua 70,601 = Setor Centrat on (OH) 8206-20027 212-2606 ae (00) 224-9016 ~ Goidnva MATO GHOBRO DO SULMATO GROSSO Hie 14 ae Jo, 1140-— Contro Fone (007) 7a dee — Fax: (067) 782.0112 t sp (ae MINAB GE NAIG fe Pade Fata, 2810 — Paco Eustaquio ie (1) 40 400/464 9300 en W401 Hola Horleon PARAIAMAPA Travessa Apinages, 186 —~ C.P: 777 Batista Campos Fone: (091) 222.9034 Fax: (091) 224-4817 ~ Belém PARANAISANTA CATARINA Rua Alferes Pol, 2723 —~ Parolin Fone’Fax: (041) 932-4804 Curitoa ‘ PERNAMBUCO/PARAIBA/R. G. DO NORTE/ ALAGOASICEARAPIAUIMARANHAO Rua Gervasio Pires, 826 — Boa Vista Fone: (081) 421-4246 Fax: (081) 421-4510 — Recife RIBEIRAO PRETO/SAO PAULO ua Pade Fei, 373 —Vila Tibério Fone: (016) 610-5843, Fax: (016) 610-8284 — Ribeirio Preto RIO DE JANEIRO/ESPIRITO SANTO Av, Marechal Rondon, 2231 — Sampaio Fone: (21) 501-7149 —Fax: (021) 201-7248 Ro de Janeiro FIO GRANDE DO SUL ‘Av. Ceard, 1360— So Geraldo Fone: (051) 343-1467 /343-7563/ 343-7469 Fax: (051) 243-2986 — Porto Alegre SAO PAULO. ‘Av. Marquis de Sao Vicente, 1697 {antiga Av dos Emisséiios) ~ Barra Funda Fone: PABX (011) 861-3344 — Sao Paulo Para DALMO DE ABREU DALLARI e todos aqueles que lutam pelos direitos humanos no mundo. INDICE APTCSENLGCEO ..0s1000ssese0esve0e0sesesse0eeese000h0) UT . IX PrefGClO. weiss isvsvererssiiaanie, eerie. da xu Capitulo I O que é antropologia? ........ce.seesses0+e Capitulo II O que é antropologia legal? .... Capitulo III A historia da antropologia legal .... 15 * Capitulo IV Algumas observaces sobre a evolucdo social ..... 23 Capitulo V O problema da ordem nas sociedades simples. 35 Capitulo VI Regras, disputas, juizes e julgamentos: o desenvolvimento das ins- tituigdes juridicas oe 43 Capitulo VIE etry Juldia © ola cry Sobre as formas do Estado e do direito ... 55 Capitulo VIII Algumas considerag6es sobre a industria e a cidade . 69 Capitulo IX Alguns problemas de antropologia juridica no Brasil 0 Capitulo X Algumas aplicagdes da antropologia \esal.c, eda pee Surly ca no Brasil 89 Bibliografia .......0.cc0006 os Vil APRESENTACAO Um livro de antropologia do direito escrito ¢ publieado no Brasil é fato raro, que merece atenco especial. Os antropdlogos tratam pouco do fendmeno juridico enquanto tal e ndo querem aventurar-se numa Area que parece exigir uma preparacado peculiar, até quanto @ linguagem, Os juristas, ao contrario, reconhecem mais facilmente os beneficios das and- lises antropoldgicas e, nao tendo que enfrentar a barreira da linguagem, incursionam freqiientemente pela antropologia. Por esse motivo, embo- ra cabendo tanto no acervo bibliografico antropolégico quanto no juri- dico, uma obra de antropologia juridica, como a presente, deverd inte- ressar mais significativamente aos estudiosos do direito, pois este, na sua totalidade, tem ligacdes diretas com a antropologia. Assim, pois, veja- mos © que representa este trabalho no panorama dos estudos juridicos brasileiros. A bibliografia juridica do Pais ainda é, predominantemente, de ins- piracAo positivista, apoiada na concep¢ao do direito-legislagao. Por isso, trata do fendmeno juridico, de suas causas e de seus efeitos, tendo como centro um conjunto de instituigdes formais convencionalmente qualifica- das como juridicas. Precisamente por causa dessa concep¢ao, vem sendo ampliada, com muita evidéncia, a distancia que separa a ordem legal da ordem vigente na sociedade. O processo legislativo é uma criac4o artificial, baseada em consideracdes de conveniéncia mesmo quando se refere a valores ou a in- tencdo de satisfazer necessidades sociais. Escolhem-se arbitrariamente os valores e as necessidades que sero tratados como prioritarios, o que faz com que, na grande maioria das vezes, as prioridades sejam as que mais convém aos individuos ou pequenos grupos que dominam as maquinas de fabricacao de leis. Hoje muita gente no Brasil age conscientemente 4 margem das leis ou evitando quanto possivel obedecer as regras legais, comportamento que pode ser facilmente observado em quase todas as areas da vida s0- Ix cial. O furto e o roubo estdo presentes, com indices elevados, nao s6 nas ruas ou na ac&o dos assaltantes a mao armada mas também no comércio, na indastria, nas atividades bancarias e na prestagdo de servicos piblicos ou privados. O desrespeito as regras legais passou a ser quase uma regra, que se observa no uso das ruas, nas praticas politicas ¢ administrativas, na busca de riquezas e na disputa pela evidéncia e pelas posigdes de maior prestigio social. O cumpridor das leis, aquele que sacrifica um interesse pessoal ou que deixa de obter uma vantagem por nao querer contrariar a lei é visto ‘como tolo, ingénuo ou fanatico da legalidade, um anormal, Nesse ambiente floresceu uma pseudociéncia juridica — presente na obra de muitos tedricos, na orientacdo fornecida pelos assessores juridi- cos e em grande numero de decisédes judiciais — que nfo ¢ mais do que um jogo de habilidade verbal. A linguagem complicada, a referencia a autores célebres, a invocagdo de principios e valores, tudo isso se usa fre- qilentemente numa atividade mistificadora em que a esperteza substitui as convicgdes mais profundas e o verdadeiro compromisso moral, Entre os que exercem as chamadas profiss6es juridicas jA existem os que tomaram consciéncia dessa degradagéo ¢ esto procurando reagir a ela, tentando recuperar a dignidade do direito como expressio de uma concepgilo auténtica de justica. Essa preocupagio ji chegou As escolas de direito, aos Tribunais, aos parlamentos e a todos os lugares em que se trabalha diretamente com o estudo, a elaboragio, a aplicago ou a inter- pretag&io de normas juridicas. A antropologia juridica tem um papel importante nessa busca de re- cuperagio da dignidade perdida, nessa tentativa de restaurar 0 direito co- mo produto de todo o conjunto das relagdes socials, inatrumento para protegao das pessoas em sua convivéncia necessiria, protetor ¢ promotor da integridade e da dignidade de todos os individuos, segundo uma esca- la de valores que devera ser a mesma para todo: O primeiro passo para a eliminagdo das falsidades ¢ distorgdes & 0 exercicio da critica, \que deve ter como ponto de partida © conhecimento pormeno: izado da realidade social, daquilo que ocorre na base das rela- Ges sociais e que verdadeiramente motiva as agdes. A partir dai ¢ que de- ve ser feita a distingdo entre o que corresponde a valores do individuo, de grupos sociais ou de toda a sociedade e o que apenas reflete escolhas ar- bitrarias, inspiradas em conveniéncias ou intere: particulares, s consideragéo pelos demais seres humanos, por suas necessidades e por sua dignidade. Qual é, afinal, o Ambito da antropologia do direito e quais séo os seus limites? Pode-se encontrar a resposta numa introdugio escrita por Shelton Davis, notavel antropélogo norte-americano, para uma coleta- nea de ensaios de antropologia juridica. Diz ele que ‘‘a Antropologia do Direito ¢ a investigagao comparada da definicao de Tegras juridicas, da x cof expressdo de conflitos sociais e dos modos através dos quais tais conflitos s4o institucionalmente resolvidos. Como tal, a Antropologia do Direito tem como ponto de partida que os procedimentos juridicos e as leis nao s&o coincidentes com cddigos legais escritos, tribunais de justica formais, umia profissdo especializada de advogados ¢ legisladores, policia e autori- dade militar etc.’’ (Antropologia do direito, Rio de Janeiro, Zahar, 1973, p. 10). E interessante notar que essa mesma observacdo quanto a falta de coincidéncia entre os fendmenos juridicos essenciais e as expressdes for- mais do direito é mais ou menos freqiiente entre os antropdlogos. Assim’ € que em obra recentemente publicada, uma das mais eminentes antrop6- logas brasileiras, Manuela Carneiro da Cunha, faz a seguinte afirmac&o: “Entre a legislacao ¢ a pratica ha freqiientemente um abismo, tanto maior quanto mais fraco politicamente for. o segmento da populacao en- volvido’’ (Os direitos do indio, Sao Paulo, Brasiliense, p. 12). Cabe aqui uma ressalva importante, muito bem captada por Shelton Davis quando pondera que ‘‘muito da bagagem analitica (isto é, os con- ceitos e métodos, teoria e légica) que os antropdlogos tém tradicional- mente utilizado no estudo do direito vem de um tipo de discurso cultural desenvolvido na Europa Ocidental’’ (Antropologia do direito, cit.). O “certo discurso’’ ai referido é 0 tratamento das questées de direito se- gundo as concepcoes do positivismo juridico, que reduz os direitos as leis formais e deixa ampla margem para a legislacdo arbitraria. Aji esta mais um ponto positivo da obra de Robert Shirley que agora se publica. Nascido nos Estados Unidos da América, onde permaneceu até completar sua formacdo universitaria, e vinculado depois a Universi- dade de Toronto, sua concepgao de direito é a do sistema costumeiro, muito menos formalista e bem mais proximo da realidade social e que re- flete mais autenticamente as relagdes e os conflitos sociais. A trajetoria de pesquisador de Robert Shirley contribuiu muito para sua percep¢ao do sentido e da importAncia do direito numa sociedade co- mo a brasileira, permitindo-lhe, afinal, como participante de duas cultu- ras bem diferentes quanto ao significado do fendmeno juridico, chegar a sintese consubstanciada em sua Antropologia juridica. Aluno de Charles Wagley, em Coliimbia, conviveu no Instituto de Estudos da América La- tina daquela Universidade com o eminente antropdlogo, autor de impor- tante estudo sobre a cidade paulista de Cunha, repositério da cultura tra- dicional do Vale do Paraiba. Mais tarde, no ano de 1964, foi o proprio Shirley quem se transferiu para Cunha, onde permaneceu pesquisando durante dezoito meses, do que resultou uma obra notavel, publicada pri- meiro em inglés e depois em portugués com o titulo O fim de uma tra- digao. Depois disso Robert Shirley nao se desligou mais do Brasil, tendo trabalhado na Amaz6nia, em Sao Paulo, em Brasilia, no Rio de Janeiro, . XI conhecendo a Bahia, cuja riqueza cultural o fascinou, ¢ finalmente, de- pois de idas e vindas ao Canada, estacionando em Porto Alegre, onde aperfeigoou seu conhecimento do “‘arquipélago cultural brasileiro”, pa- ra usar a expressdo de Alberto Torres. O presente livro é 0 texto basico de um curso que Robert Shirley mi- nistrou na Faculdade de Direito da Universidade de Slo Paulo, no ano de 1977. Tendo descoberto a importancia do formalismo juridico nas praticas sociais brasileiras, Shirley aproximou-se da Faculdade de Direito para indagar, observar e discutir. E dessa aproximagio resultou 0 convi- te, quase um desafio, para a organizacfo e a ministragfo de um curso de antropologia juridica, que seria novidade para ambos, & escola ¢ 0 pro- fessor, podendo-se ainda acrescentar que seria novidade também para os alunos. CO interesse despertado pelo curso foi enorme. Mais de cem alunos, na maioria da area juridica mas um bom niimero de outros campos de es- tudo, acompanharam o curso com o maior interesse, ouvindo, pergun- tando e discutindo. Dai a solicitaco a Robert Shirley para que conver- tesse em livro suas ligdes de antropologia do direito, E aqui esté o livro, notavel contribuic&o para o estudo da antropologia e do direito, apare- cendo no momento certo. Muitos brasileiros esto hoje a procura de novos caminhos, sentindo a necessidade de viver e¢ conviver segundo regras claramente definidas e que sejam a expresso auténtica dos valores, das necessidades ¢ da vonta- de de todo o povo. Este livro sera um auxiliar valioso para todos aqueles que na elaboracao, no estudo, na pesquisa ou na aplicagfo das normas juridicas procuram a justiga para conquistar a pay, Dalmo de Abreu Dallari XII - PREFACIO Este livro tem origem em um curso sobre antropologia juridica por nds ministrado na Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo, no Largo de Sao Francisco, de maio a julho de 1977. As palestras, que fi- zeram parte das comemoragoes em torno do 1509 aniversario de funda- ¢fo dessa Faculdade, foram patrocinadas pelo seu Departamento de Di- reito do Estado, em colaboragéo com a Fundagdo Biblioteca Patricia Bildner e o USIS (United States Information Services), e atrairam mais de cento e quinze alunos, despertando tanto interesse que, com o apoio dos patrocinadores, resolvemos publicar o material. O atraso na publica- cdo é da nossa responsabilidade, pois, além de considerarmos serem ina- dequadas para uma publicagdo imediata as notas originais das palestras, estivemos, em seguida ao curso, envolvido em trabalho extensivo de ad- ministragéo na Universidade de Toronto. A idéia de publica-las no foi entretanto esquecida e este livro, basi- camente, segue 0 esboco geral do curso, nao obstante ser mais bem docu- mentado, mais completo e atual. E, assim como 0 curso, ele nado tem a intengao de ser um tratado completo sobre antropologia ou sociologia juridica. Pelo contrario, é simplesmente um texto introdutério, simplifi- cado, e que pretende, principalmente, despertar o interesse de estudantes de direito e de outras disciplinas correlatas para esta area. Por tal raz&o, certos capitulos — como 0 primeiro, sobre 0 que €a antropologia, e 0 nono, sobre 0 direito brasileiro — so bastante simpli- ficados, assim como muitos dos problemas relacionados com a filosofia do direito e com a justica. Solicitamos ao leitor especialista que com- preenda o motivo dessa simplificacdo, e tentaremos desenvolver estes te- mas (principalmente o da natureza do direito brasileiro) de modo mais completo, em publicages futuras. O presente ensaio tem dois objetivos essenciais. O primeiro é presen- tear os estudantes brasileiros com um longo corpus de material que, por muitos anos, s6 tem sido acessivel em lingua inglesa. O segundo objetivo XIII € polémico: forcar o leitor a examinar os dogmas do estudo juridico for- mal a luz das ciéncias sociais e demonstrar algumas alternativas antropo- légicas. Também por esta razdo foi empregado o estilo anglo-americano de uso extensivo de casos ilustrativos. Esperamos que o leitor considere este material interessante, e, talvez, um pouco “‘inqui O primeiro agradecimento deste preficio vai para Dalmo de Abreu Dallari, a quem este livro é dedicado, Seu apoio nos possibilitou minis- trar o curso original e escrever este livro, Também externamos nosso re- conhecimento a Albert Bildner por financiar 0 curso, assim como ao pes- soal do USIS do consulado americano, Outros que nos auxiliaram no curso foram Eunice Aparecida de Jesus, Daisy Prado, Silvino da Silva e Benedito Freire. Somos grato a todos eles. Queremos manifestar gratidao a Jodo José de Oliveira Veloso por traduzir para o portugués os nossos rabiscos em inglés, ¢ a Diana Maria Noronha, pela revisio do texto, com a constante assisténcia de Jorge Gustavo Barbosa de Oliveira. De uma forma menos direta, mas nao me- nos importante, agradecemos a Margarida Maria Moura, Roberto Kant de Lima, Paulo Mariano Rodrigues e Kevin Bourassa pelo interesse con- tinuo e pelo conselho de pesquisar a antropologia juridica, As falhas deste trabalho, entretanto, slo da nossa inteira responsa- bilidade e de mais ninguém. Ao Vanderlei e ao Humberto Calloni nosso muito obrigado pela da- tilografia do texto final. Estendemos por derradeiro, nossos mais caloro- sos agradecimentos aqueles estudantes do curso do Largo de Sao Fran- cisco; seu interesse, espirito critico e criatividade nos foram extremamen- te estimulantes. Foi, na verdade, uma das melhores experiéncias acadé- micas da nossa vida e esperamos que a publicago destas palestras conti- nue a estimular o interesse por elas demonstrado. Robert Shirley Porto Alegre, 1983. XIV CAPITULO | ANTROPOLOGIA? O QUE E “A antropologia é o estudo do homem e seus traba- Jhos através do tempo e do espago.” “A antropologia 6 a mais humana das ciéncias e a mais cientifica das humanidades.”” “Antropologia 6 0 que os antropélogos fazem.” “Antropologia nada mais é do que sociologia compa- ada.” Todas estas definicdes da antropologia, feitas pelos proprios antro- pdlogos, sdo verdadeiras, pois refletem as distintas facetas da disciplina. A antropologia é uma ciéncia ao mesmo tempo social e natural; devido ao enorme alcance de sua funcéo — o estudo do homem — é quase um campo sem fronteiras; um mar de conhecimentos. A antropologia fisica, uma de suas subdivisdes, estuda a genética humana, a fisiologia ¢ a bio- logia, bem como os parentes evolutivos do homem — os primatas. Avar- queologia, outra das subdivisOes da antropologia, pesquisa a origem e a evolugao da raga humana, n&o somente a evolucdo biolégica, mas tam- bém a social. A lingilistica antropoldgica deriva do estudo de linguas nio escritas e tem dado contribuig6es notaveis a psicologia, a histéria e A na- tureza do conhecimento humano. Os antrop6logos sdo, todavia, provavelmente mais conhecidos pelo estudo dos povos ‘‘ex6ticos’’, povos que ainda vivem ou mesmo que vi- yeram até recentemente em formas de vida tribais e