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Angela Elisabeth Lithning e Laila Andresa Cavalcante Rosa Editoras Raul César Oliveira Revisdo Nicolas Rafael Larain Severin Capa Christian Knop/Contexto Diagramagao/tmpressao Encontro Nacional de Etnomusicologia (2004 ~ Salvador) Anais! ABET/CNPa/ Contexto, 2005. 150p. 1. Etomusicologia ~ Congreso. 2. Mtisica ~ Pesquisa. 3. Misica Brasileira. 4. Mésica ~ tradigies orais 1 Lihning, Angela Elisabeth Rosa, Laila Andresa Cavaleante (editoras). IL. ABET/ CNPa/ Contexto. III. Titulo. CDD. 780 Enderego para contato: P6s-Graduagao em Misica da UFBA Rua Aratijo Pinho, 58 4010-040 Salvador ~ Bahia Tel /fax O71/ 3336-7421 ppgmus@ufba.br www.abetmusica.org.br Realizago; ABET/ CNPg/ PPGMUS/ Contexto a (0s tabalhos apresentados durante 0 evento e que no constam da presente publicagso ‘io foram eoviados & Coordenago a tempo, assim impossibilitando a sua inelusio. AS pesquisas eos textos resultantessio de inteiraesponsablidade dos respectivos autores Sumario Prelii . ‘Angela Liihning Abertura I i Carlos Sandroni Abertura Ta... Tiago de Oliveira Pinto Cantar a terra: representagdes de Portugalidade Salwa El-Shawan Castelo-Branco Gérard Béhague (1937-2005). In memoriam. Manuel Veiga Os antecedentes dos caminhos da interdisciplinaridade na etnomusicologia Gérard Béhague O lugar do etnomusicélogo junto 4s comunidades pesquisadas: “devolugio” de registros sonoros como imperativo cientifico Carlos Sandroni Baidio de Dois: composigao e Etnomusicologia no forré da pés-modernidade (em 6 passos) Paulo Costa Lima Politicas piblicas para a cultura no governo Lula; um breve comentério..... Samuel Araiijo Etnomusicologia. Fronteiras e didlogos: aplicacies, imteras social, politicas piiblicas osiingela Pereira Tugny Etnomusicologia no Brasil: algumas tendéncias hoje. Rafael José de Menezes Bastos 15 19 37 39. 49 aay n 719 89 Cem anos de Etnom: disciplina no Brasil... Tiago de Oliveira Pinto Etnomusicologia no Brasil: o presente e o futuro (problemas e questées) Manuel Veiga De um relato, ao mercado de idéias .. Kila Setti Os autores ... llogia ea “Era Fonogrifica” da 103 125 4139 149 Sop co eect meer ret PRELUDIO Com esta publicagio chegamos a estabelecer mais um marco importante, finalizando a etapa apés a realizagao do proprio evento que este modesto volume em parte representa: o II Encontro Nacional da Associago Brasileira de Etnomusicologia (ABET). O objetivo deste II Encontro, através dos temas propostos pela comissio organizadora, foi o de proporcionar uma ampla discussao sobre o atual perfil da etnomusicologia no Brasil, bem como sua interlocugo com ‘outras reas ¢ com a sociedade brasileira em geral Certamente devemos ver a etnomusicologia a partir de sua incluso na P6s-Graduagéo brasileira, a partir de 1990, fato que levou 4 um representativo crescimento desse campo de estudo, tanto no ntimero de pesquisadores formados, como na criago de novos cursos ena ampliagio das linhas de pesquisa e buscas por novos campos de atuagio. Ainda assim, desde 1992, almejava-se a criagao de uma associagdo que pudesse contemplar distintas vertentes dos estudos cetnomusicolégicos no Brasil, fato que foi concretizado em 2001 com o surgimento da ABET, que veio confirmar o significativo crescimento a etnomusicologia no pais. 0 I Encontro da Associagao, realizado em Recife no ano de 2002, abriu um amplo espaco para troca de experiéncias entre pesquisadores da area e afins. Nesse I Encontro esperava-se que as novas conquistas da etnomusicologia fossem ampliadas, estimulando 0 surgimento de novas configuragdes para pesquisa ¢ atuaao nesse ‘campo, sempre mantendo um olhar critico sobre a atuago e as novas demandas existentes. Para o Il Encontro buscamos novas definigdes de conhecimento na etnomusicologia bem como, a descaberta e consolidagao de novas parcerias com outras reas. Motivados pela conviegao de que a etnomusicotogia, como também as demais ciéncias humanas, precisa re-definir seu modo € campo de atuacdo frente a sociedade atual, composga por tantos grupos diferentes, acreditamos que desta forma transcendemos os modelos tradicionais estabelecidos pela ciéncia académica. Com esse intuito, objetivamos ampliar as discussdes sobre as responsabilidades da etnomusicologia nas suas dimensdes cicntifica, social, cultural, po VIVEIROS DE CASTRO, E. Araweré: Os deuses canibais. Rio: Jorge Zahar Editores, 1986. WERLANG, Guilherme. Emerging peoples: Marubo myth-chants. Saint Andrews: University of Saint Andrews. Ph. D. disserta- tion in Social Anthropology, 2001. 102 CEM ANOS DE ETNOMUSICOLOGIA E A “ERA FONOGRAFICA’ DA DISCIPLINA NO BRASIL Tiago de Oliveira Pinto Introduzindo Centendrios e aniversérios reionilos sempre chamam & wiéméria acontecimentos passados, incentivam a tembranga de trajetorias © a realizagdo de comemoragées. E curioso, porém, que, no caso da etromusicologia, néo se note maior movimento em tomo de seus cem anos de existéncia. Certo € que nio se fez, por parte de uma de suas instituigées, declaragio oficial deste centendrio. Apesar de comentarios ¢ indicios esparsos, a questio ainda nfo foi tematizada com maior nfase.! Quero propé-la com base na discussdo de documentos que me parecem indicar o surgimento da disciplina nos anos 1904 e 1905. Vou tratar destas evidéncias, que se configuram como uma espécie de “certido de nascimento” da disciplina, considerando também os seus antecedentes ¢ a relago destes primérdios da etnomusicologia com o periodo das gravagies fonogréficas no Brasil Portanto, se nos fot solicitado falar sobre presente e futuro da etnomusicologia?, importa também saber do seu pasado. E a este que me refiro nas paginas que seguem, pois é 0 passado que nos faz entender melhor o presente e, quem sabe, prever algo para o futuro, Bruno Nett! faz mengio a algo como uma celebragto de 120 anos da ctromusicologa, patindo de 1885, ao.em que Alexander J. Elis publica 0 resultado de suas pesquisa aedstcas (ELLIS, 1885) Na verdade Nett inclu 0 perio que antecede o nascimenta da etnomusiologia,conforme busco argumentar neste ensaio, Nettl toma os 50 anos da “Society for Ethnomusicology” como ensejo para refletir sobre as data importantes da disciptna (NETTL, 2005) %4 Uma versio reduzida deste texto foi apresentada na mesa redonda “Presente « futuroda Etnomasicologia no Brasil" 2 Encontro Nacional da ABET em Salvador novembo de 2004), Aindacstavam presents