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NADY J Jp ODYaqI >} | aly iy D hx © Kia Grab e Maria Corr liea Campos Resende Copa: "Samuel Ribeiro Jr. Revisao: Vitéria K. Vassoler Walter G. da Silveira J. tua da consolacio, 2697 1416 - io paulo - sp fone 01) 260-1222 lbresliense} telex 11 33271 DBLM BR. editora brasiiense s.2. Introducao O indio na sociedade colonial peruana E A rebelido: das reivindicagdes pacificas & lata armada i , A.extensiio ea repercussao do movimento . Tupac Amaru: precursor da independéncia? Variagdes em torno de um mito Indicacdes para leitura Dedicamos este livro a prof Maria Ligia Pre do, cujo estimulo e orientagao foram imprescindive ‘ara sua realizacao. ee ee ee INTRODUGAO No dia 18 de maio de 1781, 0 cacique José Ga- briel Condorcanqui Tupac Amaru foiexemplarmente executado no centro da grande praca de Cuzco, no Peru, ao lado de sua mulher Micaela Bastidas ¢ de seu filho mais velho. Ao Iider rebelde coube a morte mais dramética: apés ter sua lingua cortada, foi amarrado em quatro cavalos, esquartejado, e sua ca- bega ec membros ficaram expostos em diferentes luga- res da provincia de Cuzco. O que restou de seu corpo foi queimado, juntamente com o de sua mulher. Morte semelhante tiveram outros lideres nas di- versas regides da América Espanhola por onde a re- belido se alastrou, entre eles Tupac Catari, na Bolivia (Alto Peru), e Diego Cristébal, primo-irmao de Tupac Amaru, Por que as autoridades espanholas tiveram ne- cessidade de langar mao de um castigo tao exemplar? Estaria o poder colonial a tal ponto ameacado que Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende A Rebelido de Tupac Amaru no pudesse conter a rebeldia das massas indigenas, senio através de medidas tao drasticas? Até que ponto o levante armado abalou a estrutura politico- econémica dos Vice-Reinos do Peru e do Rio da Prata? Varios autores tém se debrugado sobre esas questies. A historiografia tradicional conferiu a0 movimento tupamarista um carter precursor em re- lago as independ: na América Hispinica. No entanto, o proposito emancipacionista da rebeliio é bastante discutivel, jé que, nos proprios documentos da época, esse objetivo nao est expresso de maneira evidente. (O movimento rebelde, liderado por Tupac Ama ru, mestico descendente direto da nobreza incaica, teve, como prin agio, o fim do trabalho forgado dos indigenas nas minas e “obrajes"” (manu- faturas téxteis). Em nome dos indios de sua regiaio, 0 cacique atuou, inicialmente, junto as instituigdes es- panholas, visando ao cumprimento das leis ditadas pela Coroa, que limitavam os abusos das autoridades coloniais. Depois de frustradas tentativas em Tinta (sua provincia natal), em Cuzco e na Real Audiéncia de Lima, 0 lider abandonou sua crenga nos mecanis- ‘moslegais de atuagaoe partiu a luta armada. ‘Ao incorporar os anscios de libertacdo das mas- sas indigenas, a rebeliao ganhou milhares de adeptos em toda a América Meridional, extrapolando seu ni cleo irradiador — a serra sul peruana — e uma vasta extensio da regido andina, Mesmo derrotada, pelas suas proporgdes e re percussdes a insurreigao desafiou o regime de explo- ragio e dominagdo sobre o qual se sustentava a estru- tura econémica da colénia. Ao levantar os proble- mas relativos & situagao de opressdo e miséria das populagdes indigenas que, ainda hoje — quase dois séculos apés as independéncias —, nao foram resolvi- dos, a rebeliao, liderada por Tupac Amaru, apesar da repressio violenta a que foi submetida, perma- nece viva, como simbolo de resisténcia, na meméria rebelde dos povos latino-americanos. A Rebelido de Tupac Amaru u O INDIO NA SOCIEDADE COLONIAL PERUANA a) A exploracao do trabalho indigena Ainsurreigio de Tupac Amaru nao foi um acon- tecimento isolado no contexto politico da época. Ini- ‘meras outras rebelides locais varreram o Vice-Reino do Peru, principalmente a partir da segunda metade do século XVII ‘A grande maioria desses movimentos teve como alvo principal a figura dos corregedores (autoridades, maximas da administracio nas provincias), respor saveis imediatos pela exploracdo da populacio indi genas. Varios desses corregedores, bem como seus colaboradores mais proximos, foram mortos ou aban- donaram suas provincias, diante das proporgées inu- sitadas que esses movimentos aleancaram. Nao podemos entender as rebelides locais do sé- culo XVIII, que culminaram na insurreicao geral, derada por Tupac Amaru, sem direcionar a anélise Para a questo da espoliagao do produto do trabalho indigena. Essa espoliacdo deu-se de varias formas, sendo as mais usuais 0 trabalho forgado (‘‘mita”) nas minas e “obrajes" c a instituigio dos “repartos” mer- cantis, que consistia na compra obrigat6ria de mer- cadorias, impostas pelos corregedores aos indigenas. A obrigagao do servigo da “‘mita" teve sua or ‘gem no antigo Império Incaico — onde os indigenas deviam, periodicamente, trabalhar na construgao de obras publicas e nas minas — e foi apropriada pelos espanhdis, desde a conquista, e instituida em grande escala pelo vice-rei Toledo, a partir de 1574, para ex- tracdo de ouro € prata, principalmente em Potosi ¢ Huaneayelica, e também para atender ao trabalho nos “obrajes”. Amita” mineira De acordo com a I ser cumprida por um perfodo de, aproximadamente, seis meses, mas, na realidade, os ‘‘mitayos” rara- mente retornavam as suas comunidades: grande ni- mero deles ficava retido por dividas, durante pratica- ‘mente toda a vida, ou morria nos socavdes das minas. As condigées de trabalho eram as mais precé- rias: trabalhava-se dia e noite e s6 era permitida a saida das galerias uma vez por semana, 0 que cola- borou para que os problemas de saiide dos indios, re- sultantes da insalubridade, se agravassem cada vez. 2 Katia Gerab/Maria Angélica Campos Resende Ge A Rebelido de Tupac Amaru B Muitos cronistas deixaram testemunho do que signifieava 0 trabalho mineiro no periodo colonial. Frei Buenaventura de Salinas y Cordova, em prinef- pios do século XVIII, comentou o seguinte: “No tempo das ‘mitas’, é lastimavel ver os in- dios, de cinglienta em cingilenta ¢ de cem em ‘cem, presos como malfeitores, com cordas e ar- golas de ferro; ¢ as mulheres, os filhos e paren- tes se despedindo dos templos, deixando fecha- das suas casas ¢ os seguindo, dando alaridos aos céus, desgrenhando os cabelos, cantando em sua lingua tristes cangOes e lamentos Itigubres, des- pedindo-se deles, sem esperanca de voltar a vé- los, porqueali ficam e morrem, infelizmente, nos socavoes e labirintos de Huancavelica. Vendem suas mulas, empenham suas roupas e, 0 pior de tudo, alugam suas filhas e mulheres aos propri tirios das minas, aos soldados e mestigos, a 50 ou 60 pesos, na tentativa de se verem livres do trabalho nas minas...”" (Dia7 Suare7, P., Histo: ria Peruana, Lima, Ed. Quipu, 1983.) Pelas leis, apenas 1/7 da populagao masculina indigena, entre dezoito e cinglenta anos, deveria ‘cumprir a “‘mita”, com excegao dos caciques © de- mais autoridades comunais. No entanto, foi fre- aiente a utilizaco do trabalho forgado de mulheres ¢ eriangas, 0 que contribuiu para que a populagao indigena fosse mais rapidamente dizimada, Em raras circunstincias, mediante © pagamento de uma alta Diversos castigos impostos aos indios. aaem dinheiro, que podia aleangar até 0 dobro do fam isentar-se da obrigatoriedade da “mita”. ‘Os "mitayos” recebiam um misero salario, com qual deveriam pagar 0s tributes, comprar suas fer- Saentas de trabalho e prover seu sustento. Desse Trodo, ao invés de contribuir para que o ‘‘mitayo” Taltasee & sua comunidade, o pagamento de salirios Weneorria, através do endividamento continuo, para feanté-lo preso a obrigacao do trabalho nas minas, No século XVIII, 0 descenso demogrifico acele- rado provocou uma rapida diminuigo do ntimero de Smitayos": se, em 1575, em Potosi, esse nimero cor- respondia a 13500 indigenas, em 1772 reduziu-se a 3637. Disso decorreu um endurecimento das condi ‘Bes de trabalho nas minas, ampliando-se o recruta- mento de mio-de-dbra para as regides mais afasta- das dos centros mineiros, dificultando, ainda mais, 0 acesso das populagdes camponesas das comunidades a0s locais de trabalho obrigatério. Sem duvida, po demos constatar uma nitida relaglo entre esse endu- recimento eo aumento das rebelides locais, a partir da segunda metade do século XVIII Os “obrajes” ‘A “mita” nos “obrajes” consistia no trabalho forgado dos indigenas para a fabricagio de tecidos, a fim de atender 4 demanda interna do mercado co- lonial. A pritica da tecelagem era comum entre os A Rebelido de Tupac Amaru 15 povos pré-hispanicos e, apés a conquista, 0s coloni- zadores espanhdis incorporaram a producao de teci- dos & economia colonial, em seu préprio proveito. A grande maioria dos “obrajes” pertencia a par- ticulares, especialmente aos “criollos” (descenden- tes de espanhois nascidos na América), mas também aos proprios espanhdis, Os demais estavam nas maos do clero e da Coroa e alguns poucos pertenciam aos caciques, enquanto um ndmero, muito reduzido, ainda permanecia sob controle das comunidades in- digenas, Nos “obrajes", as condigles de trabalho nao eram menos degradantes do que nas minas: os “mi tayos"” permaneciam presos aos locais de trabalho, muitas vezes acorrentados, para impedir as fugas. Pelo regulamento, deveriam entregar, ao fim de cada semana, certa quantidade de telas; caso contrario, seriam duramente castigados. Segundo as Ordenan- as do vice-rei Toledo, eram obrigados a trabalhar 26 dias ao més, durante um ano. No entanto, nem esse descanso minimo era respeitado. Pelo trabalho obrigatorio nos “obrajes", os in- dios recebiam salarios variados segundo o lugar, tipo de trabalho, sexo e idade: os maiores salarios cabiam. aos homens teceldes, com mais de dezoito anos e no ultrapassavam 24 pesos anuais, 0 que era irris6rio diante do prego das mercadorias vendidas para os indios nos “repartos” mercantis. As mulheres e as criangas, por sua vez, nao recebiam mais do que 13, pesos anuais. Desses insignificantes salérios, os “'mi- tayos” eram ainda obrigados a comprar, dos donos 16 Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende A Rebelido de Tupac Amaru dos “obrajes", mercadorias indteis, como espelhos, meias de seda ou éculos, que vinham da metrépole. ‘Ao cumprirem o tempo da ““mita”, os indios rece- iam uma quantidade infima de dinkeiro ou, na maior parte das vezes, no