Professional Documents
Culture Documents
720-85
VOL 7
nosso pai, dá vida a todas aquelas coisas que estão reple- coletara a fim de com elas honrar a Deus. Mas não se
tas de feiura e energia. Não há exagero errado, desde lembrava mais do porquê as coletara. Não conseguia se
que se exagere a coisa certa. Apontemos para o céu com lembrar da configuração visual ou do objeto. Empil-
presas e chifres e barbatanas e trombas e caudas, desde hou-os então a todos, sem plano ou ordem, num amon-
que apontem todas para o céu. Os animais feios adoram toado de quinze metros de altura; e, depois de
a Deus tanto quanto os belos. Os olhos do sapo terminá-lo, os ricos e os influentes entraram a aplau-
saltam-lhe da cara pois ele está a contemplar o céu. O di-lo freneticamente, e gritar: — Isto é arte de verdade!
pescoço da girafa é assim longo pois está ela a esticá-lo Isto é Realismo! Eis aí como são as coisas de fato!
para o céu. O burro tem orelhas para ouvir — que o Aí está, parece-me, a verdadeira origem do Realismo. O
burro ouça, portanto. Realismo não é senão o Romantismo que perdeu a
E, sob a nova inspiração, planejaram uma belíssima razão. E perdeu-a não apenas no sentido de insanidade,
catedral à moda gótica, com todos os animais da terra a mas no sentido de suicídio. Perdeu a razão; a razão para
nela rastejarem, e quantas coisas feias há no mundo existir. Os antigos gregos evocavam coisas divinas a fim
perfazendo todas uma só beleza, por apelarem todas ao de adorar o seu deus. Os cristãos medievais evocavam
deus. As colunas do templo eram talhadas como os todas as coisas a fim de adorar o Seu — anões e pelica-
pescoços das girafas; a sua cúpula afigurava-se uma nos, macacos e malucos. Os realistas modernos evocam
tartaruga feiosa; e o pináculo mais alto de todos era um também todas estas milhões de coisas a fim de adorar o
macaco de ponta-cabeça a apontar a cauda para o céu. seu deus; e, então, não têm deus algum a ser adorado. O
E, não obstante, o conjunto era belo, pois que se erguia paganismo foi, na arte, uma beleza verdadeira; ali houve
num gesto vivo e religioso, qual um homem ergue suas a alvorada. O cristianismo foi uma beleza criada para
mãos em oração. controlar um milhão de monstros feiosos; e aí houve,
segundo creio, o zênite e o meio-dia. A arte e a ciência
modernas significam, praticamente, ter os milhões de
III monstros e ser incapaz de controlá-los; e eu me aventu-
Mas este plano grandioso nunca se completou. As ro a chamá-las de a ruptura e a decadência. O que de
gentes haviam trazido, em carroças enormes, a pesada melhor há nos mármores de Elgin consiste em cavalos
cúpula de tartaruga e os gigantescos pescoços de pedra, esplêndidos a trotar até o templo de uma virgem. O
e todas as incontáveis estranhezas que juntas criavam cristianismo, com suas gárgulas e seus grotescos, ao fim
uma unidade, as corujas e as salamandras e os crocodi- e ao cabo queria dizer isto: que um burro poderia passar
los e os cangurus, que, se horrendos em si mesmos, à frente de todos os cavalos mundo, desde que estivesse
poderiam ter sido magníficos quando construídos realmente indo para o templo. O Romance queria dizer
numa só proporção definida e dedicados ao Sol. Pois um burro santo indo para o templo. O Realismo quer
ter-se-ia aí o Gótico e o romântico e a arte cristã; dizer um burro perdido indo para lugar nenhum.
ter-se-ia aí o avanço que foi Shakespeare em relação a Os fragmentos de jornalismo fútil e impressões
Sófocles. E aquele símbolo que lhe serviria de coroa, o efêmeras que estão aqui reunidas são um tanto como os
macaco de ponta-cabeça, era perfeitamente cristão; destroços e os blocos partidos que foram amontoados
pois o homem é o macaco de ponta-cabeça. numa pilha em volta de meu imaginário sacerdote do
Mas os ricos, que na longa paz se haviam tornado Sol. São um tanto como aquela cabeça cinza e
tumultuosos, obstruíram a coisa, e em meio a alguma boquiaberta que encontrei afundada na relva. Não
bulha uma pedra atingiu a cabeça do sacerdote, e ele obstante, hei de reivindicar, mesmo a partir de frag-
perdeu a memória. Viu, portanto, diante de si sapos e mentos assim triviais, que sou um medievalista e não
elefantes, macacos e girafas, cogumelos e tubarões; um moderno. Isto é dizer, sei por que coletei todos os
tudo, em suma, o quanto era feioso no universo, e que absurdos que por aí existem. Falta-me a paciência, ou
Lincoln Ricardo Baptista - lincolnbaptista@hotmail.com - CPF: 018.157.720-85
VOL 7 PÁGINA 3
1 Os Mármores de Elgin, também conhecidos como Mármores do Partenon, são uma grande coleção de esculturas em mármore levadas
da Grécia para a Grã-Bretanha em 1806 por Thomas Bruce, Lord Elgin, na época embaixador junto ao império Otomano.
2 O presente artigo é uma introdução ao livro de ensaios Alarms and Discussions, ainda não traduzido para o português.