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‘s América — Historia, Deliio e Outres Magias — Leon Pomer '* O Controle do Imaginstio — Luiz Casta Lima + Paginas Cubanas — Nicolés Guillén + Os Pobres na Literatura Brasileira ~ Diversos Autores Coleco Primeiros Passos = Oque é Cultura — José Luis dos Santos + Oqueé Histéxia — Vavy Pacheco Borges ++ Oque é Ideologia — Marlena Chau! + Oque€ indéstris Cultural — Tenoira Coalho ue sko Intelectusis — Hordcio Gonzalez que é Literatura — Marisa Lajolo O que é Poesia — Fernando Paixéo + Oque Poittica Cultural — Martin Cezar Fojis Colegio Tudo 6 Histéria ‘As Independéncias na Amética Latina — Leon Pomer + 0 Populisimo na América Latina — Maria Ligia Prado Coleeao Encanto Radical * Alejo Carpentier — Em Busca do Real Maravilhoso — Jorge Quiroga ++ Georg Lukécs — 0 Guerreiro Sem Repouso ~ José Paulo Netto ‘= Roland Barthes — 0 Saber com Sabor ~ Leyla Perrone: Moisés = Walter Benjamin — Os Cacos da Historia — Jeanne IM, Gagnebin age Angel Rama A cidade das letras Introdugao: Mario Vargas Llosa Prélogo. Hugo Achugar Traducdo: Emir Sader fh brasiliense 1985 n ANGEL RAMA Teria que estendé-lo a muitos, muitos mais, sobretedo no campo dos estudos de literatura espantiola, cue é 0 meu, com temor sempre de esquecer um nome, Ser-me-4 permitida que eu 0s represente a todos com um jornalista, porque nele eu vi encarnado esse tenaz mito cultural norte-americano, a que me refiro em meu ensaio, o do jornalista que se joga pela verdade e nada o faz ceder na luta. Foi, para mim, Fred Hill, do The Sun, de Baltimore. Durante as longas conversas para que ele conhecesse objetivamente todos os dados, pensei que pouco me importava perder 0 caso, $2 eu ganhava um amigo norte- americano ¢ conhecia a melhor linhagem do espirito livre do pais. Angel Rama A cidade ordenada Desde « remodetacto de Tenochtitlan, logo depois de sua destruigdo por Hernan Cortés em 1521, até a inauguracdo, ‘em 1960, do mais fabuloso sonho de urbe de que foram capa- zes 0s americanos, a Brasilia, de Lticio Costa e Oscar Nie- meyer, a cidade latino-americana yeio sendo basicamente um parto da inteligéncia, pois ficou inscrita em um ciclo da cul- tura universal em que a cidade passava a ser um sonho de uma ordem e encontrou, nas terras do Novo Continente, o énico lugar propfcio para encarnar. Os proprios conquistadores que as fundaram perceberam progressivamente, no transcurso do século XVI, que se ha- viam afastado da cidade orgdnica medieval em’ que haviam nascido e crescido para entrar em uma nova distribuicao do espaco, que enquadrava um novo modo de vida, que j4 nao era o que haviam conhecido em suas origens peninsulares. veram que se adaptar dura e gradualmente a um projeto que, como tal, nao escondia sua consciéncia racionalizadora, nio Ihe sendo suficiente organizar os homens dentro de uma repe- tida paisagem urbana, pois também requeria que fossem mol- dados com destino a um futuro, do mesmo modo sonhado de forma planificada, em obediéncia as exigéncias colonizado- administrativas, militares, comerciais, religiosas, que se um impondo com crescente rigidez. Ao cruzarem o Atlantico, no somente haviam passado de um continente velho a um supostamente novo, mas haviam Py ANGEL RAMA atravessado o muro do tempo ¢ ingressado no capitalismo ex- pansivo ¢ ecuménico, ainda carregado do missioneirismo me- dieval. Ainda que preparado pelo espfrito renascentista que 0 desenha, este molde da cultura universal que se desenvolve no século XVI somente adquiriria seu aperfeigoamento nas mo- narquias absolutas dos Estados nacionais europeus, a cujo servico militante se somaram as Igrejas, concentrando rigida- mente a totalidade do poder numa corte, a partir da qual se disciplinava hierarquicamente a sociedade. A cidade foi o mais precioso ponto de insergo na realidade desta configura- cdo cultural e nos deparou com um modelo urbano de duracao secular: a cidade barroca.' Pouco podia fazer este impulso para mudar as urbes da Europa, pela sabida frustrag3o do idealismo abstrato diante da concreta acumulagio do passado histético, cuja obstinagko material freia qualquer livre v6o da imaginacao, Em compen- sagdo, dispés de uma oportunidade tinica nas terras virgens de um enorme continente, cujos valores préprios foram ignora- dos pela cegueira antropoldgica, aplicando 0 principio dé ta- bula rasa; Esse comportamento permitia negar ingentes cul- turas — ainda que elas tivessem de sobreviver ¢ infiltrar-se de maneira dissimulada na cultura imposta — ¢ comegar ex-ni- hilo 0 edificio do que se pensava ser mera transposicto do pasado, quando na verdade foi a realizagio do sonho que comegava a sonhar uma nova época do mundo. A América foi a primeira realizado material desses sonhos e, seu lugar, cen- tral na edificacHo da era capitalist.” 1) V, J. H, Pany, The Gites of the Conquistadores, Londres, 1981; Rodolfo Quintero, Antropolagla de las cludades latinoemericanas, Caracas, 1964; James Rh. Scoble, Argentine: A City and a Nation, Nova loraue, Oxtor Press, 1954; Usbanizatian In Latin Amonca: Approsches and Issues, Garden City, Anchor Books, 1975 Jorge E. Hardoy, ed.) Las ciudades de América Le tina y sus oreas de influencia@ través de la histori, Buenos Aires, SIAP, 1875 (Jorge. Hardoy, Richard P. Schaedel, ed); José Luis Romero, Latinoamé- rica: as ciudades yl ideas, México, Siglo XXi, 1978; Asentamientos urbanos Yrorganizecion socioproductiva en fa historia de América Latina, Buenos Aires, SIAP, 1977 (Jorge E. Hardoy, Richard P. Schaedel, ed. (2) Robert Ricard, Le “conguéte espirituello” du Méxique, Paris, Ins titut dEtnologie, 1933; Sivio Zavala, La flesofia poltice en fa conquisie do América, Mixico, 1947, ‘I V. Inmnenuel Wallerstein, The Modern Werld-System, Nova torque, Academic Press, 1974-80, 2vols. A CIDADE DAS LETRAS 2s Apesar dos adjetivos que acompanharam os velhos nomes originarios com que designaram as regides dominadas (Nova Espanha, Nova Galicia, Nova Granada), os conquistadores nao | reproduziram 0 modelo das cidades da metropole de que haviam partido, ainda que inicialmente vacilassem e pareces- sem demorar-se em solugdes do passado.’ Gradualmente, de forma inexperiente, foram descobrindo a tela redutora que filtrava as experiéncias velhas jA conhecidas, 0 stripping down Process, como designou George M. Foster® 0 esforgo de clari- ficago, racionalizagao e sistematizagdo que a propria expe- 1iéncia colonizadora ia impondo, respondendo jé nfo a mode- Jos reais, conhecidos ¢ vividos, mas a modelos ideais concebi- dos pela inteligéncia, que terminaram impondo-se regular € rotineiramente na medida da vastidio da empresa, de sua concepgao organizativa sistematica. Atrayés do neoplatonismo, que serviu de condutor cultu- ral para o impulso capitalista ibérico, foi recuperado 0 pensa- mento que ja havia sido expresso em La Republica, revivida pelo-humanismo renascentista, e ainda pelo pensamento do quase mitico Hippodamos, pai grego da cidade ideal, sobre- tudo sua “confidence that the process of reason could impose measure and order on every human activity", ainda que, como percebeu Lewis Mumford, “his true innovation consisted in realizing that the form of the city was the form of its social order"? Sua imposigao nos séculos XVI e XVII, no que cha- mamos de idade barroca (que os franceses designam como a época classica), corresponde a esse momento cricial da cul- tura do Ocidente em que, como viu sagazmente Michel Fou- cault, as palavras comecaram a separar-se das coisas e a trif- dica conjungao de umas ¢ outras através da conjuntura cedeu ao binarismo da Logique de Port Royal que teorizaria a inde- (4) Jorge E. Hardoy, 6 modelo clésico de Ie ciuded colonial hispano. femerana, Buenas Aisne De Tel 188 orge M, Foster, Cutture and Canquest: America’s Spanish Heri- {age, Nove lore, Wenner‘Gren Foundation for Anthopologies! Research, (are Mut, th ein ay. Noa ee, Hot, Se & World, 1961, p. 172. “ - Sc arn ea psd gt eins ema ne aes Se get See eee * ANGEL RAMA pendéncia de ordem dos signos.’ As cidades, as sociedades que as habitardo, os letrados que as explicardo, se fundem ¢ se desenvolvem no mesmo tempo em que o signo “‘deixa de ser uma figura do mundo, deixa de estar ligado pelos lagos s6lidos e secretos da semelhanca ou da afinidade com 0 que marca”, comega a “significar dentro do interior do conhecimento”, € “dele tomara sua certeza ou sua probabilidade”.