conseguiam pagar suas dividas e eram obrigados a continuar trabalhando, ‘Além dos indios “‘mitayos”, havia nas manula~ turas trabalhadores contratados, que recebiam salé ros pouco maiores, sem, no entanto, gozar de ne- rnhum privilégio quanto as condigdes de trabalho, Ne gros escravos também eram utilizados nos “obrajes especialmente como capatazes de indios ou trabalha- dores especializados. Sobre as condigdes de vida nos “obrajes”, so ilustrativas as observagoes de Frei Buenaventura: “Os indios so mantidos presos debaixo de cha ves e muitas vezes trabalham em companhia de negros, que é 0 pior que thes pode acontecer, pois, quando trabalham juntos, o peso do traba: Tho eai sobre os miserdveis indios e os donos gos- tam disso, porque preferem, antes, que morram. dez.indios a um negro, que thes custou seu di nheiro”. (Vega, p. 46.) De acordo, ainda, com as Ordenangas de To ledo, onde havia “obrajes”, os indios estavam isentos da “mita” mineira. Sem sombra de divida, o traba- Iho nas manufaturas téxteis era extremamente pe- noso, sendo que alguns autores chegaram a afirmar que as condigées ali eram ainda mais desumanas que nas minas. Prova disso é que, inclusive, prisioneiros ‘mestigos eram condenados a cumprir suas penas nes- tes locais de trabalho e comumente também se con- denavam, pelos menores pretextos, os indios & “pena de obrajes” Os “repartos" mercantis No século XVII, comegou a desenvolver-se, no Vice-Reinado do Peru, o sistema dos “repartos” mer- cantis, que consistia na venda forgada de mercado- rias aos indios, como uma forma de aumentar 0 mer cado para os produtos metropolitanos, principal- mente, e também para alguns produtores da propria coldnia. Esse comércio era exercido pelos corregedo- res e constitufa sua principal fonte de renda, visto que esses funcionarios vinham para a col6nia, atrai- dos pela possibilidade de enriquecimento facil, e se mostravam dispostos a recuperar, o mais rapido pos- sivel, a elevada soma que haviam investido na com- pra do cargo. Em meados do século XVIII, esse sistema pas- sou a ter grande importincia na economia vice-rei- nal, atingindo seu apogeu. A metrépole tratou, en- tio, de legalizar esse comércio, regulamentando os Produtos, quantidades e pregos permitidos em cada Provincia. Os corregedores recebiam essa relagio ao assumir 0 cargo, ¢ se comprometiam a repartir so- mente as mercadorias permitidas, aos pregos estabe- lecidos. 18 Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende ‘A grande maioria destes produtos vinha da me- trépole, que esperava com isso aumentar suas ren- das, através de uma politica econdmica voltada para ‘o crescimento do mercado colonial e para o fortaleci mento da produgio manufatureira da Espanha. Entre os principais produtos incluidos no “re- parto” constavam as mulas, 0s tecidos produzidos na prépria colonia e a coca, bem como os artigos euro- peus, entre os quais tecidos de linho, seda e 1a, tin- tas, velas, meias, navalhas de barbear e outras 4 quilharias completamente imiteis para a populacao indigena. Muitos destes artigos eram perfeitamente dispensiveis aos indios, como é 0 caso das mulas, visto que j4 possuiam as Ihamas, tradicionais animais de carga e de facil reprodugio, levando-se ainda em conta que o preco das mulas nos “repartos” era o triplo do preco de mercado. © mesmo acontecia com 0s tecidos europeus, pois os de fabricagao local eram de qualidade semelhante e de precos consideravel- mente menores. A tabela seguinte é um bom exemplo da grande diferenga entre os pregos dos produtos no mercado, na relagio oficial e 0 preco cobrado pelos corregedores nos “‘repartos”. ‘Aos indios nao cabia outra alternativa sendo pa- gar pelos produtos repartidos, sob o risco de se verem. duramente castigados, presos ou expropriados de seu gado, de suas colheitas e sementes e, até mesmo, de suas ferramentas de trabalho. Diante desta situacao, apenas duas possibilidades se apresentavam para 0S indigenas: o aumento da produgao para a yenda no mercado (0 que era muito dificil, diante da baixa A Rebelido de Tupac Amaru PREGOS EM AREQUIPA: 1778 Tipo de produto Prcono mercado Precona labele Precono PanodeCastela |S Meiasdeseda | 5 pesos | 7 pesos Espelho 240 pesos BS Papel/resma So pesos | 11 pesos CCoca/cesto 4 pesos | 8.40pesos Mula 11 pesos | 35° pesos pesos | 740pesos | 16 pesos 12 pesos 1S pesos 2 pesos pesos 35 pesos produtividade das terras e do reduzido mercado para seus produtos) ou, 0 que era mais freqiente, a venda de sua forga de trabalho nos “obrajes”, nas minas e nas fazendas. Isso provocou um grande aumento da ‘mao-de-obra assalariada, principalmente a partir do século XVIII. As mercadorias vendidas aos indios provinham, substancialmente, da capital do vice-reino, Lima, onde se estabeleciam os grandes comerciantes que compravam os produtos europeuse os revendiam aos corregedores, ja com altos lucros. Para fazer frente a estas despesas, bem como ao transporte e distribui gbes dessas mereadorias, os corregedores recorriam, 0s financistas limenhos, pagando, por sua vez, juros extorsivos. Esse processo culminava, naturalmente, ‘num abusivo aumento dos precos dos produtos, 0 que recaia, em iltima instincia, sobre os compradores, ou seja, 0s indios. : 19 20 ‘Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende | Rebelido de Tupac Amaru Neste momento, cabe-nos discutir a interpre- taco de varios autores que véem na figura do corre- gedor 0 Ginico responsivel pela exploragio dos indi- genas, que se dé através dos “‘repartos”. Segundo Jargen Golte, os corregedores ficavam com apenas 12% dos lucros, cabendo o restante aos comerciantes. aos finaneistas de Lima, bem como Coroa espa- nhola, através da cobranga do Real Direito de Alea- bala (imposto sobre o comércio). Portanto, como afirma Golte, nao podemos en- tender a opressio dos “repartos”” apenas como resul- tado do abuso das autoridades provinciais, mas sim como conseqiéncia de “um mecanismo econdmico, fem cujo funcionamento estava envolvida grande par- te dos grupos dominantes da sociedade colonial. Desta maneira, pode-se entender que os elevados precos do ‘‘reparto”, excessivos se comparados com (0s de mercado, foram parte substancial do sistema, € no somente produto da cobiga dos corregedores”. objetivo diltimo do sistema de “repartos” mer- cantis era, por conseguinte, a busca de uma maneira de vencer duas fortes limitagdes para a expansfo eco- némica: a falta de mo-de-obra e 0 reduzido mercado interno, resultantes da grande massa de produtores diretos e auto-suficientes (os indios das comunida- des), que nao se deixava integrar facilmente a econo- mia'de mercado, Neste sentido, o “repartimiento” converteu-se, em meados do século XVIII, numa ins~ tituigdo destinada a se apropriar do excedente de producdo ¢ da forea de trabalho indigenas, ja que, a0 comprar as mercadorias repartidas, os camponeses precisavam conseguir dinheiro para pagi-las, pois, a partir da institucionalizagao do sistema, nao era mais aceito o pagamento “in natura’ Otributo reat A populagao indigena era o Gnico setor sobre 0 qual recafa'o pagameuto do tibuto, imposto pessoal ago a0 rei de Espanha, Estavam dispensadas as mu- Ihetes, os homens menores de deo emaloes de cingtenta anos, bem como os eaciqu uto- cinaenta aos, bem como os ctiques demas auto O tributo foi regulamentado por volta de 1575, pelo vice-rei Toledo, e permaneceu sem maiores alte- ragdes até 0 séeulo XVIII, quando foi introduzida uma mudanga significativa, ou seja, o pagamento, que era feito antes em produtos, passou a ser, obriga- toriamente, em dinheiro, O montante do tributo a ser paso, or comunidad, era etaelecido baseado no ndmero de liuiwens tribute cor produtvidade davepifo, No século XVI, a alta produtividade das minas na serra sul permitiu que o tributo ali fosse estabe- lecido num indice mais alto do que nas outras local dades, essa tributagdo elevada nao sofreu nenhuma alteragio, apesar da constante queda da producdo nineira nesta regido, cujo potencial se deslocara, no século XVIII, para a serra central, © descontenta- mento, provocado pela cobranga destes altos tribu- tos, em contraposiglo a uma produtividade em cont Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende 2 nua decadéncia, foi um dos ingredientes que concor- Teram para as rebelides indigenas, na segunda me- XVIIL age outro fatora ser levado em conta foi a dimi- nuigio erescente do nimero de tributarios, decor- Tente do descenso demogrifico, causado pelo traba- Iho desumano nas minas e nos “obrajes” e pela con- seatiente desintegragio das comunidades indigenas Isso provocou uma queda na receita da Coroa e uma tentativa de se incorporar a populacao negra e mes- tica entre os tributdrios. O temor desses grupos, de se yerem obrigades a pagar 0 {ributo, foi um dos moti- vos que os levaram a participar da sublevacdo geral. Devidoa essa forte resisténcia, a Coroa foi obrigada a recuar e cancelar esse projeto. b) Os caciques: intermediérios entre indios e espanhois De antigos chefes locais das comunidades indi genas, os caciques ou “kuracas” passaram a ser, partir da conquista, o principal vinculo entre as po- pulagdes indigenas e os espanhdis, agregando a sua fungao original outras diretamente ligadas aos inte- resses da metropole, na colénia. O cargo de cacique devia ser exercido exclusivamente por indios ou mes- tigas, desde que comprovada sua descendéncia da nobreza incaica, como era 0 caso do cacique mestico José Gabriel Tupac Amaru. A ‘Atuando praticamente como funcionérios da A Rebelido de Tupac Amaru administragio colonial e recebendo por isso um de- terminado salétio, cabia-Ihes a cobranca do tributo fr crutamento para a “mita”” mi- neira e " ea cobranga das mercadorias repartidas, fungdes estas das quais prestavam contas diretamente aos corregedores. Pelo niio-cumprimento dessas obrigagdes, seja por sua propria negligéncia ou pela impossibilidade de os indios arcarem com esses pagamentos, os caciques sofriam fortes represi- lias, tais como a perda do cargo, 0 confisco de seus bens ou, até mesmo, castigos corporais, em casos mais extremados. No entanto, na hierarquia social, os caciques desfrutavam de uma posigao privilegiada, sendo dis- pensados do cumprimento da “‘mita” ¢ do paga- mento do tributo, bem como seus descendentes dire- tos, Além disso, tinham direito a frequientar os Colé- tgios de Caciques, onde aperfeigoavam seus