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Cultura e suas relagdes de poder © que é Cultura? Qual a sua funcdo publica? Existe uma relacao direta entre cultura e desenvolvimento? Podemos pensar em sustentabilidade sem considerar a questdao cultural? Para que serve uma politica cultural? Qual a sua relacdo com o mercado? Como © poder publico pode intervir na dinamica cultural de uma sociedade? Como o artista e o agente cultural enfrentam os desafios da pos-modernidade? Essas e outras quest6es sao abordadas, de maneira pratica, ilustrativa e propositiva pelo pesquisador e consultor Leonardo Brant, que sustenta um novo passo. em direcdo a ética nas relacdes socioeconémicas, como o entendimento de que a cultura é ponto de partida para um projeto de nacao, para o desenvolvimento social, para as oportunidades econdmicas, mercados potentes, empresas inovadoras, brasileiros capazes, competentes e livres. wn OM Tele Tamer Moll hale] ONGC mel cele aT Le Molo Yee) conforme as visées politicas de cada Muelle Ee TN oe SS temas de poder. Chaves que podem Cll ia Celt CEM Lee ML c el [e (ste) equidade e parao didlogo. Mas também podem fecha-las, cedendo ao controle, @ discriminagao e a intolerancia. 0 presente estudo aponta para aneces- sidade de compreendermos a cultura como um plasma invisivel, entrelacado entre as dinamicas sociais, tanto como alimentodaalmaindividual, quantocomo elemento gregario e politico, que liga e significa as relacdes humanas. Perceber a presenca desse plasma - ou seja, de uma matéria intangivel altamente ener- gizada, reativa e que permeia todo o espaco da sociedade - é fundamental (ELEM Mofo) leh geLlabtelo nels Cll ee Mele) nosso tempo. UTE Co Te aa Meee de politicas culturais e presidente da Brant Associados, consultoria estratégica para empreendimentos socioculturais. Criou e edita Cultu- NM ice Celta en ee Coote) afer Ue TEM (Msi a autor dos livros Mercado Cultural, Diversidade Cultural (org.) e Politicas Culturais vol.1 (org.). Conferencista fin caret molec alle elmo cursos de formacao na area cultural, TTL (M ial MOM eM ae (Brasil) e Divercult (Espanha) e foi Mite or eM eIale Kel Mn emer 1 Cola} Network for Cultural Diversity. E eT uel cl cee de Ctrl-V - VideoControl, sobre a industria e as politicas para o ET feh EU www.opoderdacultura.com.br oder ofcultura Leonardo Brant at korr0Ra, Ze PeirdpoliS [iN e) ol 3 Introdugdo, 7 |- Cultura em sua fungdo publica (Cultura é poder), 11 ll - Direitos humanos, cidadania e diversidade cultural (O poder da sociedade), 23 lll - Cultura a servico do imaginario brasileiro (O poder do Estado), 45 IV - Economia da cultura e cultura da economia (O poder do mercado), 73 V - Cultura e cidadania corporativa (O poder das corporag6es), 85 VI - Diretrizes e propostas para uma democracia cultural (O poder da politica), 105 Bibliografia, 122 Agradecimentos, 131 INTRODUCGAO Diretrizes e propostas para a Cultura O que é Cultura? Qual a sua funcéo publica? Existe uma relacéo direta entre cultura e desenvolvimento? Podemos pensar em sustentabilidade sem considerar a questéo cultural? Para que serve uma politica cultural? Qual a sua relagéo com © mercado? Como o poder publico pode intervir na dinamica cultural de uma sociedade? Como 0 artista e o agente cultural enfrentam os desafios da pds-modernidade? Antes de qualquer consideracao, cabe ressaltar que o presente estudo nao passa de um olhar despretensioso e inquieto de alguém que manuseia, observa, pesquisa, pensa, discute e propde questdes e solucées para as politicas de cultura. Entre as muitas respostas possiveis para essas questées, optei por buscar uma abordagem propositiva, que buscasse imaginar uma nova percepcao da riqueza e importancia da cultura como projeto humanista, que abarcasse também a sua dimensao individual, politica e organizacional. O poder da cultura configura-se, entéo, como uma plataforma de acées voltada ao reconhecimento e a valorizacdo da cultura como elemento fundamental para o desenvolvimento humano em todos os seus aspectos. A partir da abordagem aqui proposta, a Cultura se junta aos temas sociais e ambientais para constituir 0s pilares basicos de um significado mais efetivo e abrangente para uma nova nocao de desenvolvimento e sustentabilidade. No campo do poder ptiblico, apresenta apontamentos para © Estado reforcar sua agenda em relacao a cultura, buscando um novo padrdo para as politicas culturais. Da mesma forma, a relacdo entre uma empresa e a acao cultural por ela desenvolvida deve levar em conta fatores mais abrangentes, extrapolando o sistema de trocas e contrapartidas, que resultam em promoco e visibilidade da marca. Todas essas proposicées e diretivas sdo discutidas e contextualizadas nos préximos capitulos. Mas, longe de querer desenvolver uma abordagem casual e oportunista do tema, o estudo busca torna-lo concreto e palpavel. Um dos principais desafios do livro é auxiliar 0 debate publico em torno da necessidade de se criar um novo modelo capaz de orientar uma relacao de compromisso de todos com a importancia estratégica da cultura. Ao apresentar essa ideia e todas as acepcées trazidas pelo tema, 0 estudo propde um novo passo em direcdo a ética nas relacdes socioeconémicas. Um ponto de partida para um projeto de nacao, para o desenvolvimento social, para as oportunidades econémicas, mercados potentes, empresas inovadoras, brasileiros capazes, competentes e livres. Este livro nasce de uma discussdo fomentada pelo Laboratorio de Politicas Culturais, unidade de pesquisa e rede sociocultural focada na exploracao da funcéo politica da cultura, gerado no ambito da Brant Associados. Busca desvendar e oferecer um olhar mais cuidadoso sobre a importancia da cultura em nossa sociedade, bem como a relagdo e o comprometimento de todos os cidaddos com a sua funcdo publica e seu papel estratégico. Como resultado dessa discussao surgiu esta pesquisa, baseada em documentos, livros, entrevistas e, sobretudo, a vivéncia didria com o tema. Consolida, de certa forma, minha experiéncia de dez anos de trabalho como consultor dedicado a potencializar e dinamizar empreendimentos culturais sustentaveis. Atrelado a isso, valho- me de uma intensa atuacdo como ativista cultural, a frente do Instituto Pensarte, da International Network for Cultural Diversity e, sobretudo, acompanhando os movimentos didrios do setor pelo Cultura e Mercado, o mais influente blog do Brasil sobre o assunto. Vivernos 0 tempo e o lugar da disfuncao politica da cultura, ora apropriada por governos e sistemas de poder como fator de controle e dominio, ora transformada em mero elemento agregador de imagem e promocaéo empresarial, a servico de uma sociedade centrada no (auto) consumo. Em momento algum houve a intencdo de langar O poder da cultura num caldeirao tedrico-conceitual, distante das questdes praticas que afligem gestores publicos e privados de cultura. A ideia foi reunir fundamentos e argumentos que justificassem a proposi¢aéo de uma plataforma assertiva e concreta para lidar com a responsabilidade de toda a sociedade em relacao a cultura, compreendida em sua dimensao simbdolica e seu potencial socioeconémico. O estudo introduz o leitor a esse complexo e dinamico universo da cultura, apresentando suas diversas nuances, sobretudo quando tratamos de sua aplicagdo programatica. Nesse sentido, ele pode ser lido como um guia pratico para desenvolver acées culturais, nas mais diversas situagdes pelos mais diferentes agentes. Leonardo Brant, maio de 2009. “Onde ha poder, ele se exerce. Ninguém &, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determi- nada diregdo, com uns de um lado e outros do outro; nao se sabe ao certo quem o detém; mas sabe-se quem 0 nao possui.” (Michel Foucault) Capitulo | Cultura em sua fungao publica (Cultura é poder) Cultura é poder O que seduz. E liberta Neste capitulo apresentarei uma visado prépria do ter- mo Cultura, dialogando com diversos autores e propostas conceituais deste vasto e complexo campo de estudo. A intengdo é apresentar uma dimensao de cultura como do- minio, como campo de apropriacéo, publica ou privada, e seu manejo pelos diversos agentes sociais ao longo do nosso processo civilizatério. A ideia de cultura, sempre moldada conforme as vis6es politicas de cada tempo, detém em si as chaves dos sis- temas de poder. Chaves que podem abrir portas para a liberdade, para a equidade e para o didlogo. Mas também podem feché-las, cedendo ao controle, a discriminagao e 4 intolerancia. Da mesma forma que 0 poeta T.S.Eliot inter-relacionava cultura sob a ética do individuo, de um grupo e de toda a sociedade, o presente estudo aponta para a necessidade de compreendermos cultura como um plasma invisivel en- trelacado entre as dindmicas sociais, tanto como alimento da alma individual, quanto elemento gregirio e politico, que liga e significa as relagées humanas. Perceber a pre- senca desse plasma - ou seja, de uma materia intangivel altamente energizada, reativa e que permeia todo 0 espaco da sociedade - é fundamental para a compreensio dos fe- némenos do nosso tempo. Cultura € algo complexo. Nao se limita a uma pers- pectiva artistica, econédmica ou social. E a conjugacdo de todos esses vetores. Dai a sua importancia como projeto de Estado e sua pertinéncia como investimento privado. Uma politica cultural abrangente, contempordnea e democratica deve estar atenta as suas varias implicag6es e dimensées. A UNESCO, organismo das Nagées Unidas destinada a questdes de educacao, cultura e ciéncias, define cultura como “um conjunto de caracteristicas distintas espirituais, materiais, intelectuais e afetivas que caracterizam uma so- ciedade ou um grupo social. Abarca, além das artes e das letras, os modos de vida, os sistemas de valores, as tradi- Ges e€ as crencas.” Sob a luz do conceito de cultura da entidade ndo seria absurdo classificar um filme publicitério ou merchan- dising como uma agao cultural. Nao se trata do inves- timento no potencial criador do cidaddo/consumidor, mas num determinado conjunto de comportamentos necessdrios a reforcar a ideia de incentivar ou potencia- lizar determinada acao (consumo). A empresa age para seduzir, ou até mesmo impor, por meio de acio sistematica e repetida, sua “cultura”. seus valores e cédigos. Ou seja, para consumir determinada marca de cigarro, automével, ou calga jeans, é preciso praticar, ou ao menos identificar-se, com determinados padrées de conduta. Levado as ultimas consequéncias, esse sistema traduz- -se num processo de