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A POETICA OCIDENTAL Tradigéo e Inovagao Lubomir Dolezel Nasceu em 1922, Licenciado em 1949 ¢ doutorado em 1958, tem-se dedicado a0 estudo da histéria da critica literdria, nomeadamente a histéria da pottica entre Aristételes € 0 estruturalismo francés, Tem feito inimeras comunicagées publi- cadas em revistas da especialidade, nomeadamente: Le Triangle du double. Un champ Thématique in Pottique 64, 1985. La Consiruction des mondes fiction- nels & la Kafka, in Littérature 57, 1985. The Visible and the Invisible Peters- burg. Russian Literature 7, 1979. Narrative Modes in Czech Literature. University of Toronto Press, 1973. Vivina de Campos Figueiredo Nasceu em 1961. Licenciada em Linguas € Literaturas Modernas (1985), pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, E assistente estagiéria na Uni- versidade Aberta. Prepara a dissertacgo de Mestrado sobre a obra poética de Robert Creeley. Lubomir Dolezel A POETICA OCIDENTAL Tradig&o e Inovaciio Preficio de CARLOS REIS. Tradugdo de VIVINA DE CAMPOS FIGUEIREDO FUNDACAO CALOUSTE GULBENKIAN | LISBOA oe via Tradugio do original inglés intitulado: OCCIDENTAL POETICS. TRADITION AND PROGRESS eLusomirn DoLezet 1990 Reservadus todos os direitos de acordo com a lei Edigdo da FUNDAGAO CALOUSTE GULBENKIAN Ay, de Berna / Lisboa 1990 ee PREFACIO A EDICAO PORTUGUESA Tal como outros intelectuais do seu pais, Lubomir Dole%el, checoslovaco de nascimento (1922), vive fora do ‘seu pais desde 1968, quando a chamada “Primavera de Praga” terminou abruptamente em represso e exilio. Até entéo, Lubomir Dolezel fora Professor da prestigiada Universidade de Carlos, em Praga, integrado no Depar- tamento de Linguistica Checa; depois disso, fixouse na Universidade de Toronto, no Departamento de Linguas e Literaturas Eslavas, tendo consagrado a sua docéncia & Literatura Eslava e a Literatura Comparada. Presente- mente, Lubomir Dolezel é Professor “Emeritus” daquela Universidade, no que constitui uma distingdo apenas con- cedida a universitérios proeminentes. Desde a sua dissertagéo de doutoramento, apresen- tada e defendida em Praga em 1958 e intitulada Estru- tura do contexto na moderna ficeo checa, a pesquisa e a actividade docente desenvolvidas pelo Prof. Dolezel referiram-se frequentemente a dois dominios articulados entre si: o estudo da Literatura Checa, e 0 das catego- rias, des e estruturas da narrativa literdria. no que a este tiltimo aspecto diz respeito que a obra do Professor Doleiel é sobretudo conhecida, divul- gada como tem sido em importantes revistas de Teoria Literéria: a jé desaparecida PTL - A Journal for Theory of Literature and Descriptive Poetics ¢, além dela, Poe- tics, Poetics Today, Canadian Review of Comparative Literature/Revue Canadienne de Littérature Comparée, Semiotic Inquiry/Recherche Sémiotique, Texte e outras mais, em que Lubomir Dolezel tem colaborado, néio raro desempenhando também funcdes de assessoria edi- torial. Para além disso, cumpre mencionar a sua obra Narrative Modes in Czech Literature (Toronto, Toronto University Press, 1973), trabalho fundamental em que Lubomir Dolezel faculta um contributo de relevante importéncia para a moderna teoria da narrativa, desig- nadamente pelo que diz respeito a fixacio e delimitacao conceptual do sistema de “pessoas” que intervém no proceso enunciativo, bem como das marcas que projec- tam no discurso. Se este é um dominio crucial da reflexdo tedrica de Lubomir DoleZel, outros, directa ou indirectamente rela- cionados com ele, podem e devem ser aqui menciona- dos: a Semidtica, a Postiea e a Estilistica, a Sociolin- gutstica e a Psicolinguistica, as relagdes entre a Cibernética e a Linguistica, a Narratologia e problemas especificos do seu ambito, como a semédntica ficcional, 0 discurso das personagens, a problemdtica dos pontos de vista, a teoria dos motivos, Tudo isto e também a sua relagéo com o legado da chamada Escola de Praga, de cujos trabalhos Lubomir Dolezel tem sido divulgador no Ociderte. nae A publicagdo, em traducdo portuguesa, de A Poética Ocidental tem a sua origem remota, pode dizer-se, no contacto pessoal