mesa Manvel Veiga ¢ Rafael José de Menezes Bastos. A mesa foi presidida por Salwa El Shawan Cattelo-Rranco 103 Antecedentes Sao conhecidos os marcos que antecederam 0 advento da etomusicologia, ou melhor, da “musicologia comparativa”, o primeito nome dado & nossa disciplina. Um desses marcos é a mengdo a uma subérea da musicologia, feita em 1884 pelo music6logo austriaco Guido Adler (1855-1941), que aponta para a “anélise da miisica dos povos extra-europeus ¢ das culturas 4grafas”. Mesmo que, a esta altura do final do Sée. XIX, jé existissem vérios estudos sobre mtsica € préticas musicais ndo ocidentais, é este catedratico da Universidade de Viena o primeiro a inserir formalmente a pesquisa da miisica ndo- ocidental na esenpa da ciéncia musicolégica. No seu importante artigo “Objeto, método e meta da musicologia” (1885), Adler faz a tentativa de justapor em planos paralelos a parte histOrica e uma parte que ddenomina de sistemética da ciéncia musicolégica.* £ neste segundo grupo das “musicologias” ~ 0 ramo da sistemética ~ que Adler abriga as culturas musicais ndo européias, ¢ também 0 folclore europeu, denominando o estudo dos mesmos de ““Musikologie”, como indica no itimo de quatro itens que enumera: Musicologia Sistemética . A. aacistica (harmonia, ritmo e melodia), B. aestética (o “belo musical”), C. a pedagogia e didatica musical e D. a “Musikologie”, ou seja, a “investigagao e comparagao (dos produtos musicais, ‘Tonproducte’), para fins etnogréficos.” (ADLER, 1885) Em trabalho posterior, um grande compéndio de historia da misica em trés volumes (ADLER, 1924), Adler reforga a separagao entre a misica dos “povos naturais e orientais” daquela do Ocidente, dando a esta uma organizagao hist6rica, que se inicia na Grécia Antiga e termina com o final do Século XIX. Esta histéria da miisica ocidental é subdividida em trés grandes periodos de estilo (Stilepochen”), enquanto a misica oriental ¢ aquela de “povos naturais” so confinadas em um capftulo prévio, dando a entender que se trata de algo sem historia, sem estilo definido, em estagio evolutivo anterior ao da misica da antiguidade grega. > Para uma discussio mais aprofundada sobre a complexa relagdo entre ‘musicologia historicae sistematica, vide Menezes Bastos (1995) one E interessante verificar a persisténcia deste projeto de estudos proposto por Adler. Sua influéncia ainda se faz notar em muitos programas académicos de musicologia até os nossos dias. Mesmo a separagio em miisica ocidental de um lado, sistematizada historicamente, e ndo-ocidental e popular do outro, mantém-se amplamente em muitos esquemas de histéria da mésica 120 anos depois. Mostra-se, inclusive, nas prateleiras de lojas de discos, onde, desde 0 final dos anos 1980, um novo rétulo, denominado “World Music”, figura como categoria que engloba todas as miisicas populares e tradicionais do mundo além-ocidente anglo-americano, Por esta sua sistematizagio, Guido Adler’j4 foi citado como precursor da musicologia comparativa, predicado que, a meu ver, jamais reclanfaria para si, pois 0 trabalho de Adler ignora por completo verdadeira importancia de sistemas musicais ndo pertencentes 20 dominio cultural do Ocidente. Fica evidente, a partir de Adler, que a musicologia comparativa ocupa-se exclusivamente da miisica de tradigo oral endo européia, mesmo que o seu nome aponte para um método (a comparacdo) € ndo necessariamente para uma segmentagio ‘geogréfica ou cultural ‘Ao mesmo tempo em que, na Austria, Adler esbocava seu plano para 0 estudo da misica, impingindo-the aspiragdes universais, na Inglaterra, ofisico e fonslogo Alexander J. Ellis (1814-1890) examinava a particularidade de escalas e afinagdes em instrumentos orientais com equipamentos de medic2o aciistica, pouco preocupado, ainda, com as colocagées de Adler ou com quaisquer outros conceitos e preconceitos da ‘musicologia histérica, Ellis, que, a0 lado de Adler, também & visto como precursor da musicologia comparativa, preocupou-se diretamente com sistemas de afinagdo. Defendeu que o estudo de manifestages musicais estranhas a0 mundo ocidental deveria adotar a comparagio como principal recurso metodol6gico. Em 1885, Ellis publicou suas descobertas, feitas a partir de andlises actsticas em instrumentos de mésica do sudeste asidtico e afticanos, do acervo do Museu Pitt Rivers, prSximo a Londres. Para descrever os intervalos que encontrou em instrumentos de afinago fixa, utilizou-se de uma unidade minima de medigao, os cents. Estaljeleceu que cada intervalo de semitom temperado teria 100 cents € que, portanto, a oitava comportaria 1200 cents. Com base nas suas ‘medigées, Ellis pode afirmar que diversos intervalos musicais encontrados nos instrumentos, quando fixados em cents, no pertenciam a um sisterna sonoro “natural” (0 que se acreditava ser o sistema ocidental), mas que 105 estes intervalos representariam construgées culturais. De certa forma, Ellis apontava para o carter ilusério de uma suposta lei dos intervalos actisticos, considerada pelas cigncias de sua época como sendo natural © veredicto final do seu artigo “On the musical sales of various nations” fulminant @ escala musical niio € apenas uma, nao € natural, nem mesmo necessariamente fundamentada nas leis dé Constituigao do som musical, (..) mas muito diversificada, ‘muito artificial e muito caprichosa” (ELLIS, 1885). + Ellis conclui o seu artigo, comentando que uma nova érea de Pesquisa deveria estahelecer-se através de longas © cuidadosas observagbes por parte de fisicos com nogdes de musica. Com isso! Ellis aponta para a dificuldade inicial que membros de uma cultura musical especifica tém para ouvir e reconhecer, com propriedade, outros sistemas de afinagao (ELLIS, 1885, p. 527), sugerindo, pois, ue misicos (ou musicélogos) do Ocidente néo seriam os profissionais ‘mais adequados para o estudo da miisica nao ocidental. Apesar de submetidas, posteriormente, a certas corregées (SCHNEIDER, 1976), as medigOes actisticas de Ellis puderam dar luma primeira explicagao detalhada do slendro javanés, como sendo uma escala pentéfona temperada, Provaram, também, a existéncia da escala heptafénica temperada (pelog), igualmente de Java. Pesquisas cientificas como as de Ellis e a sistematizagao de Adler nao bastaram para vermos nascer uma nova disciplina. Adler Permanecra fiel a musicologia histérica ¢ Ellis contribu primeiramente, para a fisica acdstica ¢ a psicologia. No entanto, jé se percebe uma nitida ampliagao do campo musicolégico, definida mais adequadamente como quebra ou ruptura, Esta ruptura na musicologia, essencialmente epistemolégica, resume-se a dois pontos: (1) a descoberta de que a miisica ocidental nfo obedece a leis universais e, por conseguinte, 2) 0 fato de a cultura musical do ocidente nio ser Gnica e tampouco representar modelo obrigatério sine qua non Para toda e qualquer pratica musical do globo. Apesar da importincia das descobertas actisticas de 1885, ainda nos encontramos no perfodo que antecede 0 nascimento da disciplina etnomusicolégica. iportincia dos primeiros arquivos fonogrétficos Quando, em 1900, um grupo de miisicos provenientes do Sigo (hoje Tailandia) se apresenta em Berlim, o chefe do Instituto de Psicologia da Universidade de Beslim, Carl Stumpf (1848-1936), faz experimentos de percepeio musical com os misicos, ¢ também algumas gravagbes, iniciando, assim, uma primeira colegdo de fonogramas. Stumpf aproveita, também, para medir as escalas dos instrumentos siameses. Inspirado pelo trabalho de Ellis e preacupado com a relagdo entre a fisiologia das percepgies sens6rias ¢ a reacdo psicolégica as mesmas, Stumpf nota que, quando habituado a certas relagdes de integvalos, principalmente, também, as afinagdes diatOnicas temperadas da misica ocidental, 0 ouvido corrige, automaticamente, determinadas “desafinagGes” alheias. Stumpf descobre, assim, que estar “fora do tom” ou “desafinado” em si j4 sao conceitos etnoc€ntricas, pois pressupdem que 0 outro esté errado, pelo fato de estar fora das normas do mundo musical préprio, este sim. supostamente “no tom” e “afinado” A contribuigo que Carl Stumpf dé com a sua pesquisa a uma escola berlinense de musicologia comparativa e também a fundagio do arquivo fonografico do Instituto de Psicologia da Universidade de Berlim, est4 vinculada diretamente a0 emprego do fondgrafo de Edison, inventado em 1877 por Thomas Alva Edison. O fondgrafo € 0 principal recurso técnico do qual os pesquisadores norte-americanos € curopeus dispGem, agora, para captarem os mais diferentes estilos musicais, para registrarem afinagdes desconhecidas, provenientes de todo o mundo. se ate we iamiemiondnveriueaa das imporiantestarcuivas fonograficos. O primeiro € 0 arquivo de Viena, 0 “Wiener Phonogrammarchiv”, junto & Academia Imperial de Ciencias, de 1899, No més de julho de 1900, cria-se o arquivo sonoro da Société 4’ Anthropologie de Paris, cujo propésito, “la constitution d’un musée phonographique”, previa 0 uso do fondgrafo para “finalidades anggopoldgicas” (GRAF, 1972). E interessante lembrar as finalidades originais de um arquivo sonoro, como o de Viena: L.A documentagao acistica de idiomas ¢ dialetos europeus, dos demais idiomas de todo o mundo; 2. O registro da mais efémera das artes, a musica; 3. O registro de falas, frases ¢ discursos de personalidades célebres, ou seja, a realizagio de retratos actsticos. Em Viena estas metas permanecem em pauta durante todo 0 século XX. A misica, portanto, € somente uma entre trés grandes reas de documentago sonora. Hoje, soam curiosas as observagbes, de 1899, da comisséo fundadora do arquivo, quando sugere que, n0 caso de falas de povos “selvagens, porém cristios”, 0 pesquisador faca, primeiramente, o registro de uma versio do Pai Nosso, a fim de facilitar a comparagio lingifstica e fonolégica posterior. Em breve, os pequenos cilindros de cera do fondgrafo de Edison chegavam a Europa, na bagagem de antropologos € Via'ptes, cotn registros de sons, melodias, cAnticos e falas de todos os continentes, fazendo crescer os recém-instituidos arquivos de Viena, de Berlim de Paris. E significativo que estes arquivos tenham sido criados por pesquisadores nao-musicélogos. As dreas de investigagio diretamente interessadas no novo tipo de registro fonogrifico, que agora cra tanto aciistico quanto cultural, pertenciam as ciéncias exatas, & fisiologia, & psicologia e as ciéncias sociais. No entanto, 0 arquivo que mais se destacaria, justamente por dirigit seu foco principal sobre a misica, é 0 Phonogrammarchiv de Berlim. Este arquivo péde, em breve, reunir importantes pesquisadores, nomes {que logo estariam entre os pioneiros da musicologia comparativa. O Berliner Phonogrammarchiv cresce rapidamente e se torna uma importante instituicio de pesquisa e de produgio de saber. Por trés décadas consccutivas, exerceria influéneia sobre pesquisadores © instituigdes afins em todo o mundo, Em Berlim, é 0 aluno e sucessor de Stumpf, Erich Moritz, von Hombostel (1877-1935), quem amplia a colegio iniciada por Stumpf no Instituto de Psicologia. Hombostel ndo era musicélogo, tampouco psicdlogo, tal qual seu professor Carl Stumpf, Era quimico, orientando de Robert W. Bunsen, 0 que explica a forte filiagdo da musicologia ‘comparativa da escola de Berlim, de um lado, a psicologia e, de outro? ‘20s métodos das ciéncias biolégicas e exatas. ‘A misica gravada representava o material de trabalho que era estudado, fornecendo as informagdes necessarias para que, com 0 tempo, pudesse surgir uma visdo global de todos os estilos musicais do nosso planeta. O essencial, para isto, era a colecdo sistemética das 108 fontes sonoras. Para ampliar, o mais rapidamente possivel, esta colegio, Hombostel fazia, em 1905, 0 seguinte apelo mais importante, todavia, é que se encontre o maior nimero possivel de colecionadores que nfo temam as pequenas dificuldades da gravagao fonogrifica, mesmo que nela nao cestejam diretamente interessados (HORNBOSTEL, 1905). Hornbostel salientava que, para resolver questdes bésicas da musicologia através de um estudo comparativo em larga escala, era necessirio que se dispusesse, 20 menos, de provas de manifestagbes musicais de todos os pontos do globo (HORNBOSTEL, 1905). Antrop6logos de varios paises contribu‘am para este fim. A colegio ques na década de 20, j4 contava com 30 mil fonogramas yravados, possufa registros feitos por celebridades da antropologia, como Franz Boas ou Evans-Pritchard. Durante décadas, os aparelhos do Phonogrammarchiv ~ a maior colecdo de fonégrafos de uma instituigao piiblica de seu tempo ~ eram remetidos a varios continentes para acompanharem as mais diversas expedigoes de pesquisa. Ainda em 1937, Marius Schneider, sucessor de Hornbostel, enviava um aparelho a0 Brasil, via Embaixada Brasileira em Paris ¢ por iniciativa do entéo chefe