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‘ip drome Die ganas A Onso Can 1 ‘Sempre me fascinou essa mania de Isaac Dresner criar museus ou encontrar alguns que, pela sua temitica ou fungdo ou sim- plesmente bizarria, nos mudavam a vida, as vezes para pior. Dizia ‘Dresner, ¢ passo a citar: «JA criei alguns museus € vou encon- trando outros que podem ser verdadeiras experiéncias, escolas, e que esfregam no nosso corpo, como se dangassem salsa, aquilo ‘que mais desejamos saber.» ‘Numa dessas criagdes, num bairro periférico de Paris, Dresner preparou um antigo armazém de uma empresa de metalurgia, retirando tudo, deixando espaco para o nada, Digo nada, porque tudo o que haveria de encher esse lugar tinha esse potencial. Era lixo, era algo destinado a nio ser, era um absurdo. Isaac Dresner colocou, na recep¢io desse espago, um homem diagnosticado com a(sindrome de Didgenes)que se chamava Abdul-Rahman. [Este homem recolhia das ruas tudo 0 que era objecto sem inte- _resse, sem propésito, aquilo a que chamamos lixo, ms, quando interrogado sobre os motivos de tal obsessio, aranjava sempre ‘uma justificagio, ainda que anédina, mas de uma notével imagi- -nacio. Foi isso mesmo que fascinou Dresner, sempre & procura de novas formas de ficgio (Dresner, i fic¢io, chamava verdade, ‘como se ainda alguém acreditasse que a verdade nio fosse uma opinio). 8 Quando © conheci, Abdul tinha mais de noventa anos. Sen- ado nama cadeita colocada exactamente no centro do museu € debrucado sobre si mesmo, era um homem que dava a sensagio cde no se desfizer gracas aos suspensérios, que no pareciam ssegurar as calgas, mas sim manter aquele tronco relativamente agregado, sem que as pegas que © compunham caissem no chio se partissem como louga. ‘Como quase tudo o que Isaac Dresner criava, este museu foi ‘um firacasso, apesar de Abdul diligente e quotidianamente aumen- taro fundo com objectos initeis.No entanto, muitos anos depois, dda abertura do espaco, comegou a ser frequentado por escritores. (© motivo para isso era simplesiZomo Abdul justificava sempre a P: ies recolka de objectos indteis com uma historia que nunca chegava a escrever, mas que era bastante elaborada, os autores sem ideias apareciam com uma pedra no bolso ou uma esferografica sem tinta ¢ exibiam tais achados para que Abdul, laia de arqueélogo, cescavasse daquela terra sem préstimo um conceito, uma ideia, ‘uma historia, Abdul, efectivamente, se olhasse muito tempo para ‘um objecto, encontraria Ié dentro qualquer coisa que valeria a pena ser contada. Foi assim que varios escritores fizeram uma carreira. Do contacto com Abdul-Rahman ¢ das ideias que ele sabia extrair do lixo, vieram a surgit dois Nobel, um de Fi Faron sn dle se, a pou oes/ deles nio quis o prémio__/— ‘Aprobidade,a frugalidade e a ingenuidade de um homem to solitirio quanto Abdul-Rahman acabaram por torn-lo vulne- ravel a0 mundo, uma espécie de pessoa de vidro, ¢ esse mesmo 16 mundo nao 0 poupou e, sem esconder 0 incémode regozijo do. tirano, cortou com ponta de diamante a pele de vidro da sua alma, para instalar 0 cordio sujo da doenga. © mundo no the enfiou pela alma dentro uma loucura patolégica, no Ihe arrancou uma perna, nio lhe pisou os oxsos, no Ihe arrancow os olhos, mas com uma espécie de cortesia, com 2 ponta dos dedos, o mundo abrit. uma ferida no vidro, abriu-a entre o polegare 0 indicador e,como quem puxa as pilpebras para analisar 0 olho,empurrou 0 distirbiv,a peiturbag3o, usando a ponta do mindirho, rodando a mio para que penetrasse mais fundo, Abdul passou a sentit uma cespessa ansiedade que o compelia a querer salvar o universo, todo © cosmos, da propria fraqueza da efemeridade, do expecticulo fenecente que se exibia em cada esquina, e © mundo, primeiro culpado, observava o homem que o tentava salvar com um sor- riso de escdrnio e, tantas vezes, sem conter 0 riso, Ao olhar para © lixo (que & a morte dos objectos) e para tudo 0 que se ava~ riava, estragava, partia, Abdul sentia uma tremendi compaixio ‘uma mobilizadora vontade de resgatar as coisas, tazé-las para 0 lado luminoso da vida. Um orfeu dos objectos, qae entrevia no mundo inorginico as mesmas cruéis e inexoraveis leis que nos obliteram os pais, os avés, 0s filhos. De certa maneira,e visto que aqueles objectos apontavam para mada, para a dissolugio, para o desaparecimento,eram a cara do vazio. E, quando Abdul os tornava parturientes, a sua demiurgia era uma criagdo ex nihilo,o que o colocava no estranho patamar de Deus Criador, ombreando heroicamente com o Padre Eterno. 4 Como mencionei antes, preferia nfo dizer names, mas tenho de referir que Sartre frequentou, primeiro, o apartamento de ‘Abdul repleto de objectos absurdos (e gatos) e, mais tarde, o museu, Talver a ideia de que o ser humano se constréi em liber- dade, de que a sua esséncia é criada pela decisio livre, tenha sido da autoria do filésofo, mas é também provivel que tenha nascido do contacto de Sartre com Abdul. Este, a0 dar sentido 20 absurdo, provava ser possivel a0 Homem tornar significative ‘um universo despropositado, disparatado e aberrante.A liberdade salvava o mundo do absurdo, ainda que este, o mundo, se rsse das insensatas actividades tetirgicas de Abdul. No fando,a atitude filos6fica que Sartre viria a defender mais tarde. Se por coinci~ déncia,se por inspiragio, nio poderemos confirmar, mas especulo sobre 0 assunto porque me parece pertinente, Nio diminuindo verdadeiramente 0 pensamento de Sartre, é contudo laudatério para a obra de um homem solitirio e desprezado como era Abdul-Rahman, Foi na década de sessenta que Isaac Dresner pela primeira vez se cruzou com Abdul, que caminhava pela rua empurrando um carrinho de madeira, de construcio tosca, cheio de objec~ tos mortos (como o proprio Abdul os referia). Dresner parou a observi-lo, admirado com a diligéncia com que procurava objectos & sua volta, como de repente se baixava para recolher ‘um parafuso ou se erguia para arrancar um pedago de papel da parede, ¢ assim, fascinado pela determinacéo daquele homem, ‘que © cidadio comum nio teria pejo em rotular de imbecil ou obtuso, aproximou-se € disse: ‘Chamo-me Isaac Dresner. Abdul tera respondido: Oavarento ao nao prescindir de coisa alguma, da maior 4 mais insignificante, abdica de tudo, pois no desfruta de nada. (O senhor considera-se avarento? 18 Podemos pensar assim. Ha quem acumule quantidades absurd de dinheiro,eu acumulo quantidades absurdas de objectos mortos. E ni desfruta desses mesmos objectos? Abdul baixou a cabeca e, num sussurro, confessou: Desfruto. Ouge a alma dos objectos que teimosamente nio 19s abandona, Aalma? Sim, contam-me histérias. Nesse caso, nfo tem nada a ver com um avarento, ‘Ao ouvir este relato da boca de Dresner, hi ja quase duas décadas, nio me apercebi do facto de a resposta de Abdul ser uma citagio, quase literal, de Kant, do livro Ensaio Sobre as Doen- (as Mentais. Isso teri dado a Dresner, agora que reflicto sobre 0 assunto, o deslumbramento que haveria de o fazer construir um museu com objectos mortos. Também ele, a0 tentar encontrar autores esquecidos, apagados, subtilizados, e 20 publicé-los, ou republicé-los, fazia algo muito semelhante a Abdul,e,mais do que isso, Dresner juntava nas estantes da sua livraria,a Humilhados € ‘Ofendidos, bem como em todos os recantos de sua casa, livros. -desinteressantes ou marginais, proibidos ou negligenciados, aos, ‘Abdul-Rahman e Isaac Dresner. 