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Incluso no Acervo da UNIFESP Campus Guaruthos 575 MEDITACOES METAFISICAS René Descartes Inroducio e nots HOMERO SANTIAGO. Tadeo [MARIA ERMANTINA GALVAO ‘radu dos texon itrodtios HOMERO SANTIAGO. Martins Fontes Sao Paulo 2005 Descartes. ees 0] Donde é assaz evidente que ele nao pode ser en- ganador, porquanto a luz natural nos ensina que o engano depende necessariamente de algum defeito. [4] Mas, antes de examinar isso mais cuidadosamen- te e passar para a consiceracdo das outras verdades qu disso se pode recolher, parece-me muito oportuno deter- me algum tempo na contemplagao desse Deus todo per- ito, pesar com todo o lazer seus maravilhosos attibutos, considerar, admirar ¢ adorar a incompariivel beleza dessa imensa luz, a0 menos na metic et que a forca de meu iti, que permanece de alguma forma ofuscado por ela, me puder permiti-lo, [42] Pois, como a fé nos ensina que a soberana felici- dude da outra vida consiste apenas nessa contemplago da Majestade di sim experimentemos desde jf que se- melhante meditacao, embora incomparavelmente menos perfeita, faz-nos usuffuir 0 maior contentamento dle que se- jamos capazes de sentir nesta vida ‘verde amunciac no §2€validada e podese dizer que tos a eas earns ditions sto certmente venadeitas. O atfcio do génio maligno ¢ endo des montido: ui ctado pox um ser perf, onipoerte,ensciente e ber. logo, no ‘emganador No ent, para consol tls gars € precio it mas aden, ‘quando ota ca verde ever ser completa pela Nea Quart, com 1 anilise do mecanismo do eo. Se Deus & born, porque eu ero? MEDITACAO QUARTA Do verdadeiro e do falso 1] Acostumei-me de tal maneira nesses dias passaclos a desprender meu espirito dos sentidos e observei tio exa- tamente que hi muito poucas coisas que se conhecem com certeza no tocante as coisas corporais, que hd muito ais que nos si0 conhecidas no tocante ao espirito hu- mano, € ainda muito mais do proprio Deus, que agora des viarei sem nenhuma dificuldade meu pensimento ca con- sideracio das coisas sensiveis ou imagindveis', para dirigi-lo Aquelas que, sendo apartadas de qualquer matéria, sio pu- ramente inteligiveis. LAE, por certo, a idéia que tenho do espirito humano, ‘na medida em que € uma coisa que pensa, e no extensa ‘em comprimento, largura e profundicade, e que em nada participa daquilo que pertence ao corpo, ¢ incomparavel- mente mais distinta do que a idéia de alguma coisa corpo- ral. E quando considero que duvido, ou seja, que sou uma coisa incompleta e dependente, a idéia de um ser com- pleto e independente, ou seja, de Deus, apresenta-se a0 meu espirito com a mesma distingao e clareza; e apenas pelo fato de que tal idéia est4 em mim, ou entao de que 1 Lat: das coisas tains 8 8 ——pesearts sou Ou existo, eu que possuo e382 idéia, eu concluo tao evi- dentemente a existéncia de Deus, e que a minha depende inteiramente dele em todos os momentos de minha vida, que nao penso que o espirito humano possa conhecer n dda com mais evicéncia certeza. F jf me parece que d cubro um caminho que nos conduzir dessa contempla- «lo do verdadeiro Deus (no qual toclos os tesouros da cién- cia e da sabedoria esto encerrados) a0 conhecimento das outras coisas do Universo’ [3] Pois, primeiramente, reconheco que é impossivel que alguma vez ele me engane, porquanto em toda frau de e engano encontra-se algum tipo de imperfeicio. E, ‘embora parega que poder enganar seja um sinal de sutileza, ‘ou de poténcia, todavia, querer enganar testemunha fra- ‘queza ou malicia. E, portanto, isso nao pode encontrar-se em Deus. 14] Depois, experimento em mim mesmo certa potén- cia de julgar, a qual sem dtivida recebi de Deus, bem como todo 0 resto das coisas que possuo; e, como ele no que- reria