do Departamento Cultural da Prefeitura de So Paulo, Mario de Andrade. Novos paradigmas Vimos que, inicialmente, a musicologia comparativa recebeu a sua orientagio cientifica de dreas que nao pertenciam & musicologia. Em compensacao, ¢ 0 momento, também, em que surge uve “paradigma musical” em outra érea de pesquisa: na antropologia, uma ciéncia do homem que se abre a esfera cultural além do dominio europeu. A simultaneidade destes dois movimentos — ruptura, de um lado, € expansio, de outro ~ é essencial para 0 surgimento da etnomusicologia (ainda denominada de musicologia comparativa) ‘enquanto disciplina cientifica. A construgdo de seu proprio perfil dé-se a partir de idéias novas e de orientagies especificas de pesquisa do in{cio de século, uma disciplina que elege como seu campo proficuo de agio o estudo do homem através de sua mésica. Verifica-se claramente que a preocupagao dos primeiros representantes de uma musicologia comparativa se enquadra nas questdes da virada para o século XX. Incentivada pela teoria 109 evolucionista, vigora a preocupagdo em se delinear uma histéria da humanidade, incluindo 0s seus varios estgios, dos supostamente mais primitivos aos mais evolufdos. Para entendé-los, a antropologia fornecia farto material ilustrativo (embora os antropstogos nao necessariamente apoiassem esta visdo de hist6ria). Mas também um arquivo, como 0 de Berlim, dispunha de material fonografico, agora devidamente organizado, que poderia comprovar os diferegtes estzios estilisticos de uma hist6ria mundial da misica. Por sua vez, 0 desenvolvimento das ciéncias exatas, em especial da fisica, culmina com a primeira versio da “Teoria da Relatividade” de Albert Einstein, precisamente em 1905. O jover' Einstein consegue provar a falsidade da crenca cientifica. que até ento imperava, sare espaco e tempo, energia, luz € matéria. De maneira revoluciondtia, descobre um novo conceito de relatividade. Neste mesmo perfodo, ¢ em reago 2 postura evolucionista da histéria da humanidade, propaga-se uma contracorrente na antropologia, inicialmente através do chamado difusionismo, que se op6e a idéia da linearidade nica de uma evolugao cultural. E outro Jovem cientista, o antropélogo Franz Boas (1858-1941), que, depois de permanecer em campo entre os inuit (esquimés) das ilhas de Baffin, se distancia definitivamente da idéia (evolucionista) da existéncia de estigios altos ¢ baixos de desenvolvimento cultural em diferentes sociedades' Pergunto-me, muitas vezes, quais as vantagens que a nossa “boa” sociedade tem sobre aquela de “selvagens”. Chego a conclusao que, quanto mais observo seus costumes, menos temos 0 direito de olhar de cima sobre eles (..). Esta viagem me fortaleceu (enquanto pessoa que pensa) 0 ponto de vista da relatividade de todas as maneiras de trato cultural (Bildung).(BOAS, apud JONAITIS, 1994, p. 122) Este respeito perante a cultura “do outro”, mesmo que completamente diferente dos princfpios da propria sociedade, espelhg- se também em muitas das abordagens de Hornbostel, que, independentemente de opinides contrarias, por vezes ferozes, vindas da musicologia histérica, mantinha-se convicto da validade de suas descobertas € teorias. E 0 proprio Boas quem o convida a fazer suas primeiras (e Unicas) pesquisas de campo nos EUA com indigenas norte-americanos. 0 0 Zeitgeist dos primeiros anos do século XX, portanto, é propicio ao surgimento da etnomusicologia. Nao pode ser coincidéncia, entio, a disciplina se apresentar moderna, avangada € arrojada desde 0 momento dos seus primeiros passos. Ela é moderna, na mesma acepgao dada ao termo pelos modernistas, movimento que se fortalece rapidamente nesse inicio de século. Como estes, também a etnomusicologia prevé o final das convengées tradicionais de certas linhas de pesquisa, ou se opde a opinides estéticas, nas quais as artes sao vistas unicamente em consequéncia do seu meio natural. E 0 momento para se abrir a0 mundo desconhecido - fala-se em “exotismo” — e abandonar conveng6es ultrapassadas. Surgem obras emblemiticas das artes, plgsticas, inspiradas no descobrimento deste exotisma, coma “Tes Demoiselles d’Avignon” de Pablo Picasso. Independentemente de alguns de seus representantes, como Curt Sachs, que ainda se prende ao evolucionismo hist6rico, a musicologia comparativa em si também expressa esta renovac0, nao se submetendo a tradigao oitocentista, basicamente filol6gica, das ciéncias humanas de seu tempo, representada pela musicologia histérica. Esta nova musicologia comparativa j4 demonstra ser aliada dos recursos tecnolégicos, dos quais se beneficia desde 0 inicio. Assim, a sua abertura e a sua vontade de inovar sto as mesmas que as das descobertas tecnolégicas; a sua independéncia de um locus geogrdfico e temporal fixo € semelhante & da fisica da Teoria da Relatividade, seu credo estético dialoga com aquele dos modernistas, deixando para trés tudo aquilo que, pouco antes, pareria tinico e incontestével. Incontestavel se pretende, ainda, a idéia do mais célebre dos tedricos da miisica desse infcio de século, Hugo Riemann, quanto a0 “edificio sonoro da humanidade”. E Riemann, precisamente, quem mais se incomoda com o “relativismo musical” dos comparativistas Se um dos mais recentes ramos da musicologia, a etnografia ‘musical, parte da utilizagao de técnicas modernas de pesquisa, de gravagdes de cAnticos de povos naturais ¢ exames exatos 4% de instrumentos de misica, para chegar a resultados que dio uum tapa no rosto das mais antigas tradigdes da teoria das relagGes dos tons (intervalos de % de tons, tergas “neutras etc), nao € tarefa da historiografia deixar-se influenciar no retrato que constréi do pasado, a partir destas observagdes de hoe, Urge, ai uma séviaadvetnca as histriadores misics, para que no deixem turvar a sua visio pelos pesquisadores dos métodos das ciéncias exatas, (..) A oitava subdividida em 12 semitons (.) € um fato hist6rico, que no se derruba com alguns apitos mal feitos da Polinésia ou com desempentos de cant qusonivels de mulheres deco a, convicgao de Riemann, ainda amplamente compartilhada em , no poderia mais sustentar-se para os pioneiros da einomusicologia. Agora, havia um “projeto etnomusicoldgico”, enquanto visio que renovaria 2 musicologia, questionando com esta renovagio a posigdo filolégica das ciéncias humanas como um todo. E ‘© momento em que se encerram os antecedentes e em que nasce, de