aculturagao, baseado na necessidade de destituir 0 sujeito de valores, referéncias e capacidades culturais intrinsecas, em busca de adesao a algo mais dind- mico, sedutor e com fungao gregaria: o consumo. A jomalista canadense Naomi Klein aponta em seu li- vro-manifesto Sem Logo (2002) os riscos dessa associacao. Ela apresenta o branding (mecanismos empresariais para criar e desenvolver marcas) como um processo cultural. A autora afirma que as marcas ndo sao produtos, contudo, sdo responsaveis pela criagdo de conceitos, atitudes, valo- res e experiéncias. Portanto, “por que também nado podem ser cultura?” Esse projeto tem sido téo bem sucedido que “os limites entre os patrocinadores corporativos e a cultura patrocinada desapareceram completamente’, questiona. Segundo Klein (2002), embora “nem sempre seja a in- tencdo original, o efeito do branding avancado é empurrar a cultura que a hospeda para o fundo do palco e fazer da marca a estrela. Isso nao é patrocinar cultura, é ser cultura" Cultura é poder A servico das instaéncias de poder, sustentadas entre si, como nos dias de hoje, atuam os sistemas financeiro, governamental e midia. A arte assume uma preocupante funcdo apaziguadora e definidora dos modos de vida e costumes. Joost Smiers, em Artes sob Pressaio (2003), pergun- ta “onde os conglomerados culturais podem espalhar suas ideias sobre o que deve ser a arte, a questao crucial é: as historias de quem estao sendo contadas? Por quem? Como séo produzidas, disseminadas e recebidas?” Para Smiers (2003), as obras de arte tornaram-se veiculos com mensagens comerciais e “tém a funcao de criar um ambiente no qual a producéo do desejo possa acontecer. Esse contexto é frequentemente cheio de violéncia’, diz. A industria audiovisual e seu extremo poder de alcance, das salas de cinema aos lares de todo o planeta, por meio de DVDs, games e websites interativos, é o melhor exemplo disso, como aponta o Relatério do Programa das Nacdes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), de 2004, intitula- do Liberdade cultural num mundo diversificado. De acordo com o documento, o comércio mundial de bens culturais — cine- ma, fotografia, radio e televiséo, material impresso, litera- tura, musica e artes visuais - quadruplicou, passando de 95 bilhdes de dolares norte-americanos em 1980 para mais de 380 bilhdes em 1998. Cerca de quatro quintos desses fluxos tém origem em 15 paises. Segundo o relatério, Hollywood atinge 2,6 bilhées de pessoas € Bollywood (industria de cinema indiano) cerca de 3,6 bilhdes. O dominio de Hollywood é apenas um dos aspectos da disseminagao ocidental de consumo. “Novas tecnologias das comunicacées por satélite deram lugar, na década de 1980, a um novo e poderoso meio de comuni- cacao de alcance mundial e a redes mundiais de meios de comunicacéo como a CNN” O ntimero de aparelhos de televisio por mil habitantes mais do que duplicou em todo o mundo, passando de 113, em 1980, para 229, em 1995. Desde entao, aumentou para 243. O resultado disso é a criagéo de um padrao de consumo global, com “adolescentes mundiais” compartilhando uma “unica cultura pop mundial, absorvendo os mesmos videos € a mesma musica e proporcionando um mercado enorme para ténis, t-shirts e jeans de marca", afirma o relatério. Edgar Morin, em Cultura e Barbdrie Européias, empresta de Teilhard de Chardin o termo “noosfera’, para designar o mundo das ideias, dos espiritos, dos deuses produzidos pelos seres humanos dentro de sua cultura. “Mesmo sen- do produzidos pelo espirito humano, os deuses adquirem uma vida prépria e o poder de dominar os espiritos”. Dessa forma, diz o filésofo, “a barbaérie humana engendra deuses cruéis, que, por sua vez, incitam os seres humanos a bar- barie. Nés modelamos os deuses que nos modelam” Max Weber costumava dizer que o homem estd pre- so a uma teia de significados que ele mesmo criou. Nesse sentido, assim como Geertz (1973), também podemos con- siderar cultura como um conjunto de mecanismos de con- trole para governar comportamentos. E a histéria recente exibe varios alertas de como as industrias culturais e os meios de comunicacao de massa podem ser grandes armas disponiveis para acomodar e disseminar determinados comportamentos. Assim fizeram 0 nazismo, o fascismo, 0 comunismo e as ditaduras militares, sobretudo as latino- americanas, nos exemplos extremos. Esse rastro esta cada vez mais presente nas sociedades orientadas para 0 consumo. Em comum, a auséncia do Es- tado em sua responsabilidade com a cultura e a diversi- dade; e o dominio marcante das industrias culturais como pontas de lanca para uma economia global centrada nas grandes corporacées. A realidade desse cendrio precisa ser encarada por toda a sociedade brasileira, que usufrui os beneficios dessa glo- balizagdo econémica, mas ao mesmo tempo se expoe de maneira preocupante aos seus efeitos colaterais. O pais corre risco de virar as costas ao seu grande potencial da Cultura é poder producdo cultural e sua vocacéo para o desenvolvimento de um poderoso mercado formado pelas préprias manifes- tagdes culturais. Cultura, nesse caso, funciona como uma chave capaz de trancar 0 individuo em torno de cédigos e simbologias controladas: pelo Estado, por uma religido ou mesmo por corporacées e através dos instrumentos gerados pela so- ciedade de consumo, como a publicidade, a promocao e o patrocinio cultural. Mas essa mesma chave, que oprime o ser humano e des- faz sua subjetividade, tem o poder de abrir as portas, per- mitindo ao individuo compreender a si e aos fendmenos da sociedade e do seu préprio estagio civilizatério, em busca da liberdade. Para isso, basta giré-la para o lado oposto. Em Dialética da Colonizagéo (1992), Alfredo Bosi define cultura como o “conjunto das praticas, das técnicas, dos simbolos e dos valores que se devem transmitir 4s novas geracées para garantir a reproducao de um estado de coe- xisténcia social". E supde uma “consciéncia grupal operosa e operante que desentranha da vida presente os planos para o futuro”. A cultura cumpre nesse caso uma fungao pouco reco- nhecida e estimulada nesses tempos: transformar realida- des sociais e contribuir para o desenvolvimento humano em todos os seus aspectos. Algo que identifica 0 individuo em seu espaco, lugar, época, tornando-o capaz de sociabi- lizar e formar espirito critico. Origens e dimensdes da palavra Cultura Raymond Williams, autor de Palavras-chave (2007), con- sidera a palavra culture como uma das duas ou trés mais complicadas da lingua inglesa, devido ao seu complexo percurso etimoldgico. Em sua acepcdo mais longinqua, a matriz latina colere tra~ zia o significado de cultivar, habitar, proteger e honrar com veneracdo. Desse radical, podemos reconhecer pelo menos dois desdobramentos: colonus, que traz a ideia de habitacdo e cultus, que nos remete a “cultivo ou cuidado”, bem como seus significados medievais subsididrios: “honra, adoracao”, ja “convergidos pela radicalizagao do temor divino e da mo- ral na sociedade - personificagao do Senhor no feudo”. Mas também couture, no francés antigo, por exemplo, associados a “lavoura, cuidado com o crescimento natural’. Dos séculos XVI ao XVII, segundo Williams, 0 termo passou a significar, por analogia, o cuidado com o desen- volvimento humano e 0 cultivo das mentes, deixando de se tratar apenas da terra e dos animais. Desde jé destacan- do uma distingéo arbitraria entre os que tém cultura dos que nao tém, o termo assume o carater de civilidade. Com a expansdo da Europa e seu consequente processo de do- minacdo politica e econdémica, o poder de distincdo entre o culto € o nao culto foi de grande valia para implementar e manter 0 colonialismo. A partir dos séculos XVIII e XIX, 0 conceito passa a ser utilizado para designar o préprio estagio civilizatério da humanidade. Johann Gottfried von Herder escreveu em So- bre a filosofia da histéria para a educagdo da humanidade (1784-91): “Nada é mais indeterminado que essa palavra, e nada mais enganoso que sua aplicacao a todas as nacées e a todos os periodos”. Argumentava que era necessario grifar culturas, no plural, pois elas sao especificas e varidveis em diferen- tes nacdes e periodos, tanto quanto em relacdo a grupo sociais, como em econdémicos dentro de uma nacao. Para Williams, podemos reconhecer trés categorias am- plas e ativas de uso do termo: o processo de desenvolvi- mento intelectual, espiritual e estético; a referéncia a um Povo, um periodo, um grupo ou da humanidade em ge- ral; as obras e as praticas da atividade intelectual, particu- larmente a artistica, sendo este Ultimo o seu sentido mais difundido: “cultura é musica, literatura, pintura, escultura, teatro e cinema’. Cultura é poder JA o pensador Edgar Morin atribui trés dimensées inter- dependentes a palavra cultura: a antropoldgica, ou “tudo aquilo que é construido socialmente e que os individuos aprendem’; a social e histérica, que pode ser entendida como 0 “conjunto de habitos, costumes, crencas, ideias, va- lores, mitos que se perpetuam de geracéo em geracao" e a relacionada as humanidades, que “abrange as artes, as letras e a filosofia”. Para Terry Eagleton, no indispensavel A idéia de cultura (2002), as palavras civilizagao e cultura continuam até hoje a intercambiar-se em seu uso e significado, sobretudo por antropologos: “cultura é agora também quase o oposto de civilidade”. Eagleton (2002) considera curioso que o termo, hoje, se aplique mais 4 compreensdo de formas de vida “selvagens” do que para civilizados. “Mas se ‘cultura’ pode descrever uma ordem social ‘primitiva’, também pode for- necer a alguém um modo de idealizar a sua prépria” Tanto para definir algo de dominio préprio de um indi- viduo (o conhecimento adquirido) quanto para o exercicio de poder em relacao a grupos sociais distintos (0 culto e 0 nao culto, 0 civilizado e o nao civilizado), 0 termo é uti- lizado até hoje como definidor de um campo simbédlico determinado, quase sempre para distinguir ou identificar. Ac6es e politicas culturais, constituidas nos campos pu- blico e privado, exercem, inevitavelmente, esse dominio. Como provedor de acesso a contetidos, processos e dind- micas, agu¢a 0 espirito critico e permite a apropriacdo, o empoderamento e o protagonismo do cidadao. Por outro lado, a cultura adquire, cada vez mais, sua cor- porificagdo como ente econémico e instrumento de lazer € entretenimento. Manuseadas por sociedades contamina- das por um modo de pensar linear e cartesiano, condicio- nadas a analisar todos os