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“Hoje sabemos que a, igualdade formal dos direitos e 2 liberdade politi- ca mascaram relagdes de farya, em vez ce suprimi-las, E, assim, 0 proble- ma politico consiste em instituir estru- turas saciais @ relagoes reais entre os. homens tais que a liberdade, a jgualda- dee o direlto tormem-se efetivos. A fra- queza do pensamento democraitics re side no fate de ser menos uma politica € mais uma moral, visto que nav colo~ ca qualquer problema de estrutura so- cial @ considera as condigdes do exer- cicio da liberdade como dadas com a humanidade,” M, MERLEAU-PONTY: Em lore do snaexismo (Sens et Non-Sens) UNO hé dialética sem opasigio 6 sem liberdadie; nda hd por muito tem. pe oponicio ¢ iberdade em uma evo: lucio, A degeneracio de todas as revo. lucdes conhecidas nia é fruto do ac so: Como regime institurda nunca po. em ser 0 que foram como movimento ue, justamente, por ter sido um suces- 50, chegou 9 insiituigda; 9 movimento historico [4 nao 6 mais ele mesmo, fa- zendosse, ‘trai-se’ e ‘desfigurase’. As revalugdes sio verdadeiras como movie Mentos ¢ falsas conio regimes.” M, MERLEAU-PONTY: As aventuras ei diatética “Uma filosefta concreta nda & uma filosofia feliz. E preciso que se mantenha perto da experiéncia ¢, no entanto, nao se limita a0 empltica, res: titua em cada experitncia a cifra onto- ldgica Cam que esta marcada interior mente. Por mais dificil que seja, nes- sep condigdes, imaginar o futuro da fie losafia, duas coisas parecem seguras: nunca encontrard a convicgao de de- [ef, COM seus Conceitas, as chaves da natureza e da historia, © nao renuncia- ria seu radicalism, a investigacdo dos pressupastas ¢ dos fundamentas, que produziu as grandes filasofias.’” M. MERLEAU-PONTY: Em foda © ent Aenhume parte (Signes) Os Pensadorés CIP-Brasil, Catalogacio-na-Publieagao Chmara Brasilein do Livro, SP Merieau-Ponty, Mutirice, 1908-1961, Textos cscolhidos / Maurice Merleau-Ponty ; selegio de textos de Marilena de Souza Chau ; tradugdes e notay de Marlena de Souza Chaui, Nelson Alfredo Aguilar, Pedro de Souza Morees, — 2. cd. — ‘Sao Paulo; Abrit Cultural, 1984. (Qs pensadores) Inelui vida © obra de Merlenu-Ponty. Bibliografia. 1, Ane ofia 2. Exteoturalismo 3, Fenomenologia 4. Filosofia frances §. Linguagem - Filosofia 6. Omologia 7 . Politia Filosofia I. Chaul, Marites de Sousa, U1, Titolo, Hl, Serie, COD- 15, ~OULA2 “a A827 320.91 indices pura catdloge sistemdtico: 1, Ante : Filosofia 701 2, Estruturalisme : Metodologit 001.42 3. Fenomenologia ; Filosofia 162.7 4. Filosofia francesa 194 3. Linguagem : Filosofia 401 6. Ontologia : Filosofia 11 7, Politica ; Filosofia 321,01 MAURICE MERLEAU-PONTY TEXTOS SELECIONADOS Selegliv de tentos Uy Maritena de Souze Chaui Tradugoes © notas de Nelson Alfredo Aguilar (A divida de Céanr Pedro de Souza Meraes (A linguagen indireta ¢ as yozes do siléncio) Be 1984 EDITOR: VICTOR CIVITA ‘Tittlos originais: “Auioar da Mansisme” “Le Doute de Cézanne" ¢ "Le Métaphysigue dans |'Homne'', de Sem et Now Sens. “La Crise de Fnvensioment’” = "Les Aventures de li Diilectique (epiloges)', de Les Aventures de ler Dialeciigne. ~'Sur In Phénomdnolagie dh Langage”, “Le Langa Indirect et les Voix du Silence", “De Mauss 4 Claude LavisStrauss'", “Paout et Nuile Pat", € “Le Phikosapine et som Ombre, de Signes L-Oeit er L'Exprit © Copyright AbWitS.A. Cultura, Siu Pubs, 1980, = 2 edigao, 1984. “Texqos publirados sob licenga de Les ditions Nagel, Pars (“Em Tommi do Marxisaio™, "Davida de Cézanne" © “0 Metafsico 29 Homem". de Sens ¢ Nao Sen); tle Baltions Gallina, Paris (A Crise do Ehtendianwo" © Ax Aventuens do Dislsisn cep, de As Avennuras de Dialética: "Sobre Penomenaogia de {inpusgen" "A Linugem Indes eas Wore da Sie De Mauss # Cue L6vi- Stra "Toda ecm Nentarn Pat, 70 Filsole Sun Sermbra’", de Signo 0 OMe eo Expiriv) rauiuyau publicics oul |ivenye Ue Crary Datans Barre, ‘ie de aneito (2 tha ea Eggi viata oxclusivos sabre a& denis tridupties deste vulurme, ‘Abnl S.A. Cultural, Sig Pauls Dios eastusiys wn: Merk Pomis — Vida ¢ Oba", Abni S.A. Culurl, S80 Papi. MERLEAU-PONTY VIDA E OBRA Consultovia: Maritena de Souza Chaut Mists: Merleau-Panty nasceu a4 de marco de 1908 em Ro- chefort-sur-Mer. Fez 0 curso secundario nos ficeus parision- ses Janson-le-Sally @ Louis-le-Grand. De 1926 a 1930 foi aluno da Ecole Normale Supérieure, ocasiaa em que conheceu aqueles que com ele formariam a “'geracao existencialisia’’ dos anos 40 e 50. De 1930 a 1935, Morleau-Ponty Iecionou no curso secundariv. Acabou sua tese complementar, La Structure du Comportement (A. Es trutura do Compartamentoi, em 1938. Entre 1939-1940 foi mobi do como oficial do 5." Regimemo de Infamtaria, De 1940 a 1945, par- ticipando da Resisténcia, volta a lecionar no secundario, Em 1945 ab- tém o titulo de dautor em filasofia, apés a defesa de sua “tese de Esta- do”, Phénoménologie de li Perception (Fenomenolagia da Percep= gfo). Ce 1948 turna-se jarelessor da Universidade de Lyon, Nessa epoca, divide com Sartre a diregdn da revista Les Temps Madermes, criada logo apés a Libertagio, De |949 a 1952 ecupa v cargo de pro- fessor-titular da cadeira de Psicologia Infantil, na Sorbonne. Em 1952 € eleito para a catedra de Filosofia do Collage de France, pronuncian- do como aula inaugural 0 ensaio loge de la Philosophie (Elogio da Fi- losafia), Nessa ocasido a amizade com Sartre e com Simone de Beau- voir passa por uma crise, ocasionada pela anilise da posigdo de Sar- tre como “ultrabolchevista” en Les Aventures de la Dialectique (As Aventuras da Dialética,, A andlise de Merleay-Ponty provocou uma polémica que nao cessou até a morte da fildsate, ocorrida subitamens tea 3. de maiv de 1961, vitima de embolia. © retorno as origens da reflexio Ao mesmo tempo que se dedicava ao ensino da filosolia, Mer leau-Ponty publicava livros de ensaios. Humanisaw e¢ Terreur (Huma- nismo e Terror] cantém a andlise dos processos. de Moscau, o coniron- to entre stalinismo ¢ trotskismo, a critica da guerra-fria ¢ de suas impli- cagdes, Les Aventures de fa Dialectique faz 0 balance critica das dife- rentes linhas leéricas € politicas assumidas pelo marxismo apds a re- valugio de 1917; confronta Weber e& Luckacs; analisa as posicces de Moscou expressas através de Pravda; critica 6 voluntarismo de Sartre; problematiza a propasta de Trdtski da necessidade de uma revolucio permanente, O livia, em tlima instancia, coloca os problemas tedri- Vill MERLEAU-PUNTY cos para a constituigac de uma filosofia 4 Juz dos problemas praticos da politica, Sens et Nan-Sens (Sentido © Nao-Sentide) é uma ¢olet- nea de ensaios sobre arte (romance, cinema, pintura e literatura); so- bre as ciéncias humanas (significado da nogao de estrutura come pos sibilidade de uma revolucao cientifica que destrua a pasitivisme cien- tificistal: sobre as relaches entre a filosofia existencialista, o hegelia- nisme 2 o marxismo; e, por fim, alguns ensaios politicos sobre 0 pds guerra, analisande a posicao dos faeces franceses, da igreja e dos herdis de guerra. Signes (Sinais) é a obra que marca a passagem gra sual do filgsoio de uma perspectiva fenomenoldgica para uma investi- gacdo omoldgica. £ também uma coletinea de ensaios sobre a arte, a histéria da filosofia, a nova vpistemotagia, que reflete sobre a cantri- buigao do esteuturalisme nas ciéncias € sobre a “crise da razao” de- corrente da teoria da relatividade. © live contém ainda ensaios mo- nggraficos sobre Husserl, Bergson @ Maquiavel, um conjunto de pro- pos sobre a atualidade politica européia. © prefécio de Signes pode ser lida como uma autebiagratia inte- lectual © politica, come verdadeiro balango que o filésofo apresenta de seu itinerdria toric e pratico. Aparece af a afirmagao de que a fi- losofia precisa recuperar alguns truismos fundamentais, como: 0 olha olha, a fala fala eo pensamento pensa. Essa afirmagaa marca o inicia de nova trajetoria do. pensamento de Merleau-Ponty. Suas prieiciras obras estavam nitidamente vinculadas a fenomenologia husserliana, embora procurasse a cada passo minimizar o papel constituinte dé consciéncia © outorgar 4 relagao Corpo sensivel-munde. sensivel 0 po- der doader de significades que Husserl atribuira ao Sujeite Transeen- dental. A partir de Signes, Merleau-Ponty encaminha-se para a ontolo- gia como regido pré-reflexiva, selvagem e bruta, de onde emergem as Categorias reflexivas. A filasofia — reflexio — deve voltar as origons da prépria reflexdo ¢ descobrir seu salo anterior a atividade reflexiva € responsdvel por ela. Essa regio é 0 “logos do mundo estético”, isto &, do mundo sensivel, unidade indivisa do corpa e tas coisas, unida- de que desconhece a ruptura reflexiva entre sujeito e objeta, Por ou- tro lado, as reflexdes nascidas na rogida origindria da aesthesis pos- suem dinamismo e simbolismo préprios, que se desenvolvem histeri- camente, Constituindy a regida do “logos do mundo cultural’”, isto 6, da pratica inter-humana mediada pela trabalho e, portanto, pelas rela- GGeS sociais.