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I SOM, RUIDO E SILENCIO FISICA E METAFISICA DO SOM. 1. SINAL DE ONDA. SOM E SILENCIO Sabemos que o som € onda, que os corpos vibram, que essa vibra- io se transmite para a atmosfera sob a forma de uma propagagio on- dulatéria, que 0 nosso ouvido é capaz de capté-la e que o eérebro a in- terprera, dando-Ihe configuragaes e sentidos. Representar 0 som como uma onda significa que cle ocorre no tempo sob a forma de uma periodicidade, ou seja, uma ocorréncia re- petida dentro de uma certa freqiiéncia. Peniatcidadle da onda sonora O som ¢ 0 produto de uma seqiiéncia rapidissima (e geralmente imperceptivel) de impulsdes e repousos, de impulsos (que se represen- tam pela ascensio da onda) e de quedas cielicas desses impulsos, segui- das de sua reiteragio. A onda sonora, vista como um microcosma, con- tém sempre a partida e a contrapartida do movimento, num campo praticamente sincronico (ji que 0 ataque ¢ 0 refluxo sucessivos da on- da sio a prépria densificasio de um certo padrio do movimento, que se dé a ouvir através das camadas de ar). Nao é a matéria do ar que ca minha levando 0 som, mas sim um sinal de movimento que passa atra- 7 vés da matéria, modificando-a ¢ inscrevendo nela, de forma fugaz, 0 seu desenho. © som é, assim, 0 movimento em sua complementaridade, ins- rita na sua forma oscilatéria. Essa forma permite a muitas culturas pensi-lo como modelo de uma esséncia universal que seria regida pelo movimento permanente. O circulo do Tao, por exemplo, que contém (© impeto yange 0 repouso yin, & um recorte da mesma onda que costu- mamos tomar, analogicamente, como representagio do som Tio do som Em outros termos (agora mais digitais do que analégicos), pode- se dizer que a onda sonora é formada de um sinal que se apresenta ¢ de uma auséncia que pontua desde dentro, ou desde sempre, a apre- sentacio do sinal, (O timpano auditivo registra essa oscilagao como uma série de compresses e descompressdes.) Sem este lapso, 0 som nao pode durar, nem scquer comegar. Nao hd som sem pausa. O tim- pano auditivo entraria em espasmo. O som é presenga e auséncia, ¢ es td, por menos que isso apareca, permeado de siléncio. Hi tantos ou jos quantos sons no som, ¢ por isso se pode dizer, com John Cage, que nenhsm som teme a siléncio que 0 extingue:' Mas também, de maneira reversa, ha sempre som dentro do siléncio: mesmo quando Go ouvimos os barulhos do mundo, fechados numa cabine a prova de som, ouvimos o barulhismo do nosso proprio corpo produtor/recep- tor de ruidos (refiro-me a experiéncia de John Cage, que se tornou a 18 seu modo um marco na miisica contemporinea, ¢ que diz que, isolados experimentalmente de todo ruido externo, escutamos no minimo o som grave da nossa pulsagao sanguinea eo agudo do nosso sistema nervoso) O mundo se apresenca suficientemente espagado (quanto mais, nos aproximamos de suas texturas minimas) para estar sempre vazado de varios, e concreto de sobra para nunca deixar de provocar barulho. 2. PERIODICIDADE E PULSO A onda sonora é um sinal oscilante e recorrente, que retorna por periodos (repetindo certos padrdes no tempo). Isto quer dizer que, no caso do som, um sinal nunca esta s6: ele €a marca de uma propaga- Gio, irradiagao de freqiiéncia Para dizer isso, podemos usar uma metifora corporal: a onda so- nora obedece a um puso, ela segue o principio da pulsagio, Bem a pro- posito, é fundamental pensar aqui nessa espécie de correspondéncia entre as escalas sonoras ¢ as escalas corporais com as quais medimos 0 tempo. Porque o complexo corpo/mente é um medidor freqtiencial de freqiigncias. Toda a nossa relagio com os universos sonoros ¢ a mi passa por certos padrdes de pulsagio somaticos e psiquiicos, com os uais jogamos ao ler 0 tempo e 0 som. No nivel somtico, temos principalmente o pulso sanguineo e cer tas disposigdes musculares (que se relacionam sobretudo com o andar e suas velocidades), além da respiragio. A terminologia tradicional as- socia o ritmo 8 categoria do andamento, que tem sua medida média no andante, sua forma mais lenta no largo, e as indicagoes mais rapi- das associadas jé a corrida afetiva do allegeo e do vivace (os andamen. tos se incluem num gradiente de disposigdes fisicas e psicoldgicas). As sim, também, um tedrico do século xvit sugeria que a unidade priica do ritmo musical, o padrao regular de todos os andamencos, seria “o pulso de uma pessoa de bom humor, fogosa e leve, tarde” (). Os indianos usam 0 batimento do coragao ou o piscar do olho co: mo referéncia, esse tiltimo ja proximo de uma medida mais abstrata, como aquela que certos teéricos chamam “duragio de presenga” (a 19 maior unidade de tempo que conseguimos contar mentalmente sem subdividi-la). Essa seria uma unidade mental, relativamente vatiavel de pessoa p: sica in natura, é mais importante do que o tempo mecanizado do me trénomo ea cronometria do segundo. fundamento dessa unidade de presenga estaria possivelmente em certas freqiiéncias cerebrais ‘qual voltarei a falar, por causa de sua impor das sonoras), que alguns consideram como 0 ritmo (ou, mais exara ra pessoa € que, como embram bem os defensores da mi specialmente no ritmo alfa (sobre 0 cia para o caso das on mente, 0 puko) cerebral que serve de base & interpretacio dos demais ritmos (Os sons sio emissdes pulsantes, que sio por sua vez interpretadas segundo os pulsos corporais, somiaticos e psiquiicos. As muisicas se fa zem nesse ligamento em que diferentes freqiiencias se combinam e se interpretam porque se interpenetram. 3. DURAGOES E ALTURAS Mas ¢ preciso dizer como se apresenta 0 pulso na musica. Assim como 0 corpo admite ritmos somaticos (a exemplo do sanguineo) € Fitmos psiquicos (como as ondas cetebrais), que operam em diferentes, faixas de onda, as freqtiéncias sonoras se apresentam basicamente em duas grandes dimensdes: as duragdes*e as alruras* (duragbes vitmicas, alturas melédico-harménicas). © bater de um tambor ¢ antes de mais nada um pulso sitmico. Fle emite freqigncias que percebemos como recortes de tempo, onde insereve suas recorréncias € suas variagGes. Mas se as freq cas foram cocadas por um instrumento capaz de aceleré-las muito, a partir de cerca de dez ciclos por segundo, clas vao mudando de carter © passam a um estado de granulagio veloz, que salta de repente para um outro patamar, 0 da altura melédica. A partir de um certo limiar de freqiténcia (em torno de quinze ciclos por segundo, mas estabili- tando-se s6 em cem ¢ disparando em direcdo ao agudo até a faixa au- divel de cerca de 15 mil herr), 0 ritmo “vira” melodia’. 20 + tame A aceleragio rivmica progresina e sua conversao em altunas Se 0 nosso ouvido s6 percebe sinais discretos, separados e portan- to ritmicos, até o umbral aproximado de der hertz (ciclos por segun- do), entre dez ¢ cerca de quinze hertz o som entra numa fitixa difusa ¢ indefinida entte a duragio e a altura, que se define depois, nos regis- tos oscilatdrios mais ripidos, através da sensagao de permanéncia es- pacializada do som melédico (quando a periodicidade das vibracdes até entéo com que o escutemos com a identidade de um possivel d6, um mi, um Id, um si). A diferenga quantitativa produz, portanto, num certo ponto de inflexdo, um salto qualitativo: muda o parimetro da es- cura. Passamos a ouvir, entdo, toda a cambiante das distingoes que vao deslizando dos graves aos agudos, 0 campo movente de tessitura (co- mo é chamado 0 espectro das alturas) no qual as notas das melodias fardo a sua danga. Nesse campo, pelo mesmo enlace corporal que jé comentei a propésito do andamento ritmico, 0 som grave (como 0 préprio nome sugere) tende a ser associado ao peso da matéria, com 05 objetos mais presos a erra pela lei da gravidade, e que emitem vi- bragées mais lentas, em oposigao a ligeireza leve e lépida do agudo (0 ligeiro, como no francés léger, esté associado & leveza). A partir de certa altura, os sons agudos vao progressivamente sain- do da nossa faixa de percepgao: a sua afinacio soa distorcida, ¢ eles vio perdendo intensidade até desaparecer para nés, embora sejam escuti- veis (por um cio, por exemplo). No entanto, é preciso lembrar que, em miisica, ritmo e melodia, duragées e alturas se apresentam a0 mesmo tempo, um nivel depen- dendo necessariamente do outro, um funcionando como 0 portador do outro. E impossivel a um som se apresentar sem durar, minima- mente que seja, assim como é impossivel que uma duracio sonora se apresente concretamente sem se encontrar numa faixa qualquer de al- ‘ura, por mais indefinida e proxima do ruido que essa altura possa ser. Se pensamos as duragdes ¢ as alturas como variiveis de uma mesma 2 seqiiéncia de progressio vibratoria, em que o ritmo, a partir de certo limiar, se torna melodia-harmonia (e sendo a melodia-harmonia uma outta ordem de manifestacao de relagdes ritmicas, escutadas agora es pacialmente como alturas), poderemos perceber que essas duas dimen- sdes constitutivas da miisica dialogam muito mais do que se costuma imaginar. A pedagogia musical costuma dar atengio nenhuma a essa passagem, a essa correspondéncia entre as diferentes dimensdes vibra- {6rias, ¢ perde ai todo um horizonte de insights possiveis extremamen te estimulantes para fazer e pensar miisicas. © prego que se paga é a cristalizagao enrijecida da idéia de ritmo € melodia como coisas separa das, perdendo-se a dinémica temporal (¢ 0s fluxos) que fazem com que um no outro." ‘A tradutibilidade subjacente entre duragé por um outro dado extremamente intrigante que envolve a relagio en- tre as duas: aquele ponto de inflexio que as separa, entre dez.e quinze vibragdes por segundo, no limiar oscilante entre as figuras ritmicas ¢ a altura melédica, coincide muito aproximadamente com a faixa vibra- t6ria do chamado ritmo alfa. O ritmo alfa (situado entre oito ¢ reze hertz) & uma freqiiéncia cerebral que, ao que tudo indica, funciona pa- ra a nossa percepcio como uma onda portadora de ondas, uma espécie de fundo condutor (desaparece no sono profundo e é recoberto por outros ritmos quando a nossa atencao esté solicitada, mas é particular- mente marcado no eletroencefalograma — quando os olhos esto fe- chados mas em vigilia, ou quando olhamos sem fixar o olhar). Segundo Alain Daniélou, em sua Sémantique musicale, “o ritmo alfa parece ser de fato a base que determina o valor do tempo relativo € conseqiientemente todas as relacdes do ser vivo com o seu ambien- te". Segundo essa interpreragao, ele seria 0 fator constante e subjacen- te, padrao vibratério que “condiciona todas as percepsdes”, funcio- nando como um sinal de sincronizagdo que comandaria 0 andamento da nossa sensagdo do tempo, (Quando drvores em série na beira da es- trada, por exemplo, em sincronia com a velocidade do carro, entram nessa faixa de freqiiéncia, causam forte interferéncia sobre a atengio do motorista, podendo provocar acidente.) 'A miisica teria, no limiar decisivo entre duragéo ¢ altura, ali onde I se traduza (com todas as suas diferengas e correspondéncias) es ¢ alturas ¢ estimulada “a pulsagao deixa de ser percebida como um elemento ritmico para aparecet como cor sonora de uma escala melédica’, aquela freqiiéncia 2 vibratéria que é, digamos assim, a nossa medida no turbilhao das vi- bragées césmicas. O ritmo alfa, pulsagao situada no coragio da musica (como linha diviséria ¢ ponto de referencia implicito entre a ordem das duragdes ¢ a das alturas), seria 0 nosso diapasio temporal, o ponto de afinagao do ritmo humano frente a todas as escalas ritmicas do uni- verso, ¢ que determinaria em parte o alcance do que nos é perceptivel ¢ impercepttvel.