tradicionais. Este es- tudo de sociedades simples e sem lingua escrita € a grande tradigéo da an- tropologia social e cultural. Como se desenvolveu uma disciplina de 4mbito tao amplo, diante da especializacdo crescente do conhecimento nesta época moderna? A res- posta pode ser encontrada na sua propria historia. A antropologia come- 1 gou como 0 estudo de povos sem uma tradigdo escrita e este fato obrigou Os. antropdlogos a tentarem entender a lingua, a economia, a religido, a mitologia, as leis e mesmo a biologia de um Povo como partes de um to- do e nao como fragmentos estanques. O antropdlogo teve de se tornar um generalista ao invés de um especialista, mesmo quando seus interesses eram mais centralizados. A antropologia, como o estudo sistemAtico de culturas diferentes das do pesquisador, é uma disciplina muito antiga. Com um pouco de es- forgo, poder-se-ia remonta-la a Herddoto, ou mesmo ao grande historia- dor chinés Sima Quan, que viveu ha centenas de anos antes de Cri ‘0, po- rém a maioria dos antropdlogos reivindicaria uma historia mais recente, de pouco mais de um século, A antropologia moderna, na nossa opiniao, tem trés temas, todos importantes para a compreensio da disciplina, e que podem ser chamados de tema pragmdtico, tema romantico ¢ tema cientifico. O pragmatismo pincelado de romantismo ¢ a verdadeira base da an- tropologia social. Desenvolveu-se como um subproduto do expansionis- mo da Europa imperial no século passado, As nagOes européias, princi- palmente a britanica, a espanhola, a francesa, a holandesa ¢ a portugue- sa, viram-se efetivamente com 0 dominio ¢ a conquista de enormes Areas e de milhdes de pessoas de quem quase nada sabiam, Ox primeiros impé- tios, 0 espanhol e o portugués, confiaram o papel de conhecer ¢ com- preender esses povos conquistados a Igreja Catdlica Romana, Os missio- narios, principalmente os jesuitas, realizaram mesmo numerosas pesqui- sas antropolégicas. Houve até um instituto de estudos astecas, fundado na cidade do México logo apés a conquista espanhola em 1521, Existe, porém, uma distincdo fundamental entre 6 papel de um mis- siondrio e o de um antropdlogo. O missionério vem ensinur a ideologia e a fé européias a um povo nao-europeu. O antropdlogo vem aprender o que esse mesmo povo tem para ensinar a si ¢ A sua propria sociedade. O interesse do missionario é essencialmente pragmatico, embora tenha ha- vido excegdes muito valiosas. Ele procura conhecer um povo a fim de muda-lo e, na maioria dos casos, domina-lo. Devido # esta profunda contradigdo dentro do campo missionario, muitos de seus elementos an- tropoldgicos, assim como 0 instituto acima citado, foram finalmente re- primidos, especialmente quando os missiondrios mais profundamente envolvidos comegaram a defender esse mesmo povo contra os proprios interesses imperiais que 0 sustentavam. Esta foi uma das principais ra- zOes da expulsdo dos jesuitas da América Latina no s¢culo XVIII. Os britanicos, franceses e holandeses estavam, contudo, muito me- nos interessados na religiao que no comércio. Nao & por acaso que mui- tos dos maiores antropdlogos vieram desses paises. Alguns dos melhores antropdlogos do século XIX estavam abertamente a servigo do governo imperial. Por exemplo, um dos mais completos estudos j4 realizados so- bre a histéria e a sociedade da ilha de Java foi feito pelo seu governador 2 britanico, Sir Stamford Raffles, que fundou a cidade de Cingapura. Ou- tro foi o de Lord Lugard, o fundador da Nigéria. A Inglaterra produziu centenas desses imperialistas eruditos que, por raz6es praticas, as vezes, € Outras, romnticas, vieram a estudar e conhecer povos de tudo o mundo, viver com eles e, em muitos casos, escrever sobre eles. O exemplo mais famoso foi o de Lawrence da Ardbia, que se tornou mais arabe do que inglés. Porém nos Estados Unidos da América 0 problema imperial foi me- nos sério. Os povos nativos da América do Norte e do norte do México nao eram muito numerosos ¢ tinham sido dizimados pelas doengas euro- péias muito antes da expanso ao oeste do pais. Exceto em poucas areas isoladas dos planaltos centrais (onde 0 General Custer fora derrotado pe- la nag4o Sioux), os indios americanos raramente ofereceram qualquer sé- tia ameaca a expansdo dos Estados Unidos. Apesar disso, foi fundado em 1864, em parte por razes cientificas, mas com vistas ao controle pa- cifico dos povos nativos do oeste, o Departamento Americano de Etno- logia (Bureau of American Ethnology), comandado pelo General John Wesley Powell. Este tema pratico (0 imperial) da historia da antropologia é um fato social e econdmico. Entretanto, isto nao deve sugerir uma critica moral a toda disciplina, nem mesmo a maioria dos antropdlogos, inclusive aos missionarios, da época. Aqui, deve-se reconhecer a importancia do tema romantico na antropologia. Embora muitos estudiosos e missionarios de entdo aceitassem a visdo do ‘‘fardo do homem branco”’ ou de trazer a “civilizagéo”’ aos “‘primitivos’’, muitos outros se tornaram profunda- mente envolvidos com 0 povo que estudaram e, na pratica, vieram a ser defensores impetuosos de sua independéncia cultural. Esta é também uma caracteristica comum aos antrop6logos modernos. Pode-se notar que alguns foram além das pesquisas para serem incorporados a tribo es- tudada. No Brasil, varios antropdlogos aceitaram a vida dos nativos. 0 famoso Kurt Nimendaju manteve varias familias nativas além de sua fa- milia “oficial” no Rio de Janeiro, Um caso célebre foi o do professor Frank Cushing, da Universidade de Colimbia, que apés alguns anos de pesquisa intensiva sobre a religido dos indios Zuni, do Novo México, tor- nou-se realmente um sacerdote Zuni — queimou todas as suas notas de pesquisa de campo e jamais voltou a Nova Iorque. Este romantismo da antropologia, o fato de poder compreender e conhecer bem outros po- vos, tem sido uma de suas mais belas caracteristicas. ~» Contudo, nao se deve esquecer que a antropologia ¢ também uma ciéncia natural e descritiva da lingua e da vida de outros povos, e ainda uma ciéncia comparativa que tenta compreender todas as sociedades hu- manas. Talvez seja correto dizer que a antropologia como ciéncia e profis- so surgiu no comego deste século, tendo como precursores Franz Boas, nos Estados Unidos, e Bronislaw Malinowski, na Inglaterra. Boas parti- 3 cipou da primeira grande expedicdo antropolégica organizada com fina- lidade especificamente cientifica — a ‘‘Jessup North Pacific Expedition” — para estudar os povos da costa noroeste do Pacifico, do Canada e do Alasca. Mais tarde, voltou para ocupar a primeira cadeira de antropolo- gia numa universidade americana — a Universidade de Colimbia, em Nova Iorque. Seus alunos formam a maioria na lista dos grandes antro- pdlogos americanos da gerac4o passada: A. L. Kroeber, Melville Hers- kovits, Ruth Benedict, Ralph Linton, Margaret Mead etc, Muitos deles fundaram departamentos de antropologia em todo o pais. Boas era, aci- ma de tudo, um cientista formado em fisica que exigia muito de seus dis- cipulos, sempre com a visdo de que a antropologia devia tentar ser tao ri- gorosamente cientifica quanto possivel. Por outro lado, Malinowski foi o criador do método eientifico, sencialmente fundamental na antropologia — o da observagio parti pante. Por uma série de raz6es, durante a Primeira Guerra Mundial, ele viveu cerca de quatro anos nas ilhas Trobriand, no sul do Pacifico, LA es- tudou meticulosamente quase todos os aspectos da vida desse povo mela- nésio: a produc&o econémica e o cimbio, a vida familiar, 4 religito, os mitos e até a poesia. Tendo voltado a Inglaterra apOs a guerra, aceitou a cadeira de antropologia social da Universidade de Londres ¢ 14 permane- ceu até sua morte, em 1941. Sua influéncia provelo nao somente de sua extrema dedicagféo como professor, mas também de sua extraordindria habilidade em escrita. Da experiéncia adquirida com os habitantes das ilhas Trobriand, surgiu uma série de livros classicos em antropologia, to- dos impressos até hoje: Argonauts of the western Pacific, Coral gardens and their magic, The sexual life of savages in North Western, A cientific theory of culture e Crime and custom in savage soclely, SO o8 titulos ja refletem o alcance de seu interesse como antropdlogo ¢ pesquisador cien- tifico do campo. Esse dois homens, Franz Boas ¢ Malinowski, muito diferentes em experiéncias e temperamento — um, judeu-alémio formado em fisica; outro, um polonés expatriado formado em