fato, a nova disciplina. , Surge a disciplina Nos anos de 1904 ¢ 1905, sio publicados alguns textos que, metaforicamente, podemos chamar de “‘certidées de nascimento” da ctnomusicologia, pois anunciam claramente o incipiente campo de estudos, situado epistemologicamente entre a musicologia e a antropologia. Mesmo filiada, a partir deste momento, a ambas as ciéncias, esta pesquisa de “misicas exéticas” ainda permaneceria, por um bom tempo, sem o devido reconhecimento pleno por nenhuma das duas. Mas quais so as mencionadas cet jes de nascimento? F-com a convite a Horbostel para dirigit 0 Arquivo Fonogrifico de Berlim em 1904, que se the imprime marca de uma inattaigae séria de pesquisa. Este pesquisador e seus colegas introduzem a nova orientagdo & pesquisa musicolégica a partir de 1905. Na véspera de assumir 0 Arquivo, Hornbostel publica, em conjunto com Otto Abraham, o artigo “Sobre a importincia do fondgrafo para o trabalho musicolégico comparativo” (“Uber die Bedeutung des Phonographen fiir die vergleichende Musikwissenschaft”). O texto propoe um primeiro programa de pesquisa, significativamente sem falar em musicologia comparativa enquanto disciplina, mas apenas em “trabalho musicol6gico comparativo”. Uma das colocagées centrais do texto ¢ sugestio dos autores, de que ser necessério, neste tipo pesquisa, buscar compreender as diferen suas cspecificiades salar iia ak aaa ‘Tarefa do trabalho musicolégico comparativo € distinguir as diferengas entre 0s tragos culturais especificos (citagao incompleta!) Sem diivida, esta € uma constatagio que se tornard verdadeiramente programética para a disciplina a partir das décadas seguintes. E importante notar, também, que a observagio denota um distanciamento da musicologia historica, ¢ uma subsequente aproximagio & antropologia cultural, dentro da linha de Franz Boas. Recém-empossado como diretor € pesquisador do arquivo fonografico, Hornbostel publica o seu célebre artigo “Problemas da musicologia comparativa” (HORNBOSTEL, 1905), 0 segundo documento que testemunha o surginentu da nova disciplina. Na introdugo, o autor aponta para a dificuldade em definir um ramo especial de uma ciéneia que ainda no tem maiores resultados a apresentar. Por isso, opta por delinear as metas a serem alcangadas por este jovem “rebento” (“Sprissling”), que acaba de nascer, a musicologia comparativa, Hornbostel argumenta que as condigdes basicas para poder abrir 0 novo campo de pesquisa esto garantidas com 0 método comparativo ¢ com a invengao do fonégrafo de Edison. Sublinha, também, a importancia do arquivo sonoro como fundo de materiais de pesquisa. Depois de comentar uma lista de diferentes parametros musicais, reconhecendo a origem musicolégica da disciplina, Hornbostel chega a etnografia, focalizando 0 contexto das manifestagdes musicais € as artes correlatas, a danga ¢ a performance dramdtica, Na verdade, Hornbostel introduz, aqui, 0 que bem mais tarde se denominaria de performance studies na antropologia. © autor enxerga, claramente, que o registro de campo no se pode restringir ao pardmetro sonoro, € que também o filme teria de desempenhar fungao essencial na coleta de dados. Vernos que esta proposta visiondria de Hornbostel, de 1905, antecipa uma etnomusicologia moderna, que nao se limita a0 aspecto sonoro da miisica, mas reconhece a importancia de ‘suas miiltiplas formas de expresso e de seu meio social, como fatoregfindissocidveis da pesquisa ‘Além da ampliagio do Phonogrammarchiv para uma instituigo de pesquisa ¢ dos mencionados textos programéticos, € importante verificar a insergdo da disciplina no cenério das 3 pesquisas culturais. Qual a postura das duas disciplinas que Ihe so mais préximas, a musicologia hist6rica e a antropologia, no momento de constituigao de seus paradigmas enquanto area propria de pesquisa? Conforme jé vimos acima, nas palavras de Hugo Riemann, a musicologia hist6rica via-se ameagada pelas pesquisas “exatas” da musicologia comparativa, como efetuadas por Stumpf, Hornbostel e Abraham, acusando-a de querer derrubar 0 “edifi a ocidental. Esta € a manifestagio da ruptura que ocorre dentro da musicologia, conforme ja ‘mencionado anteriormente, Enquanto isto, neste mesmo ano, a antropologia, tendo como porta-voz 0 diretor do Museu de Antropologia de Berlim, Felix von Luschan, dé aos representantes da musicologia comparativa uma primeira acolhida. E sinal de que o “novo paradigma musical” chega & antropologia, e também as suas instituigées. Com a publicagdo de um artigo quase homdnimo ao supracitado de Hornbostel e Abraham, intitulado: “A importéncia de gravagdes fonogrificas para a antropologia” (LUSCHAN, 1904), Luschan nio esconde as ddvidas iniciais quanto a utilidade do fonégrafo para as pesquisas antropolégicas, mencionando que nem mesmo as experiéncias de Franz Boas com indios norte~ americanos haviam trazido provas convincentes da importincia do aparetho para o trabalho de campo antropol6gico. Foi somente por intermédio de palestras de Hornbostel, diz Luschan, que 0 fousyrato Ihe pareceu uma ferramenca indispensavel para a pesquisa de campo antropolégica. Conclui — e esta colocagio decisiva ~ afirmando que que (...) se realizou neste campo faz prever, desde jé, que, dentro de pouco tempo, a musicologia comparativa se tomaré uma das mais importantes e interessantes disciplinas da antropologia” (LUSCHAN, 1904, p. 201). Em uma réplica, publicada logo apés 0 artigo de Luschan, 0 psicdlogo e fundador do Arquivo Fonogréfico de Berlim, Carl Stutfpf, reitera 0s anseios do antropélogo: Dever-se-4 buscar criar um arquivo para fonogramas, preferencialmente como parte do Museu Etnolégico (STUMPF, 1904, P. 234). ‘ena. Vernos, eno, que, rejeitada inicialmente pela musicologia € acolhida pela antropologia, a etnomusicologia se constitui, e logo ¢ganha o perfil que Ihe & proprio: “duplo” e “dividido” + Como esse inicio de século é de contestagio artistica, de renovagio tecnolégica ¢ de reorientagio conceitual em muitas ciéncias, 0 momento nao poderia ser melhor para uma nova disciplina, que busca entender 0 que & estranho, que valoriza o que é desprezado, além de estar, essencialmente, preocupada em aumentar 0 proprio horizonte do saber, através do re-conhecimento de um mundo cada vez mais moderno, , por isso mesmo, cada vez ‘mais diversificado e miltiplo em seus sentidos. £AVide grfico na pagina seguinte.) Primeiras gravagies fonogréficas