que mantive com o Professor Dolezel na Universidade de Indiana, no Verdo de 1985. Para além do conhecimento que de parte de sua obra je pos- sula, pude entdo, por assim dizer directamente, apreciar © rigor e a profundidade da sua problematizacio tedrica, evidenciados num inesquecivel semindrio sobre Semiética da Ficcionalidade. Mas para além disso, devo dizer também que conheci no Professor Dolezel uma persona- lidade muito rica e a todos os titulos fascinante, pela ‘sua extensa e diversificada cultura, a que se junta um humor muito fino e um talento de conversador com algo de latino e muito de europeu — apesar dos longos anos que leva jé ausente da Europa. E-um pouco da estatura cientifica de Lubomir Dolezel que a A Poética Ocidental vem confirmar junto do lei- tor portugués. Tratando-se, naturalmente, de uma obra de especialista, por certo destinada a um piiblico univer- sitério, A Poética Ocidental analisa e conexiona contri- butos eventualmente mal conhecidos ainda entre nés: a poética de Leibniz, as teorias poéticas de Wordsworsth e Coleridge, as relagées entre a poética germinica e a russa, a poética de Mukarovsky e Voditka, etc; e mal conhe- cidos também porque, nalguns casos, a proveniéncia eslava ou germanica desses contributos 0 dificultava, sobretudo aqueles que habitualmente tem no francés e no inglés idiomas usuais de referéncia, Deste modo, A Poética Ocidental de Lubomir Dole- 2el preocupa-se fundamentalmente em demonstrar que a historia da Poética ocidental constitui um dominio rela- tivamente desconhecido, naturalmente com excepeGes como Aristételes e 0 Esiruturalismo francés; & luz da moderna historia da Ciéncia e das Ideias, o presente trabalho de Lubomir Dolezel procura, com 0 apoio de autores como Goethe e Saussure, Jakobson, Propp e Mukatovsky, entre outros, preencher lacunas ainda em aberto, assim se enten- dendo melhor os fundamentos e a evolucéio dessa disci- plina fundamental dos estudos literdrios que é a Poética. Razées suficientes para que Seymour Chatman tenha escrito, a propésito desta obra: “Dolezel é particularmente vacacionado para descobrir, em tempos passados, ante- cedentes de modernos problemas e dreas de conhecimento de teoria literdria do século XX. Nao conhego nenhum outro livro que assim tenha tracado a ascendéncia da poética estruturalista”. Por tudo isso e pelo mais que a leitura desta obra amplamente revelaré, a sua publicagdo pela Fundacio Calouste Gulbenkian constitui um acontecimento que ‘cumpre sublinhar de forma bem expressiva. Carlos Reis Julho, 1990 PREFACIO © meu interesse pelos temas deste livro decorre da minha conscigncia — herdada da minha formagio inte- Jectual — de que a ligagfio com a literatura na cultura ‘ocidental, desde a sua origem na Grécia Antiga, seguiu duas tradigdes distintas, paralelas, mas que frequentemente se confundem: uma chamada critica ¢ a outra, poética, ‘A critica, um termo de significado plural, usado aqui no sentido de “critica literaria”, € uma actividade axiolé- gia ¢ judicativa que integra e reintegra as obras literdrias no sistema de uma cultura. A poética é uma actividade -cognitiva que retine conhecimentos sobre literatura ¢ os incorpora num quadro de conhecimentos mais vasto adqui- rido pelas cigncias humanas ¢ sociais. Para a critica a literatura € um objecto de avaliagdo, para a poética um ‘objecto de conhecimento. Desnecessdrio serd dizer que a critica literaria e a poética se inter-relacionam e bastante frequentemente se entrelagam; 0 primeiro capitulo deste livro explora estas conexées € a elas se’ alude em varios dos outros capitulos. Contudo, 0 principal objective da minha investigago ¢ corrigir a estreita concepgio de 10 estudos literdrios que resulta de um conhecimento dema- siado acentuado de uma das tradigdes em detrimento da outra, A histéria da critica ocidental tem sido relativa- mente bem reconstituida tanto em monografias como em estudos de maior alcance; a histéria da poética oci- dental — a excepgao da sua origem e dos seus estidios mais recentes — € praticamente desconhecida. £ esta lacuna que o presente trabalho procura preencher. Exploragdes em terreno