6 Uma ver perguntei a Dresner se nio era demasiado, todos aqueles lives empilhados e que nunca seriam lidos,¢ ele,@ lain de ‘Anatole France (que quando Ihe fizera a mesma pergunta, res- pondeu algo como: Calculo que o senhor também nio use as suas porcelanas todos os dias), disse-me: Produzimos cerca de duzentos milhdes de espermatozéides por minuto. Talvez tenhamos um filho, talver dez. Isso responde & sua pergunta? Ker Eu encolhi os ombros ¢ ele continuou: De resto, uma biblioteca s6 tem interesse quando olhamos para 05 livros e percebemos que ha uns que ainda nao foram Tidos, que nos esperam. E isso que me move, o que ainda nio foi descoberto, aberto, cumprido. Enfim, ha exageros. Nao o nego, mas cativa-me a ideia da possibilidade, da liber dade. Quando tenho muitos livros para ler, tenho escolha, Quanto menos tiver, mais a minha liberdade esti confinada, Ela depende dos livros que nao so lidos. Se temos apenas tum caminho, nio temos liberdade, teremos impreterivelmente de 0 seguir. Para la existr, temos de ter possibilidades, muitas, porque s6 assim poderi resultar uma escolha liécida. ‘Mas convird que isso é uma desculpa para um comportamento que pode ter algo de reprovivel. No digo que nio. ‘As mios de Abdul-Rahman, que pareciam bocados de lenha, levantaram-se € pousaram no rosto, puxando a pele, desde as sobrancelhas a0 queixo. Parecia um gesto de cansago, ampliado pelo facto de estarmos no centro do museu, rodeados por mic des de objectos que numa circunstincia normal estariam no lixo. Os olhos escuros de Abdul abriram-se 4 medida que as mios desciam pelo rosto. Eram pequenos ¢ 0 seu olhar era inexpres- sivo, sem emogio, como se qualquer manifestagio exterior de contetido patético tivesse migrado para os objectos do museu, condenando a sua alma a simplesmente contemplar o que faltava a esses mesmos objectos, metamorfoseando-se na haste de uns culos de ver ao perto, numa perna de porcelana de um santo ‘catélico,na letra er do final de uma frase, no resto de uma man- cha de um copo,em trés dentes de um pente de plistico, no cabo de uma frigideira, no dourado de uma moldura parida. Dresner explicou-me certa vez, numa frase, quem era Abdul: ‘fo alpinista que falta a0 topo da montanha mais alta. E isso que ele & para os objectos. ‘Agora, a sua frente, essa definigio de Dresner parecia corrobo- ada pela aparéncia de Abdul, um homem que dava uma sensagio plicida, de calma, como se as suas preocupagdes estivessem fora dele, talvez nos objectos circundantes. Contudo, uma observacio mais atenta notaria sinais que poderiam levar-nos a concluir cexactamente © oposto: fungava o tempo todo, viriva a cabega amitide ~ ainda que discretamente ~ como se procurasse algo, contorcia 0s dedos das mios. Ultrapassando a sensacio inicial de placidez, ¢ revendo mentalmente aquele encontro,sb posso con ‘lair que afinal estava perante um homem irrequieto impregnado por uma ansiedade carnivora, que Ihe consumia corpo e alma,se me é permitido 0 dualismo cartesiano. Quantos objectos estio aqui? — perguntei a Abdu fazendo um. zesto largo com o brago, tentando abarcar toda a quinquilharia gue nos cercava. Quantos? Sim. Quer saber © ntimero? Sim. Nio sei que poder é esse. Quah 2 JO dos niimeros, que faz com que as pessoas falem da quani= ((Tidade antes de perceberem ou de se sentirem curiosas com a \ qualidade. J = “af ~~Abdul esfregou a cabeca lentamente. Continuou: Cicero criticava 08 roranos por olharem para os nameros como se fossem quantiddes. E nio do? ‘Abdul voltou a levar as mos 3 cara, tapando © rosto. Fé-las sdeslizar da testa a0 queixo. Dest vee era mesmo cansago. Pres pondeu: ‘So, O problema é a hierarquia, ele dizia que os gregos olha- ‘vam para os nimeros (Soprou de enfado) pelo seu significado ¢ 36 depois pela quantidade, Voltow