no Brasil E no espitito de estabelecimento de novas metas, mencionado cima, que se inserem as primeiras gravagdes feitas com o fondgrafo de Edison no Brasil, no contexto de viagens de pesquisa etnogratica Desde o inicio do século XIX, viajantes pesquisadores percorreram 0 Brasil em varias expedigdes de coleta e de investigacdo. As pesquisas antropoldgicas ¢ culturais recebiam, ao lado das biolégicas ¢ ‘2oobotinicas, um lugar permanente e de destaque. Apesar de ja encontrarmos referencias a tradigdes musicais do pais no século XIX, notadamente através das transcrigdes musicais que encontramos nos volumes de Spix e von Martius, de 1823, ou nas gravuras de Moritz Rugendas, é justamente 0 fondgrafo de Edison que abre perspectivas novas para a documentagao musical de fato Dado o interesse dos pesquisadores alemaes pelo Brasil ¢ o fatg de em Berlim se encontrar 0 maior centro de documentagio da misica mundial, no coincidéncia que os primeiros registros de miisica + Estadupla natureza da etnomusicologia ¢ logo tematizada no primeiro capitulo de um dos livros-chave da disciplina, no The Anthropology of Music, Alan P Merriam: % —Aetnomusicologiacarega dentro de sas semente paraa sua propria divisio, pois sempre foi composta por duas partes distntas, a musicoldgicaeactnoigica, lve seu maior problema sje amitura das dvas em um s6 modo dese, que nfo enfatiza nenhuma das duas, tit que toma annbasemvconsidcraglo, (MERRIAM, 1961). O surgimento da etnomu: ologia 1a ficedo entre musicologia e antopologia em 1904 « 1905 ANTROPOLOGIA cnt para colar sree de ‘co do mae MusicoLosiA pesemes tio reco (isc) 1304 PS LA 1904 MUSICOLoGiA 1905 sven ——> |] Muconco cia — . | cian nit oct prorat rete, ano Saaseeeea eoaueee Hace sl cs Py vidas, aa ETNOMUSICOLOGIA 116 feitos no Brasil com o fonégrafo de Edison, ainda na primeira década do século XX, deixem o pais rumo a Europa na bagagem de pesquisadores alemdes. As primeiras gravagées fonogréficas feitas durante expedigio de pesquisa no Brasil, e das quais se tem noticia, foram feitas por uma misséo da academia imperial de ciéncias da Austria, sob a diregao de Richard Wettstein, em 1901 no sul do pais. Trata-se de poucas amostras actsticas do idioma guarani, de uma cantiga religiosa e de um breve relato. Além disto, foram registradas, em Sao Paulo, falas do portugués do Brasil (STANGL, 2000, p. 153). As primeiras colegdes expressivas de misica brasileira gravadazm campo sio de 1908 a 1913, feitas pelos antropologos Wilhelm Kissenberth (1878 - 1944) ¢ Theodor Koch-Grunberg (1872 - 1924), respectivamente, que realizaram pesquisas coleta de cultura material indigena para 0 museu de Antropologia de Berlim (Kénigliches Vélkerkundemuseum zu Berlin). Embora tenha feito gravagdes de misica entre 05 kaiapé e karajé, além de ter reunido uma valiosa colegio de mascaras de danga, a colegao de cilindros de cera do fonégrafo de Kissenberth passou praticamente despercebida na reserva do museu até bem recentemente. J4 outro emissério do museu de Berlim, Theodor Koch-Grunberg, esteve no Brasil em quatro viagens de pesquisa, em 1899, de 1903 2 1905, de 1911 a 1913 e em 1924 Diferentemente de seu colega Kissenberth, Koch-Grunberg publicou o resultado de suas pesquisas, manteve contato com outros pesquisadores © empentiou-se eit realizar o méximo de gravagdes possivel com o fondgrafo, preparado especialmente para a segunda viagem por Erich M. von Hornbostel, Entre o material que Koch-Grunberg coletou no norte da Amazénia brasileira, encontra-se um grande nimero de instrumentos musicais, além das gravagdes que fez entre os indios macuxi, taulipan, tukano, desana e yecuanan, Como no era capaz de avaliar todo 0 ‘material musical indigena, solicitou a Hombostel que se encarregasse da andjjse de instrumentos ¢ da transcrigao das gravagées. O trabalho conjunto, elaborado a partir da idéia de Koch-Grunberg, correspondia 20 ideal, tal como havia sido formulado por Hombostel, ¢ que dava prioridade a coleta de gravagdes sonoras, mesmo por nio ‘musicdlogos © primeiro trabalho publicado por Hombostel sobre o material de Koch-Grunberg foi integrado na monografia do antrop6logo “Dois anos entre os indigenas — viagens no noroeste brasileiro 1903/1905", como capitulo independente. Trata-se do estudo organol6gico “Algumas flautas de Pa do noroeste brasileiro” do vol. 1 da obra de Koch- Grunberg. E um trabalho de pesquisa organolégica, que reflete, de maneira caracteristica, uma das questées tidas como bisicas pela musicologia comparativa: a comparagio de sistemas musicais e, motivado pela psicologia, o problema da afinago de instrumentos de misica $ Dentro deste espitito, Hornbostel voltou-se com especial énfase & andlise minuciosa dos intervalos entre os diferentes canudos das flantas de PS brasileiras, e. mais tarde, das div srsas escalas captadas pelo fondgrafo de Koch-Grunberg. No seu estudo de 1909, ele jé adianta a seguinte conclusio: Existe um principio coerente de afinagio dos instrumentos, 0 qual se processa através da entonagao dos sons harménicos que servem sempre de base a afinagio do canudo seguinte. (HORNBOSTEL, 1909) De especial relevancia para a histéria da musicologia no Brasil € ‘um artigo publicado por Hornbostel anos mais tarde, “Musica dos makuxi, taulipan e yekuanan”, baseado nas gravagées feitas por Koch-Grunberg, e novamente publicado, como capitulo independent, na segunda grande obra deste, intitulada “De Roraima ao Orinoco” (HORNBOSTEL, 1923). Portanto, além de uma numerosa colegio de instrumentos musicais provenientes do Brasil, Hornbostel tem & mo, a partir de 1913, mais de cem cilindros de cera gravados com miisica vocal e instrumental dos {ndios brasileiros, podendo, assim, realizar uma andlise musicolégica que, @ seu ver, tinha todas as prerrogativas para trazer resultados relevantes, no somente a0 conhecimento da musica de povos indigenas brasileiros, mas & disciplina como um todo, Hornbostel realiza anélises detalhadas € inéditas com base nestas gravagdes. Estuda ritmo, tempo, estrutura de melodias indigenas, tanto instrumentais quanto vocais, elementos, portanto, que jamais poderiam ser desvendados apenas através da anilise de instrumentos musicais dos respectivos grupos. Assim como a antropologia, a arqueologia a lingiistica, a musicologia estava contribuindo para tragar relagdes amplas, que iam us a0 encontro de uma das grandes preocupagées da época: a