iludir-me, é certo que nao ma deu tal que eu possa ‘um dia falhar, quando a usar como € preciso. E no res- taria nenhuma divida dessa verdade, se dela no se pu- desse, a0 que parece, tirar a conseqiiencia de que assim, enti, nunca me posso enganar; pois, se tenho de Deus tudo 0 que possuo, e se ele nJo me deu poténcia para 2. Bnfies descoberta uma verdad (a existincia de Deus) que permite 20 ‘6 pensante sir do inerior de mesmo, cumpre doravadeslangar cas ver ‘dades. Ors, investigaro mecanismo do eo ¢ passo dos mais aportates pura “descobrr 0 “camino” desss deduio,valkdando plenamene a regra de Vera cidade que dz que ado o que € clara e disitamente percebido & verdad roe evn ca asc jns, 3. ati: cota faculdate de pulgar oo Modiagées metafisicas falhar’, parece que nunca devo enganar-me. E, na verdade, quando s6 penso em Deus, nao descubro.em mim nenhu- ma causa de erto ou de falsidade’; mas, pouco depois, vol- tando a mim, a experiéncia me faz conhecer que sou, nao obstante, sujeito a uma infinidade de ertos*, dos quais, pro- curando a causa de mais perto, noto que ndo se apresenta somente 20 meu pensamento uma real e positiva idéia de Deus, ou entao de um ser soberanamente perfeito, mas também, por assim dizer, uma certa idéia negativa do na- da, ou seja, daquilo que € infinitamente distante de todo tipo de perfeicéo; e que sou como um meio entre Deus & ‘© nada, ou seja, situado de tal modo entre o soberano ser © ndo-ser que na verdade nada se encontra em mim que ‘me possa conduzir ao erro, na medida em que um sobe- rano ser me produziu; mas que, se me considero como par- ticipando de alguma forma do nada ou do nao-ser, ou seja, na medida em que eu mesmo nao sou o soberano ser, acho-me exposto a uma infinidade de faltas, de forma que no me devo espantar se me engano, [5] Assim conhego que 0 erro, enquanto tal, nao é al- 0 real que depende de Deus, mas que é somente um de- feito; e, portanto, que ndo preciso, para falhar, de alguma “am: no med uma facade de om Sou dotado de ura pttncsa os fuculdade do jlgu porém, nao de ura poténca on feukiade posivn de cera que pudesse ser Gust dos mas embora exes elm fats peccbides, logo exiveres, dos quai cumpre inesigar a causa. Un dos primers pasas sed a Dipaigto da potécla de jlgar em pottnca de querer de entender 9) 5. Latin: quando so perso ent Deus olo-meinetramont para el, mo lepreodo rendu en do ore ot facade (Se Deus € bom e vera, por que 0 eno! A expesicia desses dois opos- 1s, perexpco da absolut paeeao diva e, plo emo, da mperekt0 do ‘ero ecooca epsemologicament o tradonal problems do embatee coexle ‘@acia entre bem e mal num mundo etado por um Deus perfec e bom. 85 “ poténcia que me tenha sido dada por Deus particularmen- te para esse efeito, mas que acontece que eu me engane, pelo fato dle que a poténcia que Deus me deu para dls nir 0 verdadeiro do falso nao € em mim infinita (61 Todavia, isso ainda nao me satisfaz totalmente; pois © erro nao é uma pura negagio, ou seja, ndo € 0 simples defeito ou falta de alguma perfeicao que nado me & dev da’, mas, antes, € uma privagao de algum conhecimento que parece que eu deveria possuir’. E, considerando a na- tureza de Deus, no me parece possivel que ele me t nha dado alguma faculdade que seja imperfeita em seu gi nero, ou seja, 4 qual falte alguma perfeigdo que Ihe seja devida; pois, se é verdade que quanto mais experto 6 o ar- testo, mais perfeitas ¢ completas sio as obras que saem de suas miios, qual ser imaginaremos ter sido produzido por esse soberano criador de todas as coisas, que nao se- ja pesfeito e inteiramente acabado em todas as suas par- tex? E, por certo, nao ha ditvida nenhuma de que Deus nao pOde ctiar-me tal que eu nunca me pudesse enganar, é certo também que ele