a passar as mios pela cara, (Os niimeros tém significado? Hoje em dia nio. } E que realmente ha aqui muitos objectos e isso é um dado exacto, A qualidade é uma coisa subjectiva. ( senhor veio a este museu. Prefere sair dele com as historias dos objectos ou com o resultado de uma soma? 8 A grande janela que abria a fachada do edificio deixou esca- par um nio de luz que batew no meu pé, mas que se expandiu ‘em poucos segundos, por trabalho das nuvens, contaminando cespago. so pareceu ter mudado o rumo da conversa, de uma situagio tensa passimos a um didlogo aberto, fluido e macio. Entio? Entic, o qué? ii ‘Uma historia ou um ndmero? Quardo escolhi a primeira hipétese, ele sorriu ¢ © cansago do seu rosto evaporou-se imediatamente. As mos passaram a ser actores, coisas que serviam a comunicacio e sublinhavam as palavras. Os suspens6rios pareceram perder a fungi de agregar 6 corpo e, de repente, poderiam ser, ou passar a ser, um dos objectos do museu: suspensérios sem funglo que estoicamente aguentaram 0 corpo de ancido que salvava objectos © que se 22 atirava a0 mar e Thes fazia respiracio boca a boca € que era 0 ‘messias das coisas partidas e estragadas e avariadas e que levantava Izaros e que ombreava com Adonai € que.» E a nota acabaria agui,também ela absurda, por estar inacabada, por the faltar uma pera, por ser interrompida. Como todos nés. Nic hi ninguém que saia desta vida sem ser interrompido. Sabe o que é que eu procuro? Lixo? Nao, Buracos. Buracos? ‘Sim, buracos nas coisas, um umbigo, mas conceptualmente 20 contririo, pois por este entra a morte, Tudo tem estes umbi- {g0s, uma ferida, uma racha, um ponto que ninguém repara € depois se torna uma doenga incurivel. Sao esses buracos que me interessam nos objectos, nas pessoas, nos bichos:a morte, 2 incompletude, 0 facto de Ihes ter sido subtraido algo que pode ser preenchido. Quando olho para estes buracos, surge uma his- téria, e, milagrosamente, um perneta passaré a andar com duas ppernas, um ovo partido dari 4 luz. uma borboleta. Mas no se iluda, concluindo que este trabalho € simpl6rio, que qualquer pessoa seria capaz de o fazer: 0 que torna toda esta actividade particularmente dificil é imaginar a partir da linha que define 60 objecto, ou seja, chegar mais longe do que o proprio telos da coisa, fazer com que algo tenha um significado muito para além da possibilidade pristina. Fazer dos objectos partidos que somos todos uma histéria que possa ser contada. De fossil a poesia, eis um destino possivel 9 ‘A ideia para a criagio deste museu, é forgoso confessar,nio foi totalmente original. Dresner chegow a ela através de um artigo 2B il escrito na década de quarenta por um pintor eslovaco chamado Josef Sors, em que este, num tom mais confessional do que ‘era habito nos seus textos, conta como teve a pretensio de criar um museu de objectos desinteressantes, atribuindo aos tutentes a fungio de gerarem contetido, Seriam os fruidores ‘que, perante o abismo do tédio, se veriam confrontados com © vazio da existéncia, ou da sua existéncia, € expostos desse modo sentiriam a urgéncia de thes atribuir um sentido, uma histéria, No caso do museu pensado por Dresner, nao seria necessiria a contribuigio dos utentes, a criagio do significado caberia 20 proprio Abdul. Sobre o mesmo assunto, é de referir outro caso, odo Museu do Sentido da Vida (igualmente conhecido como Museu da ‘Arca de Cartio), concretizado por Dresner, mas cujo conceito partin de uma professora chamada Marieke Roux. A ideia foi ccriar um espaco onde criangas com doengas terminais expu~ sessem numa caixa de sapatos os objectos que consideravam mais importantes, objectos que quisessem salvar da morte. ‘A caixa seria uma espécie de arca de Noé, um espago