* Dentro dessa vertente do saber, gragas a ele, surgirao cidades ideais da imensa extensto americana, Serio regidas por um razio ordenadora que se revela em uma ordem social hicrérquica transposta para uma ordem distributiva geomé- trica, Nao é a sociedade, mas sua forma organizada, que é transposta; € nfo a cidade, mas a sua forma distributiva. O exercicio do pensamento analégico se disciplinava para que funcionasse validamente entre entidades do mesmo género. Nao vincula, entio, sociedade ¢ cultura, mas suas respectivas formas, que séo percebidas como equivalentes, permitindo que leiamos a sociedade ao ler o mapa de uma cidade. Para que esta conversio fosse possivel era indispensével que se tran- sitasse através de um projeto racional prévio, que foi o que magnificou e a0 mesmo tempo tornou indispensavel a ordem dos signos, reclamando-se deles a maior liberdade operativa de que fosse capaz. Ao mesmo tempo, esse projeto exige, para sua concepgao e execuco, um ponto de maxima concentra¢ao do poder que possa pensé-lo ¢ realiz4-lo. Esse poder j4 é visi- vyelmente temporal e humano, ainda que se mascare ¢ legitime através dos absolutos celestiais. E préprio do poder necessitar de um extraordinario esforgo de ideologizacdo para se legiti- mar; quando se despedagarem as mascaras religiosas, cons- truiré opulentas ideologias substitutivas. A fonte méxima das ideologias procede do esforco de legitimaco do poder. A palavra chave de todo esse sistema 6 a palavra ordem, ambigua em espanhol como um Deus Jano (0/a), ativamente desenvolvida pelas trés maiores estruturas institucionalizadas (a lereja, o Exército, a Administragio) ¢ de utilizagao obriga~ t6ria em qualquer dos sistemas classificat6rios (historia natu- ral, arquitetura, geometria) de acordo com as definig&es rece- (7) Miche! Foucault, Les mots @ es choses, une archéologie des scien- ces humaines, Pats, Galimard, 1988, cap. IV. (6) Ob-cit, trad. exp, México, Siglo XXI, 1968, p. 64-65. } ‘A CIDADE DAS LETRAS n bidas do termo: “Colocagto das coisas no lugar que Ihes « responde. Conserto, boa disposicdo das coisas entre i. Regra ou modo que se observa para fazer as coisas”. E a palavra obsessiva que utiliza o Rei (seu gabinete le- trado) nas instrugdes comunicadas a Pedrarias Davila, em 1513, para.a conquista de Terra Firme que, logo depois da experiéncia antilhana de acomodacio espanhola ao novo meio, permitiré a expansiva e violenta conquista ¢ colonizacdo. Se, como era de se esperar (ainda convém sublinhar) as instrugdes colocam toda a colonizago na dependéncia absoluta dos inte- resses da metrépole, tragando jé a rede de instalacdes costei- ras das cidades-portos que tanto dificultarao a integragio na- cional chegado o momento dos estados independentes, seu ponto sétimo fixa o sistema reitor, a que deverio se ajustar as cidades que sejam fundadas no continente: “Vistas as coisas que para os assentamentos dos lugares so necessérrias, e escolhido o lugar mais proveitoso e em que abun- dem as coisas que para 0 povo sio necessérias, tereis de repar- {ir os solares do lugar para fazer as casas, e deverfo ser repar- tidos conforme as qualidades das pessoas e sero inicialmente dados por ordem: de maneira que feitos os solares, 0 povo pa- rega ordenado, tanto no lugar que se deixe na praga, como 0 Jugar que tenha a igreja, como na ordem que tiveram as Tuas; Porque os lugares que, de novo se fazem, dando a ordem no comeco sem nenhum trabalho nem custo ficam ordenados e os A transladagao da ordem social a uma realidade fisica, no caso da fundagio das cidades, implicava o desenho urba- nistico prévio mediante as linguagens simbélicas da cultura sujeitas 4 concepeao racional. Mas se exigia desta que, além de compor tum desenho, previsse um futuro. De fato, o desenho devia ser orientado pelo resultado que se haveria de obter no futuro, conformeo texto real diz explicitamente. O futuro que ainda nao existe, que é apenas sonho da razio, é a perspectiva genética do projeto. A transladagao foi facilitada pelo yigo- (9) Coleecisn de documentos inéltos relativas af descubrimiento, con: ‘wistay colonizacin, Madi, 1884-1864, t. XXXIX, p. 280: i i ANGEL RAMA desenvolvimento alcangado na época pelo sistema mais Se ae ence ticas, com sua aplicagao na geometria analitica, cujos méto- dos j4 haviam sido estendidos, por Descartes, a todos os cae os doconhesimento humano, por entendé-Ios 0 nios vA ti seguros e nao contaminados. oe eeastade nz América Latina fol 0 desenko tpo tabu- Ieiro de damas, que reproduziram (com ou sem plano estrutu- rado) as cidades barrocas e que se prolongou praticamente ie os nossos dias, Poderia ter sido outra a constituicéo geomé- trica, sem que por isso ficasse afetada a norma central que regia a transladagao, De fato, o modelo freqiente no pensa- ‘mento renascentista,” que derivou da ligao de Vitruvio, con- forme o expdem as obras de Leon Battista Alberti, Jacopo Ba- rozzi Vignola, Antonio Arvelino Filareta, Andrea Palla ‘io, etc., foi circular e ainda mais revelador da ordem hierérquica que o inspirava, pois situava o poder no ponto central e i bufa a seu redor, em sucessivos circulos concéntricos, os di- versos estratos sociais. Obedecia aos mesmos principios regu- ladores do tabuleiro de damas: unidade, plani icago e ordem rigorosa, que traduziam uma hierarquia social. Tanto um ‘como outro modelo eram apenas variagées de uma mesma concepgao da razao ordenadora, que impunha que a planta urbana se desenhasse a cordel y regla como dizem freqiiente- mente as instrug6es reais aos conquistadores. : Tal como observara Foucault, fa que faz eee i da episteme classica é, antes de mais nada, a relagao oot conecimento da ordem”." No caso das cidades, esse conhecimento indispensdvel havia introduzido o principio do planning. O lluminismo se encarregaria de robustecé-lo, como época confiante nas operagdes racionais que foi, e os tempos: contemporfneos alcancaria rigida institucionalizacdo. Tam- ‘bém promoveria suficiente inquietude acerca de seus resulta- dos, para inaugurar a discussio de suas operagies e desenhos mas, sobretudo, das filosofias em que se ampara.' {10) Gio Argon, The Reniesnce Cy, Nova logue, George Beier, bine (11) Ob. 78. tp. a {12} Maru Cou, Penning Theory and Phitsophy, Lore, Tove took Puetons 157, ‘A CIDADE DAS LETRAS » Do exposto se deduz que muito mais importante do que a forma do tabuleiro de dama, que motivou ampla discussio, © principio reitor que funciona atras dela e assegura um re- gime de transmissdes: do alto para baixo, da Espanha a Amé- ica, da cabega do poder — através da estrutura social que ele impde — a constituigao fisica da cidade, para que a distribui- so do espaco urbano assegure e conserve a forma social. Mas ainda mais importante é o principio postulado nas palavras do Rei: com anterioridade a toda realizago, se deve pensar na cidade, 0 que permitiria evitar as irrupgées circunstanciais alheias as normas estabelecidas, entorpecendo-as ou destruin- do-as. A ordem deve ficar estabelecida antes de que a cidade exista, para impedir assim toda futura desordem, o que alude & peculiar virtude dos signos de permanecerem inalterdyeis no tempo e seguir regendo a mutante vida das coisas dentro de rigidos marcos. Foi assim que se fixaram as operagdes funda- doras que foram se repetindo através de uma extensa geogra- fia e um extenso tempo. Uma cidade, previamente a sua aparicao na realidade, devia existir numa representagdo simbélica que obviamente s6 podia assegurar os signos: as palavras, que traduziam a von- tade de edificé-Ia na aplicagao de normas e, subsidiariamente, 95 diagramas gréficos, que as desenhavam nos planos, ainda que, com mais freqléncia, na imagem mental que desses pla- nos tinham os fundadores, os que podiam sofrer correcdes derivadas do lugar ou de priticas inexpertas. Pensar a cidade ‘competia a esses instrumentos simbélicos que estavam adqui- indo sua pronta autonomia, que os adequaria ainda melhor 4s fungdes que Thes reclamava o poder absoluto. Apesar de que se continuou aplicando um ritual impreg- nado de magia para assegurar a posse do solo, as ordenancas reclamaram @ participagio de um script (em qualquer de suas expresses divergentes: um escrivio, um escrevente ou até um escritor) para redigir uma escritura, A esta se conferia @ alta missdo que se reservou sempre aos escrivaes dar fé, uima f€ que s6 podia proceder da palavra escrita, que ini ciou sua esplendorosa carreira imperial no continente, Esta palavra escrita viveria na América Latina como a nica valida, em oposigao a palavra falada que