¢ pelas cofsas af produzidas. Merleau-Ponty, Sartre, Nizam © prefacio de. Signes segue também outra vertente: a da posigho politica dos filésofos. Merleau-Ponty acusa a “mania politica dos fild~ sofos", uma certa maneira de fazer filosafia ¢ de pensar a politic: que € mi filosofia © mé politica. Essa “mania” 6 a expressdo da conscién- cia infeliz filoséfica, que obriga o filésofe a assumir 0 papel insignifi- cante de “politico honordrio” por honra da firma & para o bem da causa humana. © que acontece entao ¢ que a filosofia se dugmatiza © a politica se voluntariza: consequencias desastrosas para ambas, acattelantio a impossibilidade real de uma filocofia da histéria e de uma pritica politica eletiva, No percursa autobiogrélico Merleau- VIDAEOBRA = IX Ponty preocupa-se com o problema da “rebeldia’’, atitude juvenil que pode ser um motor histdrica, mas freqdentemente se transforma em obstéculo politico. Essa andlise é fcita como pano de funda de uma rememorizagao cujo centro & a figura de Paul Nizam, amigo co- mum de Sartre ¢ de Merleau-Ponty. A morte prematura de Nizam uniu 0s dois sobreviventes auma amizade fortificada pelos anos de Re- ncia e dilacerada, afinal, pela divergéncia profunda quanto aos principios filoséficos concementes ao hamem ¢ a historia, © que mais importa nessa reaproximacdo de Merleau-Ponty ¢ Sartre através do amigo morto é a redescoberta de um ponte de canta- to que ambos supunham perdido: o reconhecimento de que a idéia de uma juventude revoltade ¢ uma quimera porque a revolta nao po- de permanecer indelinidamente como revolta, e nao pode, também, chegar 3 revolugdo, E ainda © amigo perdido que leva os dois sobrevi- ventes a medlitacaa sobre a morte e sobre a fragilidade humana, en- carnadas nos dois gestos fundamentais de Nizam: a ruptura do filho com a familia e, mais tarde, a ruptura do militante com o partido. Por ocasido de sua morte, Merleau-Ponty preparava um fivra sa- bre a ontologia pré-reflexiva, mundo do ser brulo ou selvagem. © li- vro inicialmente deveria intitular-se L’Origine de la Verit (A Origem da Verdade), Nos manuscritos, porém, comecou a surgir um navo ti- tulo, Le Visible et I'Invisible (O Visivel e 0 Invisivel). Sera com este nome que o amigo de Merleau-Fonty, Claude Lefart, prepararé a edi- ¢o péstuma, contendo capitulos semi-acabados © as notas de traba- the, Tambarn se deve a Lefort a publicagdo pastuma dos Résmes de Cours, ministrados na Sorbonne @ na Collége de France, @ La Prose dy Monde (A Prose do Mundo), coletinea de ensaios sobre prable- mas de linguagem. 0 pensamento de sobrevéo Em suas linhas gerais, a filosofia de Merleau-Ponty earacteriza-se pela critica radical do humanisme, Este tem origem na mumento em que 0 pensamento reflexive, colocads diante dos enigmas do realis- mo ingénuo — presente na sensagio © na percepgio —, procura re~ solver os paradoxos perceptivos recorrendo 2 separagdo entre a cons- ciéncia e o mundo, e reduzindo © real 4 dicotomia sujeito-objeto, A consciéncia, res cogitans, sujoito transcendental ou espirita, é& defini- da pela interioridade absoluta © pela identidade absoluta consigo mes: ma. A coisa, res extensa ou objeto, é definida pela exterioridade abso- luta @ pela impossibilidade de deter em sie por sia identidade consi- go mesma, @ Mao ser que se COnvera numa representagdo, numa idéia. © pensamento ocidental, “pensamento de sobrevio", procura dominar e controlar totalmente a si mesmo e estender a dominacdo & ‘controle 4 realidate exterior. A dicotomia sujéito-objero, inaugura- da pela metafisica idealista de Descartes, criou @ espaco no qual é possivel definir ¢ determinar 0 ato do conhecimento e © contedda des- Se alo. Ese espaco poe © respeita a cisio Consciéncia-mundo, cisio que funda os dots enganos complementares que canstituem aquile que Merleau-Ponty denomina humanismoa: osubjetivismo filosdfico eo abjetivisma cientifico. Em outros termas: dada a cisao, a filosofia ou x MERLEAU-PONTY torga oo sujeite cognoseente o poder de se apropriar da realidade ex: terior e heterogénea a ele, As coisas se convertem em representagoes constituidas pelo sujeito. O pensamento sobrevoa o mundo, transfor, mando-o em idéia ou conceito do munde, No péle opasta, a ciéncia Quiorga ao objeto o poder de recriar a relagao com & sujeito, exercen- do sobre este Gltimo uma influéncia de tipo causal, cujo resultado 6 a presenga do exterior na consciéncia por melo das sensagoes. O subje- tivisma encaminha a filsofia para a idealismo: pouco a pouca as cai. sas_exteriores. vido se convertendo em realidades cada vey menos reais, vo se tornando sombras da verdadelra realidade, © esta se te duz; finalmente, a realidade clo sujeito cognoscente ¢ de suas opera- Gées, O objetivismo cientifico, por sua vez, scguinds 9 caminhe ine verso, wai reduzinde a consciéncia a uma realidade cada vez mais fu- Baz, até que se converta num mera epifendmeno de acontecimentos fisico-fisioldgices abservaveis © objetivos. O pensamento de sobrevio ha filesofia converte o munda em representacao do mundo. O. pensa- mento de sobrevdo na cidncia converte a consciéncia num resultado aparente de “fendmenos na terceita pessoa’, sto é, de acontecimen- tos que perience a esfera dos objetos naturais, Seria erréneo, cantuda, julgar que a tendéncia idealista se confi- na & filosofia ¢ que tendéncia empitista se confina a ciéncia. Essa primeira diregao, examinada por Merleau-Ponty em sua obra ta Struc ture du Comportement, encontra uma contrapartida inversa © recipro- cat idealism cigntifico ¢ empitismo filosifico. Essa contrapartida é examinada na Phénoménologie de la Perception, ande o problema da relacao consciéncia-mundo é analisado primeira do ponte de vista do empirismo cientitice, mas, em seauida, também deo ponto de vista do intelectualismo cientifico. Além dessas duas abordagens, Merleau- Ponty apresenta ainda as duas restantes: © empirismo © 0 idealismo fi- loséficos. Assim, subjetivismo ¢ objetivismy, idealisma e empirismo, Melafisica @ pasitivismo S80 dicotomias cjue possuem a mesma fonte: 8 scparagdo sujeito-objeto, considerados come realidades heteroge- neas, distinias © agambarcedoras, que wenden a reduzir seu oposte a uma aparéncia ilusoria, As dicotomias sao, partanta, as faces comple mentares cle um engand comum e origindrio, O corpo: 0 visivel que se ve A separacao sujeito-objeto, origem da filosofia eda cincia mo- dernas, desemboca na necessidade de reunir os dois termos, © a rede nid Operada consistirs sempre em tornar os dois termos absalutamen- te coextensivos pela redugao de um deles ao ovtre: ou tudo & cons- citncia, ou tudo é 0 objeto — ¢ a consciéneia se reduz entdo a um epifendmeno de acontecimentos objetivas. A grande preocupagio de Merleau-Ponty consiste em oxigir que a ciéncia ¢ a filosofia s¢ questionem, questionando seus conceitos fun- damentais (sujeito-objeto, fato-esséncia. ser-consciéncia, real-aparén- ¢ia), Conceitos usadas sem que se perceba que jd carregam uma inter- pretacdo da realidade, da experiéncia © do sentido, F preciso interro- ger a ciéncia e@ 2 filosofia @ propor-lhes um nova panto de partida: a compreensiio de suas origens. Isso significa, sobretudo, revelar que a VIDA EOBRA xt vida representativa da consciéncia nao € primeira, nem Gnica, iste 6, n3o é fundante nem definidora do que sejam a consciéncia & o mun- do. Essa revelaco, porém, segue uma trajetéria peculiar no pensa- mento de Merleau-Ponty. No capitulo final de La Structure du Com- Portement, apds ter te © critica do objetivisme behaviorsta e a do realismo gestaltista, o fildsofo indaga qual a relacdo entre a consci¢n- cia percepliva a conscitncia representativa, e se a segunda nao ten- de @ anular a primeira. A resposta encontrada 6 a de que a conscién- cia perceptiva é fundante com relagao 4 representativa, de sorte que esta continua, no nivel puramente intelectual, um conhecimente arigi- nado no nivel sensivel, Essa resposta é desenvolvida na Phénoménolo gic de la Perception, desembocando pouco a pouce na nacdo de uma consciéncia perceptiva soliddria cam o corpo, enquanto, como. pedprio ou vivido, maneira pela qual nos instalamos no mundo, ga- nhando e doando ‘significagdo. A partir de Signes, porém, a nogdo de consciéncia perceptiva comeca a aparecer como “um rei em sua ilha deserta”’, uma “semiverdade" que passa a ser substituida pola de cor- po, de carne, iste &, por uma interioridade que ndo se reduz a imanén- cia da consciéncia, mas que nao se explica pela exterioridade de mocanismas fisico-fisioligicos. © corpo apresenta aquila que scmpre foi © apandgio da consciéneia: a reflexividade, Mas apresenta lam~ bém aquilo que sempre foi apanagio do objeto: a visibilidade. O cor- pa 6 o visivel que se vé, um tocado que se toca, um sentido que se sente, Quando a mao direita toca a mao esquerda, ha um aconteci- mento observivel cuja peculiaridade a ambigtidade: cama determi- nar quem toca e quem ¢ tocado? Como colocar uma das maos como sujeito € a Gutra Como abjeto? A descoberta do corpo reflexive e ab< servavel leva Merleau-Ponty a mostrar que a experiéncia inicial do ‘corpo consigo mesmo ¢ uma experiencia em propayagde © que se re- pete na felagao com as coisas e na relacdo com os outros, A ciéncia & a filosofia nao podem dar conta da relagao peculiar de sujeito com o mundo sem destruir um dos termos; a mesma incapacidade surge tam- ‘bém no wocante a felagao com os outros. A intersubjetividade @ impos sivel para a filosotia da conscidncia porque nesta a propria subjetivi- dade é descartada, de moda que a relaggo inter-humana pode ser ex- plicada apenas em rermos de convencao, de candicionamento e de arbitrariedade. Ao tomar a experi¢neia corporal como origindria, Mor- leau-Ponty redescobre a unidade fundamental do munde come aun do sensivel. © logos do mundo estético “Eis o enigma: meu corpo ¢ simulaneamente vidente © visivel. Ele, que olha todas as coisas, também pade olhar-se e reconhecer na- que entio vé o ‘outro lade’ de sua poténcia vidente, Ele se ve vendo, ele se toca tocando, é visivel @ sensivel para si mesmo. £ um si’ do por transparencia, coma © pensamento, que pensa tudo assi- milando-0, constituinde-e em pensamento — mas um ‘si’ por canfu- 589, narcisismo, ineréncia daquele que vé naquilo que ve, daquele que toca naquilo que toca, daquele que sente naquilo que é sentido (2.1. Esse primeire paradoxo nao cessaré de produzir outros. Visivel e x MERLEAU-PONTY mavel, meu corpo esta no niimero das coisas, ¢ uma delas, etd prese no tecido da mundo e sua coasio & a dé uma coisa, Mas, porque vé se move, maniém as coisas em circulo a sua volta, a5 coisas sao. um anexo ou um prolongamento dele, estzo incrustadas em sua came, f2- zem parte de sua definigac plena ¢ © munde ¢ feito do mesmo estofe que o Corpo, Essay reviravolias, essas antinomias sao maneiras dileren- tes de dizer que a visao é tomada ou feita 14 no meie das coisas, ali onde persiste, como a dgua-mae no cristal, a indivisao do senciente & do sentido” (L’Oeil et Espri¢). A telacao corpo-mundo @ estesiclégica: h4 a carne do corpo e a