onde seriam colocadas coisas relevantes face a morte iminente. As cescolhas evidenciavam objectos que apontavam para momen- tos-limite, ow seja, para episédios da vida que valem por si ‘mesmos, que possuem valor intrinseco. Exemplificando: foto grafias de momentos felizes, livros que causaram plenitude emocional ou racional, bilhetes de acesso a especticulos que terham de alguma maneira gerado felicidade. Os objectos, por si, eram instrumentos, mas apontavam para actos que, na sua esincia, expunham 0 sentido da vida: aquilo que fazemos pelo proprio acto em si,e nio por ulterioridade ou interesse, como a amizade, a felicidade, o amor e, num sentido mais prosaico, tum beijo, uma palavra, uma gargalhada, um olhar. 24 10 (© que pisamos tem uma luz propria e fazem-nos falta pessoas como Abdul, capazes de encontrar entre os destro- gos das nossas vidas um motivo de ressurreigo, da banalidade fazer emergir 0 extraordindrio. Os objectos mortos do museu, quando completados pela imaginagao de Abdul, remetiam-nos também para uma nova geografia e serviam para a expansio do espago, exercicio a que o universo se parece dedicar com afinco, mas que, neste caso, gerava uma amplitude pessoal e no césmica, apesar de tais distingdes serem relativamente duvi- dosat. Creio que o espaco individual nio € menor do que 6 universal, mesmo que nos parega assim empiricamente ou jalmente;{Ao revelar a riqueza do objecto vazio, Abdul /(criava novos universos ¢ confirmava a ideia de que o mundo | que vemos é meramente uma pigina de um livro que nio | vislumbramos senio com 0 auxilio da imaginagio, ou seja, | \_vivemos num multiverso, em que cada pessoa é autora e dni a) \\ criatura do seu cosmos.(Nio queria dizer nomes, mas sobre “Wer ‘iio resisto a referir 0 facto de Erwin Schtédinger ter privado com Abdul-Rahman, Quem quiser tirar conclusdes disso que o faga. ‘Jimencionei o facto de Abdul viver com dezenas de gatos? i ‘Tentarei, de seguida, dar uma pilida ideia da fertilidade da cabeca de Abdul, mostrando 0 que 0 lixo, o nada, o que é invi- sivel, desprezado, oprimido e ofuscado, pode conter dentro de si. Junto ao lugar onde Abdul estava sentado, a0 alcance da sua mio e pousado num mével que jé havia sido uma mesa, estava ‘um estojo médico praticamente vazio, continha apenas um ‘isturi partido. Abdul, evidentemente, tinha uma ficco para aquele objecto, e deu-ma, comprovando esse estranho engenho ‘de extrair significado de coisas desprovidas de qualquer fincio ‘ou sentido, fosse pelos estragos do tempo, fosse pelo desprezo dos homens; e assim Abdul realizou a operaco de espagiria, de alquimia, que o caracterizava, enchendo o peito antes de falar, solenemente, como se o enchesse de arte em vez de ar. Pegou no bisturi inutilizado, rodou-o nos dedos, e disse: Este bisturi um mergulho em profundidade. ‘Achei demasiado lirico e quis saber mais. Abdul abriu a boca devagar, tinha poucos dentes, ¢ a resposta veio assim, sibilada: Hi aqui uma histéria de um homem que comega a ficar com ‘tatvagens. Ao ver uma paisagem que o impressiona, fica com ‘ela tatuada. Quando gosta de uma pessoa, fica com ela tatuada. ‘Quando uma frase Ihe diz alguma coisa, fica com ela tatuada. ‘O bisturi partido foi a tentar impedir que Nessa altura, eu ja olhava para outros objectos: ‘Muito bem, mas € 0 frasco de comprimidos vazio? Historia de alguém que, sob 0 efeito de mescalina ou outro entedgeno, encontra um universo como 0 nosso. Ba Mapas fundica? Homem que negoceia candeeiros de iluminagio budista. A sua luz provoca exactamente 2 mesma forma de iluminagio que Buda teve. Ea carta rasgada de uma seguradora? Historia de um casal, de duas pessoas que, por causa da rotina,

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