matemitica, porém em mui- tos sentidos um aventureiro — criaram a ciéncia moderna da antropolo- gia como matéria universitaria e incentivaram e patrocinaram muitos es- tudos e pesquisas. Embora suas idéias diferissem em muitos asp ambos ensinaram certas idéias fundamentais que se tornaram preceitos basicos da antropologia moderna. O primeiro desses preceitos € 0 método da observagio participante, desenvolvido por Malinowski, que requer umt longo periodo de convivén- cia (um ano, no minimo) com o povo a ser estudado, A observagio parti- cipante implica que um antropélogo nao apenas observe uma outra cul- tura, mas se torne realmente envolvido na vida didria do povo, aprenda sua lingua e aceite seus costumes. Certamente ha limites para o grau em que um antropdlogo possa ou deva tornar-se membro de uma outra cul- tura. Por exemplo, poucos se casam dentro de uma cultura ou travam 4 combates em guerras locais, ou tiram cabegas de seus inimigos como tro- féus. Porém, como regra geral, © método tem muita forga, j4 que 0 pes- quisador cientifico, ao conviver com um povo, tem que se envolver em suas vidas, seus problemas, temores, crengas e aspiragdes. O antrop6lo- go desenvolve uma dupla visdo de vida, torna-se multicultural. De certo modo, converte-se no que estuda. Esta ‘‘experiéncia antropolégica” éa marca do pesquisador do campo e ela muda sua personalidade para sem- pre. A experiéncia de viver numa outra cultura, com 0 objetivo de apren- der esta cultura, tem efeitos profundos nas pessoas que dela participam. O trauma original € hoje bastante conhecido como ‘‘choque cultural’? — um disturbio intenso que pode durar varios meses ou eventualmente nao desaparecer de todo. A experiéncia de uma pesquisa cientifica extensa nao s6 permite ao antropélogo aprender uma outra cultura, mas tam- bém, em muitos casos, faz com que ele esqueca ou questione os dogmas de sua prépria cultura. ~ Este é um outro preceito antropoldgico desenvolvido pelos fundado- res da antropologia moderna: a negacdo do etnocentrismo. O etnocentrismo é simplesmente a crenga firme na verdade da pré- pria cultura de alguém. Cultura, no sentido antropolégico, é o conjunto de conhecimentos, crengas ¢ valores de uma sociedade. Todas as pessoas crescem aprendendo uma cultura. O etnocentrismo é a idéia de que a propria cultura e crengas de cada um sdo ‘‘a verdade’’ ou, pelo menos, a maneira superior de lidar com o mundo. E perfeitamente natural acredi- tar que aquilo que lhe foi ensinado quando crianga, sua religiao, seus va- lores, seus modos de conduta sdo os melhores, os mais corretos e verda- deiros, e que a cultura de outros povos é errada, supersticiosa e inferior. Mas os fundadores da antropologia ensinaram que o etnocentrismo é fal- sO — que todas as culturas s4o, em geral, iguais, que nenhuma cultura ou sociedade possui 0 monopdlio da verdade e que, de qualquer forma, to- das elas merecem respeito. A destruigéio do etnocentrismo (a certeza sobre a verdade da propria cultura de alguém) ¢ a aceitag&o da validade de outras culturas, de outros modos de vida ¢ de outras crengas, foram ensinamentos dos fundadores da antropologia moderna, que s&o aceitos pela maioria dos antropdlogos de hoje. O proprio método do trabalho antropoldgico cientifico, incluin- do longos periodos de convivéncia com membros de uma outra cultura, destr6i o etnocentrismo do pesquisador. O conhecimento de que existem outros meios de fazer certas coisas, outras maneiras de pensar, de falar, outras leis e regras, elimina a confianga natural de uma pessoa na propria cultura. E por isso que a experiéncia antropoldgica € tao perturbadora e ao mesmo tempo t&o gratificante. O antropdlogo perde a certeza de sua propria cultura, porém ganha profunda consciéncia de uma outra. Ele se torna menos um cidaddo de uma na¢4o e mais um cidadao de muitas nagdes. Isto é tao belo quanto assustador, j4 que significa que o 5 antropdlogo nao mais pertence a sua propria sociedade. Ele passa a ser, de uma forma bem real, profissionalmente marginalizado. Mas, no senti- do humanista, torna-se mais desenvolvido, Pertence ao mundo. O proprio fato de o antropdlogo conhecer profundamente mais de uma cultura e sociedade ¢ 0 elemento predominante do campo como ciéncia. Um outro elemento introduzido pelos fundadores da antropolo- gia moderna foi 0 conceito de comparagilo controlada. Esta sugere que através do conhecimento de muitas culturas ¢ sociedades pode-se chegar aum entendimento mais cientifico do género humano em geral, A antro- pologia provou que muitas ‘‘leis’’ nas ciéncias sociais eram em si mesmas etnocéntricas ¢ eliminou varios preconceitos inerentes & visto européia do mundo. Esta talvez tenha sido a maior contribuigho da antropologia as ciéncias sociais. Hoje, em qualquer campo — da psicologia e da edu- cago a ciéncia politica — a perspectiva multicultural desenvolvida pelos antropOlogos é muito importante, Num mundo cada vez mais complexo, a visio multicultural pode ser essencial A sobrevivéncia humana, Os fundadores da antropologia moderna introduziram um elemento final: a focalizagdo da atengho dos antropdlogos sobre soeiedades de pe- quena escala e de tecnologia simples — as chamadas “primitivas”. Na realidade, a ultima sociedade verdadeiramente primitiva provavelmente tenha desaparecido ha 30,000 anos com o Neanderthal, Tanto Boas co- mo Malinowski usaram o termo “‘primitivo’’ (ou, no caso de Malinows- ki, “‘selvagem”’) nao no sentido de que pensassem que 0% povos que eles estudaram eram bioldgica ou mesmo culturalmente inferiores As socieda- des modernas, pelo contrario, tinham profundo respeito por eles, Con- tudo estavam interessados em estudar povos com tecnologias ¢ estruturas politicas relativamente simples e independentes, tanto quanto possivel, das forcas econdmicas e politicas dos impérios modernos, Desse modo, divergiam acentuadamente dos antropdlogos dos séculos anteriores. Seu interesse era realmente cientifico ao invés de pratico, Bles nfo tiveram a intengao de dominar os povos que estudaram, porém de entendé-los cien- tificamente (com uma insinuag4o de romantismo em Malinowski). Mas, em Ultima anilise, 0 esforgo para achar tais Povos “‘primitivos”’ isolados fracassou. Ainda em 1914, quando Malinowski comegou seu trabalho cientifico, tendo Boas realizado o seu ha uma década, o numero de socie- dades verdadeiramente independentes em qualquer parte do mundo era muito limitado; hoje, praticamente inexistem. Ainda persiste em antropologia a tradig&o de pesquisa em socieda- des simples, porém com a crenca de que estudando-se-as, facilita-se a compreensao das mais complexas. Todavia, por muitos anos os antropé- logos procuraram ignorar o fato de que a maioria dos POvos que pesqui- savam era de fato dominada ou pelo menos solidamente influenciada pe- los Estados e culturas ocidentais. Eles tentaram recriar uma cultura ‘‘pu- Ta’’ e “‘tradicional’’, indagando sobre o Ppassado e ignorando os elemen- 6 tos modernos. Esta énfase sobre o ‘‘primitivo’”’ limitou o campo e foi fonte de muitos erros em trabalhos posteriores, O primeiro dos antropdlogos a dar reconhecimento especifico a co- nexdo entre as sociedades pequenas e simples e os Estados modernos foi Robert Redfield (Tepoztlan: a Mexican village, a study~of folk life, 1930), que desenvolveu uma nova metodologia de estudo das comunida- des rurais dentro de um Estado maior. Primeiro no México e mais tarde na China, ele pesquisou sobre as vilas rurais como part societies. Desse modo, libertou a antropologia de sua tradigao de “‘primitivismo”’ e des- cobriu um novo campo extensivo para pesquisa. Fez também a util dis- ting4o entre a sociedade e cultura da elite urbana e a camponesa rural, ou, com suas prOprias palavras, entre a “‘grande tradi¢&o”’ das cidades e a “‘pequena tradicao”’ do campo. £ interessante observar que Redfield, assim como Boas e Malinowski, é hoje severamente criticado Por nao ter reconhecido a relagdo de poder e autoridade que o E; antém sobre a comunidade rural. Esta critica € devida ao seu primeiro trabalho no México. Contudo, nos estudos posteriores sobre a China, Redfield exa- minou explicitamente os problemas do comércio e do poder na sociedade tural, sendo esses trabalhos infelizmente pouco conhecidos hoje em dia. Durante a década de 30 e até o presente, o campo da antropologia tem-se desenvolvido constantemente. Antropdlogos como Edward Sapir (Language, an introduction to the study of speech, 1921-1954), foram