sempre quer o que & 0 melhor; se me-d entio mais vantajoso falhar do que no falhar? {7 Considerando isso com mais atengao, de inicio me vyem ao pensamento que n3o devo espantai-me se mith inteligencia nao for capaz de compreencler por que Deus faz 0 que faz, ¢ que, assim, ndo tenho nenhuma razio de duvidar de sua existéncia, talvez pelo fato de eu ver, por 7 Ou sea. seréscimo do frames A muro é a fla de algo que realmente nto devera ser posuidor 1 homem do tem sas porque no € um plssaro, nao compreende 0 ifito Porque € Risto; a privagda, contd, sera carci de algo que se doveria ter, por exemplo: tm ce nio we, mao devers, jk. quc os homens so dot dos de 86 dite metas. experiéncia, muitas outras coisas sem poder compreender por que raz nem como Deus as produziu. Pois, ja sa- endo que minha natureza € extremamente fraca ¢ limi- tada ¢, ao contrrio, que a de Deus ¢ imensa, incompreen- sivel € infinita, jé nao tenho dificuldade em reconhecer que hha uma infinidade de coisas em sua poténcia cujas ca sas ullrapassam 0 aleance de meu espirito, E esta tnica razio é suficiente para persuadir-me dle que todo esse gé- nero de causas, que se costuma tirar do fim, nao tem ne- nhuma utilidade nas coisas fisicas, ou natura; pois nto me parece que eu possa sem temeridade investigar ¢ empreen- der descobrir 05 fins impenetriveis de Deus’. [8] Ademais, ocorre-me também ao espirito que niio se deve considerar uma s6 criatura separadamente quando se investiga se as obras de Deus sio perfeitas, mas de mo- do geral todas as criaturas juntas. Pois a mesma coisa que poderia, talvez. com algum tipo de razdio, parecer muito imperfeita se estivesse totalmente sozinha, encontre-se mt to perfeita em sua natureza se olhada como parte de todo este universo. E, embora, desde que tomei o designio de duvidar de todas as coisas, eu s6 tenha conhecido certa- ‘mente minha existéncia ¢ a de Deus, todavia também, descle que reconheci a infinita poténcia de Deus, no po- deria hegar que ele tenha produzido muitas outras coisas ou, pelo menos, que as possa produzir, de sorte que exista € esteja posto no mundo, como fazendo parte da univer- salidade de todos os seres. [9] Em conseqiiéncia disso, olhando-me de mais pesto € considerando quais sio meus erros (os quais sozinhos 9 Lim: os fins de Deus Nao cabe investiga os fas de Des, por con seqdénc, ser} posite a coastugio de a cic ses mokdad pela me temitice, pondowe de lad, jusificadament, as eonsideragdesfnalsas co 6 Desctes testemunham que hi imperfeicio em mim), vejo que de- penclem do concurso de duas causas, a saber, da poténcia de conhecer que existe em mim e da poténcia de eleger, 0 entio de meu livre-arbitrio, ou seja, de meu entendi- ‘mento e conjuntamente de minha vontade, Pois, pelo s6 entendimento, eu ndo asseguro nem nego coisa alguma", mas concebo somente as idéias das coisas, que posso assegurar ou negat. Ora, considerando-o assim precisa- mente, pode-se dizer que nele nunca se encontra erro al- gum, contanto que se tome a palavra erro em sua signi- ficagao propria. E, ainda que talvez haja uma infinidade de coisas no mundo das quais nao tenho a menor idéia em ‘meu entendimento, ndo por isso se pode dizer que ele se- ja privado dessas idéias, como de algo que seja devido & ‘sua natureza", mas somente que nao as tem; porque, com feito, néo ha razio nenhuma que possa provar que Deus devesse terme dado uma maior e mais ampla faculdade de conhecer do que a que me deu; e, por mais habilido- 80 € sibio operirio que eu me represente, nio devo por isso pensar que devesse pOr em cada uma de suas obras, todas as perfeicoes que pode por em algumas. Também lo posso queixarme de que Deus nio me tenha dado um, livee-aibitiv, ou uina vontade assaz ampla e perfeita, uma