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Lincoln Ricardo Baptista - lincolnbaptista@hotmail.com - CPF: 018.157.

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Das qual mais portentoso e primoroso que o anterior. Pois a


sua parede exterior era uma sebe de lírios brancos,

Gárgulas enfileirados tão perto uns dos outros a ponto de quase


não se lhes ver os caules verdes; e a parede dentro desta
era feita de cristal, que estilhaçava o Sol num milhão de
Enquanto perambulava só, a alguma distância das pare- estrelas. E a parede dentro desta ainda, a torre mesma,
des profligadas de uma abadia abandonada, encontrei, era uma torre de água pura, donde defluíam águas
soterrada sob a grama, a cara cinzenta e o olhar infindas; e, no topo e na crista mesma daquela espiral
esbugalhado de um daqueles monstros talhados na espumante havia um diamante, enorme e rebrilhante,
pedra, que serviam de calhas às catedrais da Idade ao qual a água eternamente jogava para o ar para em
Média. Lá jazia ela, areada pelas chuvas de muito ou seguida o pegá-lo de novo, qual uma criança pega uma
estampada pelos fungos de agora, mas se afigurando bola.
ainda a cabeça de algum gigantesco dragão tombado — Agora — disse o sacerdote — construí uma torre
pelo fio da lâmina dum herói primevo. E enquanto a que é um pouco digna do sol.
olhava, entrei a pensar no sentido do grotesco, e daí
passei a um devaneio simbólico sobre os três grandes
estágios da arte. II
Por estas tantas, porém, a ilha foi infestada por piratas;
I e os pastores se viram forçados a se tornar aguerridos
Era uma vez uma gente muito alegre e inocente, a guerreiros e homens do mar; e, a princípio, foram quase
maior parte pastores e lavradores, que vivia numa ilha. extintos em meio ao sangue e à vergonha; e os piratas
Eram republicanos, como todas as almas simples e poderiam ter-lhes roubado para sempre a joia de sua
primitivas; discutiam quantos problemas tinham sob fonte sagrada. Mais tarde, após anos a fio de horror e
uma árvore, e o que mais perto ali havia de um gover- humilhações, principiaram a vencer e conquistar aqui e
nante pessoal era um tipo de sacerdote ou bruxa branca ali, pois que não temiam a derrota. E o orgulho que
que lhes faziam as orações. Adoravam o Sol, não de ardia no peito dos piratas como se apagou após uns
modo idolátrico, mas sim como a coroa flava do deus quantos revezes inesperados; e, por fim, a invasão
ao qual toda a gente assim infante vê com quase tanta arrastou-se de volta até os mares vazios e a ilha foi liber-
clareza quanto o Sol. ta. Por alguma razão, finda a guerra os homens não
Ora, aconteceu de a este sacerdote ter sido dada a mais falavam como antes sobre o templo e o Sol.
incumbência de construir uma grande torre, que apon- Alguns, de fato, disseram: — Não se deve tocar o
tasse para o céu em saudação ao deus-Sol; e ele se pôs a templo; ele é clássico; é perfeito, uma vez que não
ponderar muito, e por muito tempo, antes de escolher admite imperfeições." Mas os outros responderam: —
os materiais. Pois ele estava resolvido a não usar nada Nisto difere ele do Sol, que por sua vez brilha sobre o
senão algo tão claro e primoroso quanto a luz solar justo e o injusto, e sobre a lama e os monstros e tudo o
mesma; não haveria de usar nada que não fosse lavado mais. O templo pertence ao meio-dia; é feito de nuvens
de branco quanto a chuva pode lavar os céus, nada que brancas de mármore e dum céu de safiras. Mas o Sol
não refulgisse tão impecavelmente quanto aquela coroa não pertence sempre ao meio-dia. O Sol morre diaria-
de Deus. Nada teria com qualquer coisa grotesca ou mente; todas as noites é crucificado no sangue e no
obscura; nada teria, a bem dizer, com qualquer coisa fogo. — Ora, o sacerdote havia ensinado e lutado ao
enfática ou mesmo misteriosa. Seus arcos seriam tão longo de toda a guerra, e o seu cabelo já se fizera branco,
leves quanto a luz e tão cândidos quanto a lógica. Con- mas os olhos se haviam feito mais jovens. E ele disse —
struiu ele o templo em três pátios concêntricos, cada Eu estava errado; eles estão certos. O Sol, o símbolo de
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nosso pai, dá vida a todas aquelas coisas que estão reple- coletara a fim de com elas honrar a Deus. Mas não se
tas de feiura e energia. Não há exagero errado, desde lembrava mais do porquê as coletara. Não conseguia se
que se exagere a coisa certa. Apontemos para o céu com lembrar da configuração visual ou do objeto. Empil-
presas e chifres e barbatanas e trombas e caudas, desde hou-os então a todos, sem plano ou ordem, num amon-
que apontem todas para o céu. Os animais feios adoram toado de quinze metros de altura; e, depois de
a Deus tanto quanto os belos. Os olhos do sapo terminá-lo, os ricos e os influentes entraram a aplau-