do mundo; hi em cada um deles uma inlerioridade que se propaga para @ outro numa reversibilidade permanente. ““O mundo esta tode dentro e eu estou todo fora”, escreve Merleau-Ponty em Signes. Cor- po e mundo sao um “campo de presenga”’ onde emergem todas as re- lagoes da vida perceptiva e do mundo sensivel, Ha um. loges do mun- do estética, um campo de significagdes sensiveis constituintes do cor- po e do mundo. £ esse logos do mundo estético que torna possivel a intersubjetividade como intercorporeidade, e que, através da manifes. lage corporal na linguagem, permite.o surgimento do loges cultural, isto é, do mundo humane da cultura e da historia, Para Merleau-Ponty, a ciéncia ¢ a filosofia da cansciéncia sio ins capazes de demonstrar a possibilidade da relagao intersubjetiva, na medida em que para a primeira cada um € um “amontoado de ossos, carne, Sangue e pele’ que se iguala a um autémata, a uma “coisa” ‘ou A matéria inerte, enquanta, para a segunda, é um “eu penso”’ ini- coe total, ndo havendo como sair de sie encontrar 0 outro. “Come o ‘eu pens’ poderia emigrar pata fora de mim, se 0. outro sou eu mes« mo?” (La Prose chr Monde.) A linguagem como ato de significar Segunda Merleau-Ponty, a ciéncia e a filosofia, vitimas do objeti- vismo ¢ do subjetivismo, nunca foram capazes de prestar contas da especificidade da linguagem e de seu modo de dar origem a comuni- dade cultural. Para a ciéncia, a linguagem se reduz a cmissio de sons, objetos de uma cidncia natural, a acustica. Assim, a linguagem se reduz a um sistema convencignal ¢ econdmice de sinais que permi- Jem aos homens uma cera coexisténcia. Para a filosofia, a linguagem sempre foi uma tradugo imperfeita do pensamento e a5 filesafas som pre se preocuparam em purificd-la para que pudessem ‘“vestir” mais corretamente as idléias mudas ¢ verdadeieas. Filosofia ¢ ciéneia nunca alcangaram a dimensio expressiva da finguagem. A palavra nao € tra- dugao de um sentido mudo, mas criagéo de sentido. A linguagem nSo “veste”” idéias — encama significacdes, estabelece a mediagaa entre © eu ¢ G oulro ¢ sedimenta os signiflcados que constituem uma cultura, A palavra é a modulagao de uma certa maneira ce existir, que ¢ originariamente sensivel. “A linguagem nao & mais a seiva das significagées, mas 0 proprio ato de significar, © o homem falante ou a escritor nao pode governé-la voluntariamente, assim como o hamem vivente nao pode premeditar o detalhe © os meios das seus gests, A Unica maneira para compreender a linguagem € inslalar-se ela e exercé-la’” (Signes), MIDAEOBRA XII Corpo, mundo, linguagem intersubjetividade encarnada levam Metleau-Fanty a critica fundamental do “pensamente de sobrevdo" na filosofia ¢ na ciéncia. Corpo, mundo, linguagem, intercorpareida- de revelam que o real transborda sempre, que seu sentido ultrapassa os “dadas” ¢ os “conceitas”, A percepcao revela 0 mundo como la- téncia, como transcendéncia. A pintura e a linguayem surgem como experiéncias reveladoras dese laténcia © dessa transcendéncia do real, de um ser selvagem pré-refiexivo, sempre além @ aquém das fa- tas e das idéias, Qual o enigma da pintura? Quando contemplamos as figuras pintadas nas cavernas, © que contemplamos? As figuras nda 840 as cores ali fixadas; nao sao as marces no caledrio; nao £40 C6- pias de animais © homens que jé deixaram de existi; nd 330 0 mate- tial usado para crid-las, Os animais pintados nas paredes das caver has sao pintados porque s6 exisiem sob a condicdo expressa de nao se confundirom com a materialidadle que os cristalizou nas paredes. © enigma da pintura coriste em fazer com que oy objctas estcjam na tela sob a condi¢ao expressa de ndo estarem ali, de transcenderem @ materialidade, sem a qual, entretanta, 30 existiriam, e rumarem pa- ro spo, sem 0 ae nao seriam pintura. Qual o enigma da lingua- gem? £ o de que nela a sianificacio. sempre ultrapassa o significante, e este sempre engendra nowas significagées, de sorte que entre signifi- cago e significante nunca existe equilibrio, mas ultrapassamento de um pela outro gragas ao outro, Esse ultrapassamento € 0 sentide: “A i linguagem ¢, pols, este aparelho singular guc, como nosso corpo, nos dé mais do que pusemos nela, seja porque apreendemos nossos prdprios pensamontos quanda falamos, saja porque os aproendemos quando escutamas os outros. Quando escuto ou leio, as palavras nao vim sempre tocar significagdes preexistentes em mim. Tém o pader de langar-me fora de meus pensamentos, criam no meu universe pri- vado cesuras por onde outros pensamentos podem iramper" (Sig- nes). Em diregao a ontologia selvagem A trajetoria merleau-pontyana ruma para a ontologia selvagem ou pré-reflexiva. Le Visible et Iavisible procura © ser bruto, indiviso, latente, transcendent, anterior a todas as separacées © fixagdes que © pensamento filosdfico ou cientifico Ihe impde. E essa ontologia que, partindo dos referenciais ja explicitadas, exigira a radicalidade da interrogagdo filoséfica. Radicalidade em duplo sentida: por um la- du, como exiéncia de levantamento critico de todos os conceites fi- losdficos ¢ cientificos, como preconceitos que escandem uma metafi- sica dualista; por outro lado, como exigéncia da busca da raiz, da orl- gem das relagées corpo-mundo, corpo-linguagem, mundo sensivel- mundo cultural, Essa cadicalidade visa criticar as protensties dos st mas Conceituais, que aspiram a fechar aquelas relagdes num circulo, determinado de pressupostos ¢ absolutos. A descaberta do ser selva- gem 6 adescoberta de um “ser de abismo”, que nao pode ficar-encer- rada, mas que se manifesta ¢ se ultrapassa numa modificacao infinita- mente aberta e nova A tiltima nota de trabalho de Le Visible et I"Invisible indica o pla- no que @ livro deveria seguir: “Meu plang; lo Visivel; Ia Natureze, xIV MERLEAUPONTY II] © Logos. Deve ser apresentado sem nenhum compromise com o humanisme, nem, além disso, como naturclismo, nem, enfim, com a teologia...’" A filosofia nde se compromete com um sistema canceitual que fa- ga do homem, da materia ou de Deus 6 cnone e 0 fundamento do Teal e de seu conhecimento. Nem antropologia, nem naturalismo, nem teologia, mas ontologia do Ser Brulo, pré-reflexiva, que se mani- festa através do homem ¢ das coisas, mas que ndo se cristaliza neles, A filosofia deve combater os absolutos rivais: homem-natureza, Deus-Natureza, Naturoza-Histérla, Histéria-Deus. Nesse combate contra as absolutos, a filosofia recupera o valor da contingéncia e do acontecimento ¢, dessa maneira, 0 tildsofo aparece como um homem entre outros homens © nde came © detemor do Saber Absolute. “Sua dialética ou sua ambigdidace ¢ apenas uma maneira de por em pala- yras aquilo que todo hamem sabe muito bem: o valor dos mamentos nos quais sua vida se fenova continuando-se, se retoma e@ se can preende, passando além, ali onde seu mundo privado torna-se mun- do comum’” (éioge ae fa Philosophie), A Gnica diferenca entre os ho- mens ¢ a filésofo reside na atengaa que este dedica ao surgimenio das coisas, dos homens © de suas relacdes reciprocas como surgimen- to de um sentido latente © neve que preexistia como possibilidade ¢ que chegou a ser explicitado. A ontolagia de um mundo selvagem € a afirmagao de que “este mundo barroco nao @ uma concession do espl- Fito a natureza, pois, se em toda parte o sentido esté figurado, em to- da parte s¢ trata de sentido. A renovagao do mundo é tambem renova- Gao do espirito, redescoberta do espirite bruto que nao esté aprisiona- do por nenhuma éulturae ac qual se pede que crie novamente a cul tura. O irrelative, doravante, nao € a natureza em si, nem o sistema das apreensbes da consciéncia absoluta, nem muito menos o hoe mem, mas a “teleologia’ de que fala Husser! — escrita ¢ pensada en- (re aspas —, juntura ¢ membrana du Ser que se realiza atraves do ho- mem’’ (Le Philosophie et Son Ombre), Cronologia 1908 — A 4 die marge, em Rochelort-surMer, nasce Maurice Merletue Ponty 1917 — Os revoluciondrios comunistas tamam a poder na RGssia. More Duikheirn. 1919 — Publicacdo de LFnemwie Spirituelie, de Bergson, 1926-1930. — ivierleau-Fomiy estucla na kcole Nermale Supérieure 1927 — Hoidenger publica a primeira parte de Ser 0 Tome. 1929 — Thomas Mann recebe o Prémio Nobel de literatura, 1932 — Jaspers publica Filosofia. 1937 — Morre Antonio Gramsci. 1938 — Publicado de A Niiusea, de Sartie 1939-1940 — MerloauPoniy. ¢ mobilizado como ofieial do 5. Regimente de Inkavtarin, 1941 — Arthur Koestler publica Darkness at Noon 1942 — fublice-se La Syucture du Comipariement, dé MerleausPoniy. Ca- mus publica {) Estrangeiro © O Mito de Sisito, 1945 — Medleau-Ponly dautora-se om filosatia ‘com Phénaménologie de ta VIDAEOBRA XV Perception. No mesmo ano, juntamente com Sartre, finda 3 eouista Temps Maderes. 1947 — Publica Humanisme et lereur. 1948 — Publica Sens et Non-Sens. Torna-se professor na Universidade de Lyen. 1952 — Turma-se catedriticn de fiiesotia no College de Franee; na aula inau- sural, pronuncia sets ensaia Eloge de la Philosaphie. 1953 — Morte Stalin. 1955 — Morleau-Ponty publica Les Aventures dela Dialectique, Marre: Einstein, 1960 — Merleau-Ponty publica Signes. Sune a Crilica da Razio Dislética, de Sartre. 