fendmenos por uma correlacéo de causa-efeito, deixa de ser essa matéria que significa e transforma as relacées, para ser mera atividade econdémica, estratégica por sua grande capacidade de gerar recursos, 20 postos de trabalho e economia de escala, por meio de ex- ploracao de propriedade intelectual. Uma formula que exige difusio em massa para ser economicamente eficaz. E contetidos de facil assimilacao, para ampliar sua capacidade de insercéo mercadolégica. Essa formula geralmente exclui didlogos mais profundos e complexos, desconectando-se de suas raizes culturais e das dinamicas locais. Com formatos cada vez mais repetitivos e pasteurizados, séo mais afeitas a uma cultura homogénea, linear, unissona, voltada ao consumo. A falta de dispositivos claros e efetivos para lidar com esse campo simbélico é uma das mais graves doengas das sociedades contemporaneas. “N&o basta consumir Cultura: é necessdrio produzi-la. Nao basta gozar arte: necessdrio é ser artista! N&o basta produzir ideias: necessario é transforma-las em atos sociais, concretos e continuados.” (Augusto Boal) Capitulo Il Direitos humanos, cidadania e diversidade cultural (O poder da sociedade) O poder da sociedade Iguais na Diferencga Neste capitulo, apresentaremos a cultura em sua di- mensao cidada. A proposta é demonstrar o atual estagio evolutivo das lutas e conquistas da sociedade em relacéo aos direitos e liberdades culturais. Neste breve passeio pela historia, abordaremos conceitos e plataformas politicas de extrema relevdncia para a consolidacgdo de um cenario de valorizacao da cultura. A Declaracdo Universal dos Direitos Humanos comple- tou 60 anos em 2008. O principal instrumento balizador das relacdes internacionais do pés-guerra ainda sobrevive, mas traz consigo uma série de limitacées. Nao se fez universal, nado promoveu a paz. Talvez nado tivesse produzido os efeitos esperados, tendo sido até motivo de desavenca entre boa parte da populacao glo- bal, que nao se vé espelhada ou contemplada no texto da Declaracao. Culturas nado sao universais, modos de vida, costumes € crencas também nao. Nao por acaso, os direitos e liber- dades culturais sejam os menos discutidos, celebrados e garantidos como parte indivisivel dos direitos humanos. Costumo defini-los como quinta categoria desses direitos, pois seguem esquecidos, logo apés os civis, politicos, eco- némicos e sociais, estes mais nobres, sendo em efetividade, pelo menos em visibilidade. Mas por que esses direitos sio pouco reconhecidos e muito desrespeitados em nossa sociedade? Para entender esse ponto fundamental precisare- mos mergulhar um pouco no histérico da conquista desses direitos, na tentativa de reposicionarmos e va- lorizarmos essa questéo em nossas politicas publicas e privadas. A origem do direito a identidade cultural ou 4 protecéo do patriménio cultural situa-se, historicamente, nos movi- mentos revoluciondrios da Inglaterra (1688) e particular- 25 26 mente da Franca (1789). Foi a partir dessas revolucdes que nasceram as primeiras leis de protecao ao patriménio his- t6rico e artistico, os primeiros museus publicos, bibliotecas, teatros e arquivos nacionais, além dos conservatorios de artes e oficios. A funcao basica dessas instituigdes era a de materializar os novos valores - Nacao, Povo e Estado - fixd-los no ima- gindrio, constituindo-se a coesdo social em torno desses simbolos. Sendo assim, esse direito nasceu umbilicalmente ligado aos Estados nacionais. O primeiro direito cultural reconhecido internacio- nalmente foi o autoral. Historicamente, surgiu de diver- sos acontecimentos na Europa e EUA nos séculos XVII e XVIII, resultantes de processos que reconheceram a criagao intelectual e artistica como a mais legitima das propriedades. Esse conceito ficou caracterizado na Con- vencdo de Berna para a Protecaéo das Obras Literdrias e Artisticas, em 1886. A €poca foi marcada pela expansdéo da Europa e dos Estados Unidos sobre a Asia, a Africa e a América Latina e pelo avanco das invencées tecnoldgicas. Aparelhos e servi- Gos, entre os quais 0 telefone, o fondgrafo, a fotografia e o cinema, tornaram-se responsaveis também pela expansdo da imprensa ¢ 0 estimulo ao consumo de livros, jornais e outras producées intelectuais e artisticas. A medida em que iam se sucedendo guerras cada vez mais destruidoras, encontros internacionais aprovaram documentos, como a Convengao de Haya (1899) e 0 Pacto de Washington (1935), que estabeleceram principios rela- tivos 4 protecao do patriménio cultural em caso de con- flito armado. Apés a Segunda Guerra Mundial, quando ocorreram verdadeiros saques ao patriménio cultural dos pafses ocupados, esse direito foi definitivamente elevado a esfera internacional. Em 1954, a UNESCO proclamou a Convencao sobre a Protecéo dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, O poder da sociedade documento pelo qual os Estados membros da ONU se comprometeram a respeitar os bens culturais situados nos territérios dos paises adversdrios, assim como proteger seu proprio patriménio em caso de guerra. Essa convencao foi emendada em 1999, a fim de dar conta das novas formas de destruigdo engendradas pela Guerra do Golfo. O movimento ecolégico, que ganhou impeto a partir da década de 1970, também contribuiu para a elevacaéo desse direito ao plano mundial. Ao considerar a deterio- ragdo e o desaparecimento de um bem natural, ou cul- tural, como “um empobrecimento nefasto do patriménio de todos os povos do mundo", a UNESCO justificou a aprovacao, em 1972, da Convencdo sobre a Protecéo do Patriménio Mundial, Cultural e Natural. Nessa mesma reunido, foram criados o Comité do Patriménio Mundial e o Fundo do Patriménio Mundial, destinado a apoiar a protecao e a conservacao dos bens constantes da Lista do Patriménio Mundial. Nos termos dessa convencao, os estados membros reco- nhecem ser deles a responsabilidade primordial de “iden- tificar, proteger, conservar, reabilitar e transmitir as gera- des futuras o patriménio cultural e natural situado em seu territério”. Recentemente (2003), a UNESCO aprovou uma convencio para a protecdo do patriménio imaterial, que trata do reconhecimento e valorizacao dos saberes e fazeres de um povo. Tanto a Convencio do Patriménio quanto a Declara- Gao do México sobre as Politicas Culturais (1982) definem como patriménio cultural de um povo as obras de seus artistas, arquitetos, musicos, escritores e sdbios, as criagdes anénimas surgidas da alma popular e 0 conjunto de va- lores que dao sentido a vida. Incluem, também, a lingua, os ritos, as crencas, os lugares e monumentos histéricos, paisagisticos, arqueoldgicos e etnoldgicos, além das insti- tuicdes dedicadas 4 protecaéo desse patriménio, como os arquivos, bibliotecas e museus. Os mesmos documentos 27 28 reafirmam o direito dos povos de proteger o seu patri- ménio cultural, vinculando-o 4 defesa da soberania e da independéncia nacionais. A Declaracgéo do México recomendou, inclusive, que fossem restituidas aos paises de origem as obras subtra- idas via colonialismo, conflitos armados e ocupacées es- trangeiras. Esse principio ja havia sido incorporado pela UNESCO, em 1978, quando foi institufdo 0 Comité Inter- governamental para Fomentar o Retorno dos Bens Cultu- rais aos seus Paises de Origem ou sua Restituicdo em caso de Apropriacao Ilicita, 6rgio consultivo encarregado de receber as solicitaces dos paises prejudicados e mediar os didlogos bilaterais. Além de trazer 4 tona a necessidade de protecado ao Patriménio Cultural, os eventos que culminaram na Se- gunda Guerra Mundial afetaram profundamente os tra- Gos caracteristicos da antiga Declaracdo dos Direitos do Homem e do Cidadao, de 1789. Os paises que aderiram 4 Organizacdo das Nacées Unidas (ONU), criada apos 0 conflito internacional em 1948, endossaram um novo documento: a Declaracgdo Universal dos Direitos do Ho- mem, firmada em Paris. O texto traz 0 reconhecimento do individuo como portador de direitos intrinsecos a natureza humana, como 4 vida e a liberdade. A partir daquele momento, os direitos dos cidaddos passaram a prevalecer sobre quaisquer outros, principalmente so- bre o direito divino, que justificava o poder absoluto dos monarcas. Pelo artigo XXVII da Declaracgaéo Universal, também detalhado pelo artigo XV do Pacto Internacional de Direitos Econémicos, Sociais e Culturais, os Estados membros da ONU se comprometeram a reconhecer “o direito de toda a pessoa a: participar na vida cultu- ral; gozar dos beneficios do progresso cientifico e das suas aplicacées; beneficiar da protecdo dos interesses morais e materiais que lhe correspondem em virtude O poder da sociedade de producées cientificas, literarias ou artisticas de que seja autora”. Para assegurar 0 exercicio desses direitos, as nagées signatdrias do Pacto deveriam adotar, entre outras me- didas, as necessdrias para a “conservacao, desenvol- vimento e divulgacdo da ciéncia e da cultura, além de respeitar a liberdade indispensavel para a investi- gacio cientifica e para a atividade criadora”, Também teriam de reconhecer os beneficios que derivam do fomento e desenvolvimento da cooperacao e das rela- Ges internacionais em questées cientificas e culturais (Pacto Internacional dos direitos Econdmicos, Sociais e Culturais, 1966). Em 1976, a UNESCO publica a Recomendacaéo sobre a Participacdo dos Povos na Vida Cultural, onde define duas dimensées dessa participacdo: a do direito a livre criagao e a do direito a fruicdo. A primeira entende que “as oportu- nidades concretas garantidas a todos - grupos e individu- os - para que possam expressar-se livremente, comunicar, atuar e engajar-se na criagao de atividades, com vistas ao completo desenvolvimento de suas personalidades, a uma vida harménica e ao progresso cultural da sociedade”. A se- gunda afirma que “as oportunidades concretas disponiveis a qualquer pessoa, particularmente por meio da criacdo de condigées socioeconémicas apropriadas, para que possa livremente obter informagdo, treinamento, conhecimento e discernimento, e para usufruir dos valores culturais e da propriedade cultural”. Mais tarde, a Declaracéo do México sobre as Politicas Culturais (1982) introduz outra dimensao do direito 4 cul- tura, ao postular a mais ampla participacdo dos individuos e da sociedade no processo de “tomada de decisdes que concernem a vida cultural”, Para tanto, recomendou-se “multiplicar as ocasi6es de didlogo entre a populacao e os organismos culturais’, particularmente através da descen- tralizagdo geografica e