conheci- mentos sobre a lingua, a religio e os valores da cul- tura dominante. Muitos deles possuiam te.zas, gado, ¢ alguns chegaram mesmo a ser proprietarios de “obrajes" e arrendatarios de minas. O comércio foi também uma atividade comumente exercida pelos caciques, através do qual obtinham lueros signifi- cativos. O papel do cacique encerrava, em si mesmo, vé- rias contradigdes: se, no inicio do séeulo XVI, 0s “ku- racas” eram representantes de suas comunidades, atuando sobre elas de uma maneira mais auténoma ¢ integrada, com o avanco da colonizagio essa atuagio se modificou e o cacique passou a se alinhar com os 23 m4 Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende x yra, ainda he cabia preservar a funcdo de represen- tante dessa oman ° eae pet ay scindi ara a con agaio das de- Se ee cane gti aa sIdo da comunidade indigena, afastando-se dela it ez mais pelo comprometimento com as autori- Cres spunholas, tornou-se progressivamente mi dite eat as exigéncias que o préprio sistema c the impunha. an ‘outro lado, existiram caciques que negaram- tre estes, muitos assumiram abertamente as reivin a cagdes indigenas, passando a constituir a ponta ce lanca da luta rebelde. Esse fato demonstra, ain la gio, a partir da consolidacéo do sistema colonial. ‘exatamente neste contexto que se explica 0 fato de que ‘os caciques tenham se dividido, de maneira tho ra- grupo de apoio as forgas realistas, contra os revol- A REBELIAO: DAS REIVINDICACOES PACIFICAS. A LUTA ARMADA O impasse criado pela situagdo contraditéria em que © sistema colonial colocava os caciques ficou bastante evidente na trajetéria percorrida pelo lider rebelde Tupac Amaru. Diante das durissimas condi- ges de trabalho a que eram submetidos os indios de sua provincia, e num momento em que varias mani- festagdes de descontentamento contra o regime se concretizavam, Tupac Amaru, cacique de Tunga- suca, Surimana e Pampamarca (povoados locé dos na provincia de Tinta, na serra sul peruana, pr6- ximo a Cuzco), iniciou um dificil percurso em defesa dos seus representados. : Sua primeira reivindicagao — o fim do cumpri- mento da “mita” pelos indios de Tinta, nas distantes minas de Potosi — foi apresentada nas instncias le- fais a que tinha acesso, terminando, apés sucessivos 26 Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende A Rebelido de Tupac Amaru Tracassos, na Real Audiéncia de Lima, onde nova- mente nao obteve nenhum éxito. ‘Tupac Amaru expos como argumento, perante a Justiga, a desproporgdo entre os habitantes da pro ineia de Tinta c 0 nGimero de “mitayos” requisitados ara 0 trabalho nas minas. Baseando-se nas, Orde- Pangas Reais ¢ demonstrando perfeito conhecimento Tae eis que regiam o trabalho indigena na colénia, otacique solictou que se cumprisse a legislaglo com o Gevido rigor. Numa carta de dezembro de 1777 as Gutoridades coloniais, enumerou, para embasar suas feivindieagbes, uma série de medidas legais, destina- das a assegurar a preservacio da populacio indi- fgena, Entre outras coisas, solicitou a proibicio do ecrutamento de “mitayos” em regides distantes dos fentros mineiros, bem como a garantia de paga- mento da ida e volta dos indios as minas (“leguage”). No caso particular de Tinta, mais de duzentas \guas a separavam do “‘cerro” de Potosi, no Alto Peru (atual Bolivia), obrigando os indios @ percorre- rem, apé, um caminho montanhoso e dificil, durante aproximadamente trés meses, até 0 local de trabalho. Diante desses obsticulos, grande niimero deles adoe cia e morria, mesmo antes de chegar a Potosi, € ‘quando logravam alcangar seu destino, geralmente nio retornavam as suas regides de origem, 0 que con: tribufa para o despovoamento das comunidades. Essa tentativa inicial, na busca de uma solusao pelas vias legais, refletia ainda uma crenga de Tupac Amaru nas instituigdes espanholas, no sentido de li mitar os abusos das autoridades coloniais contra os José Gabriel Tupac Amaru segundo documentos do sé- culo XVII. : 8 Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende A Rebelido de Tupac Amaru 29 a énci jalquer inten- indios. Dada, porém, a auséncia de qu: t ‘Gio dese atender a essas reivindicagbes — totalmente Contrarias aos interesses do proprio sistema colonial — nao Ihe restou outra alternativa senio a mobili- zagio ¢ organizagao das forgas rebeldes para a luta armada. A ofensiva rebelde Os imimeros levantes locais que proliferavam. por toda a regio serrana, naquele momento, con- tra trabalho forcado nas minas e nos “obrajes”, a cobranga dos altos tributos e os excessivos ‘‘repartos mercantis criaram as condigdes necessarias para a ripida expansio da luta rebelde, que teve em Tupac ‘Amaru e seus principais colaboradores suas lide- rangas centralizadoras. Iniciada em novembro de 1780, a insurreigo atingiu, em algumas semanas, toda regid da serra sul peruana € 0 altiplano boli viano. i 0 ponto de partida para a aglutinagao das for- ‘gas que iriam engrossar as fileiras rebeldes deu-se com a prisio e morte do corregedor de Tinta, Anto- nio de Arriaga. Vitima de uma sutil armadilha, pre- parada pelo cacique rebelde, o corregedor Arriaga foi aprisionado em quatro de novembro de 1780, apés tum almogo num povoado préximo. Tupac Amaru, que também participava da reuniao, ausentou-se antecipadamente e, executando um plano previa- mente estabelecido, dirigiu-se ao exato lugar onde 0 aguardava um grupo destinado a deter o corregedor. A execusio de Arriaga deu-se na presenga de uma grande massa de espectadores, convocados es- pecialmente para a ocasito: “riollos", mestigos, in- dios e alguns europeus. Antes de consumada a sen- tenga, leu-se um documento, que determinava a morte deste “daninho” funcionério pelos abusos co- metidos, em seu préprio beneficio, contra os mise raveis indios, Apés 0 enforcamento, Tupac Amaru dirigiu-se & multidao, reunida na praga de Tunga- sua, ¢ declarou o fim de “mitas” e impostos (adua- nas e alcabalas), bem como estendeu a todos 0s cor- regedores corruptos punigdo tio dréstica quanto a de Arriaga. Dando prosseguimento & ofensiva, os rebeldes iniciaram sua primeira expediga0, marchando em di- regio a Cuzco. No caminho, destruiram e saquearam varios “obrajes", apoderando-se de sua produglo e distribuindo-a entre a populagdo local. Apossa- ram se ainda dos bens dos correyedores, entre eles armas e altas somas em dinheiro. Um fato marcante que se desencadeou a partir desse momento foi a libertagio dos presos e dos es- cravos negros que, ao ingressarem nas fileiras rebel- es, reforgaram ainda mais o exército tupamarista, ue jé contava entdo com cerca de 10000 indios e ais de 1 000 mestigos e negros. Esses epis6dios iniciais da luta armada, no Peru, deram a t6nica do movimento rebelde, ao longo de todo o processo. Ecos desses atos de rebeldia se fa- 30 ‘Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende A Rebelido we spac Amaru 31 fea indigena, de maneira ir em toda a Améri ir es safiando as regras do sis- mais ou menos radical, dess tema colonial. A batalha de Sangarard ea incursio ao sul deter 0 avango das hostes peels es a ae Le a ease dos revoltosos, refugiaram-se na igreja. Tupac Amaru travam saissem do templo, conclamando-os a integrar suas fileiras ¢ afirmando que s6 perseguia os peninsu- mestigos e “‘criollos", entretanto, procuraram fugir, fronto, com a derrota das tropas realistas. Utilizando-se do argumento da profanacdo do templo, o bispo Moscoso excomungou o lider € seus partidarios, nos seguintes termos: “Tenham por piblico excomungado, de exco- munho maior, a José Tupac Amaru, cacique do povoado de Tungasuca, por incendiario das capelas piiblicas e da igreja de Sangarard, por agitador dos caminhos, por rebelde traidor do Rei, nosso Senhor; por revoltoso, perturbador da paz e usurpador dos Direitos Reais; e a todos quantos thes déem auxilio, favor e fomento, € aos que o acompantam, se logo que tiverem no- ticia desta censura, ndo cessarem sua comuni- cagio e desistirem de auxilié-lo em seu depra- vado intento; e, sob a mesma pena, ninguém se atreva a retirar esta cédula do lugar da igreja onde estiver afixada, competindo-nos a resolu- io deste assunto, na cidade de Cuzco. Juan Manuel Moscoso, Bispo desta Provincia’ O efeito desta punigao fez-se logo notar: teme- rosos de sofrer semelhante pena, excessivamente ri- gorosa conforme os padrdes da época, numerosos adeptos da causa tupamaris(a abandonaram suas fi- leiras ou deixaram de nelas ingressar. Esse docu- mento serviu também para deixar ainda mais evi- dente a posigdo da Igreja, que nao somente repudion mas combateu diretamente os revoltosos, com todos os meios de que dispunha, seja nos sermées, nos cam- pos de batalha, ou arrecadando, entre os espanhéis e “criollos” abastados, armas dinheiro. Ao mesmo tempo que se intensificava a rea- ao realista em face do avanco e do inesperado triun- fo dos rebeldes em Sangarara, Tupac Amaru e suas 2 Oe ee Kétia Gerab/Maria Angélica Campos 8 Resende tropas marchavam rumo ao sul desta decisio da lideranca rebelde era expandir get surreigio, propagando seus intentos e conquistanty mais homens ¢ armas para seu exército. A adesto dey do sul era considerada fundamental, ne jo de aumentar o respaldo estratégico ¢ milits: para a tomada de Cuzco, eeniro politico ¢ econdmicn da regio serrana, A incursio pelo sul, iniciada em dezembro de 1780, foi mareada pela conquista de virios povoados, fuga e morte de corregedores, saques e invasdes de propriedades de espanhdis. Os rebeldes se apodera. ram ainda de armas e munigSes e, ao longo de sua trajet6ria, procederam a destruigio de varios “obra- jes”. Diante do impeto e da proporgao’ das investidas rebeldes, as tropas realistas, muitas vezes, abando: naram suas posigdes e viram-se ameacadas de deser- io em favor das fileiras tupamaristas, 0 que concor- feu para determinar o éxito da expedigao a0 sul. No entanto, a pretensio dos rebeldes de ocupar a estra- tégica vila de Puno — na divisa entre os bispades de Cuzco e de La Paz — e a regio mineira de Potosi fot frustrada pelas noticias dos intensos preparativos mi- litares dos realistas em Cuzco e do envio de tropas de Lima, para auxiliar na defesa da cidade. Tendo em 2 esta niova situacio, o retorno a Tinta e a marcha sobre Cuzco tornaram-se inadiéveis. objetivo maior A Rebeligo de Tupac Amaru O assédio a Cuzco Enquanto Tupac Amaru e seus partidarios per- corriam as provincias do sul, reinava