pertencia ao reino do inseguro e do precério. Mais ainda, se péde pensar % ANGEL RAMA que a fala procedia da escritura, numa percepgdo anti-saussu- riana. A escritura possuia rigidez e permanéncia, um modo auténomo que arremedava a eternidade. Estava livre das vi- cissitudes € metamorfoses da historia, mas sobretudo, conso- lidava a ordem por sua capacidade de expressé-la rigorosa- mente ao nivel cultural. Sobre esse primeiro discurso orde- nado, proporcionado pela lingua, se articulava um segundo que era proporcionado pelo desenho gréfico. Este superava as virtudes do primeiro, porque era capaz de eludir o pluri semantismo da palavra e porque, além disso, proporcionava conjuntamente a coisa que representava (a cidade) ¢ a coisa representada (o desenho) com uma maravilhosa independén- cia da realidade, tal como trasluzem com orgulho as descrigées das épocas. Da fundagao de Lima por Pizarro, em 1535, que tantas criticas motivou no pensamento peruano da Reptiblica, nos dizem com candura que “foi assentada e tracada a cidade conforme a planta e 0 desenho que se fez para isso no papel”. plano foi desde sempre o melhor exemplo de modelo cultural operativo. Atras de seu aparente registro neutro do real, insere o marco ideolégico que valoriza e organiza essa realidade, autorizando todo tipo de operagtes intelectuais a partir das suas proporgdes, préprias de modelo reduzido. E 0 exemplo a que recorre Clifford Geerts quando busca definir a ideologia como sistema cultural,” mas inicialmente, assim 0 estabelebeu a Logique, de Port Royal, em 1662, quando esta~ beleceu a diferenca entre “as idéias das coisas ¢ as idéias dos signos”, codificando jé a concepeiio moderna. Também ape- lou para o modelo privilegiado de signos que representam os mapas, os quadros (¢ 0s planos), em que a realidade € absor- vida pelos signos: Quand on considere un objet en lui-méme et dans son propre Gtre, sans porter la vue de lesprit d ce qu'il peut répresenter, Vidée qu’on en a est une idée de chose, comme Vidée de la terre, du soleil. Mais quand on ne regarde un certain objet que comme en représentant un autre, 'idée qu‘on en a est un idée de signe, et ce premier objet s‘appelle signe. C'est ainsi qu'on (13) “Ideology as 2 Cultural System’ em: David E. Ap logy and Discontent, Nova lorque, Free Press, 1964; The Interpretation of Cu tures, Nove lorque, Basic Books, i973. 4), Idea ACIDADE Das LETRAS 3 regarde dordinaire les cartes et les tabla. Aina l signe enferme devs ites, une dla chose qu presente: Puan de Ja chose représentée; et sa nature consiste a exciter la ‘a chose reprdsents ‘onsiste d exciter la seconde Para sustentar sua argumentagao, Arnauld-Nicole devem Pressupor uma primeira opcdo, que consiste em perceber 0 objeto como signo, tipica operagao intelectiva que nfo tem melhor apoio que os diagramas, os quais, ao mesmo tempo Que representam, como nao imitam, adquirem uma autono- mia maior. Nas maximas que extraem, Arnauld-Nicole devem logicamente concluir que o signo ostenta uma perenidade que éalheia 4 duragao da coisa. Enquanto 0 signo existe esta asse- gurada sua propria permanéncia, ainda que a coisa que repre- sente possa haver sido destruida. Desse modo, fica consagrada a inalterabilidade do universo dos signos, pois eles nao esto submetidos ao decaimento fisico, mas somente 4 hermenéu- ica. figurée, fant que cet effet subsiste, c’est-d-dire tant que cette chose serait détruite en sa proprie nature.**'5 A partir dessas condigées, € possivel inverter 0 processo: em vez de representar a coisa jé existente mediante signos, (Quand se considra um oats nel mesmo © no seu pido spr vogo tp eae cna. mt wr 12 ¢une ia de ota, como aa dra de ol Mowe ee Seep muni doumavsicdegitetan ts ate, gus seo pra a cara 0 co gundes, Aon vgn ee uma de coisa que represent, outta de coin rpieeon ose ‘ ‘era consistgem ox a sgunda graves open (*) Podesse con ae, a Que ¢nturve do signa conse om exc ‘= nos sentdes sven 3 as do cis punts gee ‘onto tal efeto subsist, ou sna, enquonto esse dni ea pomonace or © 39 subse, meso Que aus coe see Henna a ence (14) Antoine raul, Pare Neos, Lagique ov Fart de penser, Pa ULF, 1985 Piere Cla, Frongoi Gia ed) 80. “POM. Pa (15) fbidem, p. 54, : = ANGEL RAMA stes se encarregam de representar 0 sonho da coisa, ‘tio ar Genemente desejada nessa época de utopias, Canney : nho a essa futuridade que governaria os tempos mc ao e alcangaria uma apoteose quase delirante nos tempos cont ed atincos. O sono de uma ordem servia para perpetuat 0 PO der e conservar a estrutura sécio-econdmica ¢ cultural me peter parantia. E, além disso, se impunha a qualquer dis- ‘curso opositor desse poder, obrigando-a a transitar, previa- *10 sonho de outra ordem. arse conformidade com esses procedimentos, as cidades ameticanas foram remetidas desde as suas origens a uma du- bis vida, A correspondente A ordem fisica que, por ser sensi vel, material, esta submetida aos vaivéns da construgao e da Yestruigdo, da instauracio e da renovagdo, e, sobretudo, 20s eepulsos da invengio circunstancial de individuos e grupos segundo seu momento € situacao. Acima dela, a dente a ordem dos signos que atuam a nivel simbélico, desde antes de qualquer realizacio, e também durante e depois, pois Gispoem de uma inalterabilidade a que pouco comeernem 0s avatares materiais. Antes de ser uma realidade de ruas, cas: sMpragas, que sb podem existir¢ ainda assim gradualmente, oars curso do tempo historico, as cidades emergiam j completas por um parto da inteligéncia nas normas que as feorizavam, nos atos fundacionais que as estatufam; nos pla: nos que as desenhavam jdealmente, com essa regularidade fatal que espreta aos sonhos da azio e que, deperaria um principio que para Thomas More era motivo de glorif a oando diria em sua Utopia (1516): “He who knows one of the cities, will know them all, so exactly alike are they, he where the nature of the grounds iver * A mecanicidade nhos da razio fica aqui consignada. cee des ips gonhos dos arquitetos (Alberti, Filarete, Vitruvi) ou dos utopistas (More, Campanella) pouco encarnou na reali- dade, mas em compensagao fortificou a ordem dos signos, sua eculiar eapacidade reitora, quando foi assumido pelo poder absoluto como o instrumento adequado & conduc3o hierar- sidedes conece-as todes, do ta (4) "Aquele que conhece ume das cidades 25 todas, forma ties 80 exatomvente iguals, exceto no que a natureza Go terreno pede.” —— ACIDADE DAS LETRAS 2 quica de impérios desmesurados. Ainda que se tratou de uma circunscrita e datada forma de cultura, sua influéncia desbor- daria esses limites temporais por alguns tracos privativos de seu funcionamento: a ordem dos signos imprimiu sua poten- cialidade sobre o real, fixando marcas, se nfo perenes, pelo menos to vigorosas para que ainda subsistam hoje e as en- contremos em nossas cidades; mais radicalmente, na iminén- cia de ver esgotada sua mensagem, demonstrou assombrosa capacidade para rearticular uma nova, sem por isso abando- nar sua primazia hierarquica ¢ ainda se diria que robuste- cendo-a por outras circunstancias hist6ricas. Essa poténcia, que corresponde a liberdade e futurizacao das suas operagtes, se complementou com outra simétrica que consistiu na evaporagdo do passado: os séculos XV-XVI, longe de efetuar um renascimento do classicismo, cumpriram sua transportacdo ao universo das formas. Ao incorporé-lo & or- dem dos signos, estabeleceram o primeiro e esplendoroso mo- delo cultural operativo da modernidade, pré-anunciando a mais vasta transubstanciacio do passado que efetuaria o his- toricismo dos séculos XVIII-XIX. A palingenesia renascen- tista facilitou a expansio da Europa e foi decuplicada pela alingenesia do Iuminismo que assentou as bases da domi- naco universal. Falando com simpatia de seus historiadores, Peter Gay estabelece que contribuiram com sua parte a um esforgo sistematico geral ‘to secure rational control of the world, reliable knowledge of the past and freedom from the pervasive domination of myth” *"* Cada vez mais, historiadores, economistas, filésofos, re~ conhecem a incidéneia capital que a descoberta e colonizacao da América teve no desenvolvimento, nao somente sécio-eco- némico mas também cultural da Europa, na formulacao de sua nova cultura barroca, Se poderia dizer que’o vasto Impé- rio foi o campo de experimentacio dessa forma cultural. A primeira aplicacdo sistematica do saber barroco, instrumen- tado pela monarquia absoluta (a Tiara e 0 Trono reunidos), se (©) "Para garantir um controle racional do mundo, um conhecimento contavel do passado eliberago do dominio difuso do mito.” (18) Tho Enlightenment: an Interpretation. The Rise of Modern Paga- ‘iam, Nova torque, The Norton Library, p36. 