* 4, COMPLEXIDADE DA ONDA SONORA Quando dizemos que o sinal sonoro corresponde uma onda que fazemos representar por uma sendide, estamos procedendo a uma re- dugao simplificadora, a uma abstragdo que se faz necessiria para a apre- sentagio mais elementar de um fundamento, Isso porque cada som concreto corresponde na realidade nao a uma onda pura, mas a.um feixe de ondas, uma superposicio intrincada de freqiiéncias de com primento desigual. Os sinais sonoros nao sto na verdade simples ¢ uni- dimensionais, mas complexos ¢ sobrepostos. “NI V\IS\SJI~ Onda sinusoidal Quase nunca (praticamente s6 em condigoes laboratoriais, a par- tir de sintetizadores eletrOnicos) nos deparamos com um som que seja efetivamente 0 produto de uma ondulagao pura e simples (ou, como se diz, uma onda sinusoidal). Um som angelical desse tipo s6 se pro- duz em sintetizador ¢ se aparenta com o registro mais agudo de uma flauta transversal. Se o mundo fosse sinusoidal, um grande conjunto de ondas pulsando na mesma freqiiéncia, nao haveria misica. Toda miisica “esta cheia de inferno ¢ céu’, pulsos estaveis e insté veis, ressonancias e defasagens, curvas e quinas. De modo geral, o som €.um feixe de ondas, um complexo de ondas, uma imbricacio de pulsos desiguais, em atrito relativo. ‘A onda sonora ¢ complexa, € se compoe de freqiténcias que se su. perpoem e se interferem. Essa complexidade é antes de mais nada a 3 do som concreto, o som real, que é sempre, em alguma medida, im- puro. Sio os feixes de onda mais densos ou mais esgarcados, mais con- centrados no grave ou no agudo, s4o em suma os componentes da sua complexidade (produzida pelo objeto que 0 gerou) que dio ao som aquela singularidade coloristica que chamamos simbre*. Uma mesma nota (ou seja, uma mesma altura) produzida por uma viola, um clari- nete ou um xilofone soa completamente diferente, gragas combina 40 de comprimentos de ondas que sio ressoadas pelo corpo de cada instrumenco. Essa ressoniincia est ligada a uma propriedade do som, que é de vibrar dentro de si, além da freqiiéncia fundamental que pet- cebemos como altura (a freqiiéncia mais lenta e grave), um feixe de freqiiéncias mais répidas e agudas, que nio ouvimos como altura iso- lada mas como um corpo timbristico, muitas vezes caracterizado co- mo a cordo som. Esse feixe freqiiencial embutido no som, esse espec- tro de ondas que 0 compée, pode ser, como através de um prisma, subdividido nos sons da chamada série harménica*. A série harmonica € ainica “escala” natural, inerente & propria ordem do fendmeno acis- tico, Todas as outras sio consteugées artificais das culruras, combina- goes fabricadas pelos homens, dialogando, de alguma forma, com a série harmdnica, que permanece como referéncia modelar subjacente, seu paradigma, (Mais adiante, mergulharemos no entendimento desse fendmeno, que é o prisma secreto do som, ¢ cujas refragdes do as suas cores harménicas.) Quanto ao timbre: ‘Das formas hipotéticas de timbre 24 a nota que escutamos como altura melédica cortesponde, em cada ca 80, 4 mesma velocidade vibraréria fundamental. Mas cada um des ins- trumentos vibra também em outras freqiiéncias mais ripidas (os cha- ‘mados sons harménicos), diferentes em cada um, freqiiéncias que ndo escuramos como altura, mas cujo produto reconhecemos como tim- bre. O préprio compo singular de cada som se far, portanto, de uma muldplicidade de periodos conjugados. Assim como 0 timbre colore os sons, existe ainda uma variével que contribui para matizé-los ¢ diferencié-los de outro modo: & a in- tensidade dada pela maior ou menor amplitude da onda sonora LN SNE SD A amplitude da onda: imtensidade ‘A segunda onda apresenta a mesma freqiiéncia (altura), mas uma amplitude maior (que resulta em intensidade: a primeira soa piano, a segunda forte ou fortissimo) A intensidade & uma informagao sobre um certo grau de energia da fonte sonora, Sua conotagao primeira, isto é,a sua semantica bisi- a, esti ligada justamente a estados de excitagio energética, sempre dentro da margem de ambivalencia (ou mukivaléneia) em que sein. creve todo e qualquer sentido em musica. O som que decresce em in- tensidade pode remeter tanto fraqueza e & debilitacao, que teria o si- encio como morte, ou A extrema sutileza do extremamente vivo (podendo sugerir justamente 0 ponto de colamento ¢ descolamento desses sentidos, o ponto diferencial entre a vida ¢ a morte, ai potencia- lizados). O crescendo € 0 fortissimo podem evocar, por stia vez, um jorro de explosio proteinica e vital emanando da fonte, ou a explosio mortifera do ruido como destruigao, como desmanche de informagdes vitais, Falta ou excesso de intensidade (embora a rigor s6 possam ser avaliados no contexto formal em que aparecem, denunciando a sua es- 25 tratégia especifica) sto indices diferenciais de forga (porenciometro das medidas humanas diante dos movimentos do mundo). As intensidades tecem todas as gradagoes dos crescendos e dimtinuindos (cambiantes apre- sentadas em progressio, que se somam is melodias) ou todo 0 quadro, importantissimo, das pontuagdes: destaques, fortes ou pianos sibitos, acentuagdes minimais que sio decisivas para o resultado das pulsagoes {as intensidades sao um elemento auxiliar das duragGes na configura- «G20 do suingue, do balango, da levada, da curvatura do fluxo, do con- tinuo no descontinuo, do descontinuo no continuo). ‘Através das alturas e duragées, timbres ¢ intensidades, repetidos e/ou variados, o som se diferencia ilimitadamente. Essas diferengas se dao na conjugagio dos parimetros € no interior de cada um (as diera- (ves produzem as figuras ritmicas; as alsuras, os movimentos melédico- harménicos: os timbres, a multiplicacao coloristica das vores: as inten- sidades, as quinas e curvas de forga na sua emissio), Os pulsos ritmicos sio complexos e se traduzem em tempos ¢ con- tratempos; os pulsos melédico-harménicos so complexos ¢ projetam cstabilidades ¢ instabilidades harménicas. Tempo € contratempo, con- sonancia e dissonincia so modos como interpretamos determinadas combinagées de certas propriedades bisicas do som, que procurarei explicar mais adiante. Os sons entram em didlogo ¢ “exprimem” seme- Ihancas ¢ diferengas na medida em que pGem em jogo a complexidade da onda sonora. E iisicas. As misicas s6 so possiveis por causa das correspondéncias ¢ desigualdades no interior dos pulsos. Todos os parimettos sio modos de uma mesma coisa: vibragées, séries intervaladas de atritos, rufdos respirantes que projetam ondas. didlogo dessas complexidades que engendra as 5, FASE E DEFASAGEM — SOM-RU[DO [A natureza oferece dois grandes modos de experiéncia da onda complexa que fav 0 som: freqiéncias regulares, constantes, estiveis, como aquelas que produzem 0 som afinado, com altura definida, ¢ fre- aiiéncias irregulares, inconstances, instveis, como aquelas que produ- zem barulhos, manchas, rabiscos sonoros, ruidos. Complexos ondula- trios cuja sobreposicio tende & estabilidade, porque dotados de uma periodicidade interna, ¢ complexos ondulatorios cuja sobreposigao ten- 26 de A inscabilidade, porque marcados por periodos irregulares, néo coin. cidentes, descontinuos, No nivel ritmico, a batida do coracao rende & constincia periddica, & continuidade do pulso: um espirro ou um tro- vio, a descontinuidade ruidosa Um som constante, com altura definida, se opde a toda sorte de barulhos percutidos provocados pelo choque dos objetos, Um som afi nado pulsa através de um periodo reconhecivel, uma constancia fre- qUencial. Um ruido & uma mancha em que nao distinguimos freqiién- cia constante, uma oscilacéo que nos soa desordenada. © som do mar: duragées oscilantes entre a pulsacio e a inconstin- cia, num movimento ilimitado; alturas em todas as freqiiéncias, das mais graves as mais agudas, formando o que se chama um ruido Branco. Ao fazer miisica, as culturas trabalhario nessa faixa em que som ¢ rufdo se opdem e se misturam. Descreve-se a miisica originariamente como a préptia extracao do som ordenado e periédico do meio turbu- lento dos ruidos. Cantar em conjunto, achar os intervalos musicais que falem como linguagem, afinar as vozes significa entrar em acordo profundo e nao visivel sobre a intimidade da matéria, produaindo ri- tualmente, contra todo 0 ruido do mundo, um som constante (um ‘i ico som musical afinado diminui o grau de incerteza no universo, porque insemina nele um principio de ordem).* Sem saber, as pessoas produzem uma constante invisivel ¢ numericamente tendente a0 exa~ to: um lé central se localiza em torno de 440 vibragdes por segundo. ‘As vores entram em unissono, pulsando o tom melédico, intensida- des, timbres, ressonancias harménicas. Essa afinacio do pulso ¢ da al- tura definida soa como metéfora subliminar do salto biolégico em que a vida sai do mar. (Um coro cantando uma tinica nota, contra o ruido branco das ondas, contém, digamos assim, uma espécie de redugio su- maria de todas as possibilidades da muisica, oscilando entre a organiza fo e a entropia, a ordem € 0 caos.) Nos ricuais que consticuem as praticas da miisica modal invoca-se © universo para que seja cosmos ¢ nao-caos. Mas, de todo modo, os sons afinados pela cultura, que fazem a miisica, estarao sempre dialo gando com o ruido, a instabilidade, a dissonancia. Aliés, uma das gra- as da miisica ¢ justamente essa: juntar, num tecido muito fino ¢ in- trincado, padroes de recorréncia e constancia com acidentes que os desequilibram e instabilizam, Sendo sucessiva ¢ simultanea (os sons acontecem um depois do outro, mas também juntos), a miisica é ca- paz de ritmar a repeticio ¢ a diferenga, mesmo e o diverso, 0 continuo € 0 descontinuo, Desiguais e pulsantes, os sons nos remetem no seu vai- vem ao tempo sucessivo e linear mas também a um outro tempo ati sente, virtual, espiral, circular ou informe, ¢ em todo caso nao cronols- gico, que sugere um contraponto entre o tempo da consciéncia eo nnao-tempo do inconsciente. Mexendo nessas dimensdes, a mtisica no refere nem nomeia coisas visiveis, como a linguagem verbal faz, mas aponta com uma forca toda sua para o nao-verbalizvel; atravessa cer~ tas redes defensivas que a consciéncia e a linguagem cristalizada opoem 4 sua ago e toca em pontos de ligacao efetivos do mental e do corpo- ral, do intelectual ¢ do afetivo, Por isso mesmo & capaz de provocar as mais apaixonadas adesdes € as mais violentas recusas. Ha mais essa peculiaridade que interessa ao encendimento dos sentidos culturais do som: ele & um objeto diferenciado entre os obje- tos conerctos que povoum 0 nosso imagindrio porque, por mais nitido ‘que possa ser, é invisivel e impalpavel. © senso comum identifica a materialidade dos corpos fisicos pela visio e pelo (ato, Estamos acostu- mados a basear a realidade nesses sentidos. A miisica, sendo uma or dem que se constrdi de sons, em perpéeua aparigao e desaparigio, es- ccapa & esfera tangfvel e se presta 4 identificagio com uma outra ordem, do real: isso faz com que se tenha atribuido a ela, nas mais diferentes culeuras, as prépri mediador, hermético: é 0 elo comunicante do mundo material com 0 mundo espiritual ¢ invisivel. O seu valor de uso magico reside exata- ‘mente nisto: os sons organizados nos informam sobre a estrutura ocul- ta da matéria no que ela tem de animado. (Nao hé como negar que ha nisso um modo de conhecimento e de sondagem de camadas sutis da realidade.) Assim, os instrumentos musicais sio vistos como objetos magicos, fetichizados, tratados como talismas, e a musica é cultivada propriedades do espirito. O som tem um poder com 0 maior cuidado (nao se pode tocar qualquer mtisica a qualquer hora ¢ de qualquer jeito). (Voltarei a falar longamente no cuidado ri- tual que cerca a pritica musical e em seu cariter sacrificial, a propésito do mundo modal.) © som ¢ um objero subjetivo, que esti dentro e fora, nao pode ser tocado diretamente, mas nos toca com uma enorme preciso.” As suas propricdades ditas dinamogenicas tornam-se, assim, demoniacas (0 seu poder, invasivo e as vezes incontrokivel, é envolvente, apaixo- ante e aterrorizante). Entre os objetos fisicos, o som € 0 que mais se 28 presta & ctiagdo de metafisicas. As mais diferentes concepgdes do mun- do, do cosmos, que pensam harmonia entre o visivel e o invisivel, en tte 0 que se apresenta e 0 que permanece oculto, se constituem ¢ se or: sganizam através da miisica Mas, se a miisica é um modelo sobre o qual se constituem metafi- sicas (¢, na tradigio ocidental, basta lembrar o carter profundamente musical da concepcio pitagérica ¢ platénica do cosmo), nao deixa de ser metifora e metonimia do mundo fisico, enquanto universo vibra- t6rio onde, a