em Cuzco um clima de agitacZo e de expectativa devido as seguidas noticias de uma iminente invasio da cidade pelas tro pas tupamaristas. As autoridades, em vista disso, agilizaram a organizaglo de suas forgas, recorrendo ao auxilio dos corregedores das provincias vizinhas de Lima, requerendo, ainda, junto a influentes caci ques, fiéis & Coroa espanhola, uma atuacdo mais efe- tiva no sentido de recrutar indios para lutar contra os revoltosos, ‘A enorme massa de refugiados que vinha das lo- calidades proximas, amedrontada pelas crescentes explosves de violéncia, contribuia para aumentar os problemas da cidade, que nao dispunha de meios ara suportar esse stibito aumento populacional. O clima dramatico existente em Cuzco, nestes dias que antecederam o cerco, foi assim deserito pelo historia- dor Valedrcel: “(...) este excesso de refugiados trouxe complicagses, provocando notéria carestia e surtos de fome. Os calaboucos e carceresimprovisadoseram cada dia mais abundantes, e ndo eram suficientes ara encerrar os prisioneiros, trazidos das provin- cias, e os individuos capturados nas cidades e suas imediagdes. Diante da insuficiéncia dos funcionérios judiciais ordinarios, nomearam-se comissbes espe- ciais para julgar e sentenciar os numerosos detidos”. Tupac Amaru aleangou os limites de Cuzco no dia 2 de janeiro de 1781, com um exércita de apro- 4 Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende ximadamente 40000 homens, ainda que precaria- mente armado. Esperava unir suas forgas as do co- mandante Diego Cristobal, que se empenhava em conquistar as provincias do norte. Esperava ainda contar com a adeséo maciga da populacdo indigena local, subestimando a presenga de contingentes rea- listas, estrategicamente colocados na cidade, para impedir qualquer sublevagao interna em apoio aos rebeldes. enfrentamento propriamente dito iniciou-se trés dias depois, com o cerco da cidade. As investidas de ambos os lados prosseguiram nos dias seguintes, sem que ocorresse vantagem significativa para qual- ‘quer uma das partes. Reconhecendo as dificuldades para invadir a cidade, Tupac Amaru enviou cartas as autoridades e ao bispo exigindo a entrega de Cuzco, fa fim de evitar 0 avanco, “a sangue e fogo”, de suas tropas, Diante desta ousadia, os realistas reforgaram sua resisténcia, anexando as suas fileiras, que jé con- tavam com mais de 12000 homens, um contingente de 8000 soldados procedentes de Lima (Os rebeldes, ao contrério, viram frustradas suas cexpectativas de reforgo, visto que @ divisto coman dada por Diego Cristébal no logrou ultrapassar © rio Urubamba, barrada pelas milicias legais, 0 que jmpossibilitou © cumprimento do plano de um ata- que simultaneo ao de Tupac Amaru. : ‘O dia 8 de janeiro foi marcado por uma violent patalha que, apés mais de sete horas de luta, tern! pau sem vencedores. Confirmado 0 equilibrio des Torgas ea impossibilidade de uma rendiclo 42 ct A Rebelido de Tupac Amaru dade, as milicias rebeldes partiram em retirada na manha do dia seguinte. Os fatores que concorreram, de maneira decisiva, para impedir a tomada de Cuz- co por Tupac Amaru, naquele momento, podem ser assim enumerados: a inferioridade em armas do exéi cito tupamarista em relacdo as tropas realistas os- tensivamente equipadas e, em conseqiiéncia, o exces- sivo mimero de baixas e desergdes nas fileiras rebel- des; 0 fracasso do plano estabelecido com Diego Cris- tobal; e a ndo-adesio das camadas indigenas de Cuz- co, Esse conjunto de fatores, bem como as sabota- gens praticadas por elementos realistas infiltrados entreos rebeldes, provocou a decisto pela retirada. A luta em Tinta e a prisio do lider rebelde As tropas rebeldes partiram, entio, em direcio a0 sul, na tentativa de reorganizar suas forgas ¢ res~ guardar as posigles ja conquistadas. O exército rea- lista, por sua vez, preparava-se para a grande ofen- siva contra a provincia de Tinta: novas tropas, vindas de Lima, juntaram-se as de Cuzco, reforgando seu contingente militar que, a esta altura, passou a con- tar com 17000 homens bem armados, dos quais 14000 eram indios.. Varios conflitos verificaram-se antes da chegada das tropas a Tinta, quartel-general do exército re- belde. Cientes da indefinicao da luta a curto prazo, 6s realistas langaram mao de um outro recurso, que 36 Kitia Gerab/Maria Angélica Campos Resende contribuiu de maneira significativa para provocar desergdes e abater o fnimo dos revoltosos. O visita- dor Areche, autoridade enviada pelo rei especial- mente para supervisionar a administraco vice-rei: nale que se deslocara de Lima a Cuzco, expediu, em 20 de margo de 1781, um oficio concedendo 0 perdao a todos os indios que abandonassem a causa rebelde ‘eaderissem ao exército realista. As concessdes conti- das neste oficio — conhecido como “Bando del Per- don” — nao abarcavam, no entanto, os dirigentes do movimento rebelde nem seus principais colaborado- res, sendo muito mais um artificio usado pelas auto ridades para desestabilizar o exéreito tupamarista do ‘que um recuo ou uma tentativa em busca da conci- Tiago. Duas semanas antes, Tupac Amaru havia en- viado uma carta diretamente ao visitador, expondo com detalhes os objetivos da sua luta e atribuindo aos corregedores e a seus desmandos a culpa pela violén- cia que se desencadeara no vice-reino, Afirmava ain- da que, na condicdo de “vassalo de Sua Majestade e fiel seguidor da Igreja’”, responsabilizava-se pessoal- ‘mente pela insurreigdo, que somente visava a defen- der os direitos dos indios e pér fim aos sacrificios a ‘que estes eram submetidos. A esta carta Areche respondeu acusando 0 caci- que de “perturbar a ordem, propagar o horror, a in- justia ea desumanidade; caluniar a Igreja e seus di- rigentes e profanar 0 nome do rei”, conclamando Tupac Amaru a render-se para que se fizesse justiga ese restabelecesse a paz. Afirmava ainda o visitador A Rebelido de Tupac Amaru que, de acordo com as disposigdes ditadas pelo “os ‘repartimientos’ ja haviam sido abolidos, ordens enviadas para se extinguir as ‘mitas’ e que os ‘obra- jes’ fossem locais abertos, onde ninguém permane- ccesse seniio por sua prépria vontade, sendo pago de maneira justa™ Essas afirmagées, no entanto, no podiam ser confirmadas na pratica. Os “repartos” mercantis, apesar de aholidos oficialmente em dezembro de 1780 —num momento em que a rebeliao ja se encontrava em pleno curso —, continuavam a ser a principal fonte de renda dos corregedores. Quanto as “‘mitas”” nas minas e “obrajes", no se cogitava em aboli-las, esse momento, pois eram o suporte fundamental da atividade econdmica na colénia. Deve-se ainda ter em mente que a adogio conereta de tais medidas resultaria, por si s6, no atendimento das principais reivindicagdes dos rebeldes e seria motivo suficiente para determinar o fim da rebelifo, A luta, no entan- to, prosseguiu, a despeito das acusagdes e justifica- tivas trocadas por ambas as partes, eaminhando para um desfecho politico e militar totalmente desfavora- vel aos rebeldes. Em Tinta, os tupamaristas tentaram, sem éxito, lum ataque surpresa as tropas realistas. O fracasso deste empreendimento foi causado, prineipalmente, pela delacao do plano, feita por um prisioneiro fugi- tivo, anulandoo grande trunfo com que contavam os rebeldes: 0 efeito surpresa. No dia seguinte, 6 de abril de 1781, os realistas cercaram o exército rebelde nas imediagdes da cidade, provocando grande nu- 37 38 Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende ‘mero de mortes. A superioridade bélica de suas tro- pas precipitou a derrota dos revoltosos, que se viram obrigados a recuar, com o propésito de reagrupar seus efetivos. Tupac Amaru, acompanhado de seus colabora- dores mais proximos, entre eles sua mulher Micaela Bastidas e seus filhos HipOlito e Fernando, tomou 0 rumo do sul, em direcao ao poyoado de Langui. No perenrso, foram vitimas de uma emboscada, prepa- rada por trés de seus partidarios, que os detiveram em troca de salvar suas proprias vidas. Desde o inicio da insurreigio, as autoridades dos Vice-Reinos do Peru e do Rio da Prata vinham oferecendo elevadas recompensas a quem entregasse, vivo ou morto, o cacique rebelde. Essa medida, alia- da ao temor provocado pelas duras penas a que eram submetidos os revoltosos presos, acabou por atingir seu objetivo. Entre os prisioneiros, além de Tupac Amaru, sua mulher e dois de seus filhos, encontra vam-se alguns de seus principais chefes e um consi- deravel niimero de partidarios. No entanto, conse- guiram escapar desta armadilha Diego Cristobal, Mariano, segundo filho de Tupac Amaru, Andrés Mendigure, sobrinho do cacique, e outros integrantes do grupo. 5 presos foram levados, inicialmente, a Tinta e entregues ao chefe das tropas realistas, no momento mesmo em que cerca de setenta caciques rebeldes eram enforcados em praga publica, numa ostensiva demonstragao de forga das autoridades espanholas. No dia 14 de abril, conduzidos por uma pode- A Rebelido de Tupac Amaru 39 Os “mitayos" eram obrigados a comprar dos donos das “obrajes” mercadoriasintes 40 Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende rosa escolta sob 0 comando do visitador Areche, os prisioneiros entraram em Cuzco, causando forte co- mogao entre a populagao local. O periodo de um més, que separou 2 prisio e a execucdo dos lideres rebel- des, foi marcado por constantes interrogatérios,nos ‘quais as autoridades tentaram arrancar dos detidos, sob tortura, informagdes que Ihes possibilitassem lo- calizar e prender os demais lideres da rebeliao, al dos possiveis edmplices “eriallos", que tivessem dada seu apoio & causa rebelde. Entretanto, essa iniciativa no logrou aleangar nenhum éxito, Expedida a sentenca final, apés um sumério jul- gamento, os principais chefes da rebelizo foram con: denados & pena de morte por enforcamento ou es- trangulamento. O momento da execucao de José Ga- brie! Tupac Amara, em 18 de maio de 1781, foi assim descrito por um testemunho da época: “(..) Ataram- Ihe as maos e pés quatro cordas e prenderam-nos a0 dorso de quatro cavalos (...). Nao sei se porque os cavalos nao fossem muito fortes, ou o indio, em reali dade, fosse de ferro, nfo puderam absolutamente di- vidiclo, depois de um interminavel momento em que © mantiveram puxando, de modo que o tinham no ar, num estado em que parecia uma aranha, Tanto que o visitador, movido de compaixao, para que nto padecesse mais aquele