1961 — Em Paris, 2 3 de main, vitima de embolia, falece Morteau-Ponty. Bibliografia Guu, Me: Merleau-Ponty 0a Critica do Humanismo, \ese de mestrado, USP, 1967 {inédlita), CHaul, Me: Da Realidade sem Mistérios ao Mistéria do Mundo — Espinusit, Voltaire, Mevleau-Ponty, Editara Brasillense, Sie Paulo, 1981. Wasiuins, A. de: Une Philosophie de 'Amhiguité: L’Existentialisme de Mauri- ce Merieau-Ponly, Bibliothéque Philasophique de Lauvain, 1951. Ricoukur, P.: Hommere d Merleau-Panty, in Esprit, n." 296, 6 de junho de 1961, pp. 1115-1720. Hymourt, 1: Existence et Dralectique dans fa Philosophie de Merleau-Penty, in Los Temps Moderne, ndmero especial, 184-185, 1061, pp. 228-244, Lacan, J.: Maurice Merleau-Punty, ibi 54. Lorar, Cs fede d’Etre Brut et dey ibidl., pp. 255-286, Powarains, Note suit le Probléme de Moconscient chez MerleauPonty, ibid., pp. 287-303. Saatae, JoP.: MerlenuPonty Vivant pp. 308-376. ‘Wanens, A, de: Sduation de Merleau-Ponty, ibid., pp. 376-390, Want, J.: Cette Pensée. .., ibid, an Gawnnune, M. de; Maurice Merleau-Panty (108-7961, in Revue Philasophi- que, n° 1, 1962, pp, 104-106. Baer, Ry: Mericau-Ponty ef ['Existentialisme, ibid., pp. 107-117. Duraewni, Mu Maurice Merieau-Ponty, in’ bes Etudes Philosphiques, 1° 1, 1962, pp. 81-92, Lirort, Cr Poshicio, in O Visivel e o invisive!, Editors. Perspectiva, $40 Paulo, 1971. Arc, n° 46, dedicado a Merleau-Ponty. EL TEXTOS POLITICOS* + Traduvidos dus originals trance ur da Murkismie”, “Marxisme et Pailosophie", publieaslos em Sons ot NowSons, Faitions Nagel, Paris, 1965, 5° erigan; “La Crise de L'Entendement™ ¢ “Epilogue”. em Les Aventures de (a Dialectigue, Gallimard, Paris, 1995, Notas do Tradutar 1 £m Toro da Marstsmo Este ensaio de Merleau-Ponty foi escrito em agosto de 1945, nu mamento em que termina na Hu roa a Segunda Guerra Mundial. Thierry Mauinier. autor cumentade pelo ensaio. ¢ tomadlo pela fikisol como modelo exemplar da vunguarda fascista. Esta, pretendendo ultrapassar o fascism feal ¢ & marxismo, fazia criticas ao movimento Fascista por desviar-se de seu destino historieo, qual seja. o de resolver us dois grandes problemas de nossa época: 0 problema peoletirio e a pro blema nacional. O verdadcieo fascivano, waundo Maulnier. seria aquele copa de resolver a ques tio da luta de classes 20 interior da nagéo, presetvando esta Gltima cm seus valores originais, Neste ensaio. Merleau Ponty examina © sigaificada historico-desac “fascismo verdadeiro”, mos trando que seu postulado (resolver 0 prablema profetario no quadra da nag’) o encaminha inevi tavelmeate para os resultados abtivos pelo fasciemo concretimente existente, © emsiio de Merleau-Ponty apresenta duas Faces igualmente importantos: a primeira, ja mencio nada, ¢ 0 cxame da teorla fascista dante da pritica fascista: a sepunaa, o exame dos riscus corri- dos pelo marxismo quando vitina de intecpretagdes mecanicistas que aletam a compreensao da dialéticn como suporte © mator dar histbris, 2, Mar.siemo v fitosafia, Este ensaio fei escrito quando se iniclarum as querclas contra a Yenomenologia ¢ 0 existencialisme, AS criticas upresentadas por Merleau-Ponty’ 0 feitas tanto pelos espirituabistas (come Ferdinand Alquié). quanto pelos maraistas feorno Naville, Garaudy, Hervé, Mounin), Mais tarde, surgiria a critica de Luikies (Existencialismo ou Martismo?) ¢ de Jean Desanti (Feromenologie ¢ Praxis). Contemporaneamente, bat ax critieas de Foucault (A's patauras ¢ as coisas), de Derrida (4 vox e 0 fexémreno), de Althusser © seu grupo. A linha adotada pelo cnsaio € wriphice: 1) Merleau Ponty pro cura mouirar que para Marx a ilgolagia ¢ wma reskidade endo uena aporéncia, como queriam cer tos marxistas mecanicistas: 2) a discussio sobre a ideologia ¢ a situacdo da filesofia no-marxisme, eva Merle Ponty ao caame da questo ceatra! da filosofia, qual soja, 0 estatuto da conseiéncia € do objeto, mostra sulugdio dialGtice que devem reeeber € que Marx enicontcou; 3) analisando 08 conceitox de “matéria” © de "prdels". Merlomy Ponty procura mostrar que uma filosofia fenomenaldgien nie é incompativel com o marsisine, como &, justamente, > caso do mecanicisma, pretensamente marxisia, E preciso lembrar, como lembrou Sartre no artigo em meméria de Merkeau-Ponty, que a fenome- nologia ¢ 0 existencialismo recolocaram os problemas das relagSes entre Hegel « Marx nas discus ses (wirieas, aa Franga, ultrapassando 0s: programas ofieiais da Universidade francesa. que no iam além dos estudas sobre Kans. EMTORNO DO MARXISMO Thierry Maulnier* comegou a escrever sobre politica no periodo de ascenso do fascismo. Pensou ¢ falou muito a esse respeito, ora com fervor. ora cum reser vas. Sem sombra de duvida, justamente por levar o fascismo muitoa série e exami nélo gravemente, aceitando-e aqui, rejeltando-o acold, contribuiu para fazé-lo respeitado. Como cle proprio escreveu. a sinceridade de alguns € um auxiliar necessdrio das mistificacdes histéricas.* Dito isto, é preciso logo screscentar que nosso autor conduziu-se de tal mancira que escapa a polémica ¢ aos processes de tendéncia, indo colocar.se na ordem da filosofia politica, onde ha opinides verda- deiras ou falsas, mas niio opinides condendveis. Lembremo-nas de que em maio de 1940, deixado sozinho, pelo acaso das circunstincias, na diregao de um hebdo- madario. Thierry Maulnier fez aparecerem alguns niimeros resolutamente “beli sistas” que. dois anos mais tarde, permitiram ao mesmo jornal denuncid-lo como agente da Inglaterra. Entre 1940 ¢ 1944, nos jornais da zona sul, em gue colabo Fava, limitou-se ao papel de critico militar ¢ jamais quis que © interesse que demonstrara pelo fenémeno fascista pudesse ser utilizado pela propaganda dos fascismos estrangeiros, Portanto, nfo somente deu provas de independéncia e sinceridade — virtudes privadas que nao sd decisivas em politica — como mos- lrou ter 6 senso das responsabilidades histdrieus e compreendida que num pais. mesmo parcialmente ocupado, justamente por ter-se interessado pelo fascismo, nfo poderia mais assinar uma erdnica politica. & isto que, hoje. da a ele o inteiro direito de publicar suas reflexdes, ¢, a nds. toda liberdade para discuti-las sem pensamentos preconeebidos. Seu interesse pelo fascismo era condicional, Para Thierry Maulnier, o pro blema de nosso tempo consistia em unir duas forcgas até entio separadas: as forgas proletarias, que vio rumo a uma sociedade sem classes pela revolugdo econdmica © social, ¢ as foreas que tendem a conservar 2 nagio, forma de civilizagao da Eu ropa ocidental. Considerando o fascismo em seus comegos — e talvez dando muito crédito 4s declaragdes de seus tericos — acreditou que o sentido do fend- meno encontrava-se na realizagao dessa uniao. Tal era, pensava ele, a verdade his térica do fascismo, fosse qual fosse a conduta dos diferentés fascismos existentes, que poderiam ou nio permanecer figis A sua missio, Quanto a este aspecto, ‘Thierry Maulnier multiplicava as reservas: “O recurso 4 Agdo, 4 Raga, ao San "Neste lexto, Merleau Ponty coment -@8 artigos de Thierry Maulnier publicados na revista. Cam ‘Sat © un jornal Levon Francaise. ambos de extrema dircitn, Comenta ¢ analisa tammiséi vob livrus lo mes aucor: Violence 1 Conscience ¢ Au-dela da Nucionatisme. (N. dT.) © Wiodenee et Conserence, pig, 128(N. iu A) 4 MERLEAU-PONTY gue, ao Chefs prédestinado, & missiio superior de um povo, toda a tralha suspeita do nacionalismo moderno siio apenas os substitutes da inteligencia desfalecida, 0 apelo do homem as trevas para recuperar 6 dominio de um mundo onde o saber € impotente para guid-lo”.® Esperava somente que “instintos confusos, tendéncias contraditorias. associados a fragmentos de antigas doutrinas, a ressentimentos por eres grosscitos. a interesses por vcacs sOrdidus”.- trouxessem para a historia um verdadeiro fascismo. sem perseguigdes raciais. sem opressaio, sem sueira ¢ in- teiramente dedicado & solugdo do problema proletirio nos limites da nacgio. Era Precise. pais. ajudar o fascicmo a tomar conseigneia de sua verdadeira destina gio historiea ¢, de algum modo, uansformi-lo nele proprio. © fascismo apelara “para sobrevivéncias morais, para vagas reivindicagées. para mitos tio vagos somo os do heroismo. do dever. do sacrificiv. para as fontes mais eels da exal tagao ¢. par vezes. as mais: suspeitas™.° Era preciso reculher 6 aure escondidd nessa lama, A questo consistia em saber se reformas sociais de pormenor, o ra: cismo ¢ a cxaltagio da comunidade nacional nig serviriam apenas para escamo- lear a prablema social ¢ proletarian, segundo as receitas bem experimentadas do nacionalisme tradicional, ou se, ao cuntrario, ver-se-ia aparecer na Alemanha e na Italia um novo tipo de sociedade. Compreende-se que Munique, a ocupugio de Praga scis meses mais tarde, 4 guerfa da Polonia e tudo o que Veio a sepuir ti nham esclarecido definitivamente Thierry Maulnier sobre as relagdes do fasei mo com sua “esséngia™ historica, e que cle tenha, sem hesituglie. reeusado ao fascismo existente a simpatia que testemunhara por um certo fascism “pas: sive! E importante que tiremos dessa experiéncia histrica todos os ensinamentos que comporta, Queremos dizer: fascismo de Thierry Maulnier era verdadeira- mente um fascismo possivel? Foi por acaso ou por uma escolha imprevisivel dos individuos que o nazismo ¢ 0 fascismo finalmente rocorreram a guerra ¢ a con- quista? Era razoavel esperar deles a solugio dos problemas do nosso tempo? Somos livres para atribuir a um regini¢ o scntide que nos agrade encontrar neie, ou ha um meio para apreender a kigica conereta de sistema ¢ que © conduz neces- sariamente, ou pelo menos provavelmente, as suas decisdes tiltimas? Desde [938 ni se poderiu reconhecer. entre os diferentes aspectos do fuscismo — seu aspecto inovador ¢ seu aspecto tradicional — aquele que deveria finalmente prevalecer? Para perceber isto teria sido suficiente abandonar 0 método ingénuo do intelectua. lismo ¢ procurar © conteiido latente do fascismo sob seu conteido manifesto, Thierry Mauinier desenhava uma planta do fascismo ajuntando algumas idéias que the agradavam: a idéia de uma revolugae social ¢ a idéia de civilizagio nacio- nal, esforgando-se para mostrar que ambas sto compativeis, Ora, a critica politica niio se acupa somente com idéias mas também com as condutas que tais idéias mascaram em vez de exprimir, Meso se, no plano das idéias, anagao ¢ a revolu- gio ndo sio incompativels, no plano da ago ¢ na dindmica da historia um socia 9 du-deld du Nationalixme, pay 19.(N, do A.) bith pag. 29.