4“ ANGEL RAMA fez no continente americano, exercitando seus rigidos princi- pios: abstragao, racionalizagio, sistematizagao, opondo-se individualidade, imaginagao, invengdo local. De todo o conti- nente, foi no segmento que muito mais tarde terminaria cha- mando-se Latino, que se intensificou a fungio prioritaria dos signos, associados e encobertos sob 0 absoluto chamado Espi- tito. Foi uma vontade que desdenhava as constrig6es objetivas da realidade ¢ assumia um posto superior ¢ autolegitimado; desenhava um projeto pensado ao qual se deveria curvar realidade. Essa concepcao nao surgiu, obviamente, da neces- sidade de construir cidades, ainda que estas tenham sido seus los privilegiados, os enclaves artificiais em que seu artificioso e aut6nomo sistema de conhecimento podia funcionar com mais eficécia. As cidades foram aplicagdes concretas de um marco geral, a cultura barroca, que infiltrou a totalidade da vida social e teve expresso culminante na Monarquia espa- hola. ‘A esses tragos se deve acrescentar as surpreendentes caracteristicas da conquista de Terra Firme, “reperée, explo- rée et grossiérement saisie au cours des trois premidres décen- nies du XV siécle a un rithme insensé, jamais égalé”.*" Nas antipodas do critério de uma frontier progressiva, que regeria a colonizagao dos Estados Unidos” e a primeira época da conquista do Brasil pelos portugueses, a conquista espaxhola foi uma frenética cavalgada por um continente imenso, atra- vyessando rios, selvas, montanhas, de uma extensio proxima a der. mil quil6metros, deixando a sua passage uma fileira de cidades, praticamente incomunicaveis ¢ isoladas no imenso vario americano, s6 percorridas por aterrorizadas populagbes indigenas. Com uma mecinica militar, foram inicialmente os fortes que permitiram 0 avango ¢ seriam depois as correias de transmissio da ordem imperial. Da fundacio do Panamé por Pedrarias Divila (1519) A de Concepcion no extremo sul chi- 18s (+) “Locelizade, explorada o grosssiramente conquistada durante primeiras décadas do século XV num ritmo insensato, nunca igualedo.” (17) Pierre Chaunu, L’Amérique et les Amériques, Pars, Armond Colin, 1964, p. 12. (18) Ver, no entanto, a obre do um discipulo de Frederick Jackson Tur- ner, aplicando suas teses & América Latina: Allstale Henmessy, The Frontior in Latin Americe History, Albuquerque, University of New Mexico Press, 1978. ‘A CIDADE DAS LETRAS a5 Jeno por Valdivia (1550), passaram efetivamente s6 trinta anos. Nesta Gltima data, jé estavam funcionando os Vice-re nados do México e do Peru, sob a conducdo dos que “‘deviam preservar no Novo Mundo o carter carismético da autori- dade, que esté baseado na crenga de que os reis 0 eram pela graca de Deus”.” Mais do que uma fabulosa conquista, ficou comprovado triunfo das cidades sobre um imenso e desconhecido territé- rio, reiterando a concepedo grega que opunha a polis civili- zada a barbirie dos nao urbanizados.” Mas ndo reconstruia 0 processo fundacional de cidades que havia sido a norma euro- péia, invertendo-a precisamente: em vez de partir do desen- volvimento agricola que gradualmente constitufa seu pélo ur- bbano, onde se organizava o mercado e as comunicagdes com 0 exterior, iniciava-se com esta urbe, minima, é claro, mas as- sentada as vezes no vale propfcio que dispunha de agua, espe- rando que ela gerasse 0 desenvolvimento agricola. “J’avoue aussi étre fasciné — disse um historiador — par histoire de ces villes américaines qui poussent avant les campagnes, pour Te moins en méme temps qu'elles”.*"' Parte-se da instauracao do povoado, conforme normas preestabelecidas, e freqliente- ‘mente se transforma violentamente os que haviam sido cam- poneses na Peninsula Ibérica em urbanizados, sem conseguir ‘nunca que voltem as suas tarefas primitivas: serdo todos fi- dalgos, se atribuirao 0 don nobiliarquico, desdenharao traba- Ihar com suas maos e simplesmente dominarao os indios que Ihes sto encomendados ou os escravos, que comprem. Pois, 0 ideal fixado desde as origens é 0 de ser urbano, por insigni- ficantes que sejam os assentamentos de que se ocupem, ao mesmo tempo em que se the encomenda & cidade a construgio (7) “Confesso tembsm meu fescilo pela Nistria dessas cidades da “América que crescem antes do campo, ou pelo menos 20 mest man es do campo, ot al "9 tompe que 191 Richard Konetzke, América Latina, 1, La 6poca colonial, Masti ‘Siglo XXI, 1972, p. 119. eae See eee CO (20) Sobre a adaptacto do ethos urbano grego Bs novas condicBee Novo Mundo, 6 ersalo de Richard Morse," Paawork for Lan American en tony Urbanite Arora poroahes and ave, 2 * 121) Femand Braudel, Civilization matériel, économie et capitalisme, Xve-Xiiesidtet.3, eemps monde, Pais, Armand Coin, 178: p. 348, 6 ANGEL RAMA de seu contorno agricola, explorando sem piedade & massa escrava para uma rapida obtencZo de riquezas. A cidade € a ascensio dos novos ricos so fatores concomitantes, a ponto de que se ver4 o desperdicio suntuoso nos pequenos povoa- dos (sobretudo mineiros), que nas capitais do vice-reinado e se sucederao os &ditos reais proibindo 0 uso de carros, cavalos, vestidos de seda, sem conseguir frear um apetite que, fixado coma modelo na cabeca dos povos pelos ricos conquistadores, sera imitado arrasadoramente por toda a sociedade até os es- tratos mais baixos, tal como o viu Thomas Gage em seu pito resco livro. Claro que as cidades barrocas da intempestiva conquista nao funcionar’o num vazio total. Como assinala Fernand Braudel em seu notvel livro, quando desenha as regras da economia-mundo, “le capitalisme et l'économie de marché coexistent, s'interpénétrent, sans toujours se confondre"™ de tal forma que estas cidades irreais, desligadas das necessi- dades do meio, verdadeiros barcos, se no extraterrestres, pelo menos, extracontinentais, aproveitardo em seu beneficio as preexistentes redes indigenas, suas zonas de cultivo, scus mercados e sobretudo a forca de trabalho que proporciona- vam. A abrupta insercio capitalista nfo destruird essa eco- nomia de mercado que permanecer& como um baixo perfil durante séculos, murchando-se continuamente. Caberd a elas serem 0 pontos onde se produz a acumulaco mediante a concentracdo dos recursos ¢ riquezas existentes ¢ o fardo com uma ferocidade que patenteia a violéncia da mudanga intro- duzida na vida das comunidades indigenas. ‘A forca desse sentimento urbano fica demonstrada por sua longa sobrevivéncia. Trezentos anos depois, ja na época dos novos estados independentes, Domingos Faustino Sar- miento continuard falando em seu Facundo (1845) das ci- dades como focos civilizadores, opondo-se aos campos, onde via engendrada a barbérie. Para ele, a cidade era o tinico re- (+) "0 cepiteliamo 0 a economis de mercado coexistem, se interpene- ‘tram, sem que por isso se confundam.”” (22) Thomas Gage, Nueva Relecién que contiens los vgies de Thomas Gage en fa Nueva Espafa, Guatemala, Biblioteca Guatemala, 1948 (Primera cecigSo: Londres, 1648). (23) Fernand Braudel, ob. ct. p. 25. A CIDADE DAS LETRAS a cepticulo possivel das fontes culturais européias (apesar de que agora teriam passado de Madri a Paris), a partir das uais se construiria uma sociedade civilizada. Para consegui- Jo, as cidades deviam submeter o vasto territério selvagem onde se encontravam assentadas, impondo-Ihes suas normas. A primeira delas, no obsessivo pensamento sarmientiano, era a educagio das letras. Viveu para vé-lo ¢ para pé-lo em pré- tica. Apenas meio século depois do Facundo, quando as dades desenvolveram a batalha frontal para se impor aos campos, utilizando 0 poderio militar de que haviam sido do- tadas pela sua relagio com as metrépoles externas, o brasi- leiro Euclides da Cunha, que pensava da mesma maneira que Sarmiento, comecou a duvidar dessas premissas civilizadoras quando presenciou a camnificina da guerra no sertéo de Ca- nudos ¢ 0 relatou de forma pessimista em Os Sertées, (1902). Orreverso da modernizagdo capitaneada pelas cidades se havia mostrado nua e nao era agradavel. As cidades da conquista desenfreada no foram simples {eitorias, Eram cidades para permanecer e, portanto, focos de progressiva colonizagao. Por longo tempo, no entanto, nao puderam ser mais do que fortes, mais defensivos do que ofen- sivos, recintos amurados