infeliz, despachou uma ordem mandando que 0 carrasco cortasse sua eabega, como se executou. (...) Desse modo, acabaram José Gabriel Tupac Amaru e Micaela Bastidas. (...) Neste dia ‘compareceu (& praca) um grande nimero de gente, ‘mas ninguém gritou nem levantou uma vor (...). SU A Rebeliao de Tupac Amaru cedem algumas coisas que parece que 0 diabo as trama e dispée, para confirmar os indios em seus pressigios e superstigdes. Digo isto porque, tendo feito um tempo muito seco, € dias muito serenos, aquele amanheceu tdo nublado que nao se viu a cara do sol, ameacando chover em todas as partes; e, hora das doze, em que estavam os cavalos estirando 0 {indio, levantou um tremendo vendaval, e atras dele ‘um aguaceiro que fez com que toda a gente, ¢ ainda 0 guardas, se retirasse a toda pressa. Isto levou os indios a dizer que 0 céu € os elementos sentiram a morte do Inca, que os espanhéis inumanos e impios estavam matando com tanta crueldade” 4 (A Rebelide 0¢ 5 Uptie eeae A EXTENSAO E A REPERCUSSAO DO MOVIMENTO a) A insurrei¢do no Alto Peru Na provineia de Chayanta, proximo a Potosi (Alto Peru), os irmaos Tomi, Damaso e Nicolés Ca- tari, desde o final da década de 70 do século XVIII, estiveram a frente dos movimentos contra os correge dores e seus “repartos” mercantis, as “mitas” e 0s altos impostos. O cacique Tomés Catari empreen- deu, em 1777, uma longa e penosa viagem a pé, do altiplano boliviano até a capital do vice-reino do Rio daPrata — Buenos Aires —, a fim de reivindicar pro- Vidéncias junto as autoridades contra a exploragio € ‘exterm{nio dos indios de sua regio. _ Noentanto, da mesma forma que Tupac Amaru, 6s intentos de Tomés Catari ante a Justiga foram em Vio. Ao retornar, em 1779, foi preso pelo corregedat ‘de Chayanta, numa tentativa de se conter o lima de revolta que ameacava as autoridades desta provincia. Libertado por seus irmaos e partidérios, 0 cacique continuow a frente da luta, na regia mineira de Po- tosi, desafiando o poder colonial. Em 9 de janeiro de 1781 — um dia antes da retirada das tropas tupama- ristas de Cuzco —, Tomés Catari foi novamente cap- turado e, em seguida, assassinado. Seus irmaos Dé- masoe Nicolas, diretamente envolvidos na luta, foram ieualmente presos e condenados & pena de morte, em abril e maio do mesmo ano. A rebelido no Alto Peru, no entanto, resistiu @ violencia, perpetrada contra seus principais chefes, € prosseguiu sob a lideranga de Tupac Catari, cujo ver- dadeiro nome era Julian Apasa, e que adotou aquele apelido em alusio a Tupac Amaru e a Tomés Catari. A insurreigao no altiplano boliviano culminou com 0 cerco de La Paz, iniciado em margo de 1781 que se efetivou apés uma sangrenta batalha, que durou mais de sete horas e na qual morreram, apro- ximadamente, 10000 pessoas, entre as quais 8000 indios. Depois de 109 dias de sitio, tropas realistas romperam 0 cerco, em 1° de julho, a despeito da forte resisténcia indigena que, entretanto, néo suportou a ‘superioridade em armas das tropas legais. Em agosto do mesmo ano, Tupac Catari cercou novamente La Paz, com o auxilio de tropas tupama- ristas, e, apés uma tentativa de inundar a cidade, fot derrotado e preso. Em 31 de novembro de 1781, executou-se sua sentenga de morte, de forma idéntica 4 de Tupac Amaru. Os levantes, no entanto, conti- huaram em varias provincias do Alto Peru (Larejaca, 4 Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resendy A Rebeliao de Tupac Amaru 45 Omasuyos e Chucuyto) e, segundo um testemunho da época, “‘ao finalizar a luta no Bispado de La Paz, era aterrador o mimero de mortos, pois léguas intei- ras havia de indios destrogados” b) Diego Cristébal: 0 prosseguimento eo fim da luta Apés a pristo de Tupac Amaru, e uma tentativa fracassada de liberté-lo, Diego Cristbal reorganizou ‘suas tropas ¢ deslocou-se para o sul do Peru. Esta- beleceu-se na cidade de Azdngaro, préxima a divisa com a Bolivia, onde assumiu, em nome de Tupac Amaru, a lideranga do movimento. Sua captura, neste momento, era considerada da maior importincia pelos realistas, a fim de destro- gar de vez a resisténcia rebelde e destruir os focos insurrecionais, que continuavam atuando no Peru € se expandiam por uma vasta extenstio do Vice-Re nado do Rio da Prata. As tropas realistas, motivadas pela vitéria em Tinta, concentraram seus esforgos para impedir, de todas as maneiras, o avango das filiras de Diego Cristabal e sua unio com o exéreito de Tupac Catari, que ainda lutava no altiplano boli viano, No entanto, ao mesmo tempo em que Tupac Catari mantinha 0 cerco de La Paz, as tropas de Diego Cristébal conseguiram sitiar a cidade de Puno, emt fins de maio de 1781, 0 que proporcionow 80s nificativo controle sobre a regio. Intimeros combates sucederam-se durante todo ‘ano, terminando com o rompimento do cerco de La Paze'a morte de Tupac Catari, em novembro. Essa ;portante vitéria estimulou as autoridades a propor aos lideres da rebeliio um Tratado de Paz que, em troca da total e imediata deposicdo das armas, ofere- cia o perdao geral aos revoltosos. © ano de 1782 iniciou-se com graves divisdes no seio das tropas rebeldes. Se, por um lado, Diego Cris- thal e Andrés Mendigure Tupac Amaru aceitaram 0 indulto oferecido pelos vice-reis de Lima e Buenos Aires, a maioria dos chefes rebeldes, entre eles 0 in- fuente cacique Vilea Apasa, negaram-sea acatar essa decisao e insistiram em continuar a luta. Nao 36 as liderangas estavam divididas neste momento: boa parte das tropas, nao acreditando nas promessas de paz dos realistas, abandonaram Diego Cristobal, recusando-se a acompanhi-lo até Cuzco para receber o indulto. Em agosto, ao entrar na ci- dade, o lider rebelde contava, entre seus seguidores, com pouco mais de cingiienta homens. A partir da exccusdo de Tupac Catari, as tropas realistas seguiram obtendo numerosas_vitbrias, 0 que Ihes permitiu, ao final do ano de 1782, ter sob seu controle praticamente toda a regiao andina. Os principais lideres j4 haviam cafdo e 0s diltimos focos deresisténcia estavam na iminéncia de ser dizimados. s planos das autoridades coloniais, para aca- bar de ver com a sublevagdo, puderam, finalmente, ser executados: em meados de marco de 1783, 0 le- Yante no povoado de Marcapata, na provincia de Quispicanchis, foi o pretexto encontrado para ineri- T 46 Katia Gerab/Maria Angélica Campos Resende | iene A Rebelido de Tiipac Amaru a7 minar e prender, como supostos envolvidos, Diego | Cristobal, Mariano e Andrés Tupac Amaru e mais sessenta pessoas, pertencentes a familia, além de “criollos’, mestigos e indios, perfazendo um total de \ 120 detidos. Em julho, os principais chefes foram en- foreados e esquartejados; os demais sofreram penas de prisao e desterro. Esse desenlace correspondeu plenamente aos objetivos das autoridades espanholas, expressos na fala do visitador Areche, pouco antes da captura de Diego Cristobal Tupac Amaru: “E da maior urgén- cia aniquilar definitivamente a esta iniqua casta esua I infame heranca, da qual se recordaré 0 Reino ainda por alguns séculos”. c) A repressao politico-cultural eas medidas reformistas da Coroa Tao logo as autoridades espanholas aleancaram seu objetivo, dizimando a resisténcia rebelde, tratt ram de adotar medidas que consolidassem sua vitO- ria, O estado de calamidade em que se encontravam as principais provincias do vice-reino, apés a rebe- ligo, tornava ainda mais urgente a implantagdo 4° tais medidas, Essa situagao de crise, agudizada pele | longa duragao da luta e pela intensidade e extensio que ela alcangou, propiciava o surgimento de novos Aistirbios e podia ser sentida no abandono em ave st encontravam as fazendas, minas e “obrajes”, nafalla SUL 00 VICE-REINADO 00 PERU E NORTE DO VICE- REINADO DO RIO DA PRATA 48 CC —— Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende A Rebelido de Tupac Amaru 49 de m&o-de-obra, ocasionada pela alta mortalidade, ena queda da producdo eescassez de viveres. As primeiras decisdes da Coroa foram no sen- tido de reprimir as manifestagdes que invocassem 0 passado incaico, numa tentativa de afastar a popu- ago indigena de seus costumes e tradigdes. Proibiu- se, inicialmente, toda informacao que remetesse a antiga nobreza inca, bem como o uso de seus trajes, a celebracio de seus ritos ¢ 0 idioma quéchua; aboliu- se ainda 0 uso do titulo de Inca pelos chefes, “pela enorme impresso que isto produzia no animo dos naturais" (Diaz Suarez, p. 127). O proprio cargo de cacique deixou de ser hereditério, passando a ser ‘ocupado por pessoa escolhida pelas autoridades es- panholas. Constava ainda entre as proibigdes a lei- tura de certas obras, consideradas perniciosas: entre outras, as do Frei Bartolomeu de Las Casas, que de- fendia a cristianizagao dos indios, condenando a sua escravizagio, bem como a conhecida obra do cronista, Garcilaso de La Vega, mestigo descendente da no- breza incaica, que escreveu, em fins do séeulo XVI, os “Comentarios Reales”, onde narrou as grandezas do Império Inca, antes da conquista, Juntamente com a repressao a nivel cultural, a Coroa espanhola implantou uma série de reformas Politicas e econdmicas que visavam, em Giltima ins- tancia, fortalecer a autoridade real, minimizando a influéncia da administragao local, bem como dimi- nuir os riscos de futuros conflitos. As medidas poli ticas de maior peso foram a substituigao dos Corregi- mentos pelas Intendéncias e a implantacio da Real Audiéncia de Cuzco, em maio de 1787. ‘A criagao das Intendéncias correspondeu a0 propésito de se limitar a liberdade que os corregedo- res tinham para gerir seus proprios negécios, muitas vezes em prejuizo da metrépole. A nova estrutura administrativa permitia um controle mais direto,pela Espanha, sobre as atividades de seus funciondrios na coldnia e, por isso mesmo, 0 nimero de Intendéncias no Peru limitou-se a apenas oito. A centralizagao do poder se evidenciava ainda mais no actimulo de fun- ‘gdes que o cargo de intendente abarcava: a essas au- toridades competia decidir sobre assuntos relativos & justiga, policia, guerra e fazenda publica. No plano das reformas, inseriu-se também a aboligao dos “repartos” mercantis, medida que, ape- sar de promulgada ja em 1780, s6 foi definitivamente coneretizada apés a extingao do cargo de corregedor. Mesmo antes da rebelidio, a Espanha cogitava em dar fim aos “repartimientos", que nao correspondiam mais aos interesses econmicos da metrépole, por concentrar os Iucros