(N. do. A.) thie pig, 2548. do A.) EM TORNO DO MARXISMO 5 lismo deixa de sét socialismo se for “nacional”. Os burgueses de todos os paises compreenderam muito bem que acrescentando esse prefixo * ao socialisme supri ime-se tudo o que hé de inquietante nele. E preciso saber decifrar essa linguagem que as poténcias compreendem desde o primeiro lance. Hoje digamos apenas que colocar o problema nacional eo problema proletarie no mesmo plano é, na reali- dade, corromper a consciéncia socialista. pois ¢ faze-la deseambar do humanis mo para 0 empirismo, au, se s¢ preferir, da politica “aberta™ para a politica “fe chada", ficando, entio, qualitativamente modificada. E cessando de fato de geo. Iher a revolugaio porque cessa de escolhé-la absolutamente. em virtude de uma logica vital que jamais pode ser vencida pelas boas vontades. O marxismo viu muito bem essa lei do tudo ou nada, ¢ sua eritica do oportunisme ou da social- democracia contém uma psi ise da vida politica gue um dia sera preciso de- senvolver.’ Para a experiéneia politica, seis anos de dor ¢ luto seriam o mesmo que nada, se continuassemos a pensar que @ fascismo teria padido realizar a so- cialismo; se nio compreendéssemos que, desde @ origem, recuando diate do problems proletirio, a fascismo escalhia as “solugées” (alias ilusérias) da guer- ra eda conquista: se nao Livéssemos aprendide 4 unir politica exterior ¢ politica interior come dois aspectos de uma escolha indivisa: se ndo tivéssemos aprendi do a considera um regime ou um movimento polities como um organisa vivo onde tudo (em relagao com tudo. Ver-se-t que Violence et Conscience nao vai até esse ponto. As solugdes de Thierry Maulinier permanecem hoje aquilo que cram ha sew anos. Frente ao fas cismo empreendia uma critica “de interior, Os jovens que liam a revista Com- bat eram, evidentemente, simpatizantes do fascismo e nessa revista era-lhes ensi- nado come criticar severamente as insufici¢neias dese fenameno em materia de politica social. Como diz hoje. perfeitamente. Thierry Maulnier. * cada fascismo tem uma “vanguarda” que preenche, sem saber, a fungdo dupla de grangililizar os elementos de esquerda aderidos.ao regime na esperanga de uma revolugio social. ¢ de inquietar os elementos de direita que, sem essa ameaga, empurrariam o sistema numa diregdo reacionaria. Nao podemos deixar de pensar que escrevendo tais li nhas Thierry Maulnier yolta-se sobre si mesmo. & justamente sua pretensiio de ir simultaneamente para além do nacionalismo ¢ para além do marxismo que o colo ca na vanguarda da ideologia fascista. Hoje mesmo, quance depois de muito tem- poe com a maior clareza possivel retirou toda sua simpatia por qualquer circulo fascista, sua posigao ¢ bem pouto diferente do que foi. Ensina que o problema pro : 9 problema dos problemas, que o capitalismo deve ser destruido. Mas di- ¢ habitualmente 20s leitores do Figara ¢ do Carrefour,” sobre os quais pode- se dizer, sem melindrar ninguém, que nao esti votndos de corpo e alma a revolu- go social. Ma imprensa deste verao qual 0 jornal que dedica a Violence et Cons- Nacional, Nséional soctalismo, isiy &. nariwrios (Nebo T.) * A exte-respelio podem ser cnnaulfados os rcpuintes textas: Fru Civileapao de Herbert Marcuse, Psieale. gia de Masse co Fascisme de Wilhelm Reich «A Personalidade Aurertairia de Theodor Asiorno, (S, 007) © Viokence of Conseience, pig. 112 es, (Noda A.) > sJoravis franceses de diesita, (Ne d-T.) 6 MERLEAU-PONTY cience duns colunas de primeira pagina? — £ Epaque.’? O que & retido do livro? — Justamente as conclusdes. tio timidas que iremos discutir, Em tal meio. as idéias de Thierry Maulnier, ainda uma vez. s6 poderiam servir de caugdo moral 4 politica reacionaria. &. pois, de direito, finalmente, gue Thierry Maulnier perma- nece sociclogicamente um critica de direita. Tanta lucide2. tanta honestidade ¢ vigor na reflexdo, tanta timidez na escolha de um piblico c nas conclusdes: a exisiéncia dessas duas atitudes so se explica por algum complexe politico ne autor, O problema de ‘Thierry Maulnier é 0 pro- blema da direita intelectual francesa, problema que os homens de trinta ¢ cinco anos sentem tanto melhor porquanta, de um modo ou de outro, foi também o deles em algum momento. Por volta de 1930, Action Frangaise’' dispunha, entre os estudantes, de um crédito incalculavel para os jovens de hoje ¢ cujas razbes seria preciso investigar. Em todo caso, € apaixonante ver Thierry Maulnier rejeitar Pouco a pouco suas primeiras visdes sem, contudo, desembaragar-se completa mente delas, ¢ perceber como uma reflexdo to severa ora é retida aquém do mar xismo. ora toca em seus problemas fundamentais Havia no maurrasianismo’? de 1900 uma reagio sadia contra as ilusdes Kantianas da democracia. © otimismo demoeratieo admite gue, num Estado onde os direitos do homem sao garantidos, nenhuma liberdade usurpa as outras liber- dades ¢ a coexisténcia dos homens como sujeitos autdnomos ¢ racionais encon- tra-se assegurada, Ista significa supor que a violéneia faz uma aparigio episidica na historia humana, que as relagges ecomimicas, em particular, tendem por si mesmas a realizar a justiga c a harmonia e, enfim, que a estrutura do munde natu- ral ¢ humano é racional, Hoje sabemas que a igualdade formal dos direitos ¢ a liberdade politica mascaram relagdes de forga, em vex de suprimi-tas. F, assim, o problema politico consiste em instituir estruiuras sociais € relagGes reais entre os homens tais que a liberdade, a igualdade e o dircito tornom-se efetivos, A fraqueza do pensamento democritico reside no fato de ser menos uma politica © mais umn moral, visto que nao coloca qualquer problema de estrutura social ¢ considera as condigdes do exercicio da liberdade como dadas com a humanidade, Contra tal moralismo, nés todos nos alinhamos do lado do realismo, desde que este soja entendido como uma politica ocupada com a realizagdo das condigdes de exis: téneia dos valores por cla escalbidos. © imoralismo maurrasiany & outrs coisa. Em vex de voncluir que a liberdade ¢ a igualdade, ndo estanda dadas, estao para serem feitas, renuncia a ¢las, Tendo reconhecido que a visao que temos do homem através da consciéncia é uma visio abstrata que uma sociedade nao é um ajuntamento de consciéncias puras, livres ¢ iguais, mas antes um sistema de + Também jornal francés de dieeta, (NT) ** Jornal de Extrema direiny, (N. do T.) 1 © autor se Ftere i polities de Mauers (¢ Barres}, que dars-do inicio do adnulo, que fommecew i dive tuna linha pessimista,cinica e queriaria, (N.d0 T.) EM TORNO DO MARXISMO, % stituigdes as quais as consciéncias devem aquilo que podem ter como razo € liberdade efetivas, recusa definitivamente o juizo das consciéncias ¢ fax da politica uma técnica da ordem, onde nao ha lugar para os juizos de valor, O maurrasia- nismo é, em boa parte. uma eritica do interior em proveito do exterior. A justia, a verdade, cuja fonte os home creditam possuir enquanto sao consciéncias. na realidade repousam sobre tribunais, livros e tradigdes e, portanto. sao tao fra. gcis © ameagadas pelo juizo individual como estes. Q individuo sé vale e pensa corretamente gragas a Sells apoios exteriores, sendo esseneial conserva-los para ele. O politico € aquele que reconheceu o preco das coisas existentes ¢ que as defende contra as fantasias do interior. Trata-se de salvar o homem historica- mente constituido contra a natureza que, em nds ¢ fora de nés,o ameaga sempre por ser puramente transitiva. Assim, 10 devemos depositar a menor confianga no curso das coisas; devemas venerar as oportunidades admiraveis que permitiram o aparecimento de uma humanidade. e nao deve passar pela cabeca de quem quer que sey abandonar essa herunga nas maos de herdeiros que # dilapidariam. nem. consultétos sobre o uso que se deve fazer dela, Ha aquetes que saber porque compreenderam a historia, e aqueles que leucamente s6 consultam sua propria conscigncia, Donde um pdthos pessimista, cinico ¢ autoritario cujas pegadas sio encontradas em todas as obras de Thierry Maulnier. Eis por que dizia que o édio € ds paixdes st incendeiam melhor do que a boa vontade, au que,“ boa parte da verdadgira politica consiste em por a servigo do bem geral aquilo que se convencionou chamar vicios dos homens. ¢ em impedir. tanto quanto pos- ivel, projudicd-los com aquilo que se chama suas virtudes”. Eis por que evoca “a poténcia eficaz da imbecilidade”.'* Eis por que define a liberdade come “e bem rcivindicade por aqueles que aspiram a poténeia durante todo o tempo em que ainda so fracos”."® Eis por que havia pessimismo cada vez que falava so bre u democracia ¢, mesmo hoje, quando fala sobre os acasos da historia.'* Bar- rés ¢ Maurras julgavam o mundo e nossa vida um tumulto insensato onde se de- senham algumas formas frageis ¢ preciosus. O funda de suas idéias exprime o de sespero de 1900. Thierry Mauinier deve & sua primeira formagio politica esse sentimento de um caus possivel, @ esse respeite pelo hoamem no menosprezo pe lox homens, Entretanto. desde seu livro de 1938, aparece uma outra idéia, conduzindo-o alhures, Rejeita 0 progresso. mas iguulmente rejeita a idéia maurrasiana de uma hatureza humana imutavel que redue os problemas politicos aos de uma imutivel sociologia da ordem. “E absurdo negar que o homem seja capaz de progresso; nie & menos absurdo aereditar que taix progressos o liberum (...). Cada vez que © bomem introduz um elemento novo no sistema de relagdes conhecidas, censti. tuintes de uma velha civilizagde, wansforma em proporgdes incaleuliveis todo o sistema das relagdes ¢ pode introduzir ai o germe de uma imensa desorganizacio; © Atedeti du Nevinwalisme, pig:84.(N.60 AL) "8 fbi, ig, 23.(N. Uo A) "5 Thi. mig. 106.(N, do A.) 14 Wiolemer ef Conscience, pnt. Wh 4M sho A.) 8 MERLEAU-PONTY assim, Certos progressos puderam ser pagos com recuos muito maiores (.. .). Sai- bamos, pelo menos, que nada criamos sem ter, em seguida, que enfrentar a cria- gao. Somente sob esta condigao poderemos abordar os problemas postos pelo mundo moder sem desdém estipido, terror imbeci e otimismo simploria, mas caras do pensamento impotente.”’