administrativa da politica cultural, 29 30 © que inclui a disseminacao territorial dos “locais de recre- acdo e desfrute das belas artes” A partir das lutas politicas e sociais que tem como marco 0 ano de 1968, os direitos culturais evoluiram de tal forma que é possivel falar na emergéncia de um novo direito, ligado 4 subjetividade ou a personalidade. Embo- ra alguns autores atribuam a evidéncia desse direito ao feminismo, preferimos atrelé-lo concomitantemente ao contexto da contracultura. Nao sé porque englobou, par- cialmente, o movimento feminista - no que diz respeito 4 liberdade sexual - e o ambientalista — na valorizacdo da vida natural - mas, sobretudo, porque introduziu de forma mais completa, no cenario politico, os valores da subjetividade e da intersubjetividade. O movimento foi além da reivindicagao de direitos especificos e afirmou 0 direito de ser pessoa, e pessoa concreta, singular e inte- gral, parte do mundo objetivo das relacdes sociais, mas portadora também de vida interior. A geracao do pds-guerra, que cresceu tomando co- nhecimento dos horrores do nazifascismo e do stali- nismo, encontrou na valorizacéo da subjetividade uma bandeira de luta, pois compreendeu que a dominagao totalitdria havia se estendido para além da esfera publi- ca, atingindo o 4mago da autonomia intelectual e moral dos sujeitos. O problema se agravou ainda mais com 0 processo de globalizacéo econémica, que vem debilitando a soberania dos Estados nacionais e forcando-os a se submeter aos dita- mes do mercado capitalista global, o que inclui limitar, nas leis nacionais, os direitos econdémicos, sociais e culturais. A questdo dos direitos culturais ganha uma nova di- mensao no Brasil, a partir da reflexdo realizada pela fil6- sofa Marilena Chaui, no periodo em que foi secretaria de Cultura da cidade de Sao Paulo (1988 a 1992). Sua politica, baseada no conceito de Cidadania Cultural, era fundamen- tada nas seguintes garantias: O poder da sociedade - Direito de acesso e de fruicado dos bens culturais por meio dos servicos publicos de cultura (bibliote- cas, arquivos histéricos, escolas de arte, cursos, ofici- nas, seminarios, gratuidade dos espetaculos teatrais e cinematogréficos, gratuidade das exposigdes de artes plasticas, publicagao de livros e revistas etc.), enfatizando o direito 4 informacao, sem a qual nao ha vida democratica; - Direito a criago cultural, entendendo a cultura como trabalho da sensibilidade e da imaginacgaéo na criacao das obras de arte e como trabalho da inteli- géncia e da reflexdo na criagéo das obras de pensa- mento; como trabalho da memé6ria individual e so- cial na criagéo de temporalidades diferenciadas nas quais individuos, grupos e classes sociais possam reconhecer-se como sujeitos de sua prépria historia e, portanto, como sujeitos culturais. - Direito a reconhecer-se como sujeito cultural, gracas 4 ampliacao do sentido da cultura, criando para isso espacos informais de encontro para dis- cuss6es, troca de experiéncias, apropriagéo de co- nhecimentos artisticos e técnicos para assegurar a autonomia dos sujeitos culturais, exposigéo de tra- balhos ligados aos movimentos sociais e populares. - Direito a participagéo nas decisées publicas sobre a cultura, por meio de conselhos e féruns deliberativos nos quais as associag6es artisticas e intelectuais, os grupos criadores de cultura e os mo- vimentos sociais, através de representantes eleitos, pudessem garantir uma politica cultural distanciada dos padrées do clientelismo e da tutela. A Declaracéo universal dos direitos humanos nao se enquadra na categoria de instrumento civilizatério, criado para enquadrar culturas e modos de vida em sistemas de controle e coercao. 32 Devemos considerar, entretanto, que a Declaracao esta desatualizada em relacdo aos direitos culturais. Talvez por isso a necessidade da Declaracéo Universal sobre a Di- versidade Cultural, e mais tarde uma Convencdo com o mesmo tema. Para compreender melhor o efeito dessa proposta para as sociedades contempordneas torna-se necessdrio conhecer e refletir sobre as novas possibilidades de inter- relacdo sociocultural, a partir do conceito de Cidadania Cultural. Politica cultural e cultura politica Baseia-se na garantia dos direitos culturais a todos os cidadaos, mas vai além, ao estimular a geracéo de uma nova consciéncia politica “a partir da apropriacao da cul- tura como direito 4 fruicao, 4 experimentacao, a informa- do, 4 memoria e 4 participacdo”, nas palavras da filésofa Marilena Chaui.' As dinémicas socioculturais surgem como _possibi- lidades concretas de ampliar 0 espaco puiblico e ofere- cer novas dindmicas de sociabilizacdo e participacéo nas decis6es da comunidade e da sociedade como um todo. Uma democracia direta, porém resultante de uma teia de didlogos e conversacées. O conceito de Cidadania Cultural proposto por Chaué busca “o rompimento com a passividade perante a cultu- ra’, por meio do consumo de bens culturais, e a resignacaéo ao estabelecido. Segundo a fildsofa “essa passividade e essa resignacdo bloqueiam a busca da democracia, alimentam a viséo messidnica-mineralista da politica e o poderio das oligarquias brasileiras”. Essa visdo se contrapée ao atual modelo onde os es- pacos de construgao e de participacdo da vida politica estéo cada vez mais restritos e contaminados por ldgicas O poder da sociedade corporativas. Se por um lado, o sindicalismo e a demo- cracia representativa, centrada na forca dos partidos poli- ticos, foi o caminho possivel para que o cidadéo comum alcancasse no Brasil a presidéncia da Republica, por outro mostrou sua fragilidade na proposicao e efetivacao de uma agenda politica mais abrangente, solidaria e democratica. O projeto de Cidadania Cultural da ex-secretaria de cultura da cidade de So Paulo se baseou na “desmonta- gem critica da mitologia e da ideologia’. Uma nova cons- trucdo, em torno “da possibilidade de tornar visivel um novo sujeito social e politico que se reconhecga como su- jeito cultural” O incentivo ao debate ptiblico, a necessidade de com- partilhar decisées com o Estado, a criagéo de uma esfera publica nao estatal e a participacdo estimulada em todos os espacos, formais, informais, institucionais, aut6nomos, governamentais, so pontos fundamentais para o estabe- lecimento de politicas baseadas na cidadania cultural. Algumas propostas apresentadas por Chaui aqui sintetiza- das, exemplificam melhor seu significado social: - Universalizacdo dos servicos culturais e garantia de acesso aos bens culturais e a criagdo; - Memoria social e protagonismo: “somos todos sujeitos culturais, mesmo que nao sejamos todos criadores de obras de arte e de pensamento”; - Compreensiao critica da sociedade, reflexéo; - Enfase no carter expressivo, experimental e di- versificado da criacao cultural; - Estimulo a acao cultural das comunidades e dos movimentos sociais e populares; - Formacao e informacao, lazer e solidariedade social; - Discusséo publica (em conselhos e foruns de cul- tura) dos orcamentos publicos de cultura e das prio- ridades da politica cultural. 33 34 Cultura e Comunidade Identidade é conceito-chave na construcdo de politicas culturais. Além de dar sentido a um territorio cultural, retine dentro de si elementos simbélicos compartilhados entre um grupo de tal modo a garantir a sua soberania como nacao. Segundo Teixeira Coelho? (1997), “tratava-se de encon- trar os tragos dessa identidade e de preserva-los estimu- lando sua reproducéo por intermédio de programas de acéo cultural e de politicas de comunicacao de massa de que resultaram as redes nacionais de televisdo”. A identidade cultural de um povo é€ geralmente reco- nhecida por seus elementos unificadores, como territério, lingua e religiao. Tratar do assunto sob 0 ponto de vista das politicas puiblicas de cultura torna-se cada vez mais complexo e espinhoso. Geralmente atrelado ao nacionalis- mo e utilizado como politica de Estados, 0 conceito passou a ser visto com certa ressalva por formuladores e pesqui- sadores contempordneos. A construcao do sentido de nacao significa, para Zyg- munt Bauman’, a negacao de diversificagdo étnica e cul- tural. Os processos civilizadores presididos e monitorados pelo poder do Estado apagam os resquicios de tracos cul- turais do passado. A nacionalidade desempenha um papel de legitimagao na unificacdo politica do Estado, “e a invo- cacao das raizes comuns e de um cardter comum deveria ser importante instrumento de mobilizagao ideoldgica - a producao de lealdade e obediéncia patristicas”. A cultura, cada vez mais homogeneizada, resulta de um certo hibridismo cultural da sociedade global, capaz de agir com a mesma intensidade e forca de comando em sociedades t&o distintas quanto o Brasil e o Iraque, por exemplo. Nesse ambiente global, a questéo da identidade assume outras caracteristicas. 2 COELHO, Teixeira. Diciomiriv Critico de Politica Cultural 5 Comunidade ~ a busca por seguranga no mundo atual. Jorge Zahar Editor, 2001. O poder da sociedade Para Bauman, o aumento da rede de dependéncias adquire com rapidez um dmbito mundial, gerando de- senvolvimento desigual da economia, da politica e da cultura. “O poder, enquanto incorporado na circulagéo mundial do capital e da informaco, torna-se extraterrito- rial, enquanto as instituigdes politicas existentes perma- necem, como antes, locais. Isso leva inevitavelmente ao enfraquecimento do Estado-nacao”. Como consequéncia disso, “os governos dos Estados tém de abrir mao do con- trole dos processos econémicos € culturais, € entrega-los as ‘forgas do mercado”. No plano individual, identidade € condicéo de cidada- nia, de conquista de direitos e ciéncia de deveres. E se a so- ciedade Ihe garante acesso aos contetidos diversos e liber- dade de expressao, pode significar a construgdo da propria subjetividade, por meio do reconhecimento e valorizagao dos fatores constitutivos da sua heranca cultural, assim como a possibilidade de identificagao com outras culturas e modos de vida. Por outro lado, a globalizacdo deveria potencializar 0 processo de construgao € consolidagéo de uma identi- dade propria, legitimada por escolhas e vinculos de he- ranca. Isso se for garantido ao cidaddo o acesso irrestrito e¢ nao mediado por mecanismos de dominio e controle, a contetidos de todas as culturas. Em didlogo e contra- posicgdo com os seus proprios referenciais, 0 individuo exerce de maneira mais clara e rica a construcdo e 0 exercicio da sua subjetividade. Mas como conseguir isso nos dias de hoje? Talvez o antropdlogo italiano Massimo Canevacci nos traga alguma pista, ao decretar “a emergéncia de uma nova subjetividade que deve ser favorecida e sustentada devido a sua enorme potencialidade da autorrepresenta¢ao”. 