do comércio nas mos dos co- merciantes e dos financistas de Lima e da burocracia vice-reinal. Neste momento, o fim dos “repartos” € 0 consegtiente desatrelamento do comércio do controle dos corregedores possibilitavam uma dinamizagio do mercado e um aumento significativo dos ingressos da Real Fazenda, através da cobranca de impostos. So- bre esse assunto, é ilustrativa a carta do visitador ‘Areche ao rei Carlos III, em maio de 1780: “(...) Fi cando os corregedores nas provincias sem a permis- sao de comerciar que agora tém, haveré nelas maior pl Katia Gerab/Maria Angélica Campos Resende Tiberdade de comércio, € no me , nem nunca me word duvidavel, que se multipliquem nas mesmas as rendas reais do Erario” (Golte, p. 198). Muitos autores afirmaram que essas reformas foram implementadas com 0 objetivo de atender as reivindicagdes indigenas, manifestadas insistente- mente nas cartas e editos dos lideres rebeldes. No en tanto, nio podemos deixar de considerar que tais medidas faziam parte da politica implantada pelos Bourbon, a partir de meados do século XVIII, como propésite de sanear as finangas do Império, me- Siante uma nova relago com as colénias, que possi bilitasse um controle mais rigido da economia, atra- és de uma reorganizagio politico-administrativa ‘Acriagao da Real Audiéncia de Cuzco, antiga reivindieagio de Tupac Amaru para facilitaro acesso 4. Justiga e assegurar o cumprimento das leis na re- sido serrana, deve ser entendida antes como recurso da metropole, para garantir um controle mais severo e direto sobre a regio e evitar os entraves ccasiona- ddos por uma administragdo dispersa c inefieaz. ‘As contradigdes inerentes ao proprio sistema co- lonial, que afloraram no desenrolar da rebelifo, fi zeram com que interesses distintos e opostos como 05 dos indios e da Coroa pudessem se confundir no mo ‘mento da implantacio das reformas. No entanto, ess aparente coincidéncia se desmascara ag analisarmes os limites destas medidas, implantadas para garanty a manutengao do sistema, tanto no que se refer fortalecimento do poder metropolitano quantons =r tativa dese evitar novos levantes. TUPAC AMARU: PRECURSOR DA INDEPENDENCIA? debate em torno do cardter precursor da re- belido tupamarista em relagio & emancipagio poli- tica nao é, de maneira nenhuma, uma questo nova na historiografia peruana, e com ela tém se defron- tado todos aqueles que buscam compreender 0 pro- e550, que vai da crise do sistema colonial & indepen- déncia do Peru. Dois pressupostos bisicos sustentam as anilises que vinculam diretamente independéncia do Peru com as rebelides que tiveram lugar no vice-reino, no final do século XVIII. O primeiro pressuposto € que independéncia foi 0 coroamento de um process0 ininterrupto e sem etapas, que comecou em 1780.com Tupac Amaru e prosseguiu, através de uma série de revoltas e conflitos, até 1821, com a ruptura dos lagos coloniais. O segundo pressuposto esté na base da constituigao da nagio peruana, pois considera que Kitia Gerab/Maria Angélica Campos Resende toda a populagao vice-reinal, sem distingio de raga ou grupo social, apoiou a luta contra o dominio es- panhol, e a independéncia veio atender aos ideais de liberdade da col6nia como um todo. A partir desta visio, a historiografia tradicional destaca o propésito emaneipacionista como o objetivo maior da rebeliao, em torno do qual se articularam os interesses de indios, mestigos e “‘criollos", ou seja, de todos os ‘“naturais da América” contra a Coroa espanhola e seus representantes peninsulares, espo- liadores da riqueza americana. Segundo essa concep- cdo, apesar do desejo comum da independéncia, a alianga foi prejudicada pela incapacidade dos dife rentes grupos de se unirem em torno deste ideal, tan- to pelo temor que a massa indigena, fortemente mo- bilizada, infundia nos “criollos”, que viam nela uma ameaca & manutengao de seus privilégios, como pelo ddicalismo" e pela “xenofobia’” dos indios. Essa anélise leva, em Gltima instancia, & conclu- so de que a insurreigdo poderia ter sido vitoriosa caso essa_alianga se concretizasse ¢, consequente- mente, a independéncia do Peru teria se antecipado em algumas décadas. Ver a rebelido sob essa dtica implica explicar 0 pasado em fungdo dos aconteci- ‘mentos posteriores, tirando dele a sua especificidade, seu significado proprio, e conferindo-Ihe o carater de mero apéndice, que explica e justifica o que vem de- pois, Na Hist6ria Peruana, a Independéncia é um dos grandes marcos e, neste sentido, os acontecimentos que a precederam foram recuperados em fungio dela; logo, todos os movimentos que, de alguma A Rebelido de Tupac Amaru forma, abalaram o sistema colonial no final do século XVIII comego do XIX, independentemente das suas reivindicagdes ¢ objetivos, passaram a ser con rados “precursores” da Independéncia. _A rebelio de Tupac Amaru foi um movimento indigena: suas liderangas e participantes foram, qua- se que exclusivamente, indigenas e suas reivindica- es basicas, como ja vimos, estiveram prioritari mente ligadas ao fim da exploragio do trabalho, di- eta ou indiretamente, A supressio da “mita” nas minas e nos “‘obrajes”, o fim dos “repartos” merean- tis, a eliminagao da opressiva ganincia dos correge- dores e das demais autoridades coloniais, bem como a diminuigdo do tributo indigena, constituiram 0 cere das demandas, que levaram & eclosio do movi- mento rebelde. Verificando os documentos da época, constatamos 0 peso que foi dado pelas liderangas a essas questdes, j que, em praticamente todos eles, as referéncias &s varias formas de espoliagao da mao- de-obra indigena se fizeram presentes e apareceram como 0 eixo principal da rebeligo, em torno do qual se aglutinaram as forgas que enfrentaram o regime As reivindicagdes, no entanto, nao estiveram so- mente ligadas as questdes propriamente indigenas, ‘outros interesses estiveram presentes no movimento, em representacdo aos demais grupos que a ele se inte- graram. Negros, mestigos e “criollos” marcaram, de alguma forma e de maneira diferenciada, sua pre- senga no cendrio da luta, Aosnegros, interessava-Ihes © fim da escravidao; aos mestigos (em geral, peque- nos comerciantes, agricultores, artesdos ou arrieiros), 3 | 54 Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resene | ,3,,.,...,.. niio obrigados ao pagamento do tributo e & prestagao do servigo da “mita’, mas circunstancialmente pres. sionados a comprar produtos repartidos,interessava- Ihes o fim dos impostos e dos “repartos”. Os “eriol Jos” — cujos negocios prendiam-se, em boa parte, a0 grande comércio — desejavam, por sua vez, a supres si dos impostos que incidiam sobre a entrada e cir. culagio de mercadorias, ou seja, a “aduana” ea we tTapac Amara e outros ders rebedestomaraa essas demandas como parte dos objetivos da luta e, gm muitas de suas carts © edos, conclamaram os “criollos” e mestigos a unirem-se a eles contra os es- panhéis. Essa alianga pode ser possivel somente no neo da rebelio, mas, mesmo neste momento, ons- “criollos”, que apoiaram efetivamente o mo- Dor sua vez, foi mais significative, © que se explca pelo fojde ste cama stuas-se mam niente i ee ese portant, eslarem entre amos os UDO! (como exemplo,a grande maioria dos acigues). A medida que a luta armada fo-se acsrando ¢ seus propésiostomaramse mais defindos, 0 ‘ra tos”, que simpatizaram iniialmente com ela, viram- Se numa posi¢ao ineémoda: ou se alinhavam 20 dos indigenas, assumindo a radiealizago do move mento, ou passavam a apoiar as autoridades Ps nholas eo clro, contra os revoltosos. Por esta Hunt alternativa optaram os “‘eriollos” no seu coninity salvo excegées isoladas. Suas razSes eram A Rebeli de Tupac Amaru ras: proprietirios de fazendas e “obrajes", arrenda- trios de minas e grandes comerciantes, atrelados As hormas que regiam a economia colonial ¢ ao poder Politico dominante, nao poderiam se aliar aqueles ue, constituindo o grosso da mio-de-obra, Iutavam Para mudar as regras, provocando a desestruturagao da atividade produtiva. Apesar do fracasso desta alianca, mnitos auto- res continuaram a dar & rebelido um cardter mestigo, situando, neste momento, o nascimento de um ideal hacionalista, que congregasse todos os integrantes do entio Vice Reino do Peru — indios, mestigos, negros © “criollos” — a despeito dos seus interesses divers ficados © muitas vezes antagénicos. Coerentes com essa analise, essas interpretaces primaram por des. focar o motivo central da rebeliao, considerando as Feivindicagdes propriamente indigenas como secun. darias frente ao ideal maior, aemancipacao, Boleslao Lewin, em sua obra La Rebelidn de Tu- ac Amaru y los Origenes de la Emancipacién Ame ricana, coniirma esta tese: “José Gabriel Tupac Amaru é considerado, ge- talmente, ‘como simbolo dos anseios reivindica- torios indigenas. E ainda que esses anseios cons tituam algo imanente a0 movimento por ele en- cabecado, é absolutamente erréneo apresenta ido de 1780-1781. Esta — como veremos mais adiante — perseguia fins muito mais vastos Ci, 55 hut Gerub/Maria Angélica Campos Resende 4 Rebelido de Tupac Amaru 7 Os fins mais vastos, a que o autor se refere, ou seja, a meta principal da rebeliaio, ndo eram outros Sendo a emancipagao politica, como esta expresso j4 no proprio titulo da sua mais conhecida obra. Para ‘gue esses objetivos pudessem ser alcangados, Lewin afirma que a participagao “criolla” no movimento era de fundamental importancia ¢ que o proprio It der, consciente desta necessidade, “fizera t80 gran- des esforgos para conquistar os espanhdis america- nos”. Noentanto, o fato de Tupac Amaru ter bus- cado atrair os “‘criollos” para sua causa nao significa que pretendesse, com essa tentativa, atingir a inde- pendéncia politica enquanto um projeto liberal, como procura demonstrar Boleslao Lewin. Se nas revoltas lideradas por Tupac Amaru ¢ Tupac Catari a participagao “criolla” teve importan- cia secundéria, em outros movimentos, na mesma €poca, os “criollos” assumiram a lideranga ¢ suas reivindicagées particulares formaram o miicleo dos protestos contra a Coroa. Tomemos o cxemplo de Arequipa, no Peru: nesta cidade, em janeiro de 1780, passou a vigorar um aumento significative dos tributos, seguindo 5 novas diretrizes econdmicas da metropole, que vist ‘yam aumentar os rendimentos do Tesouro Real. Es tabeleceu-se a cobranga de uma “aduana” interna, que recaia sobre qualquer transagao comercial feita no