cada novo limiar, a energia se mostra de uma outra for ‘ma. Pode-se pensar na seqiiéncia de uma ritmica geral em que passa- mos nao s6 das duragdes 3s alturas, mas dai, em freqiiéncias cada vez mais ripidas entrando pelo campo eletromagnético, as ondas de ridio, de radar, 3s ondas luminosas visiveis ¢ invisiveis (do infravermelho ao espectto das cores, seguindo depois pelo ultravioleca, ¢ dai aos raios X, 408 raios gama, aos raios césmicos) Sio fendmenos de outra ordem, dos quais a musica se aproxima, 20 oferecer o modelo de um universo concebido como puta energia, cuja densidade é dada pela interpretagio do movimento. A estruura subatdmica da matéria também pode fazer com que esta seja concebi da como uma enorme e poderosa densificagio do movimento, A mii sica traduz para a nossa escala sensorial, através das vibragdes percepti- veis ¢ organizéveis das camadas de ar, ¢ contando com a ilusio do ‘ouvido, mensagens sutis sobre a intimidade animica da matétia. E di- zendo intimidade animica da matéria, dizemos também a espirituali- dade da matéria. A miisica encarna uma espécie de infra-estrucura rit- mica dos fendmenos (de toda ordem). O ritmo esti na base de todas as percepgdes, pontuadas sempre por um atague, um modo de entrada e saida, um fluxo de tensio/distensio, de carga e descarga. O feto cres- ce no titero a0 som do coraczo da mae, ¢ as sensacécs ritmicas de ten- sio € repouso, de contracao e distensto vém a ser, antes de qualquer objeto, 0 trago de inscrigao das percepgdes. (Por isso pode-se também dizer que a musica, linguagem nao referencial, que nio designa obje- tos, no tem a capacidade de provocar medo, mas sim a de provocar angtistia, ligada, segundo Freud, a um estado de expectagio indeter: minada, que se dé na auséncia do objeto.) A miisica é capar de distender e contrair, de expandir e suspen der, ¢ condensar e deslocar aqueles acentos que acompanham todas as percepgoes. Existe nela uma gesticulagio fantasmatica, que esti como que modelando objetos interiores. Isso dé a cla um grande poder de atuagao sobre o corpo €a men- te, sobre a consciéncia ¢ 0 inconsciente, numa espécie de eficicia sim- bélica.” Os hindus a véem (e 0 hindutsmo € talver a mais musical das religies) como algo da ordem da macerialidade sutil, quase titil, mo- delagem modeladora, coque em regides corporais e psiquicas, psicosso- miticas, O vazio e a plenitude, dos quais 0 som emerge € nos quais mergulha, sao 0 proprio duplo, o espelho, de uma ordem césmica re- gida pela danga da criagio ¢ da destruigdo.* Na miisica, como no sexo, a génese da vida e da morte deixa-se conhecer, por extrema magnani- midade dos deuses, como prazer. ‘Quando a crianga ainda nao aprendeu a falar, mas jd percebeu que a linguagem significa, a voz da mac, com suas melodias e seus toques, € pura muisica, ou aquilo que depois continuaremos para sempre a ouvir na miisica: uma linguagem em que se percebe o horizonte de um sentido que no entanto nio se discrimina em signos isolados, mas que 36 se intui como uma globalidade em perpétuo tecuo, nao verbal, in- traduzivel, mas, & sua maneira, transparente.!” ‘A miisica vivida enquanto habitat, tenda que queremos armar ou. redoma em que precisamos ficar, canta em surdina ou com estridéncia vor da mie, envelope sonoro que foi uma vez (por todas) imprescin- divel para a crianga que se constitui como algo para si, como self, 6. CODA ‘A miisica, em sua hist6ria, éuma longa conversa entre o som (enguan- to recorténcia periddica, produgio de constancia) e o ride (enquanto perturbacio relativa da estabilidade, superposigao de pulsos comple- x08, irracionais, defasados). Som e ruido nao se opéem absolutamente nna natureza: trata-se de um continuum, uma passagem gradativa que as culturas irdo administrar, definindo no interior de cada uma qual a margem de separacao entre as duas categorias (a muisica contempora- nea € talver aquela em que se tornou mais fragil ¢ indecidivel o limiar dessa distingéo). Enquanto experiéncia do mundo em seu cariter intrinsecamente ondulatério, o som projeta 0 limiar do sentido na medida da sua esta- 30 bilidade instabilidade relativas, Esse sentido é varado de historicidade — nao hé nenhuma medida absoluta para o grau de estabilidade e ins- tabilidade do som, que é sempre produgio ¢ interpretagio das culturas (uma permanente selegao dos materiais visando o estabelecimento de uma economia de som e ruido atravessa a histéria das miisicas: certos intervalos, certos ritmos, certos timbres adotados aqui podem ser re- cusados ali ou, proibidos antes, podem ser fundamentais depois). A instancia decisiva para essa codificagao sera a constituicéo de escalas musicais ou de sistemas escalares (assunto que comegard a ser tratado no segundo capitulo deste livro, “Modal”). O modo de conceber e pra- ticar as escalas musicais, nas mais diferentes culturas, é decisivo para a administragio da relagio entre som e ruido, e define o cariter mais es- tivel ou instivel dos materiais sonoros. O som se produz negando ter- minantemente certos ruidos ¢ adotando outros, para introduzir insta- bilidades relativas: tempos € contratempos, cOnicas e dominances, consonancias ¢ dissonancias, Vale adiantar, jé, que a misica contem poriinea é aquela que se defronta com a admissao de todos os mate- Fiais sonoros possiveis: som/ruido e silencio, pulso e nao-pulso (a ne- cessidade hist6rica dessa admissio generalizada inscreveu nela, como problema permanente ¢ assumido, um grau muito maior de improba- bilidade na medigao ou na configuracao do limiar diferencial entre a ordem ea nao-ordem). Ha no ar um suspense, apocaliptico, sobre essa dificuldade gene- ralizada para instaurar diferenciagao, sintoma de um processo de desa- gregagio geral do sentido, que alguns véem como estigio terminal da sociedade de massas. Tal situagao pode ser interpretada também como. episédio de um grande deslocamento de parimetros, que estaria se dando como processo de mutagio. Este livro pretende aprofundar 0 cexame dessa pergunta Vamos discutir essa historia através de um certo mapeamento his- t6rico-culeural, que passa pela mtisica modal, pela miisica tonal e pela musica pés-tonal (que tem no serialismo € no minimalismo os seus €a- sos-limites), sobre o fundo constante das musicas populares e das mii- sicas de massa 3r ANTROPOLOGIA DO RUIDO 1. SOM E SACRIFICIO © som periddico opée-se ao ruido, formado de feixes de defasa- gens “arritmicas” ¢ instaveis. Como jf se disse, no entanto, o grau de ruido que se ouve num som varia conforme o contexto. Um intervalo de terga maior (como 0 que hé entre as notas dé e mi) ¢ dissonance durante séculos, no contexto da primeira polifonia medieval, ¢ corna- se plena consonancia na miisica tonal. Um grito pode ser um som ha- bitual no patio de uma escola ¢ um escdndalo na sala de aula ou num ‘concerto de miisica clissica. Uma balada “brega” pode ser embaladora zum baile popular e chocante ou exdtica numa festa burguesa (onde pode se tornar frtson chique/brega). Tocar um piano desafinado pode ser uma experiencia interessante no caso de um ragtime e invidvel em se tratando de uma sonata de Mozart. Um cluster (acorde formado pe- Jo aglomerado de notas juntas, que um pianista produz batendo o pul- so, 1 mio ou todo o brago no teclado) pode causar espanto num reci- tal tradicional, sem deixar de ser tedioso e rotinizado num concerto de vanguarda académica, Um show de rock pode ser um pesadelo para os ouvidos do pai e da mie e, no entanto, funcionar para o filho como cangéo de ninar no mundo do ruido generalizado. Existe uma ecologia do som que remete a uma antropologia do ruido, ¢ que eu vou tentar percorrer falando dos mundos modal, tonal € pos-tonal. Para isso ¢ titi! combinar o conceito habitual de ruido sonore com © da teoria da informacio, derivado deste, que entende ruido como, interferéncia na comunicagao (ruido torna-se assim uma categoria mais 32 relacional que natural). © ruido é aquele som que desorganiza outro, sinal que bloqueia o canal, ou desmancha a mensagem, ou desloca 0 cédigo. A microfonia é ruido, nao s6 porque fere o ouvido, por ser um som penetrante, hiperagudo, agressivo ¢ “estourado” na intensidade, mas porque est interferindo no canal e bloqueando a mensagem. Essa definigao de ruido como desordenacao interférente ganha um carter mais complexo em se tratando de arte, em que se torna um elemento Virtualmence criativo, desorganizador de mensagens/cddigos cristaliza- dos ¢ provocador de novas linguagens. O radio é uma boa metéfora para que se entendam as relagdes en- tre som, ruido e siléncio, em seus muitos niveis de ocorréncia. Como no ridio, o silencio é um espagador que permite que um sinal entre no canal. O ruido ¢ uma interferéncia sobre esse sinal (¢ esse canal): mais de um sinal (ou mais de um pulso) atuam sobre a faixa, dispu- tando-a (0 ruido é a mistura de faixas ¢ de estagées). O som é um tra- 0 entre o siléncio e o ruido (nesse limiar acontecem as musicas), (Em. Radio music, Cage pos em cena essa relagio fazendo ouvir aleatoria- mente siléncios, estitica, miisicas falas misturadas.) © jogo entre som ¢ ruido constitui a mtisica. O som do mundo é ruido, 0 mundo se apresenta para nds a todo momento através de fre- qliencias irregulares ¢ cadticas com as quais a musica trabalha para ex- trair-lhes uma ordenagao (ordenagao que contém também margens de instabilidade, com certos padres sonoros interferindo sobre outros). Se vocé rem um barulho percutido qualquer e ele comega a se re petir ea mostrar uma certa periodicidade, abre-se um horizonte de ex- pectativa e a virtualidade de uma ordem subjacente ao pulso sonoro em suas regularidades ¢ irregularidades. Do mesmo modo, se vocé esta falando ¢ de repence produ e sustenta um som de altura definida, re- mete a fala para um outro lugar, o paradigma das alturas continuas, no codificado pela lingua, com toda a estranheza que isso implica (¢ pode-se saltar entao do patamar da fala para o do canto, ou habitar 0 espago intercalar entre ambos) Um tinico som afinado, cantado em unissono por um grupo hu- mano, tem 0 poder magico de evocar uma fundacao césmica: insemi- na-se coletivamente, no meio dos ruidos do mundo, um principio or- denador. Sobre uma freqiiéncia invisivel, trava-se um acordo, antes de qualquer acorde, que projeta nao s6 0 fundamento de um cosmos so- nnoro, mas também do universo social, As sociedades existem na medi- 33 da em que possam fazer miisica, ou scja, travar um acordo minimo so- bre a constituigio de uma ordem entre as violéncias que possam atin- gi-las do exterior e as violéncias que as dividem a partir do seu inte- riot. Assim, a miisica se oferece tradicionalmente como o mais intenso modelo wt6pico da sociedade harmonizada e/ou, 20 mesmo tempo, a imais bem acabada representagio ideolbgica (simulagio interessada) de que cla nio tem conffitos." Pois bem, no mundo modal, isto é, nas sociedades pré-capi tas, englobando todas as tradigdes orientais (chinesa, japonesa, india- na, drabe, balinesa ¢ tantas outras), ocidentais (a musica grega antiga, © canto gregoriano ¢ as miisicas dos povos da Europa), todos os povos selvagens da Africa, América e Oceania, a miisia fo experiéncia do sagrado, justamente porque nela se trava, a cada ver, a lura césmica ¢ cadtica entre o som eo ruido. Essa luta, que se torna também uma troca de dons ente a vida ea morte, os deuses € os ho- mens, é vivida como rito sacrificial. Assim como o sacrificio de uma vitima (0 bode expiat6rio, que os gregos chamavam pharmakés) quet ‘canalizar a violéncia destruidora, ritualizada, para sua superacao sim- bélica, o som é 0 bode expiatério que a miisica sacrifica, convertendo © ruido mortifero em pulso ordenado ¢ harménico. Assim como 0 ‘pharmakés (a vitima sacrificial) inka para os gregos 0 valor ambivalen- te do veneno e do remédio (a palavra é da mesma raiz de “farmécia’, firmaco, droga), 0 som rem a ambivaléncia de produzir ordem e de- sordem, vida e morte (0 ruido é destruidor, invasivo, terrivel, ameaga~ dor e dele se extraem harmonias balsimicas, exaltantes, extiticas). A musica primiiva trava antes de mais nada