35, 36 Refundando mitos “A autoridade do antropdlogo estava em crise’, de- clara Canevacci diante de sua surpresa ao se deparar com a presenca marcante de grupos indigenas Bororo e Xavante, no Mato Grosso, registrando com caémeras de video os préprios rituais. A questaéo da autorrepresen- tacdo aplicada as dinémicas culturais globais surge, no contexto aqui relatado, de modo emblematico na re- flexdo do pesquisador. O antropdélogo constrdi, a partir dessa constatacdo, sua incursdo tedrica em torno da im- portancia da autorrepresentacéo para o fortalecimento das culturas locais. Marilena Chauf j4 apontava, ao formular o programa de Cidadania Cultural, para a necessidade, como ponto de partida, de desconstrucaéo do mito fundador, o que signi- fica, no caso do Brasil, reprogramar toda a nossa mem6- ria afetiva em relacéo 4 presenca de indios, portugueses e africanos no pais. Isso permitiria a formulacéo de uma nova mitologia baseada no didlogo dessas trés matrizes, e de outras que mais tarde compuseram nossa ancestra- lidade. Essa renovada concepcéo poderia contrapor-se a uma memoria construfda como projeto de poder da coroa portuguesa e depois reapropriada pelos diversos interesses politico-econémicos que a sucederam. Se uma cultura, como construcéo simbdlica, pode ser tecida autonomamente, sem o olhar contaminado pela tra- ducdo e mediacao de instituicdes, meios de comunicacao e governos, podera sé-la de forma mais rica e legitima, pois utilizara, para isso, referenciais, mitos e meméria afetiva proprios. O acesso as tecnologias digitais suprime definiti- vamente essas mediacées, segundo Canevacci. Experiéncias nos processos educativos tém demonstra- do a alfabetizacdo audiovisual como uma forma potente de desvendar os mecanismos de controle por tras dos pro- cessos de construcdo e edicdo de imagens, permitindo ao O poder da sociedade sujeito uma maior capacidade de desvendar o manejo do simbolico nos sistemas de mediacao tradicionais. Esse processo se dé de maneira mais ampla nas socieda- des contemporaneas, com a apropriacéo dos processos de producio das industrias culturais como um todo e nao so- mente na questao audiovisual. Ja é possivel, por esses meios, interferir nas dinamicas de producao e distribuicao, alteran- do a rota e os habitos de consumo em diversas situacoes. Este é 0 caso, por exemplo, do fenémeno brega-music no Para. Com acesso aos meios de producao e industriali- zacao de CDs, devido ao fim da fronteira tecnoldgica, ar- tistas e produtores aliaram-se aos vendedores ambulantes para criar uma nova dinamica de mercado, que permite o acesso popular 4 sua propria expressao, de maneira mais rapida, barata e direta, furando o bloqueio dos meios de difusdo e distribuicéo, dominados por grandes corpora- des multinacionais e seus interesses politico-econémicos. A disseminacao de experiéncias como essa pelo Brasil, por meio de redes de producio e distribuicao, sobretudo fonografica e audiovisual, ja é realidade, comprovando a necessidade de reinvencdo das dinamicas de mercado e a necessidade de ocupacdo de novos espacos para 0 escoa- mento dessa rica produgao, em pleno processo de ebuligao. Uma caracteristica marcante desse fendmeno € a arti- culacdo entre movimentos sociais € de mercado, abolindo completamente a possivel dicotomia entre essas duas ins- tancias, com légicas e rel6gios muitas vezes antagénicos. As redes socioculturais tornam possivel esse tipo de convi- véncia, talvez por uma espécie de sincretismo presente nas mais diversas instancias. 37 38 A democracia radical das redes socioculturais A formacao de redes socioculturais demonstra ser um caminho inteligente para a conquista da cidadania cultu- ral, Essas redes caracterizam-se por propiciar um ambiente de discussdo e de participagaéo baseados na autonomia e na integridade de seus membros. Todos partilham ambientes livres e rizomaticos, dificultando 0 estabelecimento de sis- temas de poder, controle e dominio centralizados sobre os contetidos e trocas. A apropriacao coletiva e a construgao colaborativa de conhecimento sao caracteristicas marcantes dessas redes, formadas a partir da identificacdéo de seus agentes com os temas, oferecendo possibilidades de troca e didlogo pelas vias tradicionais, mas, sobretudo, a partir de ferramentas digitais e a Internet. Uma nova possibilidade de democracia radical e direta forma-se nesse momento na web, por meio de blogs, me- canismos de rede, sistemas de troca de contetidos culturais, permitindo o remix e novas formas de expresso, interagdo e participacdo politica. Um movimento espontaneo da so- ciedade que evidencia a demanda por Cidadania Cultural. Misturas organicas Mesmo apés 0 fim da escravidao e o Estado laico-repu- blicano, o negro vivia - e vive de certa forma até hoje — sob a condicdo tacita de comungar do credo catélico. E apren- deu, assim como todo brasileiro mesticgo, a acender uma vela para o santo e outra para 0 orixd. Ou ainda, no sin- cretismo mais classico, a acender uma tinica vela para um santo-orixd, com caracteristicas préprias de duas matrizes, com légicas e dindmicas completamente diversas, quando nao antag6nicas entre si. Essa capacidade propria do brasileiro, mas também pre- sente em outras sociedades, é um poderoso antidoto con- O poder da sociedade tra os efeitos malignos da globalizacgao. A capacidade de absorcdo e re-processamento de praticas, modos e crengas permite, por um lado, o esvaziamento das barreiras inter- nas contra o avango da camaleénica cultura do consumo, e, de outro, a possibilidade de avanco € didlogo com as outras formas de interacdo, convivéncia e expressdéo pre- sentes na arena global. O que pode significar a abertura de mercados para as industrias culturais brasileiras. Celebrar o sincretismo e a mesticagem como um trago inerente e potencializador da cultura brasileira é questéo de preservacdo e promocao da memiéria e das tradicoes. Um exemplo recente disso é 0 movimento Mangue-beat em Pernambuco. Ferozmente combatido pelos defensores da cultura tradicional e do maracatu, pois buscava ele- mentos de raiz para dialogar com 0 pop € com a industria cultural, 0 movimento s6 fez valorizar as tradicdes e as comunidades que praticam o maracatu rural, colocando, por exemplo, a cidade de Nazaré da Mata (PE) no mapa da musica contemporanea universal. Tropicdlia, bossa-nova e muitos outros movimentos culturais brasileiros nascidos na industria do entreteni- mento, partem desse jeito brasileiro de ativar € dialogar com 0 outro, a partir da valorizagao do seu préprio refe- rencial simbédlico. Mas como permitir o desenvolvimento artistico € 0 aces- s0 a esses mercados a uma camada da populacao distante do Estado e dos meios de comunicacao? O do-in antropolé— gico proposto por Gilberto Gil talvez seja um caminho. Cultura viva Reconhecer e valorizar as diversas formas de manifesta- cdo cultural do Brasil. Essa é a fungao da proposta apresen- tada por Gilberto Gil em seu discurso de posse, em 2003, como titular da pasta da Cultura. Por analogia 4 tradicéo milenar chinesa, que reconhece e massageia pontos ener- 39 40 géticos em beneficio do bem estar do corpo e da mente, o ministro cunhou uma traducéo que representa a comple- xidade da funco politica da cultura. Fortemente inspirado nas proposigées de Marilena Chaui e nos recém-publicados documentos da UNESCO, sobretu- do sobre diversidade cultural e patriménio imaterial, 0 do-in antropoldgico consiste em universalizar os servicos culturais, com a presenca de centros culturais, bibliotecas e telecen- tros em todo o pais, a comegar pelas regiées mais pobres e distantes; valorizar e dar autonomia para as diversas formas de manifestagao cultural existentes no pais, ndo somente as institucionalizadas e consagradas pela elite e a industria cul- tural; buscar novas possibilidades de interlocugao e didlogo com outras instancias da sociedade, por meio de insercéo econémica e desenvolvimento local. O do-in antropolégico prepara ambientes favoraveis a in- teracdo de agentes culturais; o fomento 4 pesquisa e aos processos criativos; a atuacéo e a viabilizagéo das expres- s6es culturais, sua difusao, acesso, participacao e articulacéo entre todas as esferas da sociedade. Esse conjunto de fatores busca gerar um circulo virtuoso que garanta o envolvimento ea participacdo de toda a populacao nessa dindmica. Para realizar essas agGes, 0 ministro modificou a es- trutura do seu cabedal administrativo, criando secretarias para desenvolver politicas, programas e articulacao, além de valorizar o patriménio, 0 audiovisual e a diversidade. O programa Cultura Viva, desenvolvido nesse contex- to, visa formar uma rede nacional dessas iniciativas, e é, sem dtivida, a sua melhor tradugaéo programatica, embora também esteja presente em editais e prémios de valoriza- cdo de mestres de cultura popular e de manifestagGes cul- turais de pouca projecaéo na cultura institucionalizada. Como responsabilidade de cada cidadao em relacao a cul- tura, o do-in antropolégico pode ir muito além. A localizagéo desses pontos de convergéncia, miscigenacao e transmutagaéo de realidades é fruto néo somente da presenga do Estado. O poder da sociedade Deve ser um desafio compartilhado por toda a socieda- de em preservar e promover a Diversidade Cultural. | Pluralidade A recém-promulgada Convengéo a a protecdo e a promogio da diversidade das express6es culturais no am- bito da UNESCO € a consolidacio de uma luta histérica contra a homogeneizacao cultural promovida por um oli- gop6lio formado por esttidios de Hollywood e seus gru- pos empresariais, que reinem conglomerados de midia e fabricantes de equipamentos eletrénicos. Financiados por outros cartéis, como a industria financeira, tabagista e al- cooleira, essa cultura de consumo favorece setores, sobre- tudo o mercado do luxo e da celebridade. Encampado por organizac6es socioculturais, produto- res independentes organizados em coalizGes e redes por todo mundo, o movimento encontrou abrigo em paises como a Franca, Canadé, Suécia e Brasil, que sentem os efeitos do estrangulamento cada vez mais visivel de suas culturas locais, com 0 dominio dos meios de comunica-— cao e difusdo cultural nas mdos desses conglomerados multinacionais. A Convencio consolida outras pautas urgentes das socie- dades