vez que de fato a experiment tao vaga e tao extensa que ndo esta encerrada em nenhum limite”. Eo que me pa- rece bem observavel nese ponto é que, entre todas as outras coisas que esto em mim, nao ha nenhuma tao per- feita e tao extensa que eu nao reconheca que poderia ser 1 Acréscimo do facts: eu ndo asguro nom nego coisa alum 1. Acréscimo do fancts como de alo que sj devida sua natures, 12 Lat: experimento que nao d restr for nenbu dimie, it Meunagies meapseas. ainda maior e mais perfeita. Pois, por exemplo, se consi- dero a faculdade de conceber que est em mim, vejo que €de muito pequena extensio, ¢ grandemente limitada, € a mesmo tempo represento-me a idéia de outta facul- dade muito mais ampla, e mesmo infinita; e, apenas pelo fato de poder representar-me sua idéia, conhego sem di- ficuldade que ela pertence a natureza de Deus. Da mesma forma, se examino a meméria, ou a imaginacdo, ou alguma outra poténcia, no encontro nenhuma que nao seja em ‘mim muito pequena ¢ lirmitada, € que em Deus nao seja jimensa ¢ infinita. Ha unicamente a vontade", que experi- mento em mim ser tio grande que ndo concebo a idéia de nenhuma outra mais ampla e mais extensa; de sorte que & cla, principalmente, que me faz conhecer que eu trago a imagem € a semelhanga de Deus. Pois, ainda que ela seja incomparavelmente maior em Deus do que em mim, se- ja em razio do conhecimento ¢ da poténcia, que nele se encontrando juntos a tornam mais firme e mais eficaz, seja em razio do objeto, na medida em que ela se dirige e se estende infinitamente a mais coisas, ela todavia nao me pa- rece maior, se a considero formal e precisamente em si mesma. Pois ela consiste somente no fato de podermos fazer uma coisa, ou ndo a fazer (ou seja, afirmar ou negat, perseguir ou fugit), ou, antes, somente no fato de, para afi ‘mar ou negar, fugit as coisas que 0 entendimento nos pro- de, agirmos de tal modo que ndo sentimos que nenhu- ‘ma forga exterior nos constrange a isso. Pois, para que eu seja livre, ndo € necessério que eu seja indiferente para escolher um ou 0 outro dos dois contririos; mas, antes, 13 Latin: a wontad ou 0 irearbarta. 1, Lam: rao 6 ocesrio que eu posta or levado a um ou our dos ois contra, 46 —_ascars quanto mais pendo por um, seja porque eu conhega evi dentemente que nele se encontram o bem ¢ 0 verdadeito, sea porque Deus disponha assim o interior de meu pen- samento, tanto mais livremente fago a escolha e a abraco, E, por certo, a graga divina e 0 conhecimento natural, muito longe de diminuirme a liberdade, antes a aumen- tam e a forificam. De forma que esta indiferenga que sinto, quando nao sou impelido mais para um lado do que para outro pelo peso de alguma razio, € 0 mais baixo grau da liberdade, e mais faz parecer um defeito no conhecimento do que uma perfeicao na vontade'; pois, se sempre conhe- cesse claramente 0 que € verdadeiro € 0 que é bom, eu jamais teria dificuldade de deliberar qual juizo e qual es- colha deveria fazer; e, assim, seria inteiramente livre, sem jamais ser indiferente™: [10] Por tudo isso reconheco que nem a poténcia de querer, que recebi de Deus, é por si mesma a causa de meus erros, pois ela € muito ampla ¢ muito perfeita em sua espécie; nem também a poténcia de entender ou de conceber; pois, nada concebendo senao por meio dessa poténcia que Deus me dew para conceber, sem dlivida tudo 0 que concebo concebo-o corretamente, ¢ nao é pos- sivel que nisso me engane. De onde entao nascem meus er10s? A saber, 86 do fato de que, sendo a vontade muito ‘mais ampla € mais extensa do que o entendimento, no a contenho nos mesmos limites, mas a estendo também as coisas que nao entendo; sendo por si indiferente a elas, 15. atin: ¢o mati fimo gra de bora eno sestemuntea nenbuoma ‘imperfect nol, mas apenas coro defo on nega no conbeciment 16 Aindifereng equivaleriaigsoriacias earamente peed o vera: dei, 0 asentimento& verdade € uma conseqéncia quase neces, 90 3 — Madinagies metas cela se desencaminha com muita facilidade e escolhe o mal pelo bem, ou 0 falso pelo verdadeiro”. O que faz. que me engane e que peque. [11] Por exemplo, examinando estes dias passados se exisia alguma coisa no mundo e conhecendo que pelo sim- ples fato de eu examinar essa questdo seguia-se com muita evidéncia que en mesmo existia, no podia impedir-me de julgar que algo que concebia tao claramente era verda- leita, no que: a isso me achasse forcado por alguma cau- sa exterior, mas somente porque, de uma grande clareza (que existia em meu entendimento, seguiu-se uma grande inclinagao em minha vontade; e fui levado a crer com tan~ to mais liberdade quanto me achei com menos indiferen- ‘ca, Ao contrario, no presente ndo sei somente que existo, na medida em que sou alguma coisa que pensa, mas tam bem se apresenta a meu espirito uma certa idéia da natu- reza corporal © que faz com que ev duvide se essa nature- za que pensa, que est4 em mim, ou antes, pela qual sou o que sou, € diferente dessa natureza comporal, ou entio se ambas sio apenas uma mesma coisa. E suponho aqui que ainda no conheco nenhuma razio que me persiada mais de um do que do outro: daf se segue que sou inteiramen- 77.4 propa conn de ne se pricpand de agus forma do to ¢ do do er do its mei er de un decops ee tbe infin, cr xe do eo, pois esr de um mo as nine peo cles A con oc aque me ene e Pee” Stel eo aetna ao pac co moa O ctor Arnal psn 2 xemlagte dese tech, a qu Dect soso Rey Pet ‘esr te ca MediniecHouma dar Se Meda 8. Um cxenpio patco da concept de bead speeds 60 9- she se pent, eto, Oeaahccciem Jo co ene ds pats do a Rozoto qos ue inpele ania uns ecrinope ner opors> fade pels vom do ented ot a - Descartes — te indiferente a negi-lo, ou a asseguré-lo, ou até mesmo a abster-me de dar algum juizo sobre isso. [121 E essa indiferenca no se estende somente as coi- sas de que o entendimento nao tem nenhum conhecimen- 0, mas também, de modo geral, a todas aquelas que ele nao descobre com uma perfeita clareza, no momento em que a vontade delibera sobre elas; pois, por mais provi- veis que sejam as conjeturas que me tornam inclinado a jul- gar alguma coisa, 0 56 conhecimento que tenho de que sao apenas conjeturas, e nao rizoes certas e indubitiveis, bas- ta para dar-me a ocasido de julgar 0 contrario, O que ex- perimentei suficientemente nesses dias passados, quando coloquei como falso tudo o que tivers anteriormente pot muito verdadeiro, apenas porque notei que disso se podia cluvidar de algum modo, 13] Ora, se me abstenho de dar meu juizo sobre uma coisa, quando nao a concebo com bastante clare e dis evidlente que 0 uso muito bem e que no estou enganado; mas, se me determino a negicla, ou assegurii- Ja, entao ja nao me sirvo como devo de meu livre-arbittio; €, se asseguro o que nao é verdadeiro, é evidente que me ‘engano; até mesmo, ainda que eu julgue segundo a ver- dade. isso 96 ovorre por acaso, e nan deivo de falhar © de Uusar mal meu livre-arbitrio”; pois a luz natural ensina-nos que 0 conhecimento do entendimento sempre deve pre- ceder a determinacio da vontade. E é nesse mau uso do livre-arbitrio que se encontra a privacio que constitui a forma do erro, A privacao, digo eu, encontra-se na opera~ fo, na medida em que ela procede de mim; mas nao se eacontra na poténcia que recebi de Deus, nem mesmo na 19, Aeéscmo do francs de usar mel mew lane arbitra 92 Mestaagies metafsics. operacio, na medica em que depende dele. Pois nao te- iho, por certo, nenhum motivo para queixarme de que Deus nao me deu uma inteligéncia