? Thierry Maulnier introduzia, dessa maneira, a idéia de uma dinamica social e de um movimento da histéria. A politica, portan to, ja no poderia mais limitar-se as reccitas seguras de uma arte dé governar ea um uso feliz dos acasos, mas exigia uma andlise da situagio presente, devendo Feconhecer um certo sentide da hisiéria a ser levado em conta se nao quisesse correr o risco de tornar-se ineficaz, Entre os acontecimentos empiricos era preciso distinguir'® aqueles que obrigam a histéria a dar um passo irraversivel, porque respondem aos problemas do tempo, daqueles que so apenas aventuras, porque repousam sobre um concurse das circunstincias = que ndo sobreviverao. Nada garante que o poder cabera aos homens.e ds forgas mais capazes de dominar as dificuldades do momento. @ curso da historia é contingente, Nem sempre o me- lhor ou o mais verdadeiro vence. “A historia esta repleta de ocasides perdidas, de riquezas desperdicadas, de engajamentos em becas sem saida. ** 0 sucesso, pelo menos por um certo perfodo, pode caber ds ideologias menos rigerosas. Como dizia Péguy, ha doutrinas verdadeiras que nao obtém inscrigao histérica 6, inversamente, acontecimentas luminosos que nao levam a historia a dar um passo sequer. Mas a histéria & racional pelo menos num aspecto: um movimento que nie consegue perceber sua destinagao histérica e colocar os problemas de onde emergiu tem todas as chances de desviar-se, abortar, ser apagado do curso das coisas ou deixar na trama da histéria apenas um “rasgao efémero”.2° O movi mento bem sucedido por um instante n4o & sempre o mais verdadeiro, nem o mais vilido, todavia é preciso que o seja se deve durar. Se, por exemplo, 0 fascismo su. pera oO antagonismo das classes somente pela exaltagao fugaz do sentimento nacional € por um novo apelo 4 boa vontade dos oprimidos. ¢ se continua a igno- Tar os problemas em ver de resolvé-los, desaparecer por no haver aleangado com sua vontade consciente os motivos profundos de onde nasceu ¢ por nao haver assumido sua propria verdade. Via-se, pois, surgir a idéia de uma politica que nao se cria ex nihilo no espi. rito dos individuos. mas se prepara ¢ se elabora na historia, © nado no sentido Maurrasiane de uma historia que se repete, mas no sentido de uma historia que se ultrapassa ¢ apresenta acs homens situagdes novas a serem dominadas. A his toria comport vetores, tem um sentido. No que nela as coisas se disponham em vista de um fim, mas porque expulsa os homens ¢ as instituigdes que nao res. pondem aos problemas existentes, N3o que tudo o que nela acontega mereca, ser, mas porque tudo o que desaparece merecia desaparecer, Ora, se dessa maneira '7 Au-deld da Nationalism, pigs. 5-16. (Nod A.) $8 Ibid. pings: 2-21.(N. do A.) 1" Ibid. pig. 21.(N. do A.) #9 sbi pag, 31, (N. da AL) EMTORNO DO MARXISMO 2 admitimos certos problemas eficayes nv coragan ds ia, a andlise de nosso presente nao deve dirigir-se somente as vontades e ideias dos homens. mas deve ser total. atacar o prdprio arranjo das coisas ¢ a situagio econdmica que. como todo o resta, adquire dai por diante uma significagao histarien. A idéia de uma logica da historia tem como consequéneia insvitavel um certo materialismo his 1érieo. Por esse Angulo. Thierry Maulnier encontrava o marxismo. Portanto. a que pensava ele a esse respeito? Tnicialmente censutava o marxismo por Haver subestimado o papel do homem na realizacao da histéria, Para Thierry Maulnier, se a histéria coloca pro- blemas, contudo, por si mesma, ndo thes fornece qualquer salugao. A decompesi- gio do capitaliemo nao traz em si mesma a chegada do regime que o substituira. Cabe ao homem conceber livremente as instituigdes que tirario uma nova ordem do caos ¢ que reterao a histéria 4 beira do nada. Em nossa opiniao. neste ponto Thierry Maulnier s6 estava em desacordo com um marxismo superficial, Com efeito, como negar o papel da iniciativa humana, se 2 classe sé é eficaz na medida em que toma consciéncia de si propria??’ Visto que o marxismo sempre disse que a revolugiio niio é fatal, tanto para cle quanto para Thierry Maulnier ha apenas um “semideterminismo”?? da histéria, Para o marxismo, eomo para Thierry Maulnier. 2 determinagdo histérica dos efeitos pelas causas passa pela cons- ciéneia humana, donde resulta que os homens fazem sua historia, embora nao a fagam na indiferenga ¢ sem mativos,?® Admitindo que a verdade politica apéia-se sobre uma situagiio de fato ¢ prolonga os antagenismos dados rumo & sua solugao no porvir, Thierry Mauinier di yo marxismo tudo o que este pede: por tomar seus motivos no curso das coisas, a decisio humana aparecera, pelo menos retrospecti vamente, como chamada por clas, de sorte que, na histéria realizada, nunca pode remos descobrir alguma ruptura, algum hiato entre os efeitos ¢ as causas. A este respeito, Violence et Conscience formula com perfeita clareza as conseqiiéncias de um método histérico em politica: A partir do momento em que fica bem compreendido que'a histéria nunea é dada aos homens como uma area vazia onde podem construir'o que Ihes agrada, mas como um certo estado de coisas produ zido por causas anteriores, cuja existéncia nao podem fingir ignorar e por cuja consideragio devem, de bom ou mau grado, regular sua conduta, a unica liber- dade que a historia thes deixa ¢ a de compreender melhor ov pior o mundo em que se encontram, comportando-se mais ou menos vantajosamente em seu interior. Desse ponto de vista, se uma infinidade de representagdes ¢ condutas estho conti- das no fato da consciéncia, s6 ha uma representagao ¢ uma conduta contidas no 21 Sobre exe problema veja-se Lukites: [itidirie e Consciéacta dit Clesse. (N. tho T') “© Auedeld di Nartonalisme, pig. 209. (N.dd A.) 29 Na fenomenoinuia da Percepcdo, Merleay Ponty afitma: “Nem 0 conservador nea o proletanio cansciémoin de extir engajaders mim lun exchisivamente ecomimica. Sempre din um significnde urea sua ago, Neste-sentido, aurea hi uma eaustlidade econdmics pula, pois a cesnomia Ado 6 um sistent fecliudhy, may fae parte dit exibténcia Lola! © comerelu da soviedade”. (Phtnomdaufoxle de lu Perception, pias. 201, edigdo Gallimard.) Nevse menino texto, de 1947, Merleau Ponty invacava a nogip treudiana de sabrede ferminagia para o marxismo,a fim de pensar as relagdes dialéricas emice a ideologia, 2 picningia e aeonno matt, dol) 1 MERLEAU-PONTY mais alto grau de consciéneia em que o homem realiza c, simultaneamente. destréi a liberdade que the deixada pela hist6ria, justamente em virtude de sua conseiéncia”.? * Na realidade, desde 1938 Thierry Maulnier 5 estava separado do marxismo pela descrigdio da situagao fundamental de nosso tempo. J4 0 dissemos, via nela dois fatos igualmente essenciais: primeiro, a aparigho, nas socicdades medernas, de um antagonismo de classe que destréi a unidade da nagio. 9 proletariado sentindo-se de direito estrangeiro numa patria onde é admitido apenas para vender seu trabatho, sem permanecer proprietario de seus produtos; em seguida, a resis- téncia da nagio ¢, particularmente, das classes médias, a esse processo de decom- nosigao, Toda analise do presente que omitisse um desses dois fatos ou tentasse subordinar um ao outro pareceria-the uma analise abstrata. Precisamente censu- fava o murxismo por nos dar apenas um esquema descarnado da historia, porque esta ficaria reduzida a histéria econémica, chegando mesmo a deformar esta tlti- ma ao considerar a resisténcia das classes médias 4 proletarizacio e seu apego 20s valores das civilizagdes nacionais como um fendmeno de superficie. E verdade, pensava Thierry Maulnier, que 0 modo de ser ¢ pensar depende a cada momento das formas de produgao. mas niio é menos verdadeiro que num dado pais, num dado momento, a mancira de trabalhar ¢ produzir depende dos costumes, valores recebidos € psi¢ologia do pais considerado. A prdpria luta de classes s6 tem lugar no interior de uma comunidade nacional. sobre 2 base das aquisigées culturais que constituem a unidade dx nagiio no exato momento em que esta se cinde, “Nao podemos deduzir as trocas sociais mais complexas das trocas econdmicas, a nao ser de mancira arbitraria e verbal; pelo contririo, devemos considerar a existéncia de um meio social complexo (...) como a condigio vital de toda troca econé mica, mesmo a mais primitiva. Por mais considervel que seja, desde a origem, a parte que cabe 4 troca cconémica na vida social — td eonsideravel quanto o sao as caréncias organicas vitais ¢ os meios de satisfazé-las na vida do individuo hu mano — nio constitui a estrutura da sociedade tanto quanto a caréneia de comer, dormir ou vestir-se niio constitui a estrutura da vida individual.”? * Ainda neste panto, a critica de Thierry Maulnier dirigia-se muito menos con tra 0 prdprio marxismo do que contra algumas de suas exposigdes feitas corrente- mente, ou contra certas formulas autenticamente marxistas, mas que esquema tizam a doutrina. Fregientemente, apresenta-se © marxismo como ume reduedo dos fendmenos culturais aos fendmenos econdmicas ou como uma redugao da his \Gria aos conflitos de interesses. Freqiientemente, os marxistas falam da burguesia como s¢ fora uma “pessoa econdmica™ que sempre age em vista de seus interesses: © para quem as idéias ¢ crencas sio apenas meios. No entanto, é verdade que tais interpretagées ¢ formulas ndo podem ser cquiparadas ao marxismo e, talvez, dei- xem escapar sua intuigdo central. A grandeza do marxismo niio consiste em ter tatade a economia coma causa principal ou unica da histéria, mas consiste, ** Wioloace et Consefence, pig. 139.(N. oA.) #5 auoadeld du Nationalisme.