desconhecido trazem geral- mente os dissabores da busca inuitil, mas também con- duzem a descobertas emocionantes. Um dos resultados positivos deste empreendimento & a afirmagio (ou reafir= mago) de que & poética é legitimo reclamar para o seu panteo cléssicos do pensamento literdtio tais como Aris- tételes, Goethe ¢ Coleridge. Torna-se, ao mesmo tempo, manifestamente claro que os padrées do estudo cogni- tivo da literatura foram estabelecidos por um grupo de intelectuais despretensiosos, tais como J. J. Breitinger, Wilhelm yon Humboldt, Maurice Grammont, Wilhelm Dibelius, M. A Petrovskij, Viktor Zirmunskij ¢ muitos outros. Contudo, a poética moderna também tem as suas “estrelas"; os seus protagonistas — Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson, Vladimir Propp, Jan Mukar- ovsky — so uma pléiade de pensadores brilhantes que influenciaram profundamente nao sé 0 pensamento lite- rario do séc, XX mas todas as Areas das ciéncias huma- nas € sociais. O nosso interesse actual pela historia pode ser uma reacgdo intuitiva a essa caracteristica da nossa cultura abarrotada de informagio, que é a tendéncia para o esquecimento. Sem uma perspectiva histérica ninguém consegue discernir o que nesta avalancha de informagao é realmente novo e o que é apenas uma nova versio de velhas ideias. Nenhum livro por si s6 € capaz de saciar a sede de conhecimento histérico. Deste se espera que satisfaga aqueles leitores. que desejam adquirir conheci- ‘mentos sobre teoria poética através do estudo da sua histéria, Para alcangar este objectivo procedi a uma cui~ dadosa e profunda andlise das fases que considero essen- ciais na evolucdo da poética tedrica. Esta abordagem pés a descoberto uma dbvia linha diviséria na histéria da disciplina: de um lado, os estédios anteriores ao séc. Xx, nos quais se formularam os problemas © as questdes tedricas da poética e do outro, as tendéncias estruturais do séc, XX, nas quais se delinearam explicitas e sistema- ticas abordagens a estes problemas. Espero que esta reconstituigéo do crescimento do conhecimento tedrico na poética se revele mais compensadora do que uma prematura e, logo, necessariamente superficial visio geral continua da sua histéria. De modo a nao ultrapassar os limites razodveis de extensiio deste livro, concentrei-me fundamentalmente nos estédios que surgiram no periodo anterior a 1945. O desenvolvimento complexo ¢ aparentemente cadtico da poética no perfodo do apés-guerra tem de ser e tem sido considerado separadamente. Indirectamente, este trabalho contribui, de facto, para uma melhor compreensio da poética estruturalista e pds-estruturalista do apés-guerra ao lembrar-nos que tanto a histéria como a doutrina do estruturalismo estardio lastimavelmente incompletas e muti- Jadas se as restringirmos as suas manifestagdes mais recentes. A pesquisa para este trabalho exigiu a lcitura de um vasto ntimero de fontes primérias ¢ secundarias em varias linguas. O cunho deste esforgo é visivel no sé no pro- prio texto mas também nas notas de rodapé que sio um suporte necessdrio das principais teses em discussao. 12 A lista bibliogréfica das fontes secundérias contém apenas as obras a que fiz referéncia, mas é suficientemente rica para estimular leituras e estudos adicionais. Todas as tradugGes dos textos nfo-ingleses sfo fundamentalmente da minha responsabilidade; no interesse da orientagio do leitor sio dadas referéncias das tradugdes inglesas existentes. Contrai uma divida de gratidao para com a Comis- séo Connaught da Universidade de Toronto pela conces- so, em 1983/84, de uma Bolsa de InvestigacZo em Humanidades, que tomow possivel o inicio da minha Pesquisa para este trabalho, A minha tarefa foi muito facilitada pelos recursos inesgotaveis do sistema de fun- cionamento das bibliotecas da Universidade de Toronto, especialmente da Biblioteca Robarts Research; a admi- nistragiio ¢ os bibliotecdrios da Universidade de Toronto, que patrocinaram e engrandeceram este trabalho, merecem- -me uma mengo especial. Os meus alunos do curso de pés-graduagao de 1985/86 no Centro de Literatura Com- parada da Universidade de Toronto merecem a minha gratidao