uma relaglo com 0 corpo indiviso da terra: seus fluxos germinais intensos sio inscritos ruidosa- mente, dolorosamente, no corpo dos homens e das mulheres, e dessa inscrigio se extrai o canto sonoro, 0 vapor barato da musica (ouga-se a fusio de profunda dor e alegria césmicas que ha nas maravilhosas tex- turas polifonicas da masica dos pigmeus do Gabio). Nas estruturas desporicas, onde 0 corpo da terra ¢ do som é apropriado pelo poder fda como uma mandante, o som passa a ser privilégio do centro despético, e as mar- gens e as contestagées tendem a se tomar ruidos, cacéfatos sociais se rem expurgados. A miisica comega a dar corpo sutil aos contlitos so- ciais, Vou voltar a esse ponto mais adiante. Por ora, assinalo que na insica modal esses conflitos sio marcados pelas intensidades da eco- 34 nomia sacrificial de base, onde o ruido esta sempre no limite de inva- dir o som." A misica modal’ é a ruidosa, brilhante e intensa ritualizacao da trama simbélica em que a miisica esté investida de um poder (migico, terapéutico ¢ destrutivo) que faz com que a sua pritica seja cercada de interdigdes e cuidados rituais. Os micos que falam da miisica estao cen- trados no simbolo sacrificial, assim como os instrumentos mais primi- tivos trazem a sua marca visivel: as flautas so feitas de ossos, as cordas de intestinos, tambores sao feitos de pele, as trompas e as cornetas de chiftes. Todos os instrumentos sio, na sua origem, restemunhos san- ‘grentos da vida ¢ da morte, O animal é sacrificado para que se produ- 720 instrumento, assim como 0 ruido ¢ sacrificado para que seja con- vertido em som, para que possa sobrevir o som (a violencia sacrificial € a violencia canalizada para a produgio de uma ordem simbélica que a sublima).. ‘Num sermao, Santo Agostinho compara Cristo a um tambor, pe- le esticada na cruz, corpo sacrificado como instrumento para que a iiisica (ou ruido) do mundo se torne a cantilena da Graga, holocaus- to necessirio para que soem as aleluias. Marius Schneider, que cita a comparagao de Santo Agostinho, diz também que a propria palavra “aleluia’, que vem de jubilare, estd associada na sua origem 3 imitagio conomatopaica do canto das aves de rapina."® Os anjos sio terviveis: nas suas vozes aleluidticas esplende necessariamente a historia da cruelda- de. (A forca da cancio Carcard, de Joao do Vale, esta ligada igualmen- te fusio de jibilo cruel que se encontra nessa aleluia nordestina.) (O mundo é barulho e é siléncio. A mtisica extrai som do ruido num sacrificio cruento, para poder articular o barulho ¢ o silencio do mundo. Pois articular significa também sacrificar, romper 0 continuum dda natureza, que € ao mesmo tempo siléncio ruidoso (como 0 mar, que nas suas ondulagdes e no seu rumor branco, freqiiéncia difusa de to- das as freqiiéncias). Fundar um sentido de ordenagao do som, produ- zir um contexto de pulsagdes articuladas, produzir a sociedade signifi- ca atentar contra o universo, recortar 0 que & uno, tornar discreto 0 que é continuo (ao mesmo tempo em que, nessa operagao, a miisica é 6 que melhor nos devolve, por via avessa, a experiéncia da concinuida- de ondulatéria e pulsante no descontinuo da cultura, estabelecendo 0 circuito sacrificial em que se trocam dons entre os homens e os deuses, 65 vivos € 0s mortos, o harmonioso e 0 informe). 35 Ha um mito arecund (tribo do norte do Brasil ¢ da Guiana, co- Ihido por Koch-Grunherg ¢ analisado por Lévi-Strauss em O crue 0 cozido) que formula essa questio com a maior beleza possivel. Trata-se do mito da “origem do veneno de pesca” (0 timbé, uma raiz que tem © poder de narcotizar os peixes, e que tematiza ali as imbricagoes poli- valentes da passagem da natureza & cultura)."” Num certo ponto desse mito, 0 arco-iris € uma serpente d’égua que é morta pelos passaros, cortada em pedacos e a sua pele multicolorida repartida enere os ani- mais. Conforme a coloragio do fragmento tecebido por cada um dos bichos, ele ganha o som de seu grito particular e a corde seu pélo ou da sua plumage O niicleo desse episédio ¢ 0 sacrificio como origem do som e da cor na escala zool6gica (0 som ¢ a cor percebidos nitidamente pelo pensamento selvagem como gradagdes cromaticas de um mesmo prin- cipio). A serpente arco-fris € 0 continuum dos matizes, a escala os in- tervalos minimos e indiscerniveis, como € a ordem das alturas em mii- sica, antes de set recortada pelas escalas produridas pelas culturas, € como é 0 proprio arco-iris, do qual s6 uma convicgao muito etnocén- trica pode afirmar que tem sete cores (a leitura das cores do arco-iris varia enormemente entre as culeuras, assim como as escalas musicais) O sacrificio da serpente (que era um deslizar cromatico de nuances sem divisio) ¢ o seu espedagamento em porgdes discretas provocari ¢ produziré a ordem coloristica e sonora que particulariza as espécies vi- vas (cuja profusa organizagio, ricamente anotada pelo miro com gran- de acuidade etnozoolégica, jé € obra da cultura). ‘A garga branca pegou seu pedago e cantou “4 co que € seu ain- dia hoje. O maguari (Ciconia maguari) fer © mesmo e langou 0 seu grito fio: “alo) ~ (0)". O socd (Ardea brasliensi colocou seu pedago sobre a cabega e sobre as asas (onde se encontram as plumas coloridas) can- tout: “kor ~ koré ~ kor6". O martim-pescador (Alcedo sp.) pos eu pe- ddago sobte a cabega ¢ sobre o peito onde as plumas se tornaram verme- Ihas. € canto: “sé — x8 = 0x xé— tx", Depois foi a ver do tucano ‘que cobriu seu peito e sua bartiga (onde as penas sao brancas ¢ verme Ihas). Fle disse: “kidn ~ he, kién ~ hé — he”. Um pedago de pele ficou preso no seu bieo, que se tornou amarelo, Entio veio o mutum (Chex sp.)s ele ps seu pedaco sobre a garganta e cantou: “hm hm — hm thm", ¢ um retalho de pele que ficou fez 0 seu nari2 amarelo. Em segui- dda veio o cujubim (Penelope sp.) eujo pedago fer brancas a caeya, 0 pei- 36 to eas asas, € que cantou: “kerr”, como, a partir dat toda manha, Cada passaro “acha sua flauta bonita e a guarda".* E assim segue a narrativa mitica, fazendo cada animal (a arara, 0 papagaio, o jacu, 0 rouxinol, 0 tapir, a capivara, 0 veado, a cutia, 0 cai- titu, 0 macaco), numa longa série, encontrar as suas cores ¢ a sua “flau- ta’. O nascimento da miisica, na tragédia sacrificial, é brilho e beleza se erguendo sobre o siléncio e a dor. Com a decomposigio do espectro das possibilidades sonoras ¢ cromiticas ¢ sua refracao sobre 0 mundo animal surgem as unidades distintivas de cada som, portanco o subdi- Vidido espectro de suas significagoes plumarias. ‘Marius Schneider (o estudioso mais informado sobre o lastro mi tico do mundo modal, que ele estudou nas mais diferentes tradigées), afirma que todas as cosmogonias tém um fundamento musical. “Toda vez que a génese do mundo € descrita com a precisio desejada, um ele- mento aciistico intervém no momento decisivo da agio.”" Em outros tetmos, sempre que a histéria do mundo fosse bem contada, ela reve- laria a natureza essencialmente musical deste. A misica aparece ai co- mo 0 modo da presenga do ser, que tem sua sede privilegiada na voz, getadora, no limite, de uma proferigéo analégica do simbolo, ligada 420 centro, a0 circulo, ao mito/rito e & encantagio como modo de arci- ‘culagio entre a palavra e a musica, (E contra essa “metafisica da pre- senga’, imposta pelo primado da vor e pela precedéncia do som sobre a letra, mais a concepgao de sujcito uno que a acompanha, que Der da opde um discurso desconstrutor calcado no primado do trago dife- rencial e da escritura; segundo ele a merafisica advém de um mal-enten- dido logofonocénttico, como aquele que estaria na base do platonismo. Contta Derrida, Daniel Charles afirma que, se bem entendida, a voz, a0 contririo de uma presenga a si do fonocentrismo, faz ressoar 0 pas- sado do ser — sua desaparigio — ¢ seu devir incessante e sempre pro- blemitico: “a vor veicula a ‘quarta dimensio do tempo’, aquela que ngloba e rege as tés outras; ela ndo deixa o tempo ressoar sendo por intermiténcias”, Essa seria uma longa discussio, que ndo remos como fazer aq) Vamos acompanhar 0 percurso de Schneider pelas mais diversas itologias (indianas, arabes, chinesas, africanas, esquimés) e ver até aonde nos leva uma concepgao do mundo como investidura sacrificial do som. Na origem do universo, o deus se apresenta, se ctia ou cria ou- tro deus ou cria o mundo, a partir do som. Um jacaré batendo na bar- 37 riga com a prépria cauda, como num tambor, num mito egipcio. O deus profere 0 mundo através do sopro ou do trovao, da chuva ou do vento, do sino ou da flauta, ou da oralidade em todas as suas possibili- dades (sussurro, balbucio, espirto, grito, gemido, solugo, vomito). “A fonte de onde emana o mundo ¢ sempre uma fonte actistica.” A vor, criadora surge como um som que vem do nada, que aflora do vazio: “O abismo primordial, a garganta aberta, a caverna cantante [.. a fen- da na rocha dos Upanichades ou 0 Tao dos antigos chineses, de onde 0 mundo emana ‘como uma drvore’, sao as imagens do espago vazio ou do nio-ser, donde se eleva 0 sopro apenas perceptivel do criador. Esse som saido do Vazio € 0 produto de um pensamento que far vibrar 0 Nada e, a0 se propagar, cria o espaco. E um monélogo em que 0 corpo sonoro constitui a primeira manifestagio perceptivel do Invisivel”. O. abismo primordial é pois “um fundo de ressonancia e 0 som que dele emana deve ser considerado como a primeira forga criadora, personifi- cada na maior parte das mitologias por deuses-cantores”." No hinduismo, que é, como ja disse, uma religiso intrinsecamen- te musical, toda constituida em torno do poder da voz e da relevincia da respiragio (onde o proprio nome do deus, Brama, significa origina- riamente forca magica, palavra sagrada, hino, ¢ onde todas as ocorrén- cias miticas e eventos divinos sio declaradamente recitagées cantadas com cariter sacrificial, mantra), atribui-se & proferigao da sflaba sagra- da OUM (ou AUM), 0 poder de ressoar a génese do mundo. © sopro sagrado de Atman (que consiste no proprio deus) “€ simbolizado por tum paissaro cuja cauda corresponde ao som da consoante m, enquanto a vogal a constitui a asa dircita ¢ 0 wa asa esquerda”. A miisica ocupa um lugar entre as trevas e a luminosidade da aurora, entre o siléncio € a fala, o lugar do sonho, “entre a obscuridade da vida inconsciente e a clareza das represencagoes intelectuais” Freqiientemente o deus que profere o mundo através do som & tum deus hermafrodita, que contém em si o principio ativo ¢ 0 passi- vo, o solar €o lunar, a impulsio instantinea e 0 repouso. O perfil on- dularério do som ¢ crigido ou reconhecido como proprio “prins concertante das forgas da natureza’ Num contexto ritual ¢ mitico como este, a miisica € um espelho. de ressonancia césmica, que compreende todo o universo sob a dimen- sd0 — demasiado humana — da vor. O canto nutre os deuses que can- am € que dio vida 20 mundo (os deuses, por sua ver, s¥0 seres mortos io 38 que vivem da proferigio do canto dos homens). Mas 0 homem que canta profundamente, e realiza interiormente o sacrificio, acede 20 mundo divino na medida em que se investe da energia plena do ser, ganhando como homem-cantor a imortalidade dos deuses-cantores. Esta passagem ¢ impressionante: Entao ele semte sua forga se elevar ao longo da coluna vertebral, Seu so- 1pto sonoro sobe por seus canais interiores, dilata seus pulmoes e faz vi- brar seus ossos. Assim transformado em ressoador eésmico, 0 homem se (in}veste como drvore que fala. Essa forga sonora tomard assento na sua pele ou no seu esqueleto, se 0 sacificio tiver sido total. Entao ele no sera mais que um instrumento entre as maos de um deus, € seus 0580s, ainda impregnados de sua forga sonora materilizada, consticuirio amu- letos preciosos entre as mios de seus filhos. Sua parte imortal (0 som Fundamental de sua alma) se encaminhara para a Vi que ela tenha conseguido passar 0 ponto perigoso tre Orion, ia-Léctea. Mas logo tuado a oriente, en= 108 € Touro, onde os astrdlogos situam a laringe do mun- do, ela se incorporari ao coracio dos mortos ¢ participard de seu canto nna caverna de luz que langa 0 ovo solar eo fixa