(N. des A.) EM TORNO DO MARKISMO i sobretudo, om ter tratado a histéria cultural e a hisiéria econdmica como dois aspectos abstratos de um iinico proceso. O trabalho, sobre o qual a histéria repousa, nao é, em seu sentido hegeliano, a simples produgdo de riquezas, mas, de uni modo geral, a atividade pela qual o homem projeta 4 sua volta um meio huma no ¢ ultrapassa os dados naturais de sua vida. A interpretagao marxista da hist6- fia no a reduz ao jogo constante dos interesses. Admite somente que toda ideolo aia. mesmo. por exemplo. uma moral heroica que prescreve aos homens par em jogo suas proprias vidas, ¢ solidaria com certas situagdes econémicas que a trans portam para a existéncia: a moral das senhores nao deixa de ser uma concepgao individual, tormando-se instituigao ¢ recebendo existéncia histirica apenas quando se encarna nas relagSes econdmicas do senhor ¢ do eseravo ¢ numa sociedade fun dada no trabalho servil. O materialismo marxista consiste em admitir que os fend- menos da civilizagio, as concepgdes do direito. encontram nos fendmenos econd- mices um ancoradouro Aisiérico, gragas ao qual escapam da natureza transitiva dos fendmenos interiores ¢ sedimentam-se no exterior como Espirito Objetivo. A vida econdmica nao ¢ uma ordem separada a que as outras se reduzem. No mar: xismo, ela representa a inércia da vida humana. E ncla que as concepgdes se ins- crevem ¢ se estabilizam, Mais seguramente do que os livros ¢ ox ensinamentos, os modos do trabalho transmitem as geragSes maneiras de ser novas com relagio As precedentes. E verdade que num dade momento. em uma sociedade dada, a maneira de trebalhar ¢xprime a estrutura mental ¢ moral, como o menor reflexo de um corpo vivo exprime a maneira fundamental do sujeito total estar no mundo. Mas. ao mesmo tempo,.a vida cconémica é 0 suporte histérico das estruturas mentais, como nosso corpo mantém os tragos fundamentais de nossa conduta, acima das variagdes de nossos estados de alma. E é por isso que se conheeera mais seguramente a easéncia de uma sociedade pela andlise das relagdes inter-hu- manas cristalizedas ¢ generalizadas na vida econdmica, do que pela anilise de movimentos de idéias frageis e fugazes, assim como se conhece melhor o homem por suas condutas do que por seus pensamentos.? § Havia muita injustiga na cen sura que Thicrry Maulnier enderecava ao marxismo entendido como um materia- lismo abstrato, Nao mais do que De Man,?? citado por ele e ¢m quem talvez se tenha inspirado, Thierry Maulniér nao tinha, entao, tido o cuidado de distinguir o marxismo dos equivocos mecanicistas ¢ utilitaristas permitidos por algumas de suas formulas. A critica de tais formulas deixa intacto o pensamento principal do marxismo, qual seja, o de uma encarnagao das idéias ¢ dos valores. E essa critica © Por isso Merleau-Ponty dedicou wins de stas obris uovestude da Eetrutira de Comportamente, comside fando que ost pods euslarceer a diakitica das relagines entre alaea © corpo, a espirita ea maria, ema isold vel pare a metafisiom, qury por falta de diakética, vis-se obrigada & esoolber um dos termus e reduzir © outro a9, que fora escolbido, ou, enlist, a mamer os cas termios sepurados, apexar da aparente relaglo exisiente enite cles, © mesmo ocorte num certo markisma mecanicisca e economicista qui enusali dade econdmica, nio & eapar dc explicar dinleticamente 0 que ocorre na sunerestnutura politica ¢ weolbrica, iransformando:a cm mero refiexo seeundlirio da infra-estentiics cconimicn, ‘Thierry Mautter etrow Justa mente por confundir esse mecamismo con w verdadeiny meraisme, (N, WoT.) #7 Lider politica belga. Mais adiante Merteau Ponty volturd a falar sabre cle. (N. dol.) 2 MERLEAU-PONTY ndo nos avtoriza @ Lanscender ou “ultrapassar” 4 analise econdmica, nem a aban- donar ¢ fio condutor da luta de classes. Ora, era exatamente isto que Thierry Maulnier fazia. Sob pretexto de que em cada sconiccimento singular a luta de’ classes so transparece através das particu laridades de um pais ¢ de uma época (nesse sentido nunca sendo pura, nunca a Unica em causa), exprimia-se come se certas realidades escapassem da influéncia dela e tratava, por exemplo, a comunidade nacional como um fata tamhém essen- cial, Em suma, recusava tracar a perspectiva sb porque os fatos histéricos com portam condigdes morais e psicologicas, além de suas condigdes econdmicas. Mas a pluralidade de condigdes nao proibe tratar uma delas como condigao principal. E 0 que os sabios fazvem todos os dias. Embora na natureza, em certa medida, tudo dependa de tudo e, a rigor, nao haja fenémeno isolivel, temos leis, isto é. esquemas estatisticamente verdadeiros que se aplieam aproximadamente ao curse da natureza porque, gragas a uma espécie de amortecimento, og fenomenos mais afastados intervém apenas de maneira negligencidvel naquilo que observamos aqui € agora. Do mesmo modo, embora nos acontecimentos tomados um a.um as candigSes econdmicas € as outras estejam misiuradas de maneira inextrincavel, mantém:se o direito de privilegiar as primeiras na andlise dos fendmenos, se esti- ver estabelecido que. considerando um segmento bem extenso da historia, elas desenham mais fielmente 0 curso das coisas do que quaisquer outras causes, Em todo caso, a anflise ccondmica niio pode ficar acantonada gum dos setores da his ‘oria — penetra em toda parte.** A reagdo das classes médias contra a ameaga de proletarizagio nao é um fendmeno distinto da luta de classes e no marca um fra- casso da anilise marxista: tem seu lugar na dialética das classes, sendo uma nova fase c uma nova ilusuagao dela. A propria nao, tratada por Thierry Maulnier somo um fato irredutivel, est investida pela luta de classes, quer porque a bur- guesia invoca o interesse nacional ¢ o perigo exterior para reconduzir os grevistas 4 obediénela, quer porque o proletariado (como em 1793, em 1871 ¢ mesmo em 1944) retoma por sua conta a heranga nacional abandonada pela burguesia, Ia um estranho postulado na opasigao que Thierry Maulnier estabelece entre o movi mento proletario eas exigéncias da salvagio navionul, entre © fato proletario © 0 fato nacional, pois pode ocorrer que o movimento proletirio seja a condigao de salvagio para a nagdo, ¢ nao um perigo para cla. A bem dizer, existem duas nagdes: a nagiio como realidade bruta, com sua armagao burguesa existente esta, sem divida, acha-se ameagada pela luta de classes — e a mago como modo original de vida e conduta — nio se vé bem o que esta teria a temer de ums revo lugdo proletéria mundial. Nao se pode citar o fato nacional como um residuo inassimilavel para @ andlise marxista, pois nds ¢ vemos explicitar-se justamente ** Naqucla nota da Kenomenologic da Percepodo, j& citada anveriormente. Metleay Ponty aliresa; “Ne matcristismo histirien s economis ¢ reinfegradn na histinia em vez de esta ser rodurida tiqueia. O materia lismo hisciricn ¢ uma coneepgiio conereta da kisuiria que leva‘em conta além ‘de scu conmteide menifeuny — Por exernplo, as relagies oficitiy dos “eidades” num denocrucia. — também 0 eu contetide tatene, isto &, as relagies intex humana wis como se extabelacem cletivamente na vida comerefa”. Op. eit, pig. 200. (N. do Th) EMTORNO DO MARXISMO 13 sob a influéncia dos fatores histéricos descobertos por essa andlise. Tada politica gue declara fundar-s¢ sabre o fat proletario ¢ sobre o fate nacional, como se 0 primeiro ndo envolvesse o segundo, sob es aparéncias lisonjeiras de uma politica “concreta” € apenas, na realidade, uma tentativa “diversionista”, como diz hoje Thierry Maulnier, a respeito do fascismo,?® Confessemos somente que hoje estames mais preparados para reconhecer tais verdades do que em 1938. Naquela época tinhamos diante de nos ¢ fascismo em periode de afluxo, isto é, uma floresta de baionetas, mas também uma encena cao “social” ¢ “revolucionaria” impressionante, pelo menos para os intelectuai: Lendo durante quatro anos no Oexvre?? artigos sobre # Europa “Socialista” ¢ sobre o padrao de trabslho, ¢ confrontando-os com a realidade da Alemanha em guerra, aprendemos o que é a propaganda. Sob nossos alhos o fascismo tornou-se inicialmente 9 exército que se batia ¢, depois, 0 amontoade de sucata ¢ ruinas onde subsistem, mal-e-mal, papulagdes gastas, sem idéia e sem vontade politicas. £ preciso um esforgo para nos lembrarmos de sua cara ha sete anos, para distin- gui-lo da guerra onde se afogou, para dar-lhe seus prestigios de sociedade nova “para além do marxisma”, Por outro lado, Vichy e o saorificio de tantos proleta- rios franceses nos mostraram com sobeja evidéncia que o anticomunismo podia levar & traigdo, enquanto a vontade revoluciondria pocia assumir a nagao. Enfim, agora que a Europa deixou de ser uma poténcia de primeira ordem ¢-que a exis téncia nacional nos aparece numa dependéncia tio estreita dos imperialismos mundiais, nossa poténcia diminuida ja nfo nos permite confrontar gravemente o drama de organiza¢ao econdmiea mundial ¢ o fato nacional francés como dais fatos de peso igual. Talvez nossa humilhagao nas desembarace do surpreendente provincianismo da politica francesa anterior & guerra, ¢, particularmente, da poli- tica do Action Frangaise. Coma, durante anos, tivemos que esperar que o mundo nos salvasse, talvez tenhamos aprendido a colocar os problemas mundiais ¢, por termos conhecido as infra-estruturas, j4 nlio poderemos ignorar a matéria da his trig, assim como um doente ja nfio pode ignorar seu corpo.3? ‘© que € certo é que em seu novo livro Thierry Maulnier faz justica a0 mar xismo como nunca fizera antes, ¢ propde uma visio da histéria que retenha tudo © que lhe @ essencial. A idéia de “mistificagio” histérica parece té-lo esctarecida: sobre a visio marxista da histéria. “A um certo grau de decomposigao da socie 24 Phi pig. 93.4N. do A;) 8 Jornal de extrema divcita. (Node 7) 2) Freqdentemenée Merleay Ponty sponta w pitalagia pari # sonprecasite da “mermalidads”. Na ptimeira, ©-corpe revels mils cluramente as eelagtes que mantém com a consciencin, relagies que na vide “noretl passam deypercebidas. Alnda no texlo ji cilaclo da Fenememolugta da Percepedo ele aos iin: Samente cua do uma tevolugio st aproxima é que a hist6ria parcee abragar taais forcementte a economia. Assim com na Vio individual @ densa submete 9 omen a4 Vimo vital de seu corpo, tainkém auma situagi rovolueia rita, por exemplo num movimente de grave: geral, as relagies de prodesio transparscem ¢ so enpressa mente perecbidas comp decinivas”, (Op, Ou bag, 201.).A guerta deinow clara a presengst decisiva da inéta:es {suture na histor, especialmente o papel do imiperfalisma, 42 sorte que pensar. 