por uma razio especial: eles provaram, pelo interesse constante ¢ pela participagao activa, que as difi- ceis questes teéricas levantadas pela minha historia da poética sao acessiveis a alunos de literatura suficiente- mente motivados. Recebi encorajamento e comentarios ctiticos de varios amigos e colegas que leram total ou parcialmente o meu manuscrito; Vernika Ambros, Mieke Bal, Nancy Rubin, David Savan, Susan Suleiman e Nancy ‘Traill. A eles quero expressar a minha gratidio e apre- sentar as minhas desculpas pelas muitas falhas que ainda irfo encontar neste livro. Colin Dowsett, Laura Wu e Edith Klein proporcionaram-me inestimAvel assisténcia ‘técnica. Por fim, devo especial gratidao a Irwin Titunik, 13 da Universidade de Michigan, pela sua minuciosa revisio do meu manuscrito; sendo ele proprio um proeminente poeticista, os seus conselhos foram-me preciosos. Todos os capitulos, na forma que apresentam, so aqui publicados pela primeira vez; versées prévias ¢ con- sideravelmente diferentes dos capitulos VI e VII foram publicadas in Stephen Bann, John E. Bowlt, eds., Russian Formalism 1973:73-84 ¢ in Strumenti critici, 1, 1986:5-48, respectivamente. Deixo aos meus leitores a tarefa de julgarem o que neste trabalho se conseguiu € em que é que se falhou. Espero que ele possa servir nfio sé como uma fonte de informacao sobre a historia da poética mas também como uma introdugo a questdes actuais de teoria literé- ria, Isso confirmaria a minha crenca optimista, ainda que antiquada, de que é estudando o passado que com- preendemos melhor as nossas perplexidades do presente. Toronto, Maio de 1987 REFLEXOES PRELIMINARES 1. A poética estrutural do séc. XX teve origem nas ideias radicais do Formalismo Russo. Como qualquer movimento de vanguarda, 0 Formalismo definiu os seus pressupostos e postulados em oposicao & tradicdo prece- dente. Através do tempo em que se foi desenvolvendo, a poética estrutural preservou sempre o seu cardcter van- guardista, desafiando a instituigdo literdria e critica e associando-se intimamente a tendéncias inovadoras nos campos da arte, da ciéncia e do saber de um modo geral. E sinal de maturidade quando uma disciplina ou um sistema de pensamento ola para o seu passado numa atitude positiva. A poética estrutural jé atingiu este ponto e comecou a descobrir a sua histéria ¢ pré- historia. Digressdes pelo passado como as que fizeram Gérard Genette (1976; 1979) © Tzvetan Todorov (1977) so tudo menos viagens sentimentais. Eles propuscram-se descobrir problemas contempordneos em cendries passados. Reconstituindo a interacco ideol6gica, os conflitos e pro- blemas existentes no passado, o historiador ajuda-nos a situar as ideias contemporaneas num quadro de referéncia i 16 multidimensional, evidenciando assim muitos aspectos dessas ideias, que de outro modo passariam despercebidos. ‘A pesquisa dos ascendentes da poética estrutural ‘uma reconstituigio da sua formacio mostra-nos que ela ‘assume uma posi¢&o privilegiada, se bem que algo des- protegida, dentro da diversidade do pensamento literdrio. ‘A concepedo superficial que encara a poética estrutural como um ramo elitista ou periférico dos estudos litera rios & superada pelo reconhecimento de que o seu sisema tedrico € 0 apogeu e a sintese de ideias fulerais ¢ repeti- damente testadas sobre literatura. A poética estrutural é herdeira de uma vasta experiéncia histérica. 2. A historia da poética ¢ uma historia do pensa- mento tedrico. Como tal, situa-se entre duas disciplinas: a historia das ideias e a historia da ciéncia, Espera-se, portanto, que um estudo da evolugao da poética consti- tua um passo importante na compreensio dos proble- mas essenciais e das relagSes miituas entre as duas Areas mencionadas da historia do pensamento. A. O. Lovwjoy, um pioneiro da historia das ideias, parece ter-se alheado das teorias. Na enumeragiio das Areas existentes na sua disciplina — que vao da histdria da filosofia, passando pela histéria literdria e pela “literatura comparada”, até vertente histérica da sociologia — Lovejoy apenas registou um dominio teérico: a histéria da teoria econémica. Nenhuma razio se adianta para esta inclusio privilegiada. Pelo contrério, Lovejoy neutraliza imediatamente este pri- vilégio quando pretende que a historia da teoria econé- mica esta “tio intimamente ligada” a histéria econémica que as duas se podem agrupar (Lovejoy, 1948: 1 € ss.). E dbvio que Lovejoy se sente pouco a vontade com a histéria das teorias, i. e. com a meta-historia das ideias. 