fi- guras fundamentais na criacao da ciéncia da linguiistica. Psicélogos como Abram Kardiner (The individual in his society, 1956) e antropdlogos co- mo Margaret Mead (Coming of age in Samoa, 1928) dedicaram-se a apreciacdo da personalidade e da cultura e abriram novas reas no estu- do da educacdo comparada. As Pesquisas antropoldgicas tornaram-se instrumento fundamental para se compreender a organizacdo social. Es- tudos de religido e de mitologia transformaram-se numa grande 4rea de pesquis: ‘nquanto estudo de producio e de troca, a_antropologia eco- némica, iniciada por Malinowski, tem sido sensivelmente desenvolvida Por antropdlogos como Raymond Firth (Malay fishermen, their peasant economy, 1946) e por marxistas como’Maurice Goudlier (Racionalidade € irracionalidade na economia, 1975)."A’escola estruturalista francesa criada por Claude Lévi-Strauss abriu muitas 4reas novas na analise estru- tural do parentesco, da linguagem e da mitologia. Todas elas tem dado grande contribuicdo a ciéncia social bem como ao humanismo cientifico. Recentemente, os antropdlogos comegaram a examinar 0 fendmeno urbano. Este trabalho envolve varias instituigdes urbanas, como igrejase utras organizac6es religiosas, fabricas e até escolas de samba (da Matta, Carnavais, malandros e herdis; para uma sociologia do dilema brasileiro, 1979; Velho, A utopia urbana, 1973; Oliven, Urbanizacao e mudang¢a so- cial no-Brasil, 1980). Hé também estudos sobre bairros sou pos urbanos. Como Roberto da Matta ja observou, os ‘antropélogos tém 7 uma tradig&o de cstuday pauasianoiades pelas outras ciéncias sociais: favelados, mendigos, indios ¢ outros povos nativos forcados a morar em cidades. A antropologia, assim, tenta dar voz Aqueles que s’io pouco ou- vidos. -» Parece possivel dizer agora que as velhas raizes pragmiaticas da an- tropologia como elemento de dominagio imperial estflo sendo gradual- mente substituidas pela antropologia como ciéncia, Ainda mais que 0 Cédigo de Etica da Associacéo Americana de Antropdlogos proibe ao antropélogo profissional participar de qualquer atividade que possa tra- Zer préjuizo ao povo que ele pesquisa, Isto nfo quer dizer que n&o possa se esforcar para ajudar tal povo em suas relagOes com a sociedade mo- derna ou mesmo nas lutas, para que sobrevivam As provagdes da moder- nizacdo. Hoje, esta é uma das mais nobres ¢ titeis tarefas da antropologia moderna, contanto que seja feita a pedido e com apoio das pessoas e nao de uma maneira paternalista ¢ dominante, Deste modo, a linha pragmatica do campo tem sido modificada, mas a idéia de dominio est sendo substituida pela de cooperagao, ¢ a as- sisténcia ainda nio desapareceu, A antropologia como ciéncia social tem-se tornado mais vigorosa, com novas (éenicas e novos métodos de pesquisa, como o estruturalismo, a lingiistica, a arqueologia, a econo- mia, a biologia ¢ a genética, Mas ainda nela persiste a linha romantica e provavelmente nunca desaparecer4, O mundo é extremamente complexo para que a antropologia se transforme numa ciéncia exata num futuro previsivel. A antropologia — 0 estudo das sociedades exdticas — tem sido sem- pre um assunto de romantismo ¢ apesar de todas as téenicas modernas, a maioria dos antropdélogos é basicamente humanista, Na realidade, a an- tropologia como ciéncia tende a dar um grau de objetividade e rigor, bem como controle de observacgao, ao que ainda ¢ uma arte — a de ser antro- pdlogo. Com esta pequena introdugéo, podemos comegar a examinar a relagdo entre a antropologia e o direito. \e" we e Wo on'\ CAPITULO II | ANTROPOLOGIA LEGAL? O QUE E Para examinarmos os conceitos de antropologia legal, devemos dis- cutir primeiro o problema do direito em si. Para um estudante do direito, a questo é relativamente simples: uma lei € uma regra proposta pelas or- ganizag6es préprias ao Estado. Geralmente é uma legislacao com apro- vacao do Executivo e dos poderes judiciarios. Para 0 antropdlogo € 0 so- cidlogo, a lei é algo muito mais complexo. O cientista social nao esta in- teressado apenas nas regras formais especificas e nas instituigdes do Esta- “do, porém em todo o padrao das normas, e nas sangdes que mantém a ordem social e que permitem a uma sociedade funcionar. As leis formais , do Estado s&o somente um elemento desse padrao. De fato, 0 assunto da antropologia legal classica ¢ exatamente o do direito ‘‘primitivo’’, que é a lei nas sociedades simples e sem escrita, onde o Estado é ausente ou muito distante. Thomas Hobbes e muitos doutores da lei ensinaram que o Estado € um elemento necessario para garantir a ordem social. De acordo com a ,y¢ filosofia de Hobbes (Leviathan, 1968), sem o poder coercitivo do Estado a vida seria ‘‘grosseira, bruta e breve’ na “‘guerra de todos contra todos’’. A antropologia moderna provou que esta visdo da sociedade é em grande parte falsa. Muitas sociedades existiram e ainda existem sem > quaisquer leis escritas, ou poder burocratico, ou violéncia organizada do Estado, Isto nao significa que essas sociedades nao tenham regras ou normas sociais, nem quer dizer que nao ha mecanismos de controle social ou sangdes contra aqueles que infringem essas regras. Todavia esses me- canismos existem em outras instituigdes que nado o Estado e, o que é ain- da mais importante, estas instituicdes continuam a funcionar mesmo na moderna sociedade urbana. Ha muitas regras e costumes dentro de qualquer sociedade, que nao sao leis formais mas que mesmo. assim as pessoas obedecem. Isto é, nor- mas e habitos que tém efeito real na ordem social ainda que nao sejam es- critos em cOdigos ou livros de direito. De fato, provavelmente quase toda interag4o e comportamento sociais ocorrem sem ago direta alguma de qualquer Estado. Esta é a mensagem fundamental dos grandes sociélo- g08"do direito, como Eugen Ehrlich (Fundamental principles of the so- ciology of law, 1936), Wilhelm Aubert (Sociology of law, 1969) e Jean Carbonnier (Flexible droit, 1971) — o papel relativamente secundario ‘que 0 Estado representa na vida cotidiana e na manutengio da ordem so- cial. Carbonnier fez uma util distingdo entre o grand droit — as leis ¢ ins- tituigdes do Estado, e 0 petit droit — as outras regras ¢ instituigdes essen- ciais A ordem e A vida sociais. Entretanto isto nao significa que as pessoas vivendo em sociedades sem Estado, ou mesmo os modernos cidadaos urbanos, levando uma vi- | da calma e honesta, sejam escravos dos costumes ¢ obedegam As regras instintivamente e sem questionamento, Quase todos os fildsofos juridi- | cos, inclusive Hans Kelsen (General theory of law and state, 1952) ¢ H. L. A. Hart (The concept of law, 1961), ensinaram que a natureza funda- mental do direito é o poder que tem a sociedade de aplicar sangOes ou pu- nir uma conduta disruptiva ou ‘‘ilegal’’, Hart sugeriu que em qualquer sociedade ha ‘‘regras prima sto 6, s6bre o comportamento do indi- viduo, ¢ “‘regras secundarias’’, normas da sociedade referentes s prima- rias, ou seja, formulas soi para aplicar sangOes Aqueles que nfo obe- decem as regras primarias. O grande antropdlogo Paul Bohannan (The differing relms of the law. In: Law and warfare, 1967) propds uma visio semelhante quando escreveu que a maioria das sociedades tem ‘‘dupla institucionalizacao”’, isto é, instituigdes sobre conduta ¢ instituigdes para punir condutas extravagantes. Para melhor compreensao deste assunto, tomaremos como exemplo os esquimés (Inuit) do Alasca, Canada e Groenliindia que sobreviveram por cerea de 3.000 anos sem vestigio qualquer de Estado. ‘*f dificil ima- ginar um povo que seja mais anarquico’’, disse um observador, & sabi- do, por exemplo, que nao ha nenhuma palavra para ‘*guerra’’ na lingua esquimé e realmente eles julgam que grupos de pessoas brigando uns contra os outros é uma tolice. oO esquimés)vivem numa regido onde, na época do inverno, o frio mata uma pessoa em cinco minutos se ela nao estiver adequadamente vestida. Eles tém sido tradicionalmente cacadores e muitos ainda 0 sao e, no inverno, essa atividade torna-se bastante ardua. Partindo desse fator geografico basico, os esquimés desenvolveram durante muitos séculos uma série de leis que Ihes permite sobreviver num dos ambientes mais hostis da terra. Uma dessas leis.6:quem tem um excesso de carne ou ou- tro alimento deve reparti-lo com os outros. Armazenar comida’é um cri- me mortal na visdo desse povo. Em seu ponto-de vista, € natural as pes- soas dividirem seus bens. Devido a essa crenga, os primeiros comercian- tes