contempordneas, como a cultura de paz ¢ 0 respeito das diferencas culturais, a sobrevivéncia das culturas autéc- tones, suas formas de vida, fazeres, economias e linguas, em oposicéo a um projeto global unico, que pretende incluir todos os habitantes economicamente ativos do planeta, com metas de crescimento cada vez mais elevadas. Nesse cenério, torna-se urgente a composicéo de um cenario positivo e fértil para tratar do assunto, como uma das grandes pautas sociais do novo milénio, oferecendo subsidios concretos para apropriacéo de um glossdrio fundamental para a construcao e consolidagdo de demo- cracias multiculturais. \ 4 42 Seu valor simbélico no ambito da UNESCO pode ser medido pela votacao para a promulgacao da Convencio, em 2005. Com 151 votos a favor e apenas 2 contra (Estados Unidos e¢ Israel), associou-se de maneira definitiva como peca de resisténcia ao imperialismo norte-americano e sua irresponsabilidade bélica e midiatica. O documento passou a ser utilizado pelos diversos or- ganismos e segmentos em busca de maior equidade nas trocas internacionais, assim como nos paises~-membros, que ratificaram a Convencao em sua legislagao interna. O Brasil o fez em dezembro de 2006. Isso significa um compromisso do pais com o estabeleci- mento de politicas concretas de preservacio e promogao da diversidade. Traduzido para as politicas internas pelo entao Ministro da Cultura, Gilberto Gil, como do-in antropolégico, essas politicas visavam massagear as dindmicas culturais ja existentes por todos os pontos de ressonancia do pais. Para efetivar uma plataforma publica, abrangente e democratica, € preciso praticar o do-in antropoldgico, au- to-massageando 0 corpo cultural, celebrar a diversidade, Promover o sincretismo, estimular a auto-representacao, valorizar as identidades, participar da Cidadania Cultural e garantir os direitos culturais a todos os cidadaos. Nao podemos, no entanto, enxergar como uma receita fechada, mas consideré-la uma sistematizacdo prdtica de elementos emergentes da nossa realidade cultural. Como um plano propositivo para visualizarmos novos efeitos de mundo, baseados em resultados consistentes € processos enriquecedores para a sociedade brasileira. “O Estado nao deve deixar de agir. Nao deve optar pela omiss&o. N&o deve atirar fora de seus ombros a responsabilidade pela formulagdo e execugao de politicas publicas.” (Gilberto Gil) Capitulo Ill Cultura a servicgo do imagindario brasileiro (O poder do Estado) O poder do Estado Estado e Cultura: uma relagao delicada No Brasil, a relacdo entre Estado e Cultura pode ser identificada a partir de diversas intervencdes elaboradas por drgéos governamentais em diferentes contextos so- ciais, politicos e econémicos. Mesmo sem uma intengdo propriamente voltada para a construgao € © exercicio de uma cultura complexa e diversa, utilizam-se historicamen- te mecanismos “oficiais € oficiosos” como forma de estabe- lecer ou impor uma dinamica cultural para a sociedade. A partir do estdgio evolutivo das politicas publicas é possfvel identificar e classificar os diversos tipos de rela- cionamentos do Estado com a cultura no Brasil. Para Mari- lena Chauf (1994)!, sdo quatro as principais modalidades: - A liberal, que identifica cultura e belas-artes, estas Uiltimas consideradas a partir da diferenca classica entre artes liberais e servis. Na qualidade de artes liberais, as belas-artes so vistas como privilégio de uma elite escolarizada e consumidora de produtos culturais. - A do Estado autoritdrio, na qual o Estado se apresenta como produtor oficial de cultura e censor da producio cultural da sociedade civil. - A populista, que manipula uma abstragao gene- ricamente denominada cultura popular, entendida como producao cultural do povo e identificada com © pequeno artesanato € 0 folclore, isto é, com a ver- so popular das belas-artes e da industria cultural. ~ A neoliberal, que identifica cultura e evento de massa, consagra todas as manifestacdes do narcisis- mo desenvolvidas pela mass media, e tende a priva- tizar as instituigdes publicas de cultura deixando-as sob a responsabilidade de empresarios culturais. 1 CHAUL, Marilena. Cidadania Cultural 47 48 Do lado dos produtores e agentes culturais, segundo Chauf “o modo tradicional de relacéo com os érgaos pu- blicos de cultura é 0 clientelismo individual ou das corpo- racées artisticas que encaram o Estado sob a perspectiva do grande balcdo de subsidios e patrocinios financeiros’. Para compreender melhor como essas dindmicas foram estabelecidas, co-habitando o nosso sistema de governancga publica, tentaremos pontuar épocas, contextos historicos e agdes governamentais na area da cultura, sobretudo a par- tir da criacdo de organismos e instituicdes. Além de revelar os paradigmas e intencionalidades por tras das acoes, bus- caremos propor maneiras contemporaneas de lidar com esses importantes legados. O império e a miss&o civilizatoria Desde o momento em que os portugueses chegaram ao Bra- sil foram registradas diferentes caracteristicas no modo de vida e dos costumes dos indigenas que aqui viviam. Individuos que logo foram alvos do processo de aculturacaéo forcada, como em todo o periodo da colonizagao européia na América. A ocupacao portuguesa se baseou num processo de im- bricamento de diferentes manifestagées culturais, marca- das também por formas diferenciadas de organizacéo so- cial. Diferencas que ao longo do tempo acabaram gerando na sociedade constantes manifestagdes de contestagdo ao modelo colonizador, aumentando a preocupacéo das go- vernancas portuguesas com o “descontrole” e com a “falta de civilidade” dos dominados. A auséncia de mecanismos de forma¢éo para a popu- lagdo naquele momento era um atrativo para a coroa, jé que, como explica Souza (2000), “sem massa critica in- telectual, uma colénia jamais se transforma em pais’. A educacao se limitava as familias que reuniam condicées de mandar seus filhos para estudar na capital da colénia, mas que, ao retornar, deparavam-se novamente com a O poder do Estado precariedade e a miséria cultural, intelectual e tecnoldgica da col6nia portuguesa. Essa precariedade também pode ser entendida como responsavel pelas primeiras a¢oes no campo da cultura no Brasil, o que viria ocorrer aps a chegada de Dom Joao Vie a corte portuguesa ao Rio de Janeiro. Segundo Souza, com a extrema falta de infra-estrutura, entre os anos de 1808 e 1819, a coroa tentou “introduzir algum conhecimento técnico que lhe permitisse um certo conforto”. Naquele instante, precisava criar mecanismos de desenvolvimento cientifico e intelectual, como forma de amenizar a miséria, causada por ela mesma, e as desvantagens de estar longe da “civilizagdo”. Entretanto, também era necessdrio criar mecanismos de manutengio da “superioridade coloniza- dora’, restringindo cultura e educacéo somente a elite. A criacao da Biblioteca Nacional, da Escola Real de Ci- éncias, Artes e Oficios e do acervo do Museu Nacional de Belas Artes sao acdes implementadas pela coroa para ame- nizar a distancia da “civilizagdo” e a convivéncia com os “iletrados”. O museu teve origem no conjunto de obras de arte trazido por D. Jodo VI de Portugal em 1808, ampliado alguns anos mais tarde com a colecéo reunida por Joachin Lebreton, um dos representantes da “Missao Francesa’, que trouxe ao pais uma série de artistas do velho continente. O acervo original contou com importantes incorporagoes ao longo do século XIX e inicio do século XX. Com a cons- trucdo da nova sede da Escola Nacional de Belas Artes, em 1908, que teve projeto elaborado pelo arquiteto Moralles de los Rios, 0 acervo passou a ocupar parte do novo prédio, sen- do 0 Museu criado oficialmente em 13 de janeiro de 1937. Em relacio 4 Academia Imperial de Belas Artes, como a instituigdo foi chamada no inicio, o pesquisador Tadeu Chiar- relli entende que “o partido estético adotado pela Academia, os vinculos com o classicismo e a experiéncia artistica e cul- tural de seus integrantes estardo diretamente imbricados com 0 problema da construgao da civilizagéo no Brasil da primeira 49 50 metade do século XIX” Para o autor, a institucionalizacéo do Estado auténomo compreendia, na contrapartida da afirma- Gao politica, uma espécie de missao civilizatoria. Apesar da grande e inquestionavel importancia de tais instituigdes para a identificagéo dos primeiros pas- sos do trabalho cultural no Brasil, vale observar certo viés nas informacées historiograficas, que nao levam em conta as condicdes materiais e concretas por tras desse “proceso civilizatério”. A exaltacdo da “boa vontade" das elites “preocupadas” em formar uma nacéo brasileira é um fator até hoje preponderante no pais. Deve-se ainda ressaltar que essas “benesses” foram forjadas unicamente para manter o padrao e o poder de conhecimento sobre os “colonos”. Com efeito, a “Missao Francesa” iniciou oficialmente o ensino artistico no Brasil, uma estrutura cultural que per- durou até a Semana de Arte Moderna de 1922. O trabalho cultural se caracterizou pelo “rompimento” com o passado colonial através da vinda ao pais de nomes como Debret, os irmdos Taunay e Carlos Pradie, entre outros. Também ficou marcado pela a inovaco estética trazida por esses artistas, registrada a partir da primeira exposicao de artes plasticas ocorrida durante o periodo imperial no Brasil, em 1829. O trabalho artistico brasileiro ficou impregnado, segun- do Souza (2000) pela “preocupagdo com a técnica, [além de configurar] uma longa linhagem de artistas plasticos, todos ex-alunos da Academia e com viagens de estudo 4 Europa, patrocinados pelo governo” O perfodo também marcou 0 flo- rescimento da musica, que durante a década de 1830 comecou a dar os primeiros passos, através da formagao de uma Filar- ménica em 1841 e da Opera Nacional em 1857, apresentando 0 “clima vibrante de uma cidade onde as platéias podiam ou- vir 6peras estrangeiras cantadas na lingua do pais”. O fomento de artistas locais também foi uma caracteris- tica do Império, como jé abordamos aqui. Por meio de bol- sas de estudo para fora do pais e concesséo de empregos O poder do Estado ptiblicos, o Estado promoveu as artes e a cultura, inclusive apés a Independéncia. Um exemplo foram dos composito- res Carlos Gomes, enviado para a Europa, e 0 padre José Mauricio, financiado pela coroa, além do escritor Machado de Assis, premiado com emprego ptiblico. Mas nem todas as express6es artisticas eram incentivadas, ou mesmo aceitas. O érgao estatal responsdvel pelo traba- Iho teatral