dentro dos quais se destilava o espi- rito da polis e se ideologizava sem limite o superior destino civilizador que the havia sido assignado. Nao foi raro que os textos literdrios 0 transpusesse “para o divino”, como fez no México, em fins do século XVI, o presbitero Fernin GonzAlez de Eslava nos seus Coldquios espirituais ¢ sacramentais: os sete fortes que uniam a cidade do México com as minas de rata de Zacatecas e permitiam o transporte seguro & capital vice-real das riquezas, se transformaram em nada menos que 0s sete sacramentos da religido catélica. Ainda que isolada dentro da imensidao espacial e cul- tural, alheia e hostil, competia as cidades dominar e civilizar seu contorno, o que primeiro se chamou “evangelizar” e de- pois “educar”. Apesar de que o primeiro verbo foi conjugado elo espirito religioso e o segundo pelo leigo e agnéstico, tra- tava-se do mesmo esforco de transculturacdo a partir da licio européia. Para esses fins, as cidades foram sedes de Vice-reis, | Governadores, Audiéncias, Arcebispados, Universidades ¢ até Tribunais de Inquisigdo, antes que fossem, depois da In- _ dependéncia, de Presidentes, Congressos, sempre Universi- 8 ANGEL RAMA dades ¢ sempre Tribunais. As instituigées foram os instru- mentos obrigatérios para estabelecer a ordem e para conserv4- la, sobretudo desde que no século XVIII comesam a circular duas palavras derivadas de ordem, conforme consigna Coro- minas: subordinar e insubordinar. Por definicao, toda ordem implica em uma hierarquia perfeitamente disciplinada, de tal forma que as cidades ameri- canas comecaram, desde 0 inicio, a ter uma estratificacfo que, apesar de suas mudangas, foi consistentemente rigida ¢ inspirada pelos maiores ou menores vinculos com o poder transoceinico. Ocupavam o primeiro nivel as capitais do vice- reinado (apesar de que 0 México, Lima ¢ o Rio de Janeiro continuayam sendo as primeiras dentre elas); eram seguidas pelas cidades-portos do circuito da frota e depois pelas ca- pitais de Audiéncia; logo vinham se escalonando as restantes cidades, poyoades, vilarejos, nfo somente em hierarquia des- crescente, mas em subordina¢do direta a imediata anterior da qual dependiam. As cidades construiam uma piramide, em que cada uma procurava tirar riquezas dos interiores © 20 ‘mesmo tempo proporcionar-Ihes normas de comportamento a seu servico. Todas sabiam que acima delas estavam Sevilha, Lisboa e Madri, mas praticamente ninguém pensou que ainda mais acima destas se encontravam Génova ou Amsterdam. Os conflitos de jurisdico foram incessantes ¢ simples epifenémenos da competi¢ao dos diversos micleos urbanos para se colocar preferentemente na pirdmide hierdrquica. Se, como afirmam provocadoramente os Stein," a Espanha ié estava em decadéncia no momento da descoberta da América em 1492, e portanto, economicamente Madri constituia a peti- feria das metrépoles européias, as cidades americanas const tuiram a periferia de uma periferia. E dificil imaginar situa- Gao mais rarefeita, em que um vasto conjunto urbano se or dena como um expansivo racimo a partir de um ponto extra- continental que retine todo o poder, ainda que aparentemente o exerca por delegacio a servigo de outro poder. Apesar de que nosso assunto é a cultura urbana na America Latina, na medida em que ela se assenta sobre bases materiais, nfio po- (24) Stanley e Berbare Stein, The Colonial Hertege of Letin America, Nova loraue, Oxford University Press, 1970, ACIDADE DAS LETRAS 2 demos deixar de consignar essa obscura trama econdmica que estabelece poderosas dependéncias sucessivas, ao ponto de ‘que numerosas ages decisivas que afetam as produgdes cul- turais, correspondem a operagdes que quase chamariamos de inconscientes, que se tragam e resolvem fora do conhecimento ¢ da compreensao do que séo apenas passivos executantes de Jonginquas ordens, os quais parecem agir fantasmagorica- mente como se efetivamente tivessem sido absorvidos por essa ordem dos signos que j4 nfo necesita da conjuntura real para se articular, pois deriva sobre seus encadeamentos internos, somente capazes de se justificar dentro deles. Falando de uma coisa tio conereta como a servidio e a escravidao, Braudel aponta que “elle est inhérente au phénoméne de réduction d'un continent @ la condition de périphérie, imposée par une force lointaine, indifférente aux sacrifices des hommes, qui agit selon la lo- gique presque mécanique d'une éeonomie-monde”.*® Acestrutura cultural flutuava sobre a econmica, repro- duzindo-a sutilmente, dai que os espiritos mais Iicidos, os que mais freqtientemente foram condenados pelo ditado constitu- cional que se revestia de ditado popular, se esforcavam para desyendé-la, indo além do centro colonizador para recuperar a fonte cultural que o abastecia obscuramente. Ja é evidente no desenho de El Bernardo que ocupa a vida inteira de Ber- nardo de Balbuena e que se torna explicito no prélogo de 1624, onde elege a fonte italina (o Boyardo, o Ariosto) apesar de que ainda para um tema espanhol. Como igualmente acon- tece, mais de dois séculos depois, na proposta de Justo Sierra para evitar 0 “aqueduto espanol” e trabalhar a partir das fontes literérias francesas que propiciaram, mais do que o modernismo, a modernidade, oscilantemente a servigo do tema francés ou, com mais freqiéncia, do nacional (1} “ela inorente 20 fendmento de redugo de um continente & condi ‘¢80 de paiferia, mposta por uma forga distant, indiforento 208 eaerfcios dos Fhomens, que age de acordo com a lagica quase mecanica de uma economia: mundi." (25) Femand Braudel, ob. cit, p. 338. * ANGEL RAMA Ambos foram vocacionalmente urbanos, como a esma- gadora maioria dos intelectuais americanos ¢ ambos trab: Iharam como os projetistas de cidades, a partir desses vastos planos que desenhavam os textos literérios, no impecdvel uni- ‘verso dos signos que permitiam pensar ou sonhar a cidade, para reclamar que a ordem ideal se encarnasse entre os ci- dadaos. A cidade letrada Para tevar adiante o sistema ordenado da monarquia absoluta, para facilitar a hierarquizagao e concentraco do poder, para cumprir sua missao civilizadora, acabou sendo indispensdvel que as cidades, que eram a sede da delegagao dos poderes, dispusessem de um grupo social especializado ao qual encomendar esses encargos. Foi também indispensfvel que esse grupo estivesse imbuido da consciéncia de exercer um alto ministério que 0 equiparava a uma classe sacerdotal. Sentio o absoluto metatfisico, competia-Ihe 0 subsididrio abso- Tuto que ordenava o universo dos signos, a servico da monar- quia absoluta de ultramar. Ambas as esferas estiveram superpostas por longo tempo, fazendo com que a equipe intelectual contasse durante séculos entre suas filas com importantes setores eclesidsticos, antes que @ laicizagao que comeca sua ado no século XVIII fosse substituindo-os por intelectuais civis, profissionais na sua maioria, Duas datas circunscrevem o periodo desta super- Posigao: 1572, em que chegam os jesuitas a Nova Espanha, ¢ 1767, quando so expulsos da America por Carlos III. Pre- maturamente 0 padre Juan Sanchez Baquero descreveu a fungio da Ordem de Jesus que, a diferenca das ordens mendi- cantes consagradas 4 evangelizagio dos indios, velo atender “4 nova juventude nascida nesta terra, de génios delicados muito habeis, acompanhados com uma grande facilidade ¢ propens&o para o bem ou o mal”, conduzindo a ociosidade em a ANGEL RAMA que viviam para “‘o exercicio das letras, para 0 qual faltavam professores e cuidado” “com que estavam muito decaidas as letras e mais povoadas as pragas que as escolas". A situacio dessa juventude rica, A qual deviam orientar para os estudos de Filosofia e Teologia, é objetivamente descrita pelo padre Sénchez. Baquero: “Sao criados no prazer ena abundancia das casas de seus pais ena benignidade desse e6u e temperamento, com muita ocio- sidade (veneno suficiente para destruir qualquer grande rept- bica, como nos mostram as que tiveram esse mal); ¢ nesta terra estava a vontade: porque, acabada sua conquisia e paci- ficagdo, cessaram as armas c exercicios militares; © a ocupagio em offelos meenicos, nao tinha lugar, nem havia para que se audmitisse; porque a nobreza 0 consideraya muito justo nas fa- ‘ganhes dos pais, quando nfo se derivara de atrés, ademais de Ser muita a abundancia da terra”! A faganha educativa da Ordem, que se abre ao declinar ‘omilenarismo dos evangelizadores (sobretudo franciseanos), & paralela A estruturagdo administrativa ¢ eclesidstica