sobre o chifre do touro primaveril. A laringe do mundo é a caverna de luz. garganta aberta dos deuses que, a cada primavera, renova a aio do abismo primordial abrindo suas portas ao sol que sobe como uma érvore, um ovo resplan- decente ou um cranio cantante. E é esse crinio que enuncia novamente 16 mundo através de uma mtisica, cujos raios ressoam primeiro como a sflaba OM |] Ora, para emitir esse sombrio canto dos comegos,desti- nado a se clarear cada ver mais, foi preciso que os labios do cadaver vivo se arredondassem para formar 0 cireulo O, simbolo da sida da caverna de ressonancia de onde sai o sola cada primavera para renovar a subs- tincia sonora de tudo 0 que existe” No ritual sacrificial, o corpo & um aparelho de som poderosissimo (pen- se-se num lama tibetano cantando ao mesmo tempo a nota fundamen- tal e seus harménicos: uma vou que profere acordes explicitos, harmo- nias, uma voz que penetra na dimensio subjacemte da ressonancia). A forca da proferigio do verbo musical, no contexto iniciitico, €imor- tal, irredutivel, som que impregna a pedra e que se impregna de sua solider Escd indicado af, nesse quadro mitico, que as misicas modais si0 mnsicas que procuram o som puro sabendo que ele esta sempre viva- mente permeado de ruido. Os deuses s20 ruidosos. A natureza sonora 39 do mundo, que nao perde nunca © pé do pulso, se faz dessa mescla em que mora 0 nticleo do sactificio, isto & da ritualidade do som. ‘Como se veri no capitulo dedicado a0 modal, essa musica & vol- tada para a pulsagio ritmica; nela, as alturas melédicas esto quase sempre a serviga do ritmo, criando pulsagbes complexas e uma expe- rigncia do tempo vivido como descontinuidade continua, como repe- tigio permanente do diferente. (Por isso mesmo clas apresentam esse cardter recorrente, que nos parece estitico, mas é bem mais extatico, hipnético, experigncia de um tempo circular do qual ¢ dificil sair, de- pois que se entra nele, porque é sem fim.) A mtisica modal participa de uma espécie de respiragio do universo, ou entao da produgio de um tempo coletivo, social, que € um tempo virtual, uma espécie de suspensio do tempo, retornando sobre si mesmo. Sao basicamente mii sicas do pulso, do ritmo, da produgio de uma outra ordem de dura- ‘20, subordinada a prioridades rituais. Pois bem: essas miisicas no po- deriam deixar de ter a presenga muito forte das percussdes (tambores, guizos, gongos, pandeiros), que sio os testemunhos mais préximos, entte rodas as familias de instrumentos, do mundo do ruido. E é tam- bém um mundo de timbres: instrumentos que so vozes e vores que sdo instrumentos (vozes-tambores, vozes-citaras, vozes-flautas, vozes- guizos, vozes-goz0). Falseres, jodls (aquele ataque de garganra que ca racteriza 0 canto tirolés ¢ que esté em certas muisicas africanas), vozeios, vocalises, sussurtos, sotaques, timbres.” Em muitas tradigées, especialmente entre arabes ¢ indianos, os sons sio cantados como noras (que se localiza num ponto preciso da altura melddica), mas também “glissados”, deslizados em torno dessas referéncias “fixas” através de nuances melismsticas", quartos de tom ‘ou menos, variages minimais de altura e timbre que criam, em rorno de cada som discreto e articulado, uma espécie de danga irreverente que reverencia 0 continuo ruidoso. O canto obedece as medidas € as distingoes escalares, aos intervalos regulates ¢ descontinuos, mas tece em cada ponto uma espécie de rumoroso comentario sobre o continuo fem que se inscreve cada som (em torno de cada som gravita um cam- po de forga que, além de direramente ritmico — o que a miisica de- senvolve fartamente —, é timbristico ¢ micromelédico). © ruido cerca o som como uma aura, O som desponta alegre € dolorosamente em meio ao ruido. O social se inscreve sacrificialmente (como uma tatuagem sonora) no corpo, € essa inscrigao ruidosa, que 40 nega o ruido, funda e mantém o som. Som e ruic :ntisica modal em ziguezague.” Presentes na 2. RECALQUE E RETORNO DO RUIDO. As histérias da miisica ocidental e moderna costumam tomar co- imo sua referéncia primeira, seu ponto de partida reconhecivel, o canto gfegoriano (ji que nao se tem senio sinais indiretos da miisica cultiva- da na Grécia, ja que as proprias origens do cantochao sie mal conhe- cidas ¢ que as outtas culruras permanecem como referencias exédticas) © canto gregoriano, que inaugura uma tradigao que conhecemos bem, aquela que vai dar na mtisica barroca ¢ clissico-romintica dos séculos XVII, XVIII € XIX, € uma miisica que primou por evitar sistematicamen- te 05 instrumentos acompanhantes, nao s6 0s percussivos, como tam- bém o colorido vocal dos multiplos timbres. E uma musica para ser cantada, em prinefpio, por vozes masculinas em unissono, & capela, na caixa de ressonancia da igreja, sem acompanhamento instrumental. A histéria da adogao ¢ da tejeigdo da miisica pela Igreja, durante toda a Idade Média, é cheia de idas e voltas. Por um lado, hi momentos de rigorismo em que a propria miisica é concebida, roda, como ruido dia- bilico a ser evitado (quando se percebe, até com razi0, que ¢ impos vel purgé-la de componentes ruidosos: a miisica abre sempre o flanco da falha, da assimetria, do excesso, da incompletude ¢ do desejo). Em outros momentos si0 os barulhos animados das miisicas populares, suas percussoes, cantos ¢ dangas, que nunca se calaram na historia hu- ‘mana, que entram em alguma medida nas igrejas e chegam a se mistu- rar com 0s cantos litirgicos em sugestivas polifonias (veja-se por exem- plo o caso dos motejos, cantos a virias vozes misturando elementos sacros ¢ profanos). Essa histéria participa da luta entre o carnaval (que ‘entroniza no calendirio cristao aqueles ritos pagios que liberam 0 rai do ©. corporalidade) e a quaresma (com seu som silencioso e ascético). Em todo caso, e apesar da complexidade da historia concreta, a nossa tradiggo musical tem seu marco inicial, sintomaticamente, na- quela “zerada” pelo canto linirgico catdlico, no plano das manifesta- es ritmicas pulsantes e das diferenciagSes timbristicas. Teremos oca- sido de ensaiar interpretagies sobre esse fato hist6rico, que teré relagbes 41 possiveis, além do anti-sensualismo clerical, com uma decorréncia da miisica das esferas pitagsrico-platénica. Interessa assinalar duas coisas. Primeiro que, ao abolir instrumen- tos ritmico-percussivos, pondo toda a sua ritmica puramente frisica a servigo da pronunciagao melodizada do texto litiirgico, o canto grego- riano acaba por desviar a mtisica modal do dominio do pulso para o predominio das alturas (0 cantochao consiste num circunstanciado, passeio pelas escalas melddicas, percorridas em seus degraus). Com is- 80, inaugurou de certo modo 0 ciclo da mtisica ocidental moderna, preparando 0 campo da miisica tonal, que ird explorar amplamente, jé com envergadura instrumental ¢ com outras complexidades discursi- vas, as possibilidades de desenvolvimento de uma organizacao do cam- po das alturas em que a melodia vem para o primeiro plano (e onde a instancia ritmica nao tera mais a autonomia e a centralidade que tinha antes, servindo agora de suporte para as melodias harmonizadas). Em segundo lugar, a mtisica que evita o pulso ¢ o colorido dos timbres é uma miisica que evita 0 ruido, que quer filtrar todo o rufdo, como se Fosse possivel projetar uma ordem sonora completamente li- vre da ameaca da violéncia mortifera que esti na origem do som (j4 ssemos que hi, em Santo Agostinho, a consciéncia do carter pro- blematico desse designio). A liturgia medieval se esforga por recalear 0s deménios da miisica que moram, antes de mais nada, nos ritmos, dangantes nos timbres miiltiplos, concebidos aqui como ruido, além daqule intervalot melédico-harménico evitado a todo custo, e sobre ‘© qual falaremos mais adiante: o fritono*. Recalcar os deménios da mui- sica equivale de certa forma, no plano sonoro, a cobrir (ou rasurar) 0 sexo das estatuas. A musica tonal” moderna, especialmente a miisica consagrada co- mo “classica”, é uma mtisica que evita também o ruido, que est nela recalcads. ou sublimado. A miisica sinfonica ou cameristica evita a per- cussio (limitando-a & pontuagao localizada de pratos ou timpanos, que io, por sinal, esses tiltimos, percussio afinada, ruido tendendo & aleu- ra definida A inviolabilidade da parcicura escrita, 0 horror ao erro, 0 uso ex- clusivo de instrumentos melédicos afinados, o silencio exigido 3 pla- téia, tudo faz ouvir a miisica crudita tradicional como representagao do drama sonoro das alturas melédico-harménicas no interior de uma mara de silencio de onde 0 ruido estaria idealmente excluido (0 tea- 42 tro de concerto burgués veio a ser essa camara de representagio). A re- presentagao depende da possibilidade de encenar um universo de sen- tido dentro de uma moldura visivel, uma caixa de verossimilhanga que em que ser, no caso da misica, separada da platéia pagante e margea- da de silencio. A entrada (franca) do ruido nesse concerto criaria um continuo entre a cena sonora ¢ 0 mundo externo, que ameagaria a re- presentagao ¢ faria periclitar 0 cosmo socialmente localizado cm que ela se pratica (0 mundo burgués), onde se encena, através do movi- mento recorrente de tensio e repouso, articulado pelas eadéncias ton: a.admisio de conflto com a condigao de ser harmonicamente resolvido.” (O percurso que estou fazendo aponta, evidentemente, para um lugar previsivel: 2 volta em massa do ruido na miisica do século Xx. Como pensé-la, ¢ como pensar os impasses que se apresentaram & mu- sica contemporanea no quadro dessa hist6ria mais ampla? Parece-me que s6 € possivel resgatar a idéia de um sentido (enquanto orientagio) desse processo se pensarmos em ciclos (de rempo, de culturas, de pari metros estruturais) maiores do que aqueles que nos tém sido ofereci- dos pela histdria da miisica (que geralmente pega 0 bonde andando a certa altura da misica medieval européia, ¢ nao questiona os fund: mentos desse corte, que é segregativo e tende cada vex mais rapida- mente a ser ultrapassado pelos acontecimentos simultineos das musi cas contemporineas). Os tiltimos desdobramentos da miisica pedem que as miisicas modais voltem a ser pensadas no quadro do contempo- ica poder facili- tar uma visio sociolégica mais adequada da situagdo da musica indus- trializada, neo. Acho também que essa perspectiva antropol A partir do inicio do século Xx opera-se uma grande reviravolta nesse campo sonoro filtrado de ruidos, porque barulhos de todo tipo passam a ser concebidos como integrantes efetivos da linguagem mu- sical. A primeira coisa a dizer sobre isso € que os ruidos detonam uma liberagao generalizada de materiais sonoros. Dé-se uma explosao de ruidos na rmisica de Stravinski, Schoenberg, Satie, Varése (para citar alguns nomes decisivos). F de se pensar na relagao entte o desencadea- mento desses eventos na miisica ¢ 0 contexto da Primeira Guerra Mun- dial (da qual, diz. Walter Benjamin, os soldados voltaram pela primeira vez, para perplexidade das familias, mudos, sem histérias para contar: © potencial acumulado das armas de guerra, sua capacidade mortifera € ruidosa, muito amplificada, estoura a dimensio individual do espago 4B imaginatio, ¢ o silencia) ra alterada, ¢ ruédo e siléncio entrario com inevitivel violéncia no tem- plo leigo do som, a redoma da representagao tonal em que se const tuia 0 concerto. (O fim da Segunda Guerra Mundial aprofundara esse quadro: a bomba atémica anuncia uma forma definitiva de maximali- zagio do ruido e do silencio — depois dela a histéria humana ganha um cardter péstero, ou, se quisermos, pés-moderno.) Mas, voltando ao contexto moderno, a invasio do ruido tem dois niveis diferenciados de manifestacao: a prépria textura interna & lin- guagem musical, ¢ a eclosao espetacular de ruidismos externos, como indices do habitat urbano-industrial, a metrépole chocante, No primeiro caso, o ruido atua exatamente como interferéncia sobre 0 cédigo ¢ as mensagens tonais (que vinham se tensionando na segunda metade do século XIX, mas que decolam agora para um efeico cascata de alteragaes harménicas, com “dissoniincia” generalizada, alte~ ragbes