tarefa de participar, & sua maneira, da composigao do grande mosaico histérico- cultural da humanidade. Paralelamente & pesquisa de Koch-Grunberg na Amaz6nia, um antropélogo brasileiro, 0 carioca Edgard Roquette Pinto (1884-1954), realizava gravagdes com um fonégrafo de Edison em pesquisa de ‘campo no noroeste do Mato Grosso, entre os parecis ¢ nhambiquara em 1912. Nao sabemos até que ponto um antropélogo tinha conhecimento do outro. Nas correspondéncias de Koch-Grunberg, no encontrei referéncias ao colega brasileiro. As gravagies de Roguette Pinto encontram-se, hoje, no Museu Nacional, Rio de Janeiro. O resultado de suas pesquisas esté exposto no seu livro “Rondénia”(ROQUETTE PINTO, 1917). No inicio dos anos 20, Mério de Andrade deparou-se com a obra monumental de Koch-Grunberg, solicitando ao arquivo fonografico de Berlim cépias das gravagdes feitas na AmazSnia. Além das gravagdes ¢ das suas andlises musicais, a etnografia publicada por Koch- Grunberg deu outra grande contribuigio & cultura brasileira, através de um dos mitos registrados pelo antropélogo. Trata-se do mito makuxi sobre 0 heréi Maku-Naima, que, em 1928, torna-se protagonista do grande romance modernista de Mario de Andrade: “Macunaima”. Depois de conseguir as c6pias das gravagdes de Koch-Grunberg, Mario de Andrade também solicita a0 museu de Berlim um fondgrafo para gravagées de campo. O aparelho chega ao Brasil em 1937, ¢ € encaminhado & cantora € violonista Olga Praguer Coelho, que grava cantigas do candomblé batano, Trata-se do primeiru regisiy sonore deste repertério do qual tenho noticia. : Com esta gravago de Olga Praguer, encerra-se a era do fondgrafo de Edison. O gravador elétrico, tanto de fitas magnéticas como de “bolacha” (disco), inventado na década de 30, mais sofisticado e adequado para o trabalho de campo etnomusicol6gico, j4 comega a ser empregado em campo no Brasil a partir 41938. © que permanece da era fonogrifica é a sonoridade dos pequenos cilindros, com tomadas de, no maximo, dois minutos de risica; sons que ficam nos arquivos, mas que também ressoam nos 9 ouvidos de todos aqueles que, um dia, travaram contato com esses Pequenos suportes de som, antrop6logos e musicélogos. O dilema da gravagao fonogratica Com a possibilidade da realizado de registros actisticos em campo, a etnomusicologia afirma, definitivamente, a sua natureza dupla, situada entre a musicologia e a antropologia. A tradigio humanista nas ciéncias jé enfrentava dificuldades face & falta de documentos escritos na antropologia e, portanto, & auséncia de fontes passiveis de exames filolégicos. As colegdes de cultura material dos museus vinham, até certo ponto, suprir parte desta falta de dados eseritos, pois eram os artefatos produzidos pe. mig do homem que, ayora, substituiam 0 texto inexistente. Acreditava-se que a decodificagio hermenéutica dos objetos levaria & leitura do Proceso mental que dera origem aos artefatos, viabi @ compreensio aprofundada da cultura em questdo. indo, assim, Para a musicologia, as misicas de outros continentes também careciam de um texto, ou seja, de partituras escritas, fontes dle pesquisa imprescindiveis para uma investigagao musical histérica, Entravam, aqui, novos “artefatos”, mais apropriados do que os instrumentos musicais, representados pela gravagdo sonora. A decodificagao destes artefatos sonoras se dava através da andlise e da transcrigo. Situa-se aqui, portanto, uma ligagdo direta entre 0 procedimento antropolégico da coleta de “cultura material” ¢ da necessidade musicoldgica de um “texto” musical, que, em dltima instancia, era também uma necessidade das humanidades itocentistas. A etnomusicologia logo reconheceu a importancia da ponte entre a antropologia e a musicologia, uma ponte que somente ela poderia construir, graces, essencialmente, ao registro fonogrético, uum registro tanto “material” quanto de “texto”, e que se presta simultaneamente & decifragio e & decodificagao. Neste espirito “filol6gico” das humanidades, as gravagées auditivas de miisica feitas por Kissenberth ou por Koch-Grunberg evidenciam tm aspecto que ilustra bem 0 dilema bésico da antropologia da primeira metade do século XX: a necessidade de se obterem elos de compreensao para a transposicdo de informagées e de saberes. Como se deram estas primeiras gravagées sonoras na pritica? Trata-se, sem divida, de registros feitos no seu respectivo contexto 120 geografico. No entanto, Koch-Grunberg e Kissenberth fizeram a maioria das suas gravagdes fora do ensejo de performance que daria sentido as cangdes e as misicas instrumentais. Em geral, 0 pesquisador “arranjava” 0 momento da gravagao, posicionando seu informante musical diante do cone do gravador. Ha varios problemas que resultam deste tipo de gravagao: por vezes, 0 miisico se mostra timido, inseguro, hd momentos em que, pelo contrério, grita excessivamente alto, levando 0 som gravado a distorgao. O cilindro de cera que serve de suporte & gravac2o comporta, no maximo, dois minutos € meio. Deste curto tempo de duracao, perde-se © inicio, quando o mecanismo do aparelho comega a funcionar. Perdem-se outros segundos com o antincio feito pelo pesquisador e, finalmente, mais cinco segundos com 0 som referencial, um 14, que € tocado com um diapasdo de sopro antes do inicio da musica. A finalidade deste som de referéncia & possibilitar uma avaliaeo posterior da altura absoluta das notas da miisica executada. Ironicamente, € comum observar os cantores iniciarem a sua frase melédica exatamente na mesma freqigncia da nota dada segundos antes pelo diapasdo. Além de uma intervengao direta, que ocorre assim com este diapasio, a posi¢ao do investigador, que necesita inserir 0 seu referencial no momento do registro, demonstra, claramente, no apenas a postura deste diante da cultura estranha, mas suscita também 0 dilema basico do labor antropolégico: todo e qualquer tipo de avaliagao da cultura alheia est4 fundada na percepgao que s6 funciona a partir do padrao préprio de concepgdes daquele que é responsdvel pela investigacao. O método comparativo passa, entio, a ser a principal ferramenta de operagao na busca pelo outro e por sua manifestago cultural. O breve sopro do diapastio, marcando a posigdo da nota “la” no contexto sonoro geral, ilustra este dilema do antropélogo na sua busca por elos que possam aproximar 0s dois universos conceituais, 0 proprio e 0 da sociedade que est sendo