das co- Iénias e portanto uma pequena ainda que nao desprezivel parte da poderosa articulacao letrada que rodeia o poder, ‘manejando as linguagens simb6licas em direta subordinacio das metrépotes. ‘A cidade bastido, a cidade porto, a cidade pioneira das fronteiras civilizadoras, mas sobretudo a cidade sede admi- nistrativa que foi a que fixou a norma da cidade barroca, constituiram a parte material visivel e sensivel da ordem colo- nizadora, dentro das quais se enquadrava a vida da comuni- dade. Mas dentro delas sempre houve outra cidade, nao me- nos amuralhada, e no menos porém mais agressiva e reden- torista, que a regeu ¢ conduziu. E a que creio que devemos chamar de cidade letrada, porque sua a¢io se cumpriu na ordem prioritéria dos signos e porque sua qualidade sacer- dotal implicita contribuiu para doti-las de um aspecto sa- grado, liberando-as de qualquer servidio para com as circuns- (1) Juen Séinchez Baquero, S. J., Fundacisn de le Comparia de Jess en la Nueva Espana. A CIDADE DAS LETRAS 8 ‘t€ncias. Os signos apareciam como obra do Espirito ¢ os es- piritos conversavam entre si gragas a eles. Obviamente se tra- tava de fungées culturais das estruturas de poder, cujas bases reais poderfamos elucidar, mas nao foram assim concebidas nem percebidas, nem assim foram vividas por seus integran- tes. No centro de toda cidade, conforme diversos graus que aleangavam sua plenitude nas capitais vice-reinais, houve uma cidade letrada que compunha o anel protetor do poder € o executor de suas ordens: uma pléiade de religiosos, admi- nistradores, educadores, profissionais, escritores e miltiplos servidores intelectuais. Todos os que manejavam a pena es- tavam estreitamente associados as fungdes do poder e com- punham 0 que Georg Friederici viu como um pais modelo de funcionalismo e de burocracia.” Desde a sua consolidagio no iiltimo tergo do século XVI, essa equipe mostrou dimensbes desmesuradas, que ndo se adequavam ao reduzido nimero dos alfabetizados aos quais podia chegar sua palavra escrita e nem sequer As suas obrigagdes especificas, e ocupou simulta- neamente um elevado nivel dentro da sociedade obtendo, portanto, uma parte nada desprezivel de seu abundante exce- dente econdmico. Os séculos da Colénia mostram reiteradamente a sur- preendente magnitude do grupo letrado que em sua maioria constitui a frondosa burocracia instalada nas cidades a cargo das tarefas de comunicagio entre a metrépole ¢ as sociedades coloniais, portanto girando no alto da pirdmide em torno da delegagao do Rei. Para tomar o campo da literatura, que, no entanto, € somente uma porgao da produgio letrada, atri- buiu-se sua escassez artistica a0 reduzido mimero de prati- cantes, quando é mais correto atribuf-lo a0 espftito coloni- zado. Efetivamente, todos os registros falam de ntimeros altis- simos: so 0s trezentos poetas que segundo Bernardo de Bal- ‘buena concorreram no certame de fins do século XVI em que ele foi distinguido ou 0 alto mimero dos que um século depois recolheu Sigtienza y Géngora em seu Triunfo Parténico. Essas cifras nao tém relacao com os consumidores potenciais e de fato produtores e consumidores devem ter sido os mesmos, (2) Ch. por Braudel, ob. cit, p. 368 “ ANGEL RAMA funcionando num circuito duplamente fechado, pois além de girar internamente, nascia do poder vice-real ¢ voltava lauda- toriamente a ele. Tao alta produgao é, obviamente, écio re- munerado por outras vias, dado que para esses produtos néio existia um mercado econémico, e pode se vincular ao desper- dicio suntuario que caracterizou as cortes coloniais, que yeram uma visto absolutamente desproporcional ¢ falsa da opuléncia da metropole que se esforgavam em imitar, ven- cendo-a incessantemente em ostentacdo ¢ luxo. Contrariamente & lenda construida pelos crioulos novo- hispanos ressentidos, de que thes negavam 0 acesso as ri- quezas a que se julgavam com direito, a absorgdio de uma parte considerdvel da riqueza americana pelo setor dirigente, de que participavam, ainda que em situagiio marginal esses mesmos crioulos, permitiu condigdes de vida superiores as da metr6pole. Delas nao somente desfrataram os ricos fazendei- ros ou comerciantes, mas, além disso, o grupo letrado. Foi a incomensuravel quimera” de viver do trabalho dos indios ¢ dos escravos, denunciada acidamente pelo padre Mendieta’ quando cresceu pavorosamente a mortalidade indigena que eufemisticamente designamos como a “catdstrofe demogré- fica” do século XVI. Ao finalizar s6 contava com um milhao de indios dos 10 a 25 (conforme as estimativas) que havia no México quando se iniciou a conquista. Sobre esse trabalho, sobre a vida apropriagdo das riquezas, nio somente se edifi- caram suntuosas igrejas e conventos que até os dias de hoje testemunham a opuléncia do setor eclesifstico, mas também 0 bem-estar de espanhéis ¢ crioulos ¢ os écios que permitiram a0 grupo letrado dedicarem-se a extensas obras literérias. Assim, devemos a isso a espléndida épica culta do barroco. Varias causas contribuiram para a fortaleza da cidade letrada. As duas principais foram: as exigéncias de uma vasta administragao colonial, que com grande miniicia levou a cabo a Monarquia, duplicando controles ¢ salvaguardas para res- tringir, em vao, a constante fraude com que era burlada, e as exigéncias da evangelizagao (transculturacdo) de uma popt- Iago indigena que era contada em milhdes, a qual se con- (2) Cédigo Mendieta, Documentos franciscanos siglos XVIy XVI, 6 ico, 1902, 2 vols. (Joaquim Garcia Ieazbalceta, e.). A CIDADE DAS LETRAS 6 seguiu — enquadrar na aceitacao dos valores europeus, ainda que neles nao acreditasse ou ndo os compreendesse. Essas duas imensas tarefas reclamavam um elevadissimo numero de Jetrados, os quais se baseavam preferencialmente nos redutos urbanos. _ elas deve acrescentar-se que, como estudou Juan An- tonio Maravail," a época barroca é a primeira da historia eu- ropéia que deve atender a ideologizac4o de multidoes, ape- Jando a formas macigas para transmitir sua mensagem, coisa que faria com rigor programético. Se bem se discutiu a inci- déncia real das disposigdes do Concilio de Trento sobre ar- tes," nao se pode senao reconhecer a importincia o esplendor que adquiriu a “festa barroca”, as representages sacras, ou a militancia propagandistica que cumpriram a Coroa e Tiara através de treinadas equipes (a Sociedade de Jesus, a Inqui sig&o) no clima beligerante da Contra-reforma. Para a Amé- rica, a forga operativa do grupo letrado que devia transmitir sua mensagem persuasiva a vastissimos piblicos analfabetos foi muito maior. Se na hist6ria curopéia essa missio s6 encon- ‘traria um equivalente no século XX, com a industria cultural dos meios de comunicagdo de massas, na América pratica- mente nao se repetiu. Deve-se ainda acrescentar outra tarefa, que ficou consig- nada na razio que levou o Vice-rei Martin Enriquez a re- clamar a vinda da Ordem de Jesus: a formagao da elite diri- gente, que nao necessitava trabalhar ou sequer administrar sous bens, mas devia dirigir a sociedade a servico do projeto imperial, robustecendo seus lagos com a Coroa e a Tiara, A primeira pensou que podia fazer isso por si mesma, quando retomou ferrenhamente a conduco de suas colénias no século XVIII, concedendo um posto importante na cidade letrada & nova geragio de administradores (os prefeitos) e A prolife- rago de profissionais, mais peninsulares que crioulos. Destas variadas causas provém a importancia que du- rante'a Colénia adquiriu 0 nicleo urbano letrado, a0 que (4) José Antonio Maraval, La cutura de barroco, Barcslons, Avi oi ona, Arie, (5) Amold Hauser, The Social History of Art, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1951, V, 8, 8 10, 46 ANGEL RAMA correspondeu uma série de relevantes fungées, indispensaveis para o projeto colonizador. Mediante uma reinterpretago rcméntica, acentuou-se excessivamente as trivialidades e segredinhos da vida cories colonial para o que contribuiu Ricardo Palma) sem fazer jus- tiga A importante fungdo social dos intelectuais, tanto no ptil- pito quanto na citedra, na administracao, no teatro, nos varios géneros ensafsticos. Correspondia-Ihes deixar sua mar- ca e dirigir as sociedades coloniais, tarefa que cumpriram cabalmente. Fizeram-na inclusive os poetas, apesar de serem somente uma pequena parte do conjunto letrado, ¢ 0 seguiram fazendo ainda por um bom tempo no transcurso do século XIX independente, até a modernizacao. Além disso, deve-se assinalar que a funcao poética (ou, pelo menos, versificadora) foi patrimOnio comum de todos 0s letrados, dado que 0 traco definitério de todos eles foi 0 exercicio da letra, dentro do qual cabia tanto uma escritura de compra-venda, como uma ode religiosa ou patriética. ‘A forca do grupo letrado pode ser percebida através de sua extraordindria longevidade. Constituido com o manei- rismo que irrompe no tltimo terco do século XVI, continua vigoroso nas vésperas da revolugao de Independéncia, dois sé- culos depois. Inclusive, da escola neo-classica (que na reali- dade simplesmente prolongou o grupo letrado, laicizando-o) diz Henriquez Ureiia que “muito contadas sao as mostras de sua influéncia antes do fim da era colonial’ e, mais categori camente, Mariano Picén Salas pensou que o barroco nao so- mente havia ocupado integralmente a Colénia mas se havia prolongado até nossos dias. Em 1944, dizia que “‘apesar de ‘quase dois séculos de enciclopedismo e de critica moderna, os hispano-americanos ainda no nos evadimos inteiramente do labirinto barroco",” com 0 que coincidiu 0 novelista Alejo Carpentier, que chegou a propor o estilo barroco como forma especifica da arte do continente.