ingleses nunca puderam instalar um posto comercial em territério es- 10 quim6. Os esquimés sempre estavam dispostos a repartir suas peles e ali- mentos com os ingleses, porém nunca conseguiram entender porque estes mantinham um estoque enorme de mantimentos sem dividi-lo. Tal pro- cedimento nAo lhes era natural ou, melhor, era “‘crime’”’. Por trés vezes Os ingleses estabeleceram postos comerciais no territério esquimé no sé- culo passado e por trés vezes, apds algumas discussdes sobre justiga e di- visdo, as comunidades esquiméds simplesmente mataram os comerciantes | | ingleses e distribuiram seus alimentos. Isto foi ‘justo”” para 0 direito es-| | juimd, j& que, para eles, o crime mortal no era 0 Toubo, mas sim a ga- | )nancia. Modelos sobre a dualidade da lei Modelo proposto por Hans Kelsen (General theory, cit.) — aplicavel também em muitas teorias antropoldgicas: exig6ncias Instituigdes que aplicam a lei sangées Modelo proposto pela teoria do conflito moderno (Chambliss, Law, order and power, 1971): Forgas sociais, politicas e pessoais Instituigdes que fazem as leis (legislativas) Forgas sociais, politicas e pessoais 11 Outra lei esquim6 foi relatada pelo antropdlogo Knud Rasmussen (Intellectual culture of the Iglulik eskimos. In: Reports of the Fifth Thule Expedition — 1921-1924), da Groenlandia, em 1929. Uma regra geral de todas as sociedades esquimds €: em épocas de privagdes, geralmente no inverno, os individuos que nao podem mais produzir ou cagar no devem comer. Portanto, as vezes, deixavam-se morrer criangas nascidas no in- verno é, 0 que é também dé se notar, esperava-se que a§ pessoas muito velhas, consideradas iniitteis a sociedade, se matassem. Este era um dos mais sagrados deveres dos idosos: devido aos rigores do inverno ¢ a es- cassez de alimentos, eles deviam sacrificar-se para que os demais mem- bros do grupo pudessem sobreviver. Era bem possivel, em tais casos, que os velhos perambulassem pela neve e desaparecessem, Porém Rasmussen. informou que era mais correto e honroso para o filho mais yvelho ajudar seus pais a comeéterem 0 suicidio. Qualquer outra coisa era sinal de des- respeito. Ele conta o caso de uma familia com quem estava viajando em pleno inverno de 1921, em que a velha mae da familia decidiu que nao mais poderia continuar viajando. Para honri-la, o filho construiu-lhe um iglu sem saida e ela sentou-se nele confortavelmente, Depois disto, a familia inteira cantou misicas de despedida ao redor do ighu durante to- da a noite e continuou a viagem na manha seguinte, Isto ¢ homicidio na visdo ocidental, mas também ¢ 0 maior ato de justiga para os esquimés. Este é, entdo, um postulado bisico da antropologia legal, o de que as regras so feitas a partir de bases sociais ¢ econdmicas ¢ precisam ser vistas em seu contetido social, Além disso, de acordo com Sally Falk Moore (Law as process, an anthropological approach, 1978) e outros tropélogos juridicos, as sociedades sem Estado, ‘‘primitivas’’, raramente tém leis nocivas ou iniiteis. Sem um instrumento para faze-las cumprir e sem maneira de escreve-las, as leis desnecessirias serio geralmente esque- cidas dentro de poucos anos. Desse modo, as leis dos povos ‘‘primitivos’’ sdo freqiientemente muito mais verdadeiras do que as das sociedades mo- dernas, além de serem geralmente bem conhecidas por quase todos os membros da sociedade. Assim, é possivel falar de uma ‘‘cultura legal’’ como aquela estrutura e hierarquia de normas e valores que permitem a uma pessoa sobreviver em seu ambiente, em sua sociedade, Além disso, as leis que comp6em o padraio legal das sociedades simples devem ser re- lativamente poucas, j4 que nao as ha escritas e poucos sdo os especialis- tas em direito (se é que ha algum) para elabora-las. Assim, o antropdlogo legal concordaria nao com Kelsen, para quem o direito é uma ciéncia “*pura’’, COerente em'si mesma, mas poderia anuir com Oliver Wendell Holmes, ou seja, que a vida.do direito nao é a logica, mas a experiénci: As regras da codtaatecem Estado, o direito “‘primitivo’’, so uma acu- mulago histérica das normas de vida social que se tem mostrado valio- sas ao longo das gerag6es, no sentido de manter a ordem e a organizagao sociais. Essas regras sao freqiientemente expressas em formulas que se mostram estranhas aos estudiosos do direito europeu, em formas metafi- 12 sicas.o igiosas, e o desvio é muitas vezes caracterizado como feitigaria ao invés de crime. Contudo, a sociedade pode funcionar muito bem desta maneira. N&o se deve supor, porém, que as sociedades simples e sem Estado n&o tenham instituicdes de verdadeiro poder para punir os transgresso- res. O modelo das regras primarias e secundarias proposto por Hart (The concept of law, cit.) pode aplicar-se igualmente a antropologia Tegal e ao direito moderno. Para os antropélogos, contudo, as burocracias juridi- cas formais s4o apenas algumas dentre as diversas instituigdes que po- dem aplicar sangSes aos individuos. Anthony F. C. Wallace (Administrative forms of social organiza- tion, 1968) referiu trés instituicdes principais que formam a ordem so- cial. Sao elas: a familia, a comunidade e a administracao. As categorias so imperfeitas, porém muito tteis, e podem ser com- binadas ou ainda mais divididas. A ‘‘administracdo’’, por exemplo, pode incluir tanto corpora¢des como um governo. Ambos tém o poder de apli- car sangdes. Porém, em geral, a divisdo é util para uma anilise das forcas de ordem social em qualquer sociedade. No caso dos esquimés citado acima, pode-se ver a importAncia tanto da familia como da comunidade em fazer cumprir as normas sociais. Estes fatores sero mais desenvolvi- dos no Capitulo IV. jt) wv Mer PeOe I Uma série adicional de conceitos importantes de serem salientados so aqueles desenvolvidos por Max Weber em sua anilise de politica e lei (Economy and society, 1968). Eles est4o correlacionados a contradicao fundamental em qualquer estudo juridico que, por sua vez, relacione-se com 0 problema da dualidade da lei ou com as regras primérias e secun- darias. O direito consiste numa série de normas e regras que sao conside- tadas, pelo menos por muitos, como boas € justas, e qué deveriam ser obedecidas. Mas a lei é também um sistema de punir os individuos que desobedecem a essas regras. Esta é a grande questo, proposta por We- ber, que € assunto nao s6 da antropologia legal, mas também de toda a ciéncia politica: por que um homem obedece a um outro? Nesta pergunta, Weber fez a distincdo fundamental entre: 1) autori- dade (Herrschaft), que é a obediéncia voluntaria porque o individuo cré que ele deve obedecer; e2) poder (Macht), que é a obediéncia obtida ape- sar da oposicao. Nas palavras mais exatas: ‘‘Autoridade é a probabilida- de de que uma ordem com um certo contetido seja obedecida por um gru- po definido de pessoas, qualquer que seja o motivo para esta obedién- cia’’, enquanto ‘‘poder é a probabilidade de que esta ordem seja obedeci- da apesar da oposicao’’ (Weber, Economy and society, cit., p. 35). Outro conceito basico proposto por Weber é o da legitimagao. Este é, fundamentalmente, o processo de criar poder, ou um padrdo de or- dens e obediéncia justo na opinido das pessoas. A autoridade /egitimaéa autoridade sem oposigdo perceptivel, obediéncia livre. E importante ob- ror. 13 manipular a sua base econémica para a produgao comercial. Assim, uma caracteristica importante do imperialismo britanico foi a dominagao in- direta. Os ingleses, com a supremacia do mar, nao tinham interesse nem capacidade de manter enormes exércitos em seus territorios. Des do, enfatizaram duas instituigdes politicas em seu sistema imperial: 1) poderosos portos fortificados, situados as mais das vezes nas ilhas, que Pudessem ser controlados como centros de comércio e bases navais (a maioria dessas cidades ainda existe e algumas so muito prosperas: Hong Kong, Cingapura, Calcuta e até Nova lorque so exemplos); 2) uma série de Estados-clientes aos quais pudessem governar de um modo cordial, atendendo aos interesses da Gra-Bretanha, porém com um custo minimo ao tesouro britanico. Governantes desfavordveis aos seus interesses fo- ram simplesmente subornados ou eliminados discretamente, A domina- go indireta foi um dos elementos mais eristicos do imperialismo britanico. O que pode ser um terceiro elemento do império foi conse- qiiéncia da prépria dominacao indireta, porém interessa a este estudo: o uso do direito consuetudindrio da estrutura imperial, Importante