riemicas, desmanselamento da métrica do compasso, alteragdes timbristicas ¢ de texturas, uso de agregagdes de ruidos, barulhos con- cretos € conseqiiente esgargamento, rarefagao e disperséo das linhas melédicas). Stravinski, na Sagragdo da primavera (1913), introduziu agrega- dos de acordes, quase-clusters que funcionam como rufdo, impulses ruidosas, percussio operando numa métrica irregular que volta a ques- tionar a linha perdida na tradigio do Ocidente: a base produtiva do pulso. (A matéria sonora liberada por Stravinski pode ser pensada hoje como processo primario daquilo que se tornara depois a base do rock, dda qual ele faz. uma espécie de prefiguragao descontinua ¢ assimeécrica.) A Sagracao & heavy-metal de luxo, e vem a ser 0 primeiro episédio exemplar de que ruido detona ruido (ompendo a margem de silénci que separa, no concerto, o som afinado, e harmonicamente resolvido, dos ruidos crescentes do mundo). A Sagrapao, estrutura sonora provo- cando polémica e pancadaria na platéia, ruido gerando ruido, desloca 6 lugar do siléncia, que sai da moldura ¢ vai para o fundo, onde se re- cusa a responder i pergunta sobre a natureza do cédigo musical (de- pois da dispersio do cédigo tonal). A introducao do ruido atua ambi- valentemente como acréscimo de carga informariva das mensagens € acelerador entrépico dos cédigos (0 que realimenta entropicamence as mensagens). Esta inaugurado 0 mundo moderno, com tudo aquilo que ele a contém de crise de proliferacio pés-moderna.” ‘A ecologia sonora do mundo moderno esta- 44 Schoenberg, por sua vez, no Pierrot lunaire (1912), usa o canto no limite da fala, como Sprechgesang, “cantofalado", 0 que significa trazer para o dominio melédico toda a gama de ruidismos dos timbres, da voz ¢ das entoagoes.”” Mario de Andrade, num manuscrito da déca- da de 20, nunca publicado por ele, percebeu com enorme acuidade 0 espantoso deslocamento do campo de produgio da miisica que estava embutido nessa nova interferéncia do ruido, via timbres, sobre a eco- nomia do som. “Si na verdade a miisica nunca foi to musical como, agora, depois que abandonou a vacuidade comoda do som abstrato € impos como elemento primario de sua manifestagao 0 timbre, é in- contestivel também que certas combinagées de harmonias, certas cor ccepgies de escalas melédicas, a participagao freqiiente do rutdo isola- do ou em combinacio com os timbres sonoros, faz com que, a0 lado da maisica de agora, aparegam freqiientissimamente manifestagdes que rompem todas as experiencias, evolucio € conceito estético que vieram se desenvolvendo e apurando por vinte e cinco séculos musicai Essa verdadeira mutacio captada por Mario (embora nao forme ‘campo em que se desenvolveu seu pensamento) langaria, segundo ele mesmo, a musica para um novo limiar de cruzamento contraditério entre © mais moderno eo mais primitivo: “Com efeito na admirivel criagio de Schoenberg a voz nao é nem fala nem canto é... 6a “sprech- gesang’. Dessa experiéncia resultou [...] num poder de experincias de todo género, vocais, instrumentais, harmonicas, ritmicas, sinfonicas, conjugagao de sons e de ruidos, etc. etc. de que resultou a criagdo duma por assim dizer nova arte a que, por falta de outro termo, chamei de quase-mtisica, Arte esta que pela sua primitividade ainda nao é misica exatamente como certas manifestagoes de clas africanas, amerindios, (sic) ¢ da Oceania. E arte ao mesmo tempo que pelo seu refinamento, sendo uma derivagio e altima conseqiéncia das experiéncias ¢ evolu- ‘20 progressiva musical de pelo menos vinte e cinco séculos, desde a Grécia até Debussy, j4 nao é mais intrinsecamente miisica, Resumin- do: essa arte nova, essa quasi-miisica do presente, si pelo seu primiti- vismo inda nao € misica, pelo seu refinamencto ja ndo & mtisica mais" Esse texto € daqueles que hoje fazem ainda mais sentido do que quando foram escritos: o encurvamento do caminho da miisica tonal que se ultrapassa em direcdo a uma miisica pés-tonal e antitonal (co- mo sera o dodecafonismo € 0 serialismo), a0 mesmo tempo em que evoca de maneira diferida as miisicas modais primitivas € 0 préprio né 45 € 0 nticleo das simultaneidades contemporineas. A quase-misica € essa direa limiar que esté aquém e além da miisica (tonal) e que oscila entre ‘modos opostos de se organizar, entre 0 discurso do tipo progressive e ‘© puro ritornello, uma miisica que nao se decide ainda entre 0 pés-to- nal (de uma linguagem feita de polifonias descontinuas de ruidos sem retorno) ¢ 0 eterno retorno modal (que também nos parece inacessi- vel). Essa dicotomia seri encenada ao longo do século pela contraposi <0 entre o serialismo* (que dominou de certo modo a cena da primei- ra metade) ¢ 0 minimalismo” (que marca a segunda, voltando a focalizar a questio da miisica, com certo apoio nas muisicas modais, mais na pulsagao do que na organizagao das alturas). A coluna ausente que su- porta esses dois processos opostos ¢ John Cage. Retomando, pode-se dizer que a miisica dodecafonica e serial, que se dirige para uma organizagio pés-tonal antitonal dos sons e que € um desdobramento localizado do cantofalado expressionista ¢ atonal do Pierrot lunaire, faz parte também, por menos que possa parecer, dessa reversio geral que abate a miisica das alturas (a miisica concen- rada na organizacio de melodias e harmonias), devolvendo-a a uma musica dos timbres e dos ruidos (dentro da qual o minimalismo des- pontaré depois propondo uma miisica que se organiza em torno de pulsos, de repetigdes alteradas por ciclos de fases ¢ defasagens). Nessa passagem ou nessa inflexdo paradoxal, em que uma miisica contra to da forma de repeticio “desemboca” numa miisica repetitiva, temos 0 triangulo das Bermudas da mtisica contemporanea, 0 lugar onde se perde o fio de muitas meadas e onde muitos projetos de inspiragio vanguardista acalentados na primeira metade do século saltam dos tr Ihos ou descarrilam diretamente. (Muitos compositores ¢ tedricos sen- tem aio fim da miisica, da cultura, da sociedade capitalista, da vida sobre o planeta, ou, em uma palavra, 0 fim do mundo em gradagoes apocalipticas diversas.) E, de fato, parece acabar um mundo: 0 longo ciclo ocidental em que se percorreu toda a escala harménica perseguin- do as virias versbes da musica das esferas. Resta ainda saber quais so as implicagoes proféticas desse fato. O sistema dodecafénico de Schoenberg, como proposta de organi- zagi0 melédico-harménica de uma maisica pés-tonal, sem centro, sem © mecanismo de tensio-e-repouso que marca o tonalism e que foge a toda polarizagio, radicalizada depois no serialismo, é nao s6 a misica do ndo-pulso como também o limiar da nao-altura. Bla jé & mésica do 46 ruido ¢ do silencio (duas categorias que, como estou tentando mostrar vio ganhando cada vex maior relevancia te6rica e pritica). O seu desti- no hist6rico (ao contririo do que supunha: criar diretamente © novo idioma musical contemporiineo) é talvez brilhar intensamence nas for mas hiperconcentradas ¢ fugazes da miisica de Webern, ¢ dissipar-se no turbilhao galictico-eletrénico das misicas sintetizadas que cle prenun- cia, junto com as ionizagées timbristicas ¢ ruidisticas de Varése Além de ser o elemento que renova a linguagem musical (e a poe em xeque), 0 ruido torna-se um indice do habitat moderno, com 0 qual nos habituamos. A vida urbano-industrial, da qual as metrépoles sdo centros irradiadores, é marcada pela estridéncia e pelo choque. As quinas fazem barulho, quando no sio diretamente méquinas-de fazer-barulho (repetidoras ¢ amplificadoras de som). O alastramento do mundo mecanico e artificial cria paisagens sonoras das quais 0 ruf do se torna elemento integrante incontorndvel, impregnando as textu- ras musicais. S20 exemplos conhecidos o balé Parade, de ele utiliza maquina de escrever como instrumento de percuss Satie, em que oe te clado, sirene e tiro de revélver; os bruitismos ("ruidismo: Ihismos”) do futurista Russolo — os fururist estavam interessados nas mquinas em geral como produtoras de musica, ou “quase-musi- ca”, Honneger imita a locomotiva, no Pacific 1921 (que tem um cor- respondente mais idilico no Trenzinho caipira de Villa-Lobos). Um outro dado fundamental faz recrudescer a margem do ruido do ambiente: proliferam os m s de produgao ¢ reprodugio sonora, meios fonomecinicos (0 gramofone), elétricos (a vitrola e o radio), ele- trdnicos (os sintetizadores). O meio sonoro nao € mais simplesmente aciistico, mas eletroactistico. O desenvolvimento técnico do pos-guer- ra fez com que se desenvolvessem dois tipos de musica que tomam co- mo ponto de partida nao a extragao do som afinado, discriminado ri- tualmente do mundo dos ruidos, mas a produgio de ruidos com base ‘em maquinas sonoras. E 0 caso da musica concreta e da muisica eletré- nica, que disputaram polemicamente a primazia do processo de ruidi- ficagao estética do mundo. A primeira (cujo mentor é 0 compositor Pierre Schaeffer) tinha a sua estratégia na gravacao de ruidos reais (to- mados como material bruto), alterados € mixados, isto é, compostos por montagem, A segunda, que conta entre seus praticantes com os nomes de Henri Pousseur e Stockhausen (cujo Canto dos adolescentes & sem dhivida uma obra definitiva, um marco na contemporancidade), toma como base rufdes produzides por sintetizador, ruidos inteira- mente attificiais embora na obra citada Stockhausen manipulasse tam- bbém o som de vor gravada). De lé pra ci os sintetizadores se refinaram se massificaram (alinhando-se praticamente entre os eletrodomést cos ¢ marcando forte presenga nas miisicas de massa, nas quais exc fam uma permanente corrida ao timbre). Suas derivacbes mais recen- tes, 08 samplers, so aparelhos que podem convercer qualquer som gravado em matriz de miltiplas transformagoes operiveis pelo teclado (seja a vor de qualquer pessoa, 0 pio de um péssaro, uma tampa de pa- rela, um bombardino, ou ondas estelares captadas em radiotelescépio ¢ transformadas em ondas sonoras). O sampler registra, analisa,trans- forma ¢ reproduz ondas sonoras de todo tipo, ¢ superou de ver a jf ve- tha polémica inicial entre a misica concreta e a eletronica (pois num estado tal de produsao de simulacros dilui-se a oposigio entre o grava- do.¢ 0 sintetizado, o som real ¢ 0 inventado). As maquinas de produ- io e reprodusio sonora, além de terem seus terminais disseminados em rede por todo o tecido social (com sonorizadores fixos e ambulan- tes nos espagos mais ptiblicos ¢ nos mais privados), implantaram um modo de tratamento do som totalmente relativistico, em que nenhum dos seus componentes ou propriedades inscreve-se em nenhuma or- dem de hierarquia ritual. O objeto sonoro & 0 ruido que se reproduz em toda parte, além de passar por um processo sem precedentes de ras- treamento ¢ manipulacio laboratorial das suas mais infimas texturas (gravado, decomposto, distorcido, filtrado, invertido, construido, mi- xado)." A elettificagéo dos instrumentos foi dar também, no coragio € 3 _margem dessa historia, num dos sons cruciais do nosso tempo, 0 da ‘guitarra elétrica, a harpa farpada, com a qual Jimmi Hendrix distor- eu, filtrou, inverteu e reinventou o mundo sonoro, dando a mais lan- cinante atualidade & forca sacrificial do som. Pulso ¢ desagregagio, vie dae morte — simultaneidades contemporineas. (Enquanto isso, a estratégia politica do som deixou de se dar pela clivagem ideolégica centre a misica oficial, apropriada enquanto miisica elevada e harmo- niosa, ¢ as misicas divergentes, consideradas baixas e ruidosas: a in- dustrializagao tornou-se uma processadora de toda forma de ruido re- petitivo, disseminado em faixas de consumo diversificadas, Nao se trata mais de tocar 0 som de privilégio contta 0 ruido dos explorados, mas ope- rar industrialmente sobre todo o ruido, dando-the um padrio de repe- 48 titividade. E nesse campo que as miisicas ocorrem, 0 que nao quer di- zer que elas se reduzam a ele, ¢ esté ai a complicagao ¢ 0 interesse do assunto.)" (O grande deslocamento do campo sonoro foi prefigurado no ini do século por Eric Satie, com sua musica performatica, suas parti- turas cheias de anotagies insdlitas e certas