* Detras dessas percepedes, (6) Pedro Henriques Urefia, Las corrientes literaras en fs América His- péniea, México, F.C. E.,p.87 ‘@) Mariano Picén Salas, De fa conguista ala independencia, F.C. E,, 1950, 2? ed. aum., p. 101 i) Tientos y diferencias, México, UNAM, 1964 A CIDADE DAS LETRAS a podemos ver outra coisa: o sobrevivente poder da cidade das letras, além da Independéncia ¢ do forgoso epigonalismo que se registra entre seus membros, religando-os fervorosamente as origens, quando uma constituicdio do grupo intelectual se ‘conserva tanto tempo sem modificacao profunda. Mais significativo ¢ cheio de conseqiiéncias que o elevado niimero de integrantes da cidade letrada, que os recursos de gue dispuseram, que a proeminéncia publica que aleancaram € que as fungdes sociais que cumpriram, foi a capacidade que demonstraram para se institucionatizar a partir de suas fungdes especificas (donos da letra) procurando tornar-se um poder auténomo, dentro das instituigdes do poder a que per- onceram: Audiéncias, Capftulos, Semindrios, Colégios, Uni- versidades. Pode ser percebido nisso a margem de funcionamento auténomo de que é capaz a equipe intelectual, tal como Karl Mannheim o detectara prematuramente,’ e serviria mais re- centemente a Alvin Gouldner™ para examinar seu poder nas sociedades contemporaneas. Com excessiva freqiéncia, véem- se nas anilises marxistas os intelectuais como meros execu- tantes dos mandatos das Instituicgdes (quando nao das classes) que os empregam, perdendo-se de vista sua peculiar funcdo de produtores, enquanto consciéncias que elaboram mensagens, ¢, sobretudo, sua especificidade como desenhistas de modelos culturais, destinados a constituigao de ideologias publicas. Creio indispensével manejar uma relago mais fluida e com- plexa entre as instituicdes ou classes e os grupos intelectuais. Inclusive por sua condigao de servidores de poderes, esto em contato imediato com 0 forgoso principio institucionalizador que caracteriza qualquer poder, sendo portanto os que melhor conhecem seus mecanismos, os que mais estéo treinados em suas vicissitudes e, também, os que melhor aprendem a cor veniéncia de outro tipo de institucionalizacio, o do restrito grupo que exerce as fungdes intelectuais. Pois também por sua (9) Karl Mannheim, Essays an the Sociology of Cure, Londres, Rou- edge, Paul, 1956; Essays’ on the Sociology of Knowledge, Nova torque, Ox- ford University Press, 1952 (10) Alvin W: Gouldner, The Dialectic of ideology and Technology, Nova lorque, Seabury Press, 1978; The Future of Intellectuals and the Rise of the New Glass, Nova lorque, Seabury Press, 1979, “ ANGEL RAMA experiéncia sabem que se pode modificar o tipo de mensagens que emitem sem que se altere sua condig&o de funcionério, ¢ esta deriva de uma intransferivel capacidade que procede de ‘um campo que lhe é préprio e que dominam, pelo qual se Ihes reclama servicos, que consiste no exercicio das linguagens simbélicas da cultura. Nao somente servem a um poder, como também so donos de um poder. Este inclusive pode embria- giclos até fazé-los perder de vista que sua eficiéncia, sua rea- Tizagio s6 se aleanga se o centro do poder real da sociedade o apéia, Ihe da forca e o impie. ‘Uma breve incursio no século XIX, demonstrativa da sobrevivéncia destas concepgées coloniais, pode mostré-lo. Bastante antes das conhecidas analises de Max Weber sobre a burocracia, que evidentemente no conheceram, os escritores Jatino-americanos dos séculos XIX ¢ XX foram extraordina- riamente perceptivos acerca desta capacidade de se agrupar ¢ institucionalizar-se que revelaram os burocratas do sistema administrativo do Estado. No caso do México, onde este pro- blema continuou sendo central até nossos dias, durante a mo- dernizacio porfirista intensificaram-se as criticas ao setor f+ ciondrio que é definido como “parasita’’. Justo Sierra chega a dizer que “a indtistria mexicana por exceléncia é a que se de- signa com uma palayra definitivamente aclimatada nos voca- bulérios hispano-americanos: a burocracia”." Mariano Azue~ Ia consagra uma de suas sarcésticas novelas do periodo da revolugo mexicana, a demonstrat que a burocracia sobrevive ao cataclisma politico e volta a se inserir na estrutura do novo estado, pelo qual chama a seus integrantes ‘as moscas”, adaptando a denominagdo que para a Espanha do século XIX Ihes havia dado Pérez Galdéz, “‘os peixes". Estas criticas sio formuladas por intelectuais mexicanos que ainda nao inte- gravam o poder, apesar de que ja faziam parte da cidade le- trada na situac&o confusa que a caracterizou na moderniza- do, Podem assimilar-se portanto as dos criolos da época colo- ‘nial contra os espanhéis que ocupavam o centro do poder: pugnas individuais para entrar nele. ‘A que se deveu a supremacia da cidade letrada? (11) México sociat y poitico (1888), em: Evolucién politica del pueblo ‘mexicano, Caracas, Bibloteca Ayacucho, 1977, p. 308. E ‘A CIDADE DAS LETRAS. ° Em primeiro lugar, ao fato de seus membros constitui- rem um grupo restrito e drasticamente urbano. Sé é possivel dentro de uma estrutura citadina. Ela aparece como seu ““ha- bitat natural” ¢ com ela se consubstanciam de forma insepa- réyel. 6.0 grupo mercantil pode se assemelhar ao intelectual. Na visto amena da cidade do México que Bernardo de Bal- buena ofereceu em 1604, ele vinculou ambos setores no mes- mo verso: “letras, virtudes, variedades de oficios”. E ao de- senvolyer 0 contetido no capitulo IV da Grandeza mexicana, parte da oposi¢do entre campo e cidade, para realcar a essén- cia urbana do intelectual, assimilada ao triunfo da cidade: se desejaviver eno ser mudo tratar com sfibios que é tratar com pessoas fora do campo torpee do povo rude. Mais influente, no entanto, foi o posto que 0 grupo ocu- pou na intermediagao, pelo manejo dos instrumentos da co- municagio social e porque através deles desenvolveu a ideolo- gizacao do poder que se destinava ao péblico. Em 1680, os dois maiores intelectuais da Nova Espanha, Sor Juana de la Cruz e Carlos Sigtienza y Géngora, 0 protagonizaram ao edi- ficar os respectivos arcos triunfais para receber 0 novo Vice- rei, Marques de la Laguna e Conde de Paredes, uma com 0 Neptuno alegérico. Océano de colores. Simulacro politico, € outro com 0 Teatro de virtudes politicas, ambos textos ilumi: nadores da tarefa social ¢ politica que correspondia aos inte- Jectuais e da conjugacio que procuravam em suas obras das diversas forgas dominantes na sociedade para obter favores, enquanto exaltavam a onipoténcia da figura carismética do Vice-tei. O uso politica da mensagem artistica foi extraordi- nariamente freqiiente na Coldnia, como obviamente se de- preende de sua estrutura social ¢ econdmica, apesar de que no teve a suficiente atengao critica.” A razao fundamental de sua supremacia se deveu ao pa- radoxo de que seus membros foram os tinicos exercitantes da (12) Tentei fazer g leiturs pois ideol6gica de Fermin Gonzalez de Eslava, em mou ensaio "La sefial de Jonds sobre el pueblo mexicano”, em Eseritura V, 10, Careces, julho-dezembro 1980, pp. 178-239, ANGEL RAMA letra num meio desguarnecido de letras, os donos da escritura numa sociedade analfabeta e porque coerentemente proce- deram a sacralizé-la dentro da tendéncia gramatolégica cons- tituinte da cultura européia, Em territérios