mais capaz, ou uma luz ‘natural maior do que aquela que devo a ele, porquanto, de fato, € proprio do entendimento finito nao compreender ‘uma infinidade de coisas, e proprio de um entendimento criado ser finito; mas tenho todos os motivos para ren- der-Jhe gracas pelo fato de, embora jamais me tendo de do nada, ele me deu todo o pouco de perfeigSes que esti ‘em mim: muito longe de conceber sentimentos to injus- tos", como imaginar que ele me tenha tolhido ou retido injustamente outras perfeigoes que nao me deu. Também ndo tenho motivo para queixar-me por ele me ter dado uma vontade mais extensa do que o entendimento, uma ver. que, consistindo a vontade apenas numa s6 coisa, € sendo seu sujeito como que indivisivel, parece que sua natureza é tal que nao se Ihe poderia tolher nada sem a destruir; €, por certo, quanto maior ela é, mais tenho de agradecer 4 bondade daquele que ma deu. E, por fim, tam- bém nao devo queixar-me por Deus ter concorrido co- ‘igo para formar os atos dessa vontade, ou seja, 05 juizos em que me engano, porque estes atos so inteiramente verdadeiros, e absolutamente bons, na medica em que de- pendem de Deus; € ha de alguma forma mais perfeicio em minha natureza por eu poder forma-los do que se 20, Acesemo do ances: mut longed concaber sentation, 21, Formando juizos, exeremos nossa vontsdee, “de alguma forms" poslerlamos dizer que ezando ou pecando realamames nas Wire vente, 3 Infimtude que est em 26s e nas assemelha a0 cxadoe NAO fose asi 56 indo se do intelecto « escola por uma necessdade bral, o homem seria Spenss wma méqsinainelectal, a diiamos, empresinco wma formula de spinoes, um automate exp 93 pesca no o pudesse, Quanto a privago, que consiste sozinha na razio formal do erro e do pecado, ela nao precisa de nenhum concurso de Deus, uma vez. que nao é uma coi- sa ou um ser e que, se a relacionamos a Deus como & sua causa, ela mio deve ser nomeada privaglo, mas somente negacio, conforme a significacio que se di a essas pala- vvras na Escola® [14] Pois de fato nao & uma imperfeico em Deus ele me ter dado a liberdade de dar meu juizo, ou de néo o dar sobre certas coisas cujo conhecimento claro e distinto ele nao pos em meu entendimento; mas sem divida € uma imperfeigao em mim que eu nao 0 use bem e que dé te~ merariamente © meu juizo sobre coisas que concebo ape- nas com obscuridade € confusao, [15] Vejo, nao obstante, que teria sido facil para Deus fazer com que eu nunca me enganasse, conquanto per- manecesse livre ¢ com um conhecimento limitado, a sa- ber dando a meu entendimento uma clara e distinta inte- ligencia de todas as coisas sobre as quais eu devia alguma vex. deliberar, ou entao somente se ele tivesse tao profun- damente gravado em minha mem6ria a resolucao de nun- ca julgar coisa algguma sem a conceber clara ¢ distintamente que nunca eu a pudesse esquecer, E noto que, na medi- cla em que me considero totalmente sozinho, como se hou- vesse apenas eu no mundo, ev teria sido muito mais per- feito do que sou se Deus me tivesse criado tal que eu nun a falhasse, Mas nem por isso posso negar que exista, de alguma forma, uma perfeicio maior em todo 0 Universo, pelo fato de algumas de suas partes ndo serem isentas de Acxéscima do francés: conforme a signifcago. “Bolas nome nésco para design a Mesos excoliaica, defor Fundamniago arsotecs, imperate & epoca nos colgiose univeridades. eases metafiicas. defeitos, do que se todas elas fossem semelhantes. E nto tenho direito algum de queixar-me se Deus, tendo-me pos- to1no mundo, ndo tenha querido por-me na categoria das coisas mais nobres € mais perfeitas; até tenho motivos pa: ra contentar-me de que, se ele ndo me deu a virtude de nao falhar, pelo primeiro meio que declarei acima, que depende de um