7 Se encararmos a poética como uma ciéncia da litera- tura — pressuposto que retomarei mais tarde — entio, naturalmente, procuraremos inserir a sua histéria na esfera da histéria da ciéncia, Tal posi¢do pode revelar-se irénica se pensarmos na nossa recente aspiracZo a uma historia dramética das “revolugdes cientificas” (cf. Kuhn, 1962). Comém lembrar, contudo, que um cenério kuhniano genuino inclui nio s6 as revolugdes cientificas e raras mas também a inevitdvel labuta quotidiana da “ciéncia corrente”, A acumulagio de saber adquirido através da “ciéncia cor rente” torna necessdrio um novo paradigma tedrico, ‘Nenhum esforgo destes precede as tio apregoadas “revo- lugGes” no pensamento literdrio; elas nao so substitutos de paradigmas teéricos, mas sim aniincios de deslocacdes de poder na instituiego cultural. ‘A nossa investigago sugere que a compreensdo da evolugdo da poética 56 & possivel se néo isolarmos as Viragens paradigmaticas da continuidade histérica. Esta continuidade encontra-se alojada no conceito de ‘tradigg0 de pesquisa’: “Uma tradigGo de pesquisa é um conjunto de pressupostos gerais sobre entidades e processos num determinado campo de pesquisa, e sobre os métodos adequados & investigago de problemas e & construgio de teorias nesse dominio” (Laudan, 1977: 81), Por outras palavras, uma tradico de pesquisa é a gradual construe ‘0 dos alicerces tedricos de um dominio especificy do estudo empirico. Como a propria expressfio indica, uma tradigao de pesquisa tem uma longa histéria. Através desta historia ela envolve-se nfo s6 no “debate sobre os seus funda- mentos conceptuais” mas também num confronto cons- tante com outras tradi¢&es de pesquisa, incompative's ou 2m 1B contraditérias. “Qualquer disciplina intelectual, cientifica ou néo-cientifica, tem uma histdria repleta de tradigdes de pesquisa: empirismo e nominalismé na Filosofia, volun- ‘tarismo ¢ determinismo na Teologia, behaviourismo ¢ freudismo na Psicologia, farismo ¢ intuicionismo na Etica, marxismo e capitalismo na Economia, mecanicismo « vitalismo na Fisiologia” (ib.: 78). E, podemos acrescentar, poética, critica psicanalitica, etc., no estudo da literatura. Foucault legitimou um acesso & histéria do pensa- mento que transcende a consciéncia dos agentes do pas- sado, Ele deixou inequivocamente claro que o “incons- ciente positivo” é um factor significativo, e talvez. decisivo, na construcdo de um sistema de ideias. Referindo-se espe- cialmente ao periodo “classico” da ciéncia, Foucault notou que © seu ‘epistema’ “niio estava certamente presente na consciéneia dos cientistas; ou que a sua parte consciente era superficial, limitada ¢ quase fantasista” (Foucalt, 1966: xi). Enquanto Foucault insiste na reconstituigo de um periodo histérico em termos do seu proprio ‘epistema’, tal periodo historico, paradoxalmente, s6 é acessivel a um observador historicamente distanciado, Uma concep- edo parecida de historia do pensamento é a de Hintikka, que especificou a tarefa da reconstituigao historica da seguinte maneira: “Todas as concep¢des ¢ pressupostos mais gerais de um pensador raramente sio por ele for- mulados de forma explicita. Tem de ser deduzidos dos seus efeitos indirectos, das suas implicagdes conjuntas quando articulados com outras ideias” (Hintikka, 1981 a: 13). Nao devera escapar nossa aten¢&o que estas recen- tes reformulagées de historicismo foram antecipadas nas teflexdes de Wellek sobre 0 método da historia da critica literaria: enquanto a historia tem de ser tracada “em toda a sua complexidade ¢ multiplicidade” e “por direito 19 proprio”, ela nao pode ser escrita “sem um quadro de referencia, um padrio de seleccdio ¢ avaliagio que variard conforme o tempo ¢ a teoria literéria vigentes” (Wellek, 1955, 1: 5). 3. © coneeito de tradigfio