foi a natureza das instituigdes legais britAnicas, pois o direito inglés, a com- mom law, sempre teve como base tedrica os regulamentos locais da co- munidade. O costume local, especialmente na Area do direito civil, podia e ainda pode, em alguns casos, prevalecer, se no contradizer ato do Par- lamento. Portanto, foi muito facil A instituigho juridica britinica adotar a dominagao indireta, Na Africa ¢ na Asia, onde quer que esta domina- ¢40 fosse aplicada, os britAnicos simplesmente mantiveram a administra- cdo da justica local, os chefes ¢ sacerdotes ¢ permitiram-lhes continuar a manejar a maioria dos ‘‘processos"’ onde os interesses britnicos nao es- tivessem diretamente em jogo. As tinicas excegdes foram certos fumes. que os britanicos tinham como “‘imorais’’, como 0 sa/f-— a cremagao da vitiva na pira de seu esposo, no costume hindu, ¢ 0 /obola, 0 prego pago pelo noivo a familia de sua futura esposa, na tradigo de muitos povos africanos. Em contraste, o imperialismo francés afigurava-se bem diferente. Os colonos eram considerados franceses, diretamente subordinados ao direito francés — o Cédigo Napoledo. Isto pode explicar em parte por- que a antropologia juridica era pouco desenvolvida na I ga até recen- temente. x Entretanto, mesmo as mudangas minimas no direito consuetudina- io so muito dificeis, j4 que se esta lidando com a cultura legal de um Povo. O que era “‘imoral’’ para os ingleses podia ser altamente moral pa- Ta um povo africano. A tentativa de eliminar o Jobolg quase destruiu a estrutura social da vida africana, ja que aquilo que as autoridades brita- nicas tinham como ‘compra de esposa’’ era um fato visto pelos africa- ‘nos como simples compensa¢4o entre um grupo familiar e outro, isto é, um pagamento em troca das contribuicdes de uma mulher como traba- Ihadora. De fato, o resultado dessa tentativa de supressio de uma lei 16 consuetudinaria foi de grande descontentamento e desmoralizacao maci- ga da sociedade local. Na verdade, os britanicos, do ponto de vista afri- cano, estavam proibindo o casamento. Em meio a esta e a algumas ou- tras disrup¢des, as autoridades britanicas decidiram, de fato, tomar co- nhecimento dos costumes legais do povo que dominavam e, assim, auto- rizaram o primeiro dos grandes estudos britanicos de antropologia legal. Muitos desses estudos coloniais de direito local foram publicados, alguns deles notaveis pela qualidade da pesquisa, como o trabalho do Coronel Rattray: Ashanti law and constitution (1929); € os de C. K. ‘Meek, Law and authority in a Nigerian tribe (1937) e Land law and cus- tom in the colonies (1949), sobre autoridade, costume e posse da terra na Nigéria. Pode-se ainda mencionar A handbook of Tswana law and cus- tom (1938), de Isaac Schapera, que era basicamente um manual para o administrador colonial, apesar da consideravel contribui¢do posterior de Schapera a antropologia cientifica. Entretanto, por volta de 1930, a antropologia britanica comega a to- mar novos rumos, sob a influéncia de Malinowski. Em 1926, ele publi- cou Crime and custom in savage society (Crime e costume na sociedade selvagem), um dos primeiros estudos do direito ‘‘primitivo’’, uma andli- se exclusivamente cientifica da teoria do direito em sociedade, sem ne- nhuma pretens4o a qualquer utilidade colonial. De fato, poder-se-ia cha- mar este trabalho de base da moderna antropologia legal cientifica. A partir dai, os antropélogos britanicos concentraram-se cada vez mais nas quest6es tedricas da filosofia legal e nas ciéncias sociais, e menos nas compila¢des praticas de regulamentos para os administradores coloniais. Esta mudanca foi devida, provavelmente, ndo tanto a influéncia do livro em si e sim a presenga marcante do proprio Malinowski, como professor ¢ principal antropélogo britanico de seu tempo. Malinowski tinha pouca simpatia pelo uso da antropologia para a dominago colonial e sentiu, como seu colega australiano Radcliffe-Brown, cujas idéias j4 desponta- yam, que a antropologia deveria ser uma ciéncia social independente de suas raizes coloniais. As licgdes de Malinowski mantiveram-se firmes. A famosa escola de antropologia legal britanica comegou a examinar problemas basicos da teoria do direito: a base da posse da terra, os costumes do casamento, os processos de controle social nas comunidades simples, 0 papel dos juizes na sociedade, e até os mecanismos da propria administra¢ao colonial bri- tanica. Alguns dos maiores antropédlogos do mundo voltaram suas aten- gOes para o direito consuetudindrio africano como campo de pesquisa cientifica. Pode-se citar como exemplos: Max Gluckman, na Inglaterra; Paul Bohannan, nos Estados Unidos, e Philip Gulliver, no Canada. Mas estes nao eram todos. Como o Império Britanico desfez-se depois da Se- gunda Guerra Mundial, varios antropdlogos estavam decididos a usar de seus conhecimentos para ajudar no desenvolvimento dos sistemas judi- ciarios das colénias recentemente independentes. Contudo, nesta época o 17 campo do direito consuetudinario africano estava, em grande parte, do- minado pelos africanos, dos quais 0 mais famoso € 0 ilustre Taslim Ola- wale Elias, por muitos anos presidente da Suprema Corte da Nigéria. Os holandeses também fundaram uma escola de antropologia juridi= ca, exatamente pelas mesmas razSes que os briténicos, isto ¢, pata me- lhor governar seu império\colonial. Mas havia duas diferencas expressi- vas. Os holandeses concentraram-se quase que inteiramente nas leis dé sua principal colénia, a Indonésia. Assim, a maior parte de seu trabalho era a respeito do Adatrechtbundels, as leis consuetudinarias (Adar) des- sas numerosas ilhas. Além disso, ja que os estudos de direito africano eram em grande parte realizados por antropOlogos particulares, os ho- landeses fundaram uma instituigdo de pesquisa, dirigida por C. van Vol- lenhoven. Antropdlogos treinados foram designados para estudar o ver- dadeiro uso do Adat pelo povo e muitos relatrios de campo foram escri- tos e mandados para a Holanda. Somente um estudo foi publicado em inglés: Adat law in Indonesia, 1948 (O direito Adat na Indonésia), de B. Ter Haar. As origens da escola americana de antropolagia legal sao mais com- Plexas. Pode-se dizer seguramente que os Estados Unidos tém sido sem- pre um pais imperialista; sua expanso para 0 oeste ja implicava a con- quista de muitas tribos nativas, como também de regides do México. Contudo, os Estados Unidos estavam interessados na conquista de terras endo de pessoas, Os povos nativos da América do Norte, flagelados pe- las doengas européias ¢ assim com populacdes reduzidas, nunca foram uma verdadeira ameaga 4 expansio americana. Além disso, com muito Poucas excegdes, os norte-americanos nado estavam interessados nos indi- genas para o trabalho. A mio-de-obra dos Estados Unidos foi importada da Europa, Africa e até mesmo da Asia. As populagdes locais eram qua: se sempre simplesmente eliminadas ou postas em reservas. Portanto, desde o principio, a escola americana de antropologia le- gal esteve menos interessada na dominagao pratica do que nos problemas te6ricos do direito comparado. Este fato é real mesmo quando os ameri- canos praticaram, de fato, a dominacdo indireta, em sua conquista das ilhas Filipinas, no comego deste século. Isto € importante de se observar, ja que o primeiro grande estudo de antropologia legal, escrito por um americano, foi a respeito de.um_povo filipino: Ifugao law (O direito Ifugao), de Roy Franklin Barton, publica- do em 1919. Vale a pena examinar aqui este notavel trabalho de Barton, pela sua importancia na antropologia legal cientifica, embora nunca ti- vesse tido a mesma influéncia da obra de Malinowski, sete anos depois. Roy Barton foi um professor primario que, aos vinte e trés anos de idade, ofereceu-se como voluntério Para lecionar nas ilhas Filipinas, atendendo a pedido do governo dos Estados Unidos, que queriam insti- tuir um sistema moderno e americano de educacAo nas ilhas recentemen- te conquistadas da Espanha, e estavam contratando americanos com este 18 Tfugao, no interior da ilha de Luzon. Os(Ifugaos eram (e ainda ‘sdo) um povo agressivo e guerreiro. Cagadores dé as que nunca aceitaram ° dominio de nenhum Estado, espanhol ou americano. O professor que ti- nha sido designado aos Ifugaos antes da chegada de Barton foi mandado de volta em duas semanas, quase morto, ferido por uma langa. Barton fi- cou oito anos. Quando chegou a terra dos Ifugaos, ele abriu suas portas