estudada. Mesmo com a renovaco no campo tecnolégico e nas orierflagdes de pesquisa, e também face a questdes que se tornaram importantes hoje em dia, permanece o dilema do lugar isolado, cocupado pela etnomusicologia, metaforicamente ilustrado pelo tom “1g” do diapasto de Koch-Grunberg. O perfil duplo e dividido da ea etnomusicologia se mantém, e, por isso mesmo, é sua a prerrogativa destes Gltimos cem anos de unir duas areas to essencialmente ligadas quanto diversas, uma pertence As artes musicais, outra 20 homem responsével por estas artes ¢ pelo saber inerente a elas, Alguns Marcos histéricos da etnomusicologia no Brasil Concluindo estas reflexdes sobre o centendrio da etnomusicologia, caberia comentar o seu desenvolvimento no Brasil. B um dos anseios da ABET trabalhar e tornar piblica esta histéria brasileira da disciplina, que considero um capitulo muito significativo da etnomusicologia como um todo. A tarefa que se propée ainda carece do esforgo conjunto de muitos dos membros d ;ABET, pois, nna verdade, cada uma das regides do pais tem a sua versio para relatar sobre a disciplina, ou sobre empreendimentos etnomusicolégicos que no aconteceram sob este rétulo ou em seu nome. Limito-me, por isso, a enumerar alguns momentos da etnomusicologia no Brasil, conforme ja apontados parcialmente no texto, na expectativa de que, em breve, sejam complementados por mais outros dados relevantes. Afinal, hoje jé podemos dizes que os cem anos da etnomusicologia sfo cem anos de uma disciplina que também é brasileira 100 anos de etnomusicologia no Brasil: alguns dados 1901 Miso austrfaca, com primeiros registros de fala no sul 1907* I" gravagdo sonora de campo, na Amaz6nia, por antropélogos alemies 1912 I? gravagio sonora de campo por antropélogo brasileiro (Roquette Pinto na Mato Grosso) 1937* 1° gravagio do candomblé da Bahia: Olga Praguer Coelho ‘Ultima gravagao com o fonégrafo de Edison 1938-45 ravages magnéticas de campo * “Missio de Pesquisas Foleléricas” do Departamento de Cultura da Prefeitura de Sao Paulo, ditigido por Mirio de Andrade * Melville ¢ Frances Herskovits na Bahia * Luis Heitor Correa de Azevedo no Nordeste e Minas Gerais 1959 Miso do Musée de I' Homme (Dreyfus-Roche) na Bahia eno Xingu 2 1960 - 84 Série “Documentario Sonoro do Folelore Brasileiro” (iniciado por Aloysio de Alencar Pinto e continuado por Elisabeth, Travassos) 1978 “Nova” etnomusicologia no Brasil com enfoques antropol6gicos: = Rafael José de Menezes Bastos: Musicolégica kamayuré = Gerhard Kubik: Angolan traits in black music, games and dances of Brazil 1981 _Enfoque historiograficoe filolégico: Manuel Veiga: Brazilian ethnomusicology. Amerindian phases 1984 _Descoberta das “tergas neutras” na masica do Nordeste + (Tiago de Oliveira Pinto, 1984) 1986 Primeira gravacdo de campo digital no Brasil (Bahia) 1987/90 Programas de etnomusicologia em escolas de miisica de Universidades Federais (Rio, Bahia) 2001 —Criagdo da ABET no Rio de Janeiro 2004 _—Projeto de reedigao da viagem da “Missio de Pesquisas Folcléricas” de 1938: “Responde a roda outra vez’ (coordenado por Carlos Sandroni) 2001 Era do D Audio sem fita ou CD (suporte de dados: flash card). Primeiras gravagdes de campo em Sao Paulo com equipe da USP. Referéncias bibliograficas ‘ADLER, Guido. Umfang, Methode und Ziel der Musikwissenschat Vierteljahrschrift fiir Musikwissenschafi, vol. 1, p. 5-20, 1885, Handbuch der Musikgeschichte. Frankfurt sobre 0 Meno, 1924. ; ELLIS, Alexander J. On the musical scales of various nations, Jour- ML of the Society of Arts, vol. 33, p. 485-527, 1885. GRAF, Walter. Das ethnologische Weltbild im Spiegel der vergieichenden Musikwissenschaft. Wissenschaft und Weltbild, vol. 25/2, p. 151-158, 1972. 13 HORNBOSTEL, Erich M. von. Die Probleme der vergleichenden Musikwissenschaft. Zeitschrift der _internationalen Musikgeselischaft, vol. 7/3, p. 85-97, 1905 ———... Uber einige Panpfeifen aus Nordwest-Brasilien. In: KOCH-GRUNBERG, Theodor. Zwei Jahre unter den Indianern: Reisen in Nordwest-Brasilien 1903/1905. Berlim, 1909, p. 378-423, __. Musik der Makuschi, Taulipang und Yekuané. KOCH- GRUNBERG, Theodor. Vort Roraima zum Orinoco. Stuttgart, 1923. p. 397-423, i ABRAHAM, Otto. Uber die Bedeutung des Phonographen fur die vergleichende Musikwissenschaf ; Zeitschrift fiir Ethnologie, vol. 36, 1904. JONAITIS, Aldona. From the land of the totem poles: The North ‘west Coast indian art collection at the American Museum of Natural History. New York, Seattle: Editora, 1994, LUSCHAN, Felix von. Die Bedeutung phonographischer Aufnahmen flr die Ethnologie. 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A antiga antropologia ea etnomusicologia de tintura colonialista racionalizavam, em termos de relacionamentos, sua preferéncia pelas culturas isoladas, a serem observadas ¢ interpretadas por estudiosos a elas nao pertencentes. Hé imbricagdes com as questdes de objetividade e subjetividade, do “émico” € do “ético” nas observagdes, de possibilidades, ou ndo, de ‘generalizagées que nio nos interessam neste momento. Vivendo num pais com as dimensées ¢ os problemas do Brasil, ambos imensos, 0 que preocupa € se uma etnomusicologia brasileira deve ou pode se conter apenas dentro dos limites da neutralidade cientifica, se & que esta existe. Numa perspectiva de quase um quarto de século (1981), rever as palavras finais da tese submetida a0 Programa de Etnomusicologia da UCLA ainda tem efeito cautelar para mim. Buscava uma etnomusicologia brasileira, & base das fases indigenas. O tom demasiadamente confiante e a abrangéncia limitada ao indio devem ser revistos, mas, em esséncia, nada hd a recuar quanto & pregacio que iniciava? : Instead of a merely academic purpose, Brazilian ethnomusicology has a valid role to play as applied discipline, * Os dois termos, derivados, respectivamente, de “fonémico” e “fonético”, esto sendo usados aqui como Keneth L. Pike os cunhau, em tomo de 1954, para caracterizaro significado de alguma coisa & mancira como é percebidae ‘compreendida pelos participantes de uma cultura, mais do que como seja vada por alguém de fora, VEIGA, Manuel. Toward a Brazilian Ethnomusicology: Amerindian phases. 1981, p.278, Oraacessivel em edicio fac-similar, in BLANCO, Pablo Sotuyo (org.). Por uma emonusicologia brasileira: Festschrift Manuel Veiga. Salvador: PPGMUS-UFBA, 2004, pp 53-423,

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