4 maneira fastiita, ue o problema proletitio pode ser resnlvidn no:seia da nario ¢ recusar a determinagao fimdamental deese proble 2. A guerra revelau © imperialisma © apanteu o imeracionalisme proletiria, (Ni dot.) 14 MERLEAU-PONTY dade capitalista”, escreve ele, “o capitalismo nfo pode mais encontrar salva- guarda a no ser numa atitude resolutamente anticonservadora; a casta capitalista no pode mais encontrar homens capazes de lutar contra 0 proletariade, a no ser fora de seus proprios quadros; a estrutura econdmiea que comporta a espoliagao do trabalho ©. dominio do dinheire sé pode contar com os.mitos do desinteresse ¢ do heroismo para prolongar seu lento perecimento. Nao se trata mais de quebrar frontalmente o cla revolucionario anticapitalista, mas de crientar esse €l8 segundo uma diregdo obliqua que atenuard « forga do choque ¢ preservara uma parte das instituigdes existentes.”*? Por outro lado, como Thierry Maulnier exclui a inter preta¢ao do fascismo como “disfarce autoritério do grande capitalismo”.?? consi- dera, ento, que a manobra é pré-consciente em quase todos os Fascistas, Nao & seguro, depois de tudo, com exce¢do de alguns “senhores”, que algum burgués tenha concebido o diversionismo fascista sob a forma de um projeto deliberado. O mistério da hist6ria reside, justamente, no Fato de que, sem plano preconcebido, os individuos ss comportem sob todos os aspectos como se tivessem uma poténcia infinita de previsio. que, por exemplo, o “burgués” escolha com uma seguranga infalivel em todos os dominios — politica, moral, religifio, arte militar — as visdes e os valores que de fato tornariio possivel a mariutengao do capitalismo, Conluio, premeditagdo ou coincidéncia, perguntava-se apés 0 processa de Pé- tain.** Provavelmente nada disso, Mas Pétain, tal como havia sido formado ¢ definido por cingiienta ans de meiormilitar ¢ dez anos de meio pré-fascista, em cada circunstancia, por exemplo diante do problema do armisticio, adotava. como por reflexo, a atitude que menos urriseasse liberar as forgas revoluciondrias, A I6- gica da histéria nao opera com idéias claras e com projetos individuais; tem como instrumento complexos politicos ¢ projetos andnimos que dio a um conjunto de individuos um certo estilo comum, “fascista” ov “proletario”, por exemplo. Enquanto nado compreendermos que nossas acdes, passando de nds as coisas, adquirem um certo sentido estatistica © objetivo que pode ser bem diferente daque le que thes davamos, ficaremos surpreendidos diante delas, nZo as reconhecercmos, seremos cnganados por esse “misterioso poder de autodetermi nagio"** de que a historia parece dotada, segundo Thierry Maulnicr. Donde aquele ar de sonados mal despertos que se vé em certos “traidores”, quando, subitaments, o acontecimento Ihes mostra a figura desconhecida de sua propria vida, A histéria nao é feita pelas idéias sozinhas, nem pelos interesses conhecidos como tais, mas por interesses disfarcados em id¢ias, por idéias metamorfoseadas em preocupagées ¢ angiistias vagas no vaivém confuso da existéncia, “Se o deter- minismo da Segunda Guerra Mundial nao pode, de modo algum, ser reduzido ao jogo das causas econémices, ¢ se as causas econdmicas da guerra sd executam seu papel num emaranhado e numa confusao dificilmente decifraveis, contudo, hi 22 Vinlenew ee Conscione. pg. 104.(N. oA.) 29 Mba pig. 13. do A.) 24 © marechal Pétain aysinou @ armaisticio de Vichy, legatizanda a ocupagio da Fraga pelos’ marinas. Postcriocmente fui julgado e mors como eolaboracionista.(N. do T,) 38 Phi. pig. ABN. do. A) EMTORNO DO MARXISMO is nésse complexo histdrien, onde todas as forgas que regem a sociedade tém seus encaminhamentos, seus angulos de ataque ¢ suas interferéncias, um sistema de desequilibrio cuja influéncia parece guiar os fluxos e refluxos da grande batalha, mais ou menos como os movimentos do aceano sao conduzidos por uma gravita- cao planetaria. Sem davida, a guerra de 1939, numa larga medida, foi a guerra dos povos pela posse das grandes fontes de matérias-primas pela dominagao por meio dessas fontes de matérias-primas.”* © Percebe-sc a idéia de uma espécie de determinismo global ou lateral da economia que, em cada caso singular, permite gue as outras condigdes representem seus papéis, pronta a infleti-las em seu pro- prio sentido. Por muito tempo a discussdo do marxismo foi conduzida como se se tratasse de upontar @ causa da histéria, ¢ como se cada avontecimento devesse estar numa relagdo de causalidade linear com um outro, sendo preciso saber se este Ultimo cra “ccondmico” ou “ideoldgico”, ¢ aereditava-se triunfar contra o marxismo mostrando que ha exemplos de causalidade “ideokigica”. Mas é Gbvio que, por sua vez, a ideologia nao poderia ser destacada de seu contexte econd- migo. S¢ se recusa uma histéria materialista como abstrata, pelas mesmas razdes deve-se recusar uma historia idealista ow espiritualista, Concluir-se-4, portunto, que eada acontecimento comporta determinantes de todas as ordens, Alguns ainda acreditam ultrapassar O marxismo sob este aspecto, visto que nenhuma perspectiva excluida absoluvamente, sem pereeberem que o marxisnio, nag) gue Ihe ¢ essencial, afirma justamente a idéia de que nada pode ser isolado no con texto total da histéria, e também a idéia de que os fenémenos econdmicos, em vir- tude de sua maior generalidade, contribuem mais vantajosamente para o discurso histarico. Nao explicam tudo o que se passa, mas nenhum progresso na ordem da cultura, nenlum passo histrico € possivel sem um certo arranjo da economia, que é uma espécie de esquema ou simbolo material deles. “Cuidemos (...)”, diz Thierry Maulnier, “para nao nos deixarmos levar muito longe por essa vitoria aparente contra o ‘matcrialismo’, Simplesmente cxpulsamos a ‘produgio dos dados materiais’ da ‘base’ em que Marx a havia colocado, para reintroduzi-la no ‘coragdo” da realidade social. Agora nao se trata de expulsar novamente o traba- Iho produtor desse coragiio da realidade social humana, onde © cncontramos intei- ramente banhado por ela, mas banhando-a inteiramente, associado a todas as suas formas ¢ a todas assuas manifestagdes por uma penetragao mitua infinita © por uma plena reciprocidade. Nao se trata de jogar a ‘produgiio dos dados materiais’ nos anexos da histéria, nas cozinhas ou nas dependéncias de servigo da sociedade humana, como fazem com pudor ¢ nojo os historiadores idealistas. A produedo dos dados materiais da vida nfo é a base da histéria humana, também nZo ¢ a servi passiva e desonrada, mas encontra-se nesta histéria, solidamente estabele cida nela, agindo sobre ela por influéncias potentes e continuas, determinando-a & determinada por ela, por assim dizer, em pé de igualdade. Nao podemos hiposta sia Ta num primado de-algum modo transcendente, nem joga-ia nas zonas vergo- nhosas ou desprezadas. © produtor dos dados materiais, o homem que arranca de > Violence et Conacenee pag: 120, (Nde- A.) 16 MERLEAU-PONTY mundo a vida de seus semeliantes, nao ¢ 0 criador da sociedade humana conside- rada em seu ser historico — pois ele proprio, com seu trabalho, é criado por ela — mas também niio é seu escraya: ¢ o instrumento das potentes transformagées que ¢la opera sobre si mesma através da natureza, que combate ¢ freqiientemente domina. A histéria ndo sai dele; nao passa por cima dele, passa por cle (...), Seria vao negar a parte preponderante tomada nas atividades da sociedade huma- na pela csforgo do komo faber para assegurar a sobrevivéncia do homem na natu- reza; e & Gbvio que esse esforgo irradiando-se de todas as partes da totalidade social, em fungao da qual é produzido, determina em larga medida as outras for- mas da atividade humana, a produgdo e a transformagio das leis, costumes, cren- Gas. estilos de civilizagaio c, no final das contas, o comportamento ¢ 0 contetida da consciéncia, Donde resulta que, se a totalidade social ndo’é determinada em suas superestruturas par um substrata econdmico que seria seu produtor, pode-se dizer que essa totalidade se determina a si mesma principalmente por intermédio das atividades que Ihe asseguram a sobrevivéncia ¢ transformam a natureza que a rodeia."*? Quando nos lembramos dos protestos sumarios de “La Crise est dans L’Homme™?* contra o maquinisme americano ¢ soviético, avaliamos a mudanga, Se a economia é na sociedade o que 0 coragio & no organismo, nao & mais poss- vel fixar um contingente dos progressos econémicos; é preciso, camo dizia Bal- za¢, espreitar “o mistério da civilizagdo" de que siio, talvez, o esbogo visivel. Purece que Thierry Maulnier teria invertido suas posigdes de partida. Numa hist6ria onde tudo se mantém segundo uma estranha ldgica, 0 verdadeiro politic no procuraré brincar com as paixées humanas para chegar a fins escolhidos arbitrariamente, Langado com) os homens num drama que nao vai forgosamente a0 bem, mas que em todo caso vai 2 alguma parte, compreendeu que 0 conserva- dorismo ¢ utopia; nao encontra nada que seja insignificante nos homens e nas cai- siuo, LLGI! UALS © ESCULA-O9 © SO pOde LFUNSIOrME-1os Hels proprios. O tempo do cinismo juvenil j& passou: “Governar os homens por suas paixdes é também aumentaé-las perigosamente. A adulagéo-¢ o constrangimento siio duas faces do desprezo — certamente tornam ¢ homem um bom instrumento, mas 0 desprezo & Jjustamente isto”.?" Entretanto, muda-se mais depressa de filosofia do que de moral, ¢ de moral mais do que de politica, Se passarmos da filosofia da historia as conclusées praticas, enconiraremos Thierry Maulnier atrasado com relagao as suas proprias idéias. *° Se ¢ verdade que a luta de classes é um fato essencial, que o antagonismo das classes quebra as formas culturais constitufdas'e, enfim, que, pouco a pouc a decompesigao econdmica do capitalismo corrompe tedas as idéias, todos 27) violence t Conscience, pigs. 154 ¢ 143, (Nd A) 2" Ensaio do Thierry Maidlaier. (N. do.) ° Violenwe ei Conscience, pes. Vt. UN. do A) "8A partir daqai Merleay Ponty comegi x seu “urrependimento” reéricd e sup lise de potitien le Maulnier, para mostrar o divireiy entre sa eonerela como eritice de diveita, (Node T.)

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