no Rio de Janeiro era o Conservatério Dramatico Nacional, cujas atribuigdes também inclufam impedir a rea- lizacdo de diversas pecas. Tanto o cinema quanto a foto- grafia sofriam com a falta de atencao, visto que nao eram entendidas como forma de manifestacao artistica durante 0 Império, mesmo sendo, este, interessado pelas tecnologias. A fotografia, segundo Chiarelli (2005), era restrita, no pe- riodo, apenas como um apéndice da pintura. Talvez esse fato explique o aparecimento, em 2006, de 1500 fotos iné- ditas guardadas por filhos e netos da princesa Isabel em um bati de ferro na casa de uma descendente direta da princesa, na Europa’ O relacionamento entre Estado € o trabalho artistico no século XIX também se caracterizou pelo inicio da forma- cdo de uma “identidade nacional brasileira’, que passou a fazer parte das tematicas das expressdes culturais e artisti- cas, mesmo que essas ainda dependessem de referenciais europeus, sobretudo da cultura francesa. O cenario cultural brasileiro no inicio do século XX ain- da estava marcado pela forte influéncia européia, sobretudo francesa. Esse modelo artistico, absorvido pelas elites por- tuguesas, acabou por influenciar também 0 gosto das elites que se formavam no pais. Essa emergente classe abastada consumia, sem a menor pretensdo de originalidade, os es- petaculos teatrais, saldes de cinema, concertos e recitais, ou seja, tudo o que era aceito criticamente pela “civilizagao" européia. Por outro lado, as manifestagdes culturais das camadas mais pobres, excluidas pela economia nacional, 2. CE Jomal Estado de. Paulo, Caderno 2, 18 de setembro de 2008. 51 52 eram entendidas como expressées inferiores, sem qualquer valor para as elites nacionais. Também reflexo do século anterior, em que a educagéo de qualidade era privilégio daqueles que tinham condigGées de estudar em Portugal, a producao intelectual da época se valia das reprodugGes dos valores da cultura européia. Assim, de maneira a interromper essa pratica, surgiram di- versos escritores que realizavam seus trabalhos voltados, principalmente, para uma visdo mais critica da realidade brasileira daquele momento. Esses trabalhos tinham como proposta questionar as causas e as condicdes dos proble- mas sociais, econémicos, politicos e culturais no Brasil. Dentre esses autores, podemos destacar Euclides da Cunha, Lima Barreto e Monteiro Lobato. Mesmo sem estar inteira- mente associados as correntes literdrias do século XIX, esses literatos apresentaram temas aproveitados mais tarde pelas perspectivas de rompimento da intelectualidade modernis- ta com os tracos culturais que marcaram o século XIX. Essa preocupacaéo foi um dos pontos que marcaram a ruptura dos modernistas: o sentimento “nativista” que comegava a despertar nesses artistas, esbocava caracte- risticas nacionais em seus trabalhos. Esse traco, segun- do Amaral (1998), destoava dos “académicos” da Escola Imperial e Nacional de Belas Artes, com seus trabalhos voltados, em sua maior parte, “ao mundo governista, por meio de encomendismo, arte histérica e comemorativa, retratos oficias etc’. Vargas e a construgao da identidade brasileira A situacao cultural sofreria mudangas somente apéds a revolucao de 1930, a partir do governo Getuilio Vargas. Ca- racterizado por colocar nas maos do Estado diversas res- ponsabilidades que até entaéo eram isentas dos interesses federais, Vargas percebeu as vantagens de usar a cultura como plataforma politica. a O poder do Estado Os primeiros passos de Vargas nessa drea foram no sentido de construir instrumentos institucionais voltados para 0 de- senvolvimento da cultura nacional, a saber, o fortalecimento de industrias culturais, como a cinematografica, a radiof6nica, a editorial e a jornalistica, além do surgimento das primeiras universidades, fator que, segundo Barbalho (2007), permitiu alguma independéncia aos nossos produtores simbélicos. Diversas iniciativas institucionais marcaram a atuacéo do governo Vargas na cultura, como o Servico do Patrimé- nio Histérico e Artistico Nacional (SPHAN). Segundo Cala- bre (2007), essa preocupagao, desde a década de 1920, era levantada pelos modernistas, principalmente em relagao as cidades histéricas de Minas Gerais. A criacdo do Servico Nacional do Teatro (SNT), do Ser- vico de Radiodifuséo Educativa, da Casa Ruy Barbosa, do Museu Histérico Nacional, de diversas universidades, co- légios e Liceus federais, do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) e do Instituto Nacional do Livro (INL), além da efetivagio do Museu de Belas Artes, sdo outras iniciativas tomadas pelo governo Vargas. Em julho de 1938, foi criado o primeiro Conselho Nacional de Cultura. Todos esses érgdos, segundo Miceli (1984), estavam ligados a vertente cultural do Ministério da Educacao e Satide Publica, criado em 1930, tendo sua denominago alterada, em 1953, para Ministério da Educacao e Cultura (MEC). Essa es- truturacdo, segundo Falcdo (1984), fazia parte das pretensGes do governo em se inserir estrategicamente “no processo de legalizacio, institucionalizacao e sistematizacdo da presenga do Estado na vida politica e cultural do pais” Fatores econémicos e sociais - como a substituigao do ciclo rural e oligdrquico pelo ciclo urbano industrial e o consequente crescimento da sociedade — foram caracteris- ticas que influenciaram fortemente a politica de cultura da €poca. Com o constante crescimento da massa de trabalha- dores que comecava a ocupar as cidades, surgiu também a necessidade de se estabelecer critérios para controlar sua 53 54 insercao na participacdo dos processos politicos do Estado e da sociedade. Com a criagéo de uma série de novas institui- c6es culturais ¢ através do apoio a artistas e profissionais da area cultural, o Estado ampliou suas atividades nesse campo. A estratégia de fortalecimento institucional na drea da cultura abriu espacos no governo para uma maior atuacdo de variados produtores culturais. Atrair intelectuais e artis- tas renomados para viabilizar 0 projeto politico governista se mostrou uma ideia bem sucedida, principalmente por se tratar de um momento de forte efervescéncia cultural. Artistas e intelectuais estabeleciam um trabalho arraigado em propostas de “redescobrir o Brasil”. Exemplos caracteris- ticos do movimento modernista na pintura e na literatura, ou mesmo encontrados em trabalhos intelectuais nacionais como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Pra- do, entre outros, que colocaram-se a buscar uma interpreta- Gao acerca da realidade brasileira, amparados em tematicas sociais. A estratégia do governo de aproximacado com a in- telectualidade e com artistas integrados 4 questéo nacional foi elaborada, também, na tentativa de inserir a participagao desses nos diversos 6rgdos criados pelo governo. O dirigismo ideoldgico do governo fez com que, em 1930, 0 arquiteto Lticio Costa fosse indicado para encabegar a Es- cola Nacional de Belas Artes. Em 1931, Manuel Bandeira foi convidado para participar da direcdo do Salao Nacional de Belas Artes, Em 1932, 0 escritor José Américo de Almeida assumiu a pasta da Viacéo e Obras Publicas. Gustavo Capa- nema foi nomeado, em 1934, ministro da Educagao e Satide Publica, convidando o poeta Carlos Drummond de An- drade para chefiar seu gabinete, e Rodrigo Melo Franco de Andrade, para ser o responsdvel pela direcao do Servico do Patrimonio Historico e Artistico Nacional. O érgdo contou, ainda, com Mario de Andrade para elaborar e implementar uma politica de preservacdo. A “cultura popular nacional” e suas dimensoes afro-brasi- leira, indigena, da cidade e do campo passou a ser valorizada O poder do Estado nas mdos desses intelectuais e artistas de expresséo nacional e internacional, nas pretensdes ideoldgicas do Estado. A valorizacdo do trabalhador acabou por influen- ciar a acdo do Estado na rea cultural, inclusive a de origem popular, que ganha status de cultura nacio- nal. Assim, o regime de Vargas se utilizou dos meios de expresso tradicional, como o samba e 0 carnaval, para, através deles, reproduzir determinada imagem do povo brasileiro propicia aos seus interesses de modernizaco do capitalismo no pais. Manipulando os simbolos populares, o Estado os transformava em nacionais e, depois, em elementos tipicos da nova brasilidade. A transformacao do popular em nacio- nal e, deste, em tipico corresponde a um movimento ideolégico, denominado por Marilena Chaui (1986) de mitologia verde-amarela, elaborada e aplicada ao longo da histdria brasileira. Inicialmente serviu as classes dominantes agrarias como auto-imagem celebrativa do Ser nacional, cordial e pacifico. Num segundo momento, o mito incorporou as classes do- minantes urbanas com a idéia do Desenvolvimen- tismo. Estas duas vertentes se unem para oferecer a sociedade uma mitologia em que € conservado o passado bondoso e prometido o futuro grandioso. A mitologia verde-amarela transveste-se em palavras de ordem adequadas a cada contexto histérico. No Estado Novo, por exemplo, era Construir a Nacao, permitindo ao Estado intervir na cultura como ele- mento dessa construcéo.* Segundo Olivien (1984), o Estado interferiu nas produ- cées culturais “proibindo e censurando aquilo que [eral visto como prejudicial 4 imagem ‘séria’ do Brasil, mas, em 3 BARBALHO, Alexandre. “Estado autoritério brasileiro ¢ cultura nacional: entre a tradicdo ¢ a modernidade” In: Revista da associagto psicanalitica de Porto Ategre. 