a todos e comegou a aprender a lingua e os costumes deles. Gostava pro- fundamente dos Ifugaos e este sentimento era reciproco. Entretanto, fi- nalmente, Barton foi substituido ¢ retornou aos Estados Unidos, onde trabalhou como dentista e em tempo parcial como professor de antropo- Jogia na Universidade da Califérnia. Publicou trés livros sobre os Ifu- gaos e povos vizinhos: Ifugao law (1919); The half-way sun (1930), sobre 0 conflito entre os direitos americano e Ifugao; e The Kalingas, their ins- titutions and custom law (1949). Em 1930, ele se divorciou e mudou-se para a Unido Soviética, onde lecionou no Instituto de Etnologia e publi- cou numerosos artigos em russo. Porém em 1940, quando comegou a guerra no Pacifico, retornou rapidamente as Filipinas para tentar ajudar Os Ifugaos na luta contra o Japao. La foi capturado e passou quatro anos num campo de concentracdo. Voltou aos Estados Unidos fatalmente en- fermo e morreu em 1947, O trabalho de Roy Franklin Barton esta extensamente aqui exposto porque é muito importante na teoria da antropologia legal. Os Ifugaos eram ou, melhor, s40 um povo que nunca aceitou o dominio do poder es- tatal. A metade da popula¢do adulta masculina morreu na guerra contra Os japoneses. Porém além disso 0 trabalho de Barton mostra até que ponto.um antrop6logo pode identificar-se com 0 povo que estuda. Apés ito anos de participagao-e observacao de todos os aspectos da vida Ifu- gao, ele estava disposto, ede certo. modo assim.o fez, a sacrificar sua vi- da pela independéncia deles. Felizmente pode-se dizer que os Ifugaos ain- da existem-e ainda sao livres. Barton foi um antropélogo incomum, mas seu trabalho auxiliou na fundagao de uma escola americana de antropologia legal, ja que ele fora por muitos anos associado a Universidade da California em Berkeley, 0 maior centro de pesquisa nesse campo. Desde 0 principio, os antropélogos legais americanos estiveram me- nos yoltados as questes praticas da administragao dos povos coloniais e mais interessados nos problemas da teoria do direito. Isto € mostrado no primeiro grande estudo do direito realizado entre um povo americano nativo: The Cheyenne way (A via Cheyenne), de Karl N. Llewellyn e E. Adamson Hoebel (1941). Hoebel era antropdlogo formado em direito que j4 havia estudado as leis dos indios Comanches e tinha, como aliado na profissdo juridica, Karl Llewellyn, titular de catedra Betts* de juris- propésito. Barton chegou em 1906 e foi sae para lecionar ao povo * Catedra de distine&o originaria de uma doagao particular (Betts family). Nos EUA exis- 19 prudéncia na Universidade de Coliimbia em Nova Iorque, e que almeja- va realizar uma pesquisa comparativa com um povo sem leis escritas. Juntos, Hoebel e Llewellyn trabalharam trés anos no campo com o povo da nacao Cheyenne, tendo desenvolvido uma metodologia para pesquisa em antropologia legal que tem sido de grande importancia desde entéo — © Método de Estudo dos Casos Legais (Case Study Method). Por-este método, 0 pesquisador examina através dos casos individuais 0 que o po- vo verdadeiramente faz, em periodos de conflito ou disputas, em vez de ouvir-o que 0 povo diz que deve ser feito. Estudam-se comportamentos, ao invés de normas e valores, que era 0 método usado-tan' ‘los ingle- ses como pelos holandeses. De fato, a pesquisa da Cheyenne /nao foi fa- cil, pois se tratava do estudo de uma sociedade que fora destruida ha. quase 50 anos e os antropdlogos confiavam apenas na meméria dos ve- lhos informantes, perguntando a varias pessoas sobre cada caso. Porém o-cuidado com a pesquisa deu a este trabalho uma alta credil ilidade e grande forga literaria. O proprio Llewellyn, como advogado, estava imensamente impres- sionado com a habilidade técnica dos juizes Cheyennes, os ‘‘chefes da Paz”’, a quem cle considerou nitidamente superiores aos juizes anglo- americanos de seu conhecimento. So suas palavras: ‘nds nao esperava- mos, nem ligeiramente, a beleza juridica que o trabalho com os Cheyen- nes estava para revelar, nem que as instituigdes estruturais se envolve- riam nas complexas tensdes humanas em constante mudanga, que era possivel estudar através do tempo nos casos juridicos” (The Cheyenne way, cit., p. 9), De certo modo, o trabalho com os Cheyenne foi uma inversdo da antiga pesquisa colonial, que estudava as leis de um povo para domina- lo. Llewellyn e Hoebel estudaram as lei dos nativos americanos para aprender com eles uma maneira de aperfeigoar a estrutura juridica dos Estados Unidos, para fazer 0 direito mais suscetivel as necessidades do povo. £ Tegra geral que as implantagdes de reformas juridicas nos Esta~ dos. Unidos sejam freqiientemente associadas aos antropdlogos juridicos elegais. Além disso, 6 de se observar que Karl Llewellyn passou grande Parte de sua vida profissional posterior tentando defender os direitos dos Povos nativos nos Estados Unidos. Temos mostrado aqui trés trabalhos em. antropologia legal como Pesquisas pioneiras: 0 de Malinowski, o de Barton, e 0 de Llewellyn e Hoebel. Ha, contudo, muitos outros dignos de mengao, Talvez 0 aspecto mais importante da pesquisa moderna no campo seja 0 conhecimento da verdadeira relagdo entre 0 direito e 0 poder nas sociedades nao-ociden- tais, bem como os mecanismos de dominacao. Um desses mais notaveis tem catedras adquiridas por doacdo particular n S 2 Que mantém 0 nome do d maior prestigio que o professor titular ee eS 20 estudos é muito pouco conhecido: Navajo ways in government (Vias Na- vajos de governo), de Mary Shephardson. E um estudo histérico de co- mo 0 povo Navajo (a maior nag&o tribal existente nos Estados Unidos), embora derrotado na guerra pelo exército americano, desenvolveu vaga- rosamente um acordo entre as leis tribais Navajo e o direito americano. Por muitos anos, o Conselho Tribal Navajo enviou seus jovens mais ca- pazes as universidades americanas para estudarem direito. Quando retar- navam, esses jovens tinham conhecimento tanto do direito americano co- mo do Navajo e, portanto, eram capazes de conciliar os dois sistemas ju- ridicos, um acordo que permitia aos Navajos usar as leis do pais domi- nante para manter a maior parte das terras tribais, enquanto preserva- vam muitos de seus costumes e tradi¢6es civis, bem como sua propria Po- licia e seu governo tribal. Jane F. Collier (Law and social change in Zinacantan, 1973) mostra um outro téma moderno na antropologia legal e juridica. Trabalhando no México entre os Zapotecas, ela examinou as instituigdes que servem de mediadoras entre 0 direito Zapoteca e as leis nacionais do México, por intermédio dos Tribunais do Cacique e do Servico Nacional do Indio do pais. Este tema foi usado também na Africa, por Lloyd Fallers (Law wi- thout precident, 1969) e outros. Um outro ramo da antropologia é 0 da antropologia juridica. A an- tropologia comegou a observar as instituigdes juridicas atuais e também a sociedade moderna. Deve ser notado que um dos primeiros estudos cientificos sobre a forca policial moderna foi feito por um antropélogo, Michael Banton, que estudou a Policia da Escécia em seu trabalho The policeman in the community (O policial na comunidade — 1964). Cada vez mais os antrop6logos estao examinando as instituicdes juridicas mo- dernas, mas também os padroes do direito consuetudinario nos Estados modernos. Uma contribuigao importante a esta area foi feita pelo Insti- tuto de Direito Comparado da Universidade da Califérnia, dirigida pela antrop6loga Laura Nader. Este instituto produziu varios estudos sobre sociedades modernas e conflitos entre culturas legais (v. Nader, No ac- cess to law, alternatives to the American judicial system, 1980). Em contraste com os outros campos, 0 estudo do direi comparado € muito antigo. Pode-se citar a valiosa contribuigéo de Friedrich Karl von Savigny (Zeitschrift der Savigny-Stiftung fiir Reichgeschiehte — su- mula em Wolfgang Freedman, Legal theory, 1967), sobre a hist6ria do direito germanico,-como a primeira Pesquisa sistematica sobre este tema. Na Inglaterra, o trabalho de Sir Henry Maine, Ancient law (Direito anti- go — 1879), é ainda um dos mais cuidadosos e refletidos estudos sobre um t6pico muito importante, a evolucdo do direito. Maine era mais do que um historiador, ele trabalhou muitos anos na India e tinha um vasto conhecimento das leis de outros povos; € Por esta razdo que seu trabalho parece tao moderno ainda hoje, cem anos depois. 21

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