americanos, a ¢s- critura se constituiria em um tipo de religido secundaria, por- tanto equipada para ocupar o lugar das religides quando estas comegaram seu declinio no século XIX. Ainda mais que @ letra, conjugaram todos os simbolos, abastecendo-se na fonte tradicional, para fundar assim uma escritura crescentemente auténoma. O discurso barroco nao se limita as palavras, mas as integra com os emblemas, hierdglifos, empresas, apolozias, cifras, ¢ insere este enunciado complexo dentro de um desen- volvimento teatral que apela 4 pintura, a escultura, & miisica, ‘aos bailes, as cores, proporcionado-lhes 0 fio vermelho que para Goethe fixava o significado da diversidade. Desta ma- neira compoe um fulgurante discurso cujas langadeiras sto as operagdes da tropologia que se sucedem umas as outras animandoe volatilizandoa matéria, Sua melhor exposicao no esté nos textos literdrios mudos que conservamos, mas »~ festa que eles significavam, pelo que sua expresso mais ilus- trativa sfio 0s arcos triunfais com que se comemoravam os grandes acontecimentos, Esse empenho constitui um sistema independente, abs- trato ¢ racionalizado, que articula autonomamente seus com- ponentes, abastecendo-se na tradieo interna do signo ¢ pre~ ferencialmente em suas fontes classicas. Como uma rede, ajusta-se A realidade para outorgar-lhe significagao: em mo- mentos, se diria que até simples existéncia. No fim do século XVII, parece sobrevoar qualquer conjuntura real e a operag’io original (a genial) de Sor Juana consiste em ter feito dessa desconexao entre 0 discurso literdrio e a trama dos afetos, 0 tema central de sua poética, chegando a suspeitar (e dat a irrupc0 onirica do Primeiro sonko) que somente no hemis- fério oculto se produzia a verdade, regendo e desbaratando o discurso racional que, crendo ser aut6nomo e auto-suficiente, nao fazia mais que recolher os impulsos obscuros: “Oh, vil arte, cujas regras/ tanto a razio se opéem,/ que para que se executem/ é mister que se ignorem!” ‘A evolugao do sistema simbélico continuou sendo impe- tuosa através do tempo. Pareceria haver alcangado em nossa época sua apoteose, na trama de sinais, indicios, diagramas, ACIDADE DAS LETRAS st siglas, logotipos, imagens convencionais, niimeros, que arre- medam Iinguagens e ainda aspiram & dupla articulagao da Imgua. Scus componentes s6 respondem vagamente a dados particulares ¢ concretos que registrariam seu nascimento no quotidiano, pois se desenvolveram como significacdes, pen- sadas a partir das necessidades do sistema ¢ s6 depois bus- cara, 0s significantes indispensaveis para expressar-se. Tais elementos ordenam o mundo fisico, normatizam a vida da comunidade e se opdem A fragmentago e ao particularismo de qualquer invencao sensivel. E uma rede produrida pela in- teligéncia raciocinante que, através da mecanicidade das leis, institui a ordem. E a testemunha da tarefa da cidade letrada. Essa evoludo impregna os mais variados aspectos da vida social e seria impossivel percorré-los todos. Limitando- nos a um aspecto aparentemente trivial, seria possivel recons- truf-la mediante a evolucdo paralela da nomenclatura urbana, ‘A-uma primeira época, na qual se recorre a nomes particula- res para designar lugares ou ruas, que nascem de objetos con- cretos que pertencem a sua estreita contigidade (Monjitas ser4 uma rua em Santiago porque ali estava o convento de monjas), segue-se uma segunda, em que os nomes das ruas jé ndo pertoncem a simples deslocamentos metonimicos, mas manifestam uma vontade, geralmente honorifica, de recordar acontecimentos ou pessoas eminentes. Sao ainda nomes parti- culares, quer se trate em Buenos Aires da rua Rivadavia, pelo presidente argentino, ou em Montevidéu da avenida 18 de Julio, pela data de declaracdo da independéncia uruguaia, € so acompanhados por uma dupla série numérica, pares € impares, que vao ainda se sucedendo de acordo com as casas existentes, sem prever que possam aparecer outras futuras. Numa terceira época, toda a nomenclatura se tornar& melhor planificada ¢ mais rigida, apelando exclusivamente a nui- meros, articulando diversas séries, endo sera outra coisa sendo um sistema abstrato destinado a localizar um lugar dentro da cidade, com preciso ¢ simplicidade. As mencdes particulares, nascidas de acontecimentos histéricos ou de simples acontecimentos da vida, terdo ficado abolidas. Esta evolucao és vezes desmentida em algumas cidades, © que exige uma interpretagao que ilumine o funcionamento da cidade letrada. O centro urbano de Caracas continua con- servando firmemente uma nomenclatura em que sio as es- | 2 ANGEL RAMA quinas, ¢ nilo as Tuas, as que tém nomes, que muitas vezes conservam referéncias histéricas concretas (vai-se de Miseri- c6rdia a Velazquez, do Coliseu 20 Coragio de Jesus) € entre uma e outra esquina se localiza um endereco mediante um nome também, aplicado a um edificio (Quinta Anamar, Edi- ficio Camoruso, Residéncia El Trébol), com o que se registra a adeso 2 um passado que, no entanto, j4 comecou a se dis- solver. Ao contrario, na cidade de Bogota se impés uma no- ‘menclatura numérica ainda mais precisa e rigida que o de Manhattan: as localizagdes podem se fazer exclusivamente com niimeros fixando exatamente o lugar da quadra em que se encontra a casa: 25 # 3 - 70, 13 # 69 - 31, 93 # 13 = 10, Pareceria contradit6ria a situacdo de ambas as cidades, dado que a sociedade venezuelana é inegavelmente mais dina- mica e modernizada que a colombiana. E preciso buscar a explicagdo na dominagao que exerce a cidade letrada em cada uma das cidades: € muito mais poderosa e melhor articulada no exemplo bogotano que no caraquenho, cuja sociedade & sacudida por enérgicos movimentos democraticos ¢ anti-hie rarquicos que dificultam a ago racionalizadora das elites intelectuai B apenas um exemplo dos miiltiplos encontros ¢ desen- contros entre a cidade real e a cidade letrada, entre a sovie- dade como um todo e seu elenco intelectual dirigente. Visua- lizamos duas entidades diferentes que, como o signo lingiifs- tico, esto unidas, mais que arbitrariamente, forgosa e obriga- toriamente. Uma nao pode existir sem a outra, mas sua nat- reza e funcdes sao diferentes como o so os componentes do signo. Enquanto a cidade letrada atua preferencialmente no campo das significagdes e inclusive as autonomiza em um s! tema, a cidade real trabalha mais comodamente no camzo dos significantes e inclusive os afasta dos encadeamentos 16- gico-gramaticais. No belo livro de Italo Calvino, La citta invisibili, Mareo Polo conta a Kublai Kan como é a cidade de Tamara, onde “Vocchio non vede cose ma figure di cose chi significano altre cose”.* A espessa trama dos signos impée sua presenga, néo permite que nada mais seja vist {91 "0 olno nBo v8 coisas, masimagens de coisas que significa outras A CIDADE DAS LETRAS 3 Jo sguardo percorre le vie come pagine scritte: la citta dice tutto quello che devi pensare, ti fa ripetere il suo discorso, ¢ ‘mentre eredi di visitare Tamara non fai che registrare i nomi con cui essa definisce se stessa e tutte le swe parti. ® Nao somente Tamara, toda cidade pode parecer-nos um discurso que articula variados signos-bifrontes de acordo com leis que evocam as gramaticais. Mas ha acordo onde a tensao das partes se agudizou. As cidades, desenvolvem suntuosa- mente uma linguagem mediante duas redes diferentes ¢ super- Postas: a fisica, que o visitante comum percorre até perder-se na sua multiplicidade e fragmentacto, e a simbdlica, que a ordenae interpreta, ainda que somente para aqueles espiritos afins, capazes de ler como significagées 0 que nfo sdo nada mais que significantes sensiveis para os demais, e, gracas a essa leitura, reconstruir a ordem. Ha um labirinto das Tuas que s6 a aventura pessoal pode penetrar e um labirinto dos Signos que s6 a inteligéncia raciocinante pode decifrar, ent contrando sua ordem, : Esta 6 obra da cidade letrada. Sé elaé capaz de conceber, como pura especulagao, a cidade ideal, projeta-la antes de sua existéncia, conserva-la além de sua execugao material, fazé-la sobreviver inclusive em luta com as modificagbes sensiveis que introduz incessantemente o homem comum. €| “0 char porcone os caninhos como pina eet: 9 cidade tudo aslo que doves pana. reper osu ners, auande sens {ste uitanco Tamare no fare is do ue regs os en ‘sla se define a si préprie € 9 todes as suas partes.” 7 (03) elo Cabin, Leet ‘nvisibit, Turin, Einaudi, 1972, p. 22.

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