idéias que, parecendo extra- vagantes, estavam na verdade anunciando com grande precisio 0 processo de mudanga das condig6es de produczo musical no mundo emergente do imagindrio industrializado como mercadoria. Conta Da- rius Milhaud que Satie concebeu a certa aleura uma pega para ser exe- cutada nto no palco de concerto, mas por musicos espalhados pelo teatro, durante 0 intervalo, enquanto 0 pliblico conversasse. Mas co- ‘mo na pritica este permanecesse mudo ¢ imével diante da miisica ines- perada e fora de lugar, Satie, enfurecido, gritava: “Mais parlez, donc! Circulez! N’écourez, pas!” Essa situacio aparentemente s6 aneddtica indica mais uma vez a irrupgao do ruido no contexto do concerto. Sa- tie estava pensando, segundo 0 relaco de Milhaud, numa miisica que figurasse como fiundo de conversa, dispondo daquela espécie de pre- senga quase invisivel dos desenhos de papel de parede ou do mobilid- rio, ocupando uma faixa secundaria da atengio. Vale dizer que queria tuma musica em contraponto com o ruido, que entrasse em relaglo po- lifonica e constitutiva com o ruido, prenunciando assim a fungao de fundo da atengéo que a mdsica passa a desempenhar no mundo da sua repetigdo generalizada, Além disso, realizava o que se pode chamar de uma estercofonia avant /a lettre, com a musica emanando ao mesmo tempo de pontos separados do espago. Reside aqui o parentesco de Satie com o dadaismo tal como esse movi- mento € visto por Walter Benjamin: a miisica fere 0 ouvinte, adquire tum “poder traumatizante” no mesmo tempo em que nao se pode fazer dela “objeto de contemplagio”. No caso citado, a obra saitia da Srbita da contemplagio silenciosa, que cultua o objeto, para dispor de farnges diferentes num novo horizonte do mundo técnico: assim como 0 da- daismo com suas “manifestagdes barbaras” buscava produzir através da pintura (ou da literatura) os proprios efeitos que o publico, hoje, solici- ta do cinema, as manifestagies, mais ins6litas que barbaras, de Satie, chamariam a misica a cumprir um novo papel, que 0 ridio, @ disco ea fiea magnética passaram a desempenhar." 9 ‘Ao fazer emergir esse dado inconsciente (o descentramento do ci cuito sonoro) na cena aberta do teatro, Satie estava deslocando a eco- rnomia da sala de concerto tonal, onde miisicos no palco produzem som afinado, o piiblico permanece em siléncio ¢ o ruido fica fora da sala (s6 voltando ritualmente ao final da execugio na forma do aplau- so, que indica, pela intensidade do seu rerorno, o grau do recalcado) ‘Aqui, hao sinal de que todo esse campo sofre um deslocamento que podera ser visto como um pequeno mas decisivo terremoro: os mtisi- 0s, 0 som, 0 publico ¢ 0 ruido estio em transito, deixando um vazio nos scus lugares usuais, vazio que cortesponde ao siléncio do cédigo. rncio que torna intteis ou redobradamente irdnicas as palavras do compositor: “Parlez, done! John Cage iri converter essa situacao ¢ esse siléncio, que ¢ indice em Satie, em elemento articulador de sistema, sistema constituido de siléncio/ruidos encadeados, como veremos mais adiante. Mas antes de falar de John Cage, vale a pena percorrer um texto altamente sintomti- co € interessante, de Eric Satic. Nas Notas de um amnésico, ele escreve: Perguntem a qualqucr um ¢ ele também the dirs que néo sou miisico. E pura verdade. Desde o comego de minha carreira, cu tenho sido um fo- rnometografisa,[..] E 0 espirito cientifico que predomina. Eu meco 0 som. Com o fondmetro nas mios eu peso alegremence tudo de Beetho- ven, tudo de Verdi, ete. A primeira vez que usei um fonoscépio, exami nei um mi bemol de média int sidade. Fu asseguro a voeés, com toda a sinceridade. que estou ainda para ver algo t3o repulsive. Chamei mi- nnha empregada para observé-lo, Na minha balanga fonométrica, um fa sustenido comum atinge 0 peso de noventa ¢ trés quilos (emit tum cenor gordo). Voeés ja ouviram alguma coisa como a ciéncia de se limpar o som? Isso é imundo, sabiam? Esta arte ¢ conhecida como fo- ‘lho muito acurado, Para minhas frias pegas, usei tum gravador caleidosedpico. Flas me tomaram sete minutos — chamei minha empregada para escuté-las. Creio que a fonologia & superior & imiisica. Bla € mais varidvel, eas possibilidades monetirias sio de longe imaiores. Coma ajuda deste equipamento, estou apto a escrever tao bem quanto qualquer misico, O fucuro, por esta raza, pertence &filofonia (cstudo da composigao dos sons os mais diversos possiveis). nometria ¢ requer u A ironia do texto esta mais uma vez em que as coisas desproposi- tadas que ele diz dio uma descrigio precisa de processos que estdo acontecendo materialmente ou que estio na iminéneia de acontecer. 50 © “fonoscépio” a que Satie se refere no existia na sua época, era um objeto puramente delirance que iri ganhando uma realidade cada ver. mais flagrante a medida que progridem as técnicas de registro e mani- pulacio do som. Um osciloscépio mostrar mais tarde a forma da on- da de um som, permitindo analisi-lo nos vrios parimetros — altura, timbre ¢ intensidade —, que despontam aqui nesta alusdo parddica & quantificagio de uma qualidade: 0s 93 quilos (intensidade) do mi be- mol (altura) de um tenor gordo (timbre). A “mtisica” vira outra coisa diversa do objeto cultuado e auritico, uma espécie de “nome de fanta- sia” da fonometografia. A “ciéncia de se limpar o som” manipula a de- sorganizacio mortifera e impura do ruido (“Isso ¢ imundo, sabiam?"), numa alusio ao substrato concreto e corporal do som, recoberto cini camente pela aura de objetividade asséptica. "Para minhas frias pegas. tusei um gravador caleidoscépico”: este poderia ser ainda um bom no- ime para o atual seqiienciador, computador acoplado a um sintetizador {que permite gravar, corrigir ¢ escrever seqtiéncias que teclados milti- plos tocardo sozinhos em qualquer ordem, andamento, intensidade ou altura que se deseje (“com a ajuda deste equipamento, estou apto a es- crever tio bem quanto qualquer muisico”). A fabricagao de timbres em sintetizador também poderia ser chamada, sem problemas, de filofo- nia, “estudo da composigao dos sons os mais diversos possiveis”. (Mui- tas pecas pianisticas de Satie, por sua vez, tém um cardter repetitivo, como se fossem compostas por seqiienciagio maquinica.) E toda essa especulagio fantasiosamente certeira contém uma referéncia ao carder de mercadoria industrializada que a miisica assumira, programando-se para todos os piblicos: “Chamei minha empregada para escuti-las, Crcio que a fonologia é superior 4 mtisica. Ela é mais varidvel, ¢ as pos- sibilidades monctirias sio de longe maiores”. Para ser uma anedora, trata-se na verdade de um pequeno tratado profitico sobre o desloca- mento da arte musical no mundo da reprodugio sonora em larga esca- la, ¢ uma antropologia do ruido resumida. A famosa pega de John Cage, Tacet 433” (1952), com sua cons- tatagio do cariter ruidaso do silencio, faz uma ponte com os lances de Satie, Um pianista em recital vai atacar a pega, mas fica com as maos em suspenso sobre o teclado durante quatro minutos e 33 segundos; 0 piiblico comeca a se manifestar ruidosamente. Aqui também ha um. deslizamento da economia sonora do concerto, que sai de sua moldu- ra, como uma mascara que deixa ver um vazio. A musica, suspensa pe- St lo intérprete, vira silencio. O siléncio da platéia vira ruido, O ruido & ‘© som: a miisica de um mundo em que a categoria da representagao dei- xa de ser operante, para dar lugar A infinita repetigao. Repetigao do qué? Pegas como essa nao correspondem, evidentemente, a categoria usual de obra. Elas operam mais como uma marca, uma dobra sinto- mitica ¢ irrepecivel, frisando enigmaticamente 0 campo da escuta pos- sivel, 0 campo daquele silencio que pode ser ouvido também nas “mu- tagbes fOnicas imprevisiveis, aceinicas”™ das beissimas peras para piano preparado* (siléncio pleno de ruidos porque é “abandono ao tempo, a0 puro movimento do tempo”, tempo que jamais se repete contendo to- das as repetigGes em graus alterados de intensidade). Nessas pegas Ca- ge fer com que o piano, de instrumento produtor de alturas, se trans- formasse num multiplicador de timbres e ruidos: com a interferéncia de pinos, parafusos, borrachas e outros materiais acuando sobre as cor das do instrumento, ele passa a soar formas alteradas de pandeiros, ata- bbaques, marimbas, caixas de misica, guizos. O procedimento antecipa também uma possibilidade dos sintetizadores atuais: “splitar” o teclado ¢ fazer com que cada tecla, ou cada regio, produza um timbre dife- rente. Mas essa parafernilia visa & delicadissima apresentacao de quase- sons (quase-ruidos) em oscilagio ritmica, num tempo em que despon- tam pulsacdes e nao-pulsagoes, como se a miisica buscasse devolvé-las um estado de indistingio entre ambas. O ritmo para Cage nao esti na regularidade das batidas nem na mensurabilidade das duragdes, mas na flucuasio “sobre a crista de uma vaga métrica” ou de uma nao-mé- trica enquanto tal.” A miisica nao se organiza em torno de um pulso (como a miisica modal), nem evita sistematicamente o pulso (como a imiisica serial). Fases e defasagens alternam-se ao sabor e na pulsagio do proprio acaso em som, ruido e silencio, O ruido branco 0 modelo desse universo (ou multiverso): 0 toral sonoro é silencioso (mattiz.de toda comunicagao possivel, de toda canalizagio de qualquer que seja a mensagem, matéria de todas as paisagens sonoras, freqiiéncia das fre- giiéncias, pulso dos pulsos, ruido/zer0).” Silencio no eédigo: metalin- guagem de toda miisica quando ela atinge aquele limiar paradoxal de que falamos antes, indo para o ponto de mutagio em que, depois de séculos, ¢ através de sua caotizacao “multiversal”, aponta para um cam- po que esté aquém e além da “mtisica”. (Mas isso supde toques sutis, em filigrana, que promovem silenciosamente uma desativagio do tem- po do ego, do prazer como descarga de energia acumulada, e uma des- 52 sacralizagao radical do som, que, nao sendo mais sacrificado nem no altar do mito nem no altar do progresso, se desgarra como verdadeiro objeto nao identificado, em sua obviedade.) 3. CODA Quem se dispuser a escurar 0 som real do mundo, hoje, ¢ toda a série dos rufdos em série que ha nele, vai ouvir uma polifonia de simul- tancidades que esti perto do ininceligivel e insuportivel. Nao s6 pela quantidade de coisas que soam, pelo indice entrépico que parece acom- panhar cada som com uma particula de tédio, como por nao se saber mais qual é 0 registro da escuta, a relacdo produtiva que a escuta esta- belece com a misica. No caso da musica de concerto contemporinea, a complexidade vem acompanhada de um trago esguismogenctico:" 0 sistema est tado ao meio por uma fissura que parece caminhar no sentido de rom- pé-lo no ponto de descolamento entre as alturas ¢ o pulso, e a escura std exposta, geralmente sem sabé-lo, a essa ruptura lacente (a musica de concerto exporia na verdade de mancira mais evidente uma questa0 ‘que poderia se transportar hoje para a mtisica em geral). A questi nao se resume, pois, em saber se a miisica hoje ¢ capaz de criar novas orga- nizagées sonoras ou se se torna cada vez mais pura repetigao, ruido e siléncio (essa é certamente uma boa pergunta de ecologia simbélica, ‘mas um pouco simples demais para indagar do estado das coisas). ‘A miisica de concerto vem de uma tradigao herdica, em que cla se constitui pela ctiagao de uma linguagem, a miisica tonal, ¢ pela explo- ragio até os seus limites extremos dessa linguagem, no quadro de um grande arco evolutivo que vai do século xv a0 fim do xix. No século XX, esse arco esgotou as possibilidades dadas pela gramaica do sistema tonal e prometeu, durante certo tempo, a sua superagio na forma de ‘um outro modo de organizacao das aleuras (depois estendido aos de- mais parimetros): 0 serialismo, 0 mais radicalmente progressivo entre ‘0 caminhos da miisica contemporinea. Nos tilsimos tempos essa pro- jecdo, que pressupunha a idéia de um progresso permanente da forma através dos saltos de linguagem dados pelas obras, reflui para um esta- do anti-herdico, acompanhado de um forte mal-estar. E que a proje- ‘io evolutiva do eédigo mostrou-se