claro ¢ evidente conhecimento de todas as coisas sobre as quais posso deliberar, ele ao menos dei- xou em minha poténcia 0 outro meio, que € 0 de manter firmemente 2 resoluglo® de jamais dar meu juizo sobre as coisas cuja verdade nao me é claramente conhecida™. Pois, conquanto note em minha natureza essa fraqueza de munca poder prender continuamente meu espitito a um mesmo pensamento, posso, todavia, por uma meditagdo atenta © amitide reiterada, imprimi-lo tio fortemente na meméria* que nunca deixe de me lembrar disso todas as vezes que necessitar, ¢ adquirir dessa forma o hibito de nao falhar. E, visto que nisso que consiste a maior e principal perfeicio do homem, estimo nao ter ganhado pouco com esta Me- diragdo: ter descoberto a causa das falsidades € dos erros. [161 E, por certo, nao pode haver outra sendo aquela que expliquei; pois todas as vezes que retenho de tal mo- do minha vontade nos limite ela nao faz nenhum jufzo a nao ser sobre coisas que Ihe sao clara e distintamente representadas pelo entendimen- to, nao pode ocorrer que eu me engane; porque toda con- de mew ednhecimenta que: 15, Acrésimo do francs: mamterfrmennte a rele. 24, Ou ej, pose ini pela dvs, lnzementenegando tudo e neon truindo a eneia desde seus inamentos com a devia precaucio. A va da Pomeita fed enon, ao cao ds Qua, wma sits profunda, 25. Acrétimo do frances primo to frtemante na niemiria 26 Latin: él. % ea Z cepeao clara e distinta é sem davida alguma coisa real ¢ positive e, portanto, nao pode tirar sua origem do nada, mas deve necessariamente ter Deus como seu autor; Deus, digo, que sendo soberanamente perfeito nao pode ser cau- sade nenhum erro; ¢, por conseguinte, cumpre concluir que uma tal concepeio ou um tal juizo € verdadeiro”, [17] Alids, nao somente aprendi hoje o que devo evi- tar para nao falhar, mas também o que devo fazer para al- cangar 0 conhecimento da verdade. Pois, certamente, eu alGanyared, se detiver suficientemente minha atenciio so- bre todas as coisas que conceber perfeitamente, e se as separar das outras que 86 compreendo com confusio obscuridade™. Ao que, doravante, cuidadosamente pres- tarei atengio. 27 até completamente valdaca 4 repr de werdade comsequid pela ve= Aerio acerea do copitoe apesentada na Nea Tercera § 2, pois conte smarse que exite um Deus boat e verze que ee to &responsivel pelos meus 28. Lam: que apreend confuse e obscura 6 MEDITAGAO QUINTA Da esséncia das coisas materiais e, mais uma vez, de Deus, que ele existe 1] Restam-me muitas outras coisas para examinar, no tocante aos atributos de Deus ¢ no tocante @ minha pro- ria natureza, ou seja, a de meu espirito: mas talvez retome ‘uma outra vez.a sua investigacio. Agora (depois de ter no- tado o que se deve fazer ov evitar para alcancar 0 conhe- cimento da verdade), © que tenho de fazer principalmente é tentar sait e desvencilhar-me de todas as diividas em que ‘cai nesses dias passados e ver se nada de certo se pode co- nhecer no tocante as coisas matetiais. (2) Mas, antes de examinar se ha tais coisas que existem fora de mim, devo considerar suas idéias, na medlicla em que esto em meu pensamento, € ver quais as que sao dis- Gintas ¢ quais as que so confusas, G) Em primeiro lugar, imagino distintamente esta quan- tidade que os fil6sofos chamam vulgarmente quantidade continua, ou entdo a extensdo em comprimento, largura € profundidade que est nessa quantidade, ou methor, na coi saa que a atibuem, Ademtais, nela posso enumerar varias partes diversas e atribuir, a cada uma dessas partes, todas as espécies de grandezas, de figuras, de siniagdes ¢ de mo- ‘vimentos; e, enfim, posso assinalar a cada um desses movi- ‘mentos todas as espécies de duracao. 50

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