povoado, naio excetuando sequer os artigos produ- idos pelos indios. Essa medida, juntamente com © aumento da “alcabala” e a inclusio de grupos até entio isentos da tributagio, provocou um levanta ‘mento que atingiu grandes proporcdes. O correge- dor viu-se obrigado a revogar a cobranga da “adua- na”, rebaixar a “alcabala” e interromper o registro dos novos contribuintes. Apesar de essas medidas atingirem a populag’o como um todo, foram os “eriollos"” que estiveram A frente dos protestos, em. defesa dos seus interesses especificos. Nao obstante, foi inegavel a participacdo das camadas mestigas & fndlias. Nos meses seguintes, novas manifestacSes contra os impostos ocorreram em Huaraz, Pasco, Chuquisaca e outros povoados dos Vice-Reinos do Peru e do Rio da Prata. Em Oruro, no Alto Peru, as ameacas de au- mento dos impostos, acrescidas das graves dificulda- des financeiras dos “criollos” — cada vez mais pres- sionados entre os altos juros, cobrados pelos finan- cistas, e 0 crescente aumento das taxas reais —, zeram com que explodisse ali um violento levante com lideranga “criolla”, em fevereiro e margo de 1781. Esse movimento teve como alvo as autoridades coloniais, mas acabou por atingir a todos os espa- nhéis residentes na cidade, que tiveram seus bens saqueados e suas casas incendiadas, chegando mes- moa seragredidos e mortos. Os indios uniram-se aos “criollos” neste mo- mento. Sua participagao deu peso ao movimento € ‘suas reivindicagdes foram, numa primeira fase, in- corporadas aos objetivos da revolta. A extrema debi- lidade da situago econdmica dos “‘criollos” nio Ihes permitiu dispensar aquele apoio. Mas a crescente pressao da massa indigena, para fazer valer seus inte Katia Gerab/Maria Angélica Campos Rese nde Tesses, © 0 cardter violento que o confi terminaram por romper defisitvamentecsarsgee fazendo prevalecer as pretensoes da lderanga ¢ ay camada porela representada, ne via, NO, Vte Reno de Nova Granada Coli a, 0 aumento de impostos eo controle da prod e-venda do tabaco foram os princoals motes sue levaram ao movirnento conhecido como a “Insure gio dos Cor dura a ; Comuneiros", durante o ano de 1781, Com 0 monopolio do tabaco, a Coroa espanholapassow a ter um contol absolute sobre a redo ¢ on do produto, Objenando garantie a tivo foram reduzidas e, em varias lca dades, 0s produtores foram proibidos de manter sus lavouras. (O inicio dos distros deu-se em Socorro, quan do 05 rebeldes invadiram os depbsitos de tabaco, apreenderam os estoques 0s distibuiram & popu lado ou queimaram, num claro protest nova pol tica econgmica. A lideranca do movimento etre nt mios de ricos “criollos", que contavam com 0 3 mento das manifestagoes de protesto para fort a8 autoridades a revogar as medidas que afetavam ses privilésos. ‘Arebelito, no entanto, congregou varios ers sovias de regi6es economicamente dstntas, a 2 @ nome de “comin” — termo usado na tradiho panhola para referi-se as camadas médias da Pop fagio — uniram todo tipo de descontentamene num nico protesto. O movimento e suas lideranses foram marcados, vonsequentemente, por uma forte A Rebelido de Tupac Amaru 9 “ambigiidade: de um lado, estiveram presentes gran- des fazendeiros e aristocratas de Tunja e, de outro, 05 peauenos e médios proprietarios, comerciantes © do- hos de manufaturas de Socorro. Participou ainda da rebeliao um contingente de aproximadamente 4000 indios, que lutavam contra a proibicao de explorar as salinas, das quais obtinham a maior parte do seu sus- tento, como também contra o avango sobre suas ter- ras, que neste momento atingia niveis insuportaveis Essas reivindicagdes foram incorporadas pelos “co muneros”. ‘As proporgdes que a insurreigio tomou acaba ram por assustar as liderangas “‘riollas” que, te- mendo complicagdes maiores com as autoridades, © (que poderia vir a impedir um acordo favordvel aos seus interesses, desistiram de tomar a capital, Santa Fé. Regredir, neste momento, significava por fim a0 perigo que as massas sublevadas colocayam para @ Seguranga dos proprios “criollos” e de todo 0 vice- reinado. Escas contradigoes foram ulilizadas pelas auto~ ridades coloniais ¢ eclesiésticas para negociar um Teordo — as “Capitulagoes” —, prometendo atender as demandas de cada um dos grupos envolvidos, O facordo serviu apenas para desbaratar o movimento, pois, {do logo os revoltosos retornaram a seus Povo: Gos, as “Capitulagées” foram canceladas ¢ os im- fpostos, monopalio ¢ restrigbes & cultura do tabaco, bem como a proibigao de explorar as salinas, foram mantidos.. recuo dos “eriollos” e 0 acordo negociado Katia Gerab/Maria Angélica Campos Resende A Rebelido de Tupac Amaru a pelas liderangas com as autoridades demonstram 9 sentido particular da rebeligo “comunera’. Segundo ohistoriador Fernan Gonzales, “...) Em resumo, as petigdes dos comuneiros nao sio reflexo dos interes. ses populares, mas sim do equilibrio entre as distin. tas fragdes de classe, que intervinham no movimento, Muitas das ‘CapitulacGes’ refletem a hierarquizagao social das diferentes regides, pois os capitaes e diri- sgentes ‘comuneros’ saem das classes dominantes a nivel local e buscam seus préprios interesses, que apresentam como do ‘comin’ Os exemplos que tomamos permitem avaliar com nitidez a diferenca entre uma rebelio em que predominaram os interesses indigenas e outras cu- jos objetivos foram, prioritariamente, ‘‘criollos”. Sua composigio de forcas, a estratégia que adotaram € 0 desfecho que lograram aleangar nao permitem co: locé-las todas num mesmo nivel. Nao obstante a par- ticipagdo indigena tenha sido comum a todos esses movimentos — dada a propria estrutura da socie~ dade colonial ¢ o lugar que esta camada nela ocu- pava —, 0 significado desta participagao adquiriu contornos bastante diferenciados. ‘A contemporaneidade dessas varias insurrei- es, ocorridas todas entre 1780 e 1782, com a rebe- lido de Tupac Amaru contribuiu para que muitos historiadores as tomassem como parte de um mesmo movimento, global e continuo, Construida sob essa visio, a tese emancipacionista ganhou corpo, pois © eixo que unia todas essas revoltas, para esses auto: res, era fundamentalmente o desejo de ruptura da oF dem colonial. Essa interpretacao adquiriu tal consis- téncia que tomou conta da historiografia peruana até recentemente, quando outras correntes comecaram a questionar sua validade. Nesta outra anilise, ques- tes como a fidelidade de Tupac Amaru a Coroa e Igreja, a identidade entre a lideranca e as bases do movimento e 0 problema da restauragio do antigo Império Incaico sao entendidas sob uma nova ética, no necessariamente vinculadas 4 causa indepen- dentista. Essas questdes polémicas, suscitadas pela rebe~ lio, continuam no centro dos debates dos pesquisa- dores. O problema da lealdade de Tupac Amaru ao rei de Espanha se coloca na medida em que o lider rebelde, em muitas de suas cartas e editos, manifes: tou-se contra os abusos dos corregedores e demais autoridades coloniais, em nome do Rei. Afirmava, finda, que sua luta dirigia-se contra o mau governo, endo diretamente contra a Coroa espanhola. Portanto, como conciliara fidelidade que esta ex- pressa nos documentos, com a proposta emancipa- cionista que se atribuiu ao movimento? Autores par- tidarios dessa tese procuraram resolver esse impasse, basicamente, de duas maneiras: ou entenderam essa, atitude do lider como titica para conquistar mais adeptos, ou consideraram que o objetivo emancipa- dor somente prevaleceu devido as presses que as ba ses exerceram sobre a lideranga. Para exemplificar a primeira interpretagio — a fidelidade como tatica — recorremos a Boleslao Le- win, cuja obra é referéncia constante na bibliografia a ‘Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende | 4 pepeliao de Tupac Ama foe: sobre a rebelido. Segundo esse autor, Tupac Amaru, “tendo nogdo clara do atraso das massas indigenas, conhecendo as lendas circulantes entre os indios ene. gros sobre as supostas c&dulas reais de uma genero- sidade enternecedora, e prevendo o temor qi as au- toridades despertavam nessas camadas, acreditou oportuno apresentar-se como representante do rei Carlos III e atuar em seu nome”. Usando a mesma titica, Tupac Amaru pretendia “‘conquistar os espa- nhdis americanos vacilantes ou fidis aos realstas”. Sobre a fidelidade do cacique a Igreja, Lewin afirma que o lider “nao julgava papel preponderante o de- sejo de ganhar o clero para a causa revolucionéria, mas, sim, 0 de nao afastar aos indios crentes e aos ‘criollos A outra anilise, apresentada por Carlos Daniel Valeircel, discute essa controvérsia, contrapondo a fidelidade do lider aos anseios libertadores da massa indigena. De acordo com essa interpretagio, a rebe- lido teria sido “encabegada por um chefe fel ao rei e restaurador do aut@ntico império da lei ¢ da religio oficiis”, em contraposicdo a “uma gente impaciente Por sacudir o jugo estranho, superlativamente into- lerivel”. Esse conflito no seio da rebelifo “faria sur- gir um novo problema: triunfando o cacique, seria ‘muito dificil dar cumprimento a sua missio de leal- dade, podendo ser arrastado pelo ardoroso deseo de libertacio existente na massa. (...) Enquanto a situa: 20 se desenvolveu de maneira favorivel a Tupac Amaru, dominou a finalidade almejada pelo chefes +) no entanto, quando os tempos mudaram ¢ 3s ‘ages tornaram-se desfavoriveis aos revoltosos, as idéias libertérias da massa foram conquistando a alma do cauditho”, ‘No entanto, em nenhum momento, nas varias de- claragdes do lider nos documentos legados pela re- belido, estiveram expressas, de maneira indubitével, as razdes de sua fidelidade & Coroa, se por conviecao ‘ou por necessidade estratégica. Em vista disso, ¢ im- possivel se comprovar a hipétese da tatica. Nao obs- tante, é sobre este duvidoso pressuposto que Lewin fundamenta sua tese, na tentativa de assegurar-lhe necessiria coeréncia, No que se refere & analise de Valeércel, que tam- bém vincula a insurreigo com a independéncia, a separacio entre a fidelidade do lider e os propésites emancipacionistas das bases 36 se sustentaria caso se comprovasse a disparidade entre os objetivos de Tupac Amaru e da massa indigena. Isso no € pos- sivel de ser feito através dos documentos, nem tam- pouco no proceso em que se desenvolveu concreta~ mente a luta. Além do mais, nos objetivos expressos do movimento — 0 fim da exploracao do trabalho da opressio, que pesava