presa de muitos impasses e, no li 53 mite, sem “perspectiva’ (com isso, é a prépria idéia de insergio da mu- sica numa grande historia do sentido que periclita, junto com o presti- gio da idéia de progresso). Muitos compositores silenciaram (Boulez), outros retornaram a um cultivo (que nao deixa de soar retroativo) do tonal (Penderecki), outros oscilam num terreno cclético (no ambito, do qual Stockhausen continuou seguindo uma bela trajetéria indivi dual), outros partiram para uma miisica engajada na luta de classes (como Willy Corréa de Oliveira, no Brasil), ou entio voltada para a recuperagio de uma utilidade pedagégica ou ambiental (como aparece has propostas de Koellreutter). Essas miiltiplas alternarivas soam como. sintomas agudos de impasses ou da expectativa de caminhos que nao se abriram concretamente. © que contribui para reforsar 0 lado apo- ico da situagio: desgarrado de uma histiria do sentido, dada pela ‘radigao ocidental, o som se dissolveria para alguns num conglomera- do caético de interferéncias ruidosas, um cluster que s6 tetia como ho- rizonte a barbaric da extingao da cultura e uma inimagindvel e terrivel implosio terminal. Essa hipétese vera a situaga0 da miisica hoje — a dissolugao do campo de definigi0 do som enquanto oposto ao ruido, ea neutralidade zerada do cédigo musical, que se torna incapaz de di- zer nada que nao seja repetigao, ruido e siléncio — como sintoma pro- fetico do fim do social no mundo das massas (cuja opinito insondavel, que nao se define senao erraticamente, seria buraco negro de todo sen- tido),” A incapacidade para introduzir diferenciagio seria a sindrome dessa terminalidade. A negatividade da arte como recusa do social (co- imo aquela recusa & consolagio que Adorno viu na miisica de Schoen- berg, expondo a angiistia contemporiinea) iria tomando assim, irrever- sivelmente, o cariter de uma natureza declinante do social. Essa situagio terminal (ligada a uma antropologia do ruido) teria seu correspondente numa psicossociologia defensiva da escuta (0 ou- vinte se fecha numa concha de som onde se embala s6 com o género de sua preferéncia, seja o jazz, 0 sambao, 0 rock, a muisica ligeira ou a ‘experimental, numa redoma refratiria a qualquer diferenga, a qual- quer deslocamento de seu cédigo de adocio, 0 que significa nao-escu- ta). A escuta indiscriminada de qualquer coisa também é nao-escuta. Cumprir-s miisica de mercado, aquele fetichismo da misica e regressao da audi- ao previstos por Adorno. O minimalismo seria o estilo estético desse ¢ minimo (Fechado defensivamente numa cimara de som repetitivo)." ia, assim, em toda escala, no circuito vicioso e fechado da 54 Mas, reconhecido o que ha de real nesse quadro, ele pode passar por outras avaliagbes. Porque podemos estar passando por um desloca- mento de parimetros muito maior do que conseguimos imaginar ago- 1a, € 0 blackout do sentido pode fazer parte dessa migragao dos e6di- 08 (ou sua estabilizac3o em outro lugar: 0 mundo tonal, vale dizer, 0 da cultura ocidental moderna, pode ter sido nada mais que a migragio do mundo modal a um outro que s6 agora comegamos a entender). A coincidéncia do término do mundo tonal (¢ suas representagdes) com ‘© estado terminal da cultura e da sociedade no fim do século xx pode ser encarada como um desafio para escutar o lugar para onde o senti- do se desloca. Correndo por fora da tradigio da misica erudita, misicas popu- Jares continuaram a fazer os seus sons, que se misturaram em demo- criticas mixagens e assumiram lugares singulares na modernidade, A miisica européia se juntou com a africana no territério das Américas. Esse evento é produtor de uma extraordinaria forga mulkiplicadora: ele contribuiu para criar experiéncias de tempo musical de uma grande complexidade e surileza. O ima da mtisica puxa agora de novo para 0 questionamento ¢ a criagio sobre o pulso, 0 tempo, o ritmo, Essas mii- sicas devem ser relidas ou escuradas em nova situagao, Elas fazem par- te do proceso de codificagio das relagdes entre som, ruido e siléncio como modos de admitir fases e defasagens, de trabalhar sobre o caréter simultancamente ritmico ¢ arritmico do mundo, Ali, no pulso do pulso, pode estar se formulando uma ourra coisa, para a qual é preciso pro- duzir uma escuta cortespondente (0 que significaria a volta do pulso modal num mundo descentrado ¢ dessacralizado?). E preciso dizer também que, em todo esse processo, a cangio (ou certa linha de canges) funciona como um verdadciro equilibrador ecoligico (as cangoes sio a reserva de oxigenagio da miisica e do mundo simbsélico). ‘A misica tornou-se sincronica, simultinea. A sincronicidade va~ zou os campos de produgio em que ela se dividia. E preciso que a te- flexao sobre musica dé conta dessa simultaneidade e seja capaz de ver situagées novas. A producio de uma escuta em relagao dinamica com esse proc so de simultancidade passa por embaragos fortissimos. Antes de mais nada, os registros de escuta habitual esto completamente embaralha- dos. © modo dominante de escutar (em ressonancia com o da produ- Gio de som industrial para 0 mercado) € 0 da repetigao (ouve-se musica 55 repetitivamente em qualquer lugar ea qualquer momento). Um modo recessivo € 0 da contemplacao (tonal): escutar miisica sob uma reserva m condigées especiais de silencio (é uma escuta diferen- ciada, que aparece em situago mais rara, inacessivel ou impensavel para muitos), Outro modo recessivo & o da participagto sacrificial (mo- dal), 0 envolvimento do ouvinte num ato ritual. Para muitos ouvintes cesses modos esto miscurados numa indistingao confusa. A capacidade de combiné-los e fazer deles uma composigao € uma alternativa para viabilizar a escuta: saber ter uma relacio polimodal com a miisica (é essa escuta que a musica que comeca a existir pede). A escuta esté po- larizada pela repetigao do mercado, mas outros modos de escuta estio Jatentes nela como ressonancia harmonica. A medida que nos apro- fundamos no tempo da dessacralizagao, toda a histéria dos simbolos, que vibra num acorde oculto (modal, tonal, serial), fica paradoxalmen- te mais exposta na sua simultanea contemporaneidade, “Temos uma situagio singular. © som ¢ ondulagzo corporalizada césmica, ondulagdo analégica (ligada até aqui a toda a concepgao cir- cular de tempo, que vai do relégio ao disco). O mundo da repetigao sgeneralizada decompée ¢ desconstrdi a onda sonora na sua producio € na sta recep. A dessacralizagao total do som significa que a onda no tem mais aquele poder mégico de ressoar a si mesma pela prépria de atengi forga, uma vez detonada. O consumidor liga ¢ desliga a onda no mo- mento que quiser. No mundo sacrificial a onda tina seu tempo pr6- prio, assim como a 4gua produz circulos quando cai nela uma pedra (esse tempo da ressonincia soava ao mundo pré-moderno como um poder césmico a ser reverenciado). Agora, quando a genetalizagao das relagdes de mercado se totaliza, a onda nao tem poder, 0 cosmo nao tem nenhum poder diante do ouvinte aparelhado ou desatento (36 es- te parece ter poder sobre toda e qualquer miisia), Suponhamos um lama tibetano gravado em compact disc: sua voz, capaz de fazer ouvir os harménicos, esta quase como um holograma vocal na sala, cavando do fundo ¢ da fenda do universo 0 som primor- dial, podendo ser interrompido a qualquer momento e contrapor-se a qualquer outro ruido. A aparelhagem ¢ digital, nfo analogica. Nao ha nenhum sacrificio: a partir daqui, voce pode ligar 0 som sem sacrificar nada aos deuses do som (eles € que foram sacrificados aos deuses do mercado na forma das tiltimas novidades em aparelhos de som). A li- turgia das ondas, da vibracio, seus ciclos de apresentagao, de entrada 56 saida, 0 cempo necessirio ao cumprimento desse ciclo, a miisica das esferas (o fluxo dos sons segundo a curva das préprias Forgas ¢ das for- as que cle descreve), tudo se cala diante do consumidor acuante (que pode recalcitrar nas formas do colecionador fugaz e permanente tima novidade, do critico prepotente e toda uma familia de pretensos apropriadores das ondas instantaneas que 0 som inscreve no nad). F, no entanto, é preciso assumir o estado de repetitividade (ne- nhum mundo com bilhdes de pessoas, como 0 nosso, existira sem cla) Nesse mundo, a misica faz.fundo, mas a miisica de fundo saltow pra frente. Brian Eno (autor das misicas ambientais para hospitais, aero- portos, mtisicas para trilhar ruidos, como aquela primeira, de Satie) diz que a ambiéncia timbristica, a criagio do espaco sonoro, tornou-se um campo privilegiado de composicio contemporinea, embora pouco notado, Diz também que na cangio de massa muicas vezes 0 mais in- teressante € 0 fundo ruidistico, timbristico, que esti sob a voz cantada, € no qual esto se compondo elementos para novas miisicas. (O tem- po nao € propriamente de obras, mas de processos disseminados, dis persos num turbilhao de eventos.) A musica pulsante e timbristica salta instantaneamente, se da a conhecer num segundo, em bloco. A miisica se di em pilulas, pasti- thas, efervescentes, desodorantes, comprimidos, sabonetes. A musica “alta” é entre as outras, uma espécie de concentrado (xarope que as di- ferentes escutas ou reinterpretagées vo diluir em concentragoes varia das), Tende a se dissolver a divisio entre miisica rudita e popular, mas continua a haver, de maneira incisiva, distingao entre estrutura pro funda e estrutura de superficie (sem que esse tiltimo termo seja pejora- tivo). Como eu tinha sugerido antes, Sagragao da primavera é estratu ra profunda daquela miisica de ritmos e timbres, de ruido pulsance que 6 rock vai mostrar como estrutura de superficie (portada pela evidé cia de suas cadéncias harménicas ¢ seu compasso quaternirio). Cage ¢ cstrutura profunda da muisica em seu estado absolutamente superficial (Hutuasio do som, silencio, ruido em sua intranscendéncia, evidéncia nao evidente do carter superficial de toda miisica). O minimalismo & 2 passagem do profundo cagiano ao superficial (a evidencia do cariter repetitivo dos fluxos em fluxos explicitamente repetitivos). Joao G berto é a superasio da oposigio entre o profundo ¢ o superficial A mtisica passou a tramar outras tramas. Para muitos amantes da iniisica isso ¢ insuportivel. Para outros, esse estado de coisas nega tudo 57 6 que cla foi, © meu assunto & manter vivo o campo da escuta, toman- do como base 0 que se tornou evidente, que a mtisica passa a pedir luma escuta propriamente musical, isto ¢, polifonica. E possivel reouvie a sua histéria dentro de uma base sincronica. E preciso produzir novos mapas. E possivel ouvir tudo de novo ¢ estar soando ja diferentemen- te. Modal, tonal, serial. Tocar a primeita escala. 58 INTRODUGAO A MUSICA Para fazer miisica, as culturas precisam selecionae alguns sons en- tte outros: ja falamos sobre o cariter ordenador de que se investe essa triagem, na qual alguns sons sio sactificados (vale o termo, também nesse sentido), isto é, jogados para a grande reserva dos ruidos, em fa- vor de outros que despontario como sons musicais doadores de or- dem, Para fazer esse recorte, que equivale a decomposigio arbitrétia do continuo do arco-itis e consiste na decomposigio do continuo das alturas melédicas numa infinidade de escalas musicais possiveis, as cul- turas estardo fundadas na intuigao de um fendmeno actistico decisivo, que é a sétie harménica subjacente a cada som. Por razées fisicas que nao cabe explicar aqui, uma corda, vibran- do numa cerca freqiiéncia fundamental, ressoa internamente outras freqiiéncias que séo seus muiltiplos, freqtiéncias progressivamente mais rapidas, muito dificilmente audiveis, mas que compdem o corpo tim- bristico do som. (Muitas vezes o ensino de misica passa completamen- te ao largo da experiéncia da escuta da série harménica e do conhec ‘mento de suas implicagBes: pensar a musica sem ela é algo assim como imaginar que os bebés sao trazidos pelas cegonhas.) 9 f oo te tate A serie harmonica Estas sio as “notas” da série harménica’, se tomarmos como pon- to de partida, ou como som fundamental, a nota dé. (A escrita con- 59

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