saltam-lhe da cara pois ele está a contemplar o céu. O di-lo freneticamente, e gritar: — Isto é arte de verdade!
pescoço da girafa é assim longo pois está ela a esticá-lo Isto é Realismo! Eis aí como são as coisas de fato!
para o céu. O burro tem orelhas para ouvir — que o Aí está, parece-me, a verdadeira origem do Realismo. O
burro ouça, portanto. Realismo não é senão o Romantismo que perdeu a
E, sob a nova inspiração, planejaram uma belíssima razão. E perdeu-a não apenas no sentido de insanidade,
catedral à moda gótica, com todos os animais da terra a mas no sentido de suicídio. Perdeu a razão; a razão para
nela rastejarem, e quantas coisas feias há no mundo existir. Os antigos gregos evocavam coisas divinas a fim
perfazendo todas uma só beleza, por apelarem todas ao de adorar o seu deus. Os cristãos medievais evocavam
deus. As colunas do templo eram talhadas como os todas as coisas a fim de adorar o Seu — anões e pelica-
pescoços das girafas; a sua cúpula afigurava-se uma nos, macacos e malucos. Os realistas modernos evocam
tartaruga feiosa; e o pináculo mais alto de todos era um também todas estas milhões de coisas a fim de adorar o
macaco de ponta-cabeça a apontar a cauda para o céu. seu deus; e, então, não têm deus algum a ser adorado. O
E, não obstante, o conjunto era belo, pois que se erguia paganismo foi, na arte, uma beleza verdadeira; ali houve
num gesto vivo e religioso, qual um homem ergue suas a alvorada. O cristianismo foi uma beleza criada para
mãos em oração. controlar um milhão de monstros feiosos; e aí houve,
segundo creio, o zênite e o meio-dia. A arte e a ciência
modernas significam, praticamente, ter os milhões de
III monstros e ser incapaz de controlá-los; e eu me aventu-
Mas este plano grandioso nunca se completou. As ro a chamá-las de a ruptura e a decadência. O que de
gentes haviam trazido, em carroças enormes, a pesada melhor há nos mármores de Elgin consiste em cavalos
cúpula de tartaruga e os gigantescos pescoços de pedra, esplêndidos a trotar até o templo de uma virgem. O
e todas as incontáveis estranhezas que juntas criavam cristianismo, com suas gárgulas e seus grotescos, ao fim
uma unidade, as corujas e as salamandras e os crocodi- e ao cabo queria dizer isto: que um burro poderia passar
los e os cangurus, que, se horrendos em si mesmos, à frente de todos os cavalos mundo, desde que estivesse
poderiam ter sido magníficos quando construídos realmente indo para o templo. O Romance queria dizer
numa só proporção definida e dedicados ao Sol. Pois um burro santo indo para o templo. O Realismo quer
ter-se-ia aí o Gótico e o romântico e a arte cristã; dizer um burro perdido indo para lugar nenhum.
ter-se-ia aí o avanço que foi Shakespeare em relação a Os fragmentos de jornalismo fútil e impressões
Sófocles. E aquele símbolo que lhe serviria de coroa, o efêmeras que estão aqui reunidas são um tanto como os
macaco de ponta-cabeça, era perfeitamente cristão; destroços e os blocos partidos que foram amontoados
pois o homem é o macaco de ponta-cabeça. numa pilha em volta de meu imaginário sacerdote do
Mas os ricos, que na longa paz se haviam tornado Sol. São um tanto como aquela cabeça cinza e
tumultuosos, obstruíram a coisa, e em meio a alguma boquiaberta que encontrei afundada na relva. Não
bulha uma pedra atingiu a cabeça do sacerdote, e ele obstante, hei de reivindicar, mesmo a partir de frag-
perdeu a memória. Viu, portanto, diante de si sapos e mentos assim triviais, que sou um medievalista e não
elefantes, macacos e girafas, cogumelos e tubarões; um moderno. Isto é dizer, sei por que coletei todos os
tudo, em suma, o quanto era feioso no universo, e que absurdos que por aí existem. Falta-me a paciência, ou
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talvez a inteligência construtiva, para dizer-lhes qual é a


ligação entre tantos artigos caóticos. Mas é ligação que
poderia ser dita. Esta fileira de monstros amorfos e
desajeitados que ora ponho diante do leitor não consiste
de ídolos separados, arrancados ao sabor de caprichos
meus a vales solitários ou ilhas diversas. Tais monstros
são as gárgulas de uma catedral bem definida. E a mim
me cabe talhar as gárgulas, pois não sei talhar outra
coisa; deixo para outros os anjos e os arcos e as espirais.
Mas quanto ao estilo da arquitetura, e à consagração da
Igreja — quanto a tais coisas não tenho dúvida.

1 Os Mármores de Elgin, também conhecidos como Mármores do Partenon, são uma grande coleção de esculturas em mármore levadas
da Grécia para a Grã-Bretanha em 1806 por Thomas Bruce, Lord Elgin, na época embaixador junto ao império Otomano.
2 O presente artigo é uma introdução ao livro de ensaios Alarms and Discussions, ainda não traduzido para o português.

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