2000, p. 75-74 55 56 contrapartida, [atuou] promovendo a imagem sui generis de nossa cultura” O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), responsavel pela estratégia e direcionamento da poli- tica cultural do governo Vargas, tinha como proposta criar uma espécie de sentimento de exaltagao das qualidades do povo brasileiro. Por isso, interferiu e censurou, por exemplo, a formulagao simbélica que aludia a certa “malandragem” Presente na musica popular, manipulando sua ideologia para a valorizacao do trabalho, elemento “necessdrio” para estimular e disciplinar a massa trabalhadora assalariada. Outros destaques ainda merecem atencio no projeto cultural do governo Vargas. Entre eles esta a regulamen- tacao do sistema de radiodifusao, instituido em 1932 para controlar questées relacionadas a veiculagao de publicida- de, com direito a 10% da programacao didria. Programas governamentais eram apresentados em rede nacional, com temas sobre educagao, politica, cultura, sociedade, religiao, economia, entre outros. Durante a apresentacdo do “Pro- grama Nacional’, segundo Calabre (2007), era proibida a apresentacdo de outros programas. Com uma industria editorial em expansao, outro im- portante veiculo de comunicacao utilizado como estraté- gia politica de formagao cultural do governo foi a “Revista Cultura Politica’, editada a partir de agosto de 1941 por Almir Andrade. Mesmo sendo utilizada como um meca- nismo do governo Vargas, a publicacio, seguindo a mes- ma linha da politica cultural oficial, teve a participagdo do escritor comunista Graciliano Ramos e do militar marxista Nelson Werneck Sodré. Os primeiros passos da industria do consumo O periodo seguinte, compreendendo o final dos anos 1940 e inicio dos 1950, caracterizou-se pelo aumento dos investimentos no setor cultural realizados por empresé- rios. Isso ocorreu, pois, na época, o Estado nao atuou na O poder do Estado rea de forma significativa, realizando apenas a manuten- cao de algumas instituigées criadas no periodo anterior e destinando pequenos subsidios. Estimulados pelo aumento na década de 1940 do nime- ro de emissoras de radio e os primeiros investimentos no setor televisivo brasileiro, juntamente com os crescentes investimentos para 0 fortalecimento dos meios de comuni- cacao de massa, ha um crescimento do radio, da televisdo e do cinema no Brasil. Esse desenvolvimento se acelera, so- bretudo, a partir do término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, que permitiu a retomada da producao de apare- Ihos e equipamentos de transmissao em escala mundial. Os investimentos que possibilitaram o fortalecimento do sistema de comunicagaéo em massa no Brasil séo carac- teristicos do momento de “bipolarizacéo” mundial durante a guerra fria. Como forma de estabelecer sua influéncia, os Estados Unidos utilizaram estratégias politicas de relacio- namento para estabelecer parcerias com diversos paises. Para tal, aplicaram recursos financeiros, que estimulavam a abertura dos mercados nacionais para entrada de produ- tos industriais e culturais daquele pais. O personagem Zé Carioca, criado por Walt Disney para representar a alianga entre os dois paises, foi fruto daquele momento. Essa configuragéo econémica mundial permitiu o au- mento dos investimentos estrangeiros no Brasil, estimulan- do a diversificagdo da atividade industrial e 0 consequente aumento da producdo de bens de consumo. Os meios de comunicacéo de massa viveram sua época de ouro, com o surgimento de programas de auditério e telenovelas. Impulsionados pelo fortalecimento da publi- cidade no pais, esse sistema acabou por consolidar uma cultura de consumo, sobretudo nos grandes centros. Mesmo tendo sido o Brasil o primeiro pais da América do Sul a instituir o sistema televisivo na década de 1950, segundo Ortiz (2001), devido aos fortes investimentos de Assis Chateaubriand, o instrumento nao se enquadrou na 57 58 légica do mercado daquele momento, embora atingisse cerca de 18 mil aparelhos no periodo. Nas décadas seguin- tes, com o aumento da producao dos bens de consumo, da propaganda, de investimentos em programas como novelas e com apoio “indireto” do governo, interessados na propaganda politica e, mais uma vez, na formatacdo de uma identidade nacional, a televisdo se fortaleceu e alcangou indices que influenciaram até mesmo o sistema econémico brasileiro. O golpe militar e a politica de integragao nacional A cultura sé foi assumida novamente pelo Estado em 1961, na répida passagem do presidente Janio Quadros, que reativou o Conselho Nacional de Cultura. Compos- to por representantes do setor artistico e de érgdos go- vernamentais, o CNC tinha como proposta a formula- cdo de um Plano Nacional de Cultura. Entretanto, com a rentincia do presidente e as mudangas politicas que ocorreram no pais em 1962, 0 érgdo ficou novamente subordinado ao MEC. O governo Castelo Branco criou uma comissdo desti- nada a apresentar sugest6es para a reformulacao cultural do pais. Essa comisséo recomendou a criacdo do Conselho Federal de Cultura (CFC). O CFC, ligado ao Ministério de Educacao e Cultura (MEC) foi criado pelo Decreto-Lei n° 74, de 21 de novembro de 1966, e instalado a partir do Decreto n° 60.237, de 27 de fevereiro de 1967. O 6rgao ficou responsdvel pelas formulacdes de po- liticas culturais e, futuramente, deveria apresentar pro- jetos para a criagdo de um Plano Nacional de Cultura. O CFC também apresentou propostas de criacdo de érgaos e conselhos de cultura estaduais, buscando a ampliacéo desse trabalho para os municipios. O Conselho Federal de Cultura deveria atender as peculiaridades regionais, O poder do Estado sem prejuizo em ser o orgdo governamental destinado a defender, estimular e coordenar, nas suas linhas mestras, um plano nacional. Em 1973, durante a gestao de Jarbas Passarinho 4 frente do MEC, foi criado um documento chamado Diretrizes para uma Politica Nacional de Cultura, que previa a “necessidade de criagdo de um novo organismo ou a adaptacéo de érgéo ja existente, aumentando-Ihe a hierarquia e a drea de com- peténcia, assim como poderes de planejamento € execugao, coordenacio e avaliacao, de forma a obter um conjunto har- ménico e integrado”. O documento afirmava a necessidade de uma acdo mais efetiva na area, considerada questéo de soberania e seguranga nacionais, e indicava a importancia da criagdo de um Ministério especifico para a Cultura. Ainda em 1973, surgiu o PAC, Programa de Acdo Cul- tural, afirmando a necessidade da presenca do Estado no desenvolvimento da cultura. Segundo Miceli (1984), 0 PAC nao era apenas uma abertura de crédito financeiro a al- gumas dreas da producao cultural até entéo desassistidas pelos 6rgaos oficiais, mas também uma tentativa oficial de “degelo” em relacdo aos meios artisticos e intelectuais. A atuacdo do governo em assuntos culturais resultou em 1975 na criagéo da Politica Nacional de Cultura (PNC). O governo Geisel, que tinha Ney Braga a frente do MEC, con- cretizou o reconhecimento oficial da necessidade de incluir a cultura no programa de desenvolvimento e seguranca do governo militar. Assim como em outros momentos histéricos, as poli- ticas nacionais dos militares, implantadas para fortalecer a cultura brasileira, ndo passavam de sistemas de contro- le e direcionamento do processo cultural. Seus diversos mecanismos de atuacdo foram criados para neutralizar manifestagoes artisticas de forcas consideradas adversé- rias do governo. O governo lancou mao de censura e in- tervencdo direta, com o objetivo de assumir o controle e a direcéo da producdo nacional. As iniciativas da politica 59 60 cultural realizada durante o Regime Militar, segundo Paixao (2008), “tinham como finalidade, ndo apenas con- trolar o que deveria ser produzido como cultura oficial, mas adequar essa politica de desenvolvimento aos no- vos valores trazidos com as transformacées no mundo capitalista, na tentativa de inserir o Brasil no circulo dos paises de primeiro mundo’. O governo militar criou diversos organismos como o Conselho Nacional de Cinema (Concine), reformulou a Em- presa Brasileira de Filmes (Embrafilme), criou a Fundacao Nacional da Arte (Funarte), reestruturou 0 Servico Nacional do Teatro (SNT). Em 1973 também foi criado 0 Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), além da Campanha Nacional de Defesa do Folclore Brasileiro, entre outros, utilizando a estratégia getulista de convidar nomes res- peitados da cultura nacional para fortalecer e viabilizar o projeto governista. A criagéo do Centro Nacional de Referéncia Cultural (CNRO), em 1975, vinculado ao Ministério da Industria e Comércio adquiriu, segundo Cury (2002), autonomia no interior do MEC e ja nasceu com a proposta de separacado entre educacao e cultura. Seu primeiro trabalho, segundo Cury (2002), foi tragar um sistema referencial basico para a descrigéo e andlise da dinamica cultural brasileira, por meio da “organizagéo de programas que delineassem a cultura brasileira, tais como mapeamento do artesanato brasileiro, histéria da ciéncia e tecnologia, os levantamen- tos de documentacao sobre o pafs e que tornasse visivel parte da cultura excluida até entao, as chamadas manifes- tag6es populares”. A centralizagéo pretendida pela Politica Nacional de Cultura, além de privilegiar 0 fator mercadolégico, tam- bém fez o governo atribuir para si a responsabilidade de julgar as novidades que interessavam ou nao, além de apontar o que era excessivo e estimular o que julgava ser de qualidade. Com isso, afirma Paixao (2008), “mesmo que O poder do Estado na pratica a PNC tenha favorecido o surgimento de diver- sos Orgaos e instituicdes, o que permitiu a ‘formacdo de equipes estaveis de técnicos responsaveis pela elaboracao, acompanhamento e a avaliacaéo de projetos nos diversos ramos da producio cultural’ temos de observar em que sentido esses mecanismos tiveram uma efetiva atuacéo no setor. Para o autor, esse mesmo governo, “preocupa- do” com a cultura no pais, censurou e reprimiu violenta- mente diversos trabalhos artisticos no periodo, além de prender, torturar e mandar para o exilio diversos artistas, até mesmo aqueles que nao tinham ligagGes diretas ou mesmo indiretas com projetos que o questionassem. Esse mecanismo politico ampliou os investimentos no setor, o que possibilitou o fortalecimento do merca- do cultural, estimulando “as transformagées ocorridas na economia brasileira, paralelamente ao crescimento do parque industrial e o mercado interno de bens mate- riais, fatores que possibilitaram o fortalecimento da in- dustria e do mercado de bens culturais” (Paixo, 2008). Segundo Kehl (1980), a televiséo assume papel funda- mental durante a década de 1970, tendo em vista novas perspectivas de integracéo da sociedade no processo de desenvolvimento econdmico via consumo. A adaptacdo ao modelo de desenvolvimento politico e cultural foi carac- terizada através da perspectiva de participagao oferecida, principalmente, pois “é preciso educar esse novo mercado de trabalho e consumo” e assim criar novos habitos para um “homem novo’. Para isso, segundo a autora, foram criados diversos ins- trumentos para facilitar 0 acesso da populagdo ao merca- do consumidor, 0 que obrigou o governo a tomar diver- sas iniciativas de liberacao de crédito, apresentadas como “medidas adotadas visando a implantagéo de um merca- do de bens duraveis e semiduraveis, acompanhado de um desenvolvimento espantoso das técnicas de publicidade’. Fatores que transformaram a televisdo no principal me- 61

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