sobre as camadas indigenas —, base e lideranga se mantiveram sempre unidas, € foi essa unido que possibilitou o alcance e a fora que arebeliio atingiu, Apesar de recorrerem a explicagdes diferentes, as interpretagdes de ambos os autores convergem num Ponto essencial: consideram a rebelidio tupamarista 0 marco inicial da luta pela independéncia do Peru. Em ambos os casos, a preocupagio em resolver 0 proble- 4 Kiétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende A Rebelito de Tupac Amaru 65 ma da fidelidade do lider ao rei da Espanha aparece ‘como decorréneia da necessidade de se comprovar a tese emancipacionista. E oportuno destacar aqui a posi¢do de Hera- lio Bonilla, para quem a rebeliao tupamarista nao pode ser vista & luz da Independéncia Nacional. Para este autor, “'se é certo que existem proclamos ¢ edi- tos, nos quais Tupac Amaru distingue cuidadosa- mente os ‘eriollos’ dos espanhéis, nao menos certo que ele inicia sua rebeliao em nome do rei e contra 0 mau governo. Tanto em um como em outro caso, & praticamente impossivel discernir entre a tética e a conviegao. Frente a esta impossibilidade, a tinica al- ternativa que resta é decifrar 0 comportamento con- creto dos membros dos diferentes estamentos du- rante a rebelido. Antes de tudo, na ago como se ex- pressam as massas. E aqui parece ser indiscuttvel que a rebeliaio de Tupac Amaru nao s6 nio logrou a fusio de elementos colonialmente separados ¢ opos- tos, como também incrementou a segmentacdo in- terna” (Bonilla, pp. 22 ¢ 23). Portanto, nao se pode fundir, num mesmo projeto, os ideais da rebelido de 1780 e as aspiragdes separatistas dos ‘‘criollos”, vito- riosos na proclamacdo da independéncia, em 1821 Cabe lembrar aqui que o projeto indigena teve como base o fim da exploragio do trabalho e que este pr0- Pésito se opunha, de maneira evidente, aos interesses ‘rriollos” de manutengaio de uma ordem econdmica baseada exatamente nesta submissio. Uma outra questo, amplamente debatida e nfo resolvida, esta colocada na suposta intengao de res- taurar o antigo Império Incaico, pretendida por Tu- pac Amaru e seus adeptos, Nao podemos negar que, mesmo quase trés sé- cculos apés a conquista, a meméria da civilizagao in- caica continuava presente em todos os aspectos da vida indigena, e que este passado despertava um sen- timento de unio e resisténcia, extremamente amea- cador frente ao dominio externo, que se estabeleceu & partir da chegada dos espanhéis. O titulo de Inca, usado por Tupac Amaru, que o identificava como descendente direto da nobreza incaica, conferia-lhe um respaldo que fortalecia sua atuagdo como lider indigena. As proprias autoridades espanholas nio desprezavam 0 poder de seducdo que esse pasado exercia sobre os indios, e as medidas repressivas, to- madas pela Coroa, no sentido de apaziguar 0s @ni- mos exaltados pela rebelido e apagar definitivamente ‘a memoria incaica, reforgam esta afirmacao. Entretanto, afirmar que a intengtio do movi- mento era a restauragao do Império Incaico, implica ignorar todo 0 processo de colonizacao € a nova es- trutura politico-econdmica que dele se originou. ‘Como recuperar uma sociedade tio particular como @ incaica, em pleno século XVIII, quando as transfor- mages politicas, sociaise econdmicas, implantadas a partir da conquista, j4 haviam atingido um alto grau de amadurecimento? Que lugar estaria destinado, neste projeto, aos elementos integrantes da sociedade colonial — negros, mestigos e “eriollos”” — estranhos, civilizagao incaica? Perguntas como estas apontam, para a inviabilidade deste proposito. Além disso, na Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende | ago rebelde nao esteve explicito, em nenhum mo- mento, um plano que visasse ao restabelecimento do Tahuantinsuyo. A historiografia tradicional, ao levantar 0 pro- blema da volta ao Império Inca, o fez na tentativa de destacar a intengao separatista do movimento, ape- sar da contradigao basica existente entre esse suposto projeto indigena e a proposta emancipacionista “criolla”. projeto liberal que se configurou a partir de 1821, visando & formacao do Estado Nacional Pe- ruano, defrontou-se com um empecilho fundamen- tal: a diversidade étnica, cultural e lingistica dos grupos que compunham a antiga coldnia, Como inte- grar num mesmo conjunto elementos to diferencia- dos, cujas tradigdes e valores estavam to nitida- mente separados? A populagdo indigena, cujas origens remonta- vam diretamente & antiga civilizagao incaica, no poderia estar ausente no projeto de constituigao do Estado moderno, almejado pela elite “criolla”. Era imperativo forjar a imagem do “peruano”, resultado de uma sintese destas diferencas, que permitisse transformar os interesses da camada dominante num objetivo global de toda a nagao. E nesse sentido que a rebelido tupamarista foi recuperada como “precursora da Independéncia” € devidamente colocada no nico lugar que the coube dentro do projeto liberal burgués, sobre o qual se edi- ficou a “nagao peruana” VARIAGOES EM TORNO DE UM MITO “Camponts, 0 patri no omeré mais da ‘ua pobrera.” Com esta frase, atribuida a Tupac Amaru, o g neral Velasco Alvarado abriu seu discurso, promul- gando a Lei de Reforma Agraria no Peru, em junho de 1969. Ao recuperar, desta forma, a rebelido — unindo-a ao interesse mais legitimo dos eamponeses, a posse da terra —, 0 governo reformista de Alvarao pretendeu, através de uma identificagdo com as ta- ses, transformar a estrutura da propriedade rural, aumentar a produtividade ¢ inserir esses campone- ses, de maneira mais efetiva, na economia de mer- cado. No entanto, a rebeligo de 1780 nem sempre joi, desse modo, recuperada pela historiografia perusna utilizada nos discursos governamentais. Durante & Kitia Gerab/Maria Angélica Campos Resende A Rebeliao de Tupac Amaru i) uum largo tempo, sua meméria esteve apagada dos registros oficiais, ¢ esse siléncio fala por si s6. Mas, diante da necessidade de se construir a imagem de uma independéncia integradora das diferengas na- cionais, buscou-se encontrar, no pasado, um elo que unisse indios, mestigos, negros e “criollos”. A rebe- lido tupamarista, por sua forga € amplitude, serviu perfeitamente para esse fim Apesar de essa interpretacio continuar predo- minando na produgao historiografica, o movimento rebelde penetrou no pensamento latino-americano or outras vertentes: no somente serviu para emba- sar a quest2o nacionalista na corrente liberal, como também permitiu que em seu nome se levantassem movimentos clandestinos de esquerda, no s6 no Peru de hoje — 0 Movimento Revoluciondrio Tupac Amaru-MRTA, um desafio ao atual governo de Alan Garcia —, como em outras partes do continente. Tomemos 0 exemplo do Uruguai. Ao final da década de 1960, 0 Movimento de Libertacao Nacio- nal-Tupamaros abalou 0 cenario politico uruguaio e sua agdo contestatéria destruiu a imagem de estabili dade politica e social que este pais desfrutava em re lagao aos seus vizinhos da América Latina. O cardter autGnomo e extrapartidario do movimento e a des- renga na ago politica convencional impulsionaram- no para uma agao pratica que permitiu aglutinar, em torno dos seus objetivos, dissidentes dos Partidos Co- munista ¢ Socialista, anarquistas, trotskistas, maofs- fas, bem como catélicos radicais. A ténica naciont- ‘a e antiimperialista deu coesio ao movimento, orientando sua acdo, e, ao buscar no passado colonial peruano o exemplo de Tupac Amaru, o MLN-Tupa: maros retomou a interpretagdo nacionalista que se conferiu a rebeliao de 1780. Entretanto, nao o fez na perspectiva tradicional, integradora e dissimuladora dos conflites, mas enquanto resisténcia a0 dominio cestrangeiro. O exemplo uruguaio demonstra, de modo ex- pressivo, como a figura de Tupac Amaru, ao extra- polar seu papel de lider de uma rebelido indigena, numa realidade especifica — 0 Peru em fins do sé culo XVIII —, transformou-se em simbolo da luta rebelde na América Latina contra a injustiga © a opressio. Ao se desligar do seu momento historico vincular-se a um universo simbélico que transcende 0 temporal, a imagem do lider permanece viva, tor- nando possivel sua invocagio em nome dos ideais mais diversos. E neste proceso que se da a criacdo do mito, Esse mito multifacetado, que emergiu na rebe~ lido tupamarista, foi usado tanto na representagao do ideal nacionaiista como na defesa da causa indi- ena, ou na contestagio da ordem estabelecida. Com. maestria, seu nome foi reivindicado pelo poder cons- tituido e por aqueles que o combateram, pela historia oficial e pelo imaginario popular, pelos “criollos” e pelos indios. Para compreender as contradicdes que, ‘emanam destas varias imagens, é necessario retomar ‘o momento em que Tupac Amaru lutou e os objetivos explicitos do movimento por ele liderado. S6 assim & possivel entender o legitimo sentido da luta rebelde e ™ Kétia Gerab/Maria Angélica Campos Resende © significado das reconstrugdes que dela se origi- naram. Recuperar o processo de construgao desse mito € desvendar, no passado colonial, as origens hist6ricas da marginalizagio a que est4o submetidas, ainda hoje, as populagves indigenas e do fracasso do pro- jeto de integracio nacional peruano. Citando a frase de Tupac Amaru: “Camponés, 0 patrio nao mais comeré de tua pobreza", Velasco Alvarado de- ereta a reforma agréria no dia 24 de junho de 1969 INDICAGOES PARA LEITURA A bibliogratia sobre a Rebelido de Tupac Amaru em. lingua portuguesa é praticamente inexistente. Em vista disso, indicaremos as obras em espanhol que serviram de referéncia para esse trabalho, apesar do dificil acesso a cesses livros (encontrados somente em bibliotecas especi lizadas), ‘As obras de Boleslao Lewin e Carlos Daniel Valea cel sio basicas para o estudo do tema: do primeiro, indi- camos La Rebelién de Tupac Amaru y los origenes de la emancipacién americana, Buenos Aires, Hachette, 1957 — bastante informativa e bem documentada —, e, numa versio resumida, La Insurreccién de Tupac Amaru, Bue nos Aires, EUDEBA, 1963; de C. D. Valeéreel, podem ser consultadas La Rebelién de Tupac Amaru, Ciudad de México, Fondo de Cultura Econémica, 1947, ou La Rebelién de Tupac Amaru, Lima, Ediciones Peisa, s. d. (verso condensada). Também € de interesse 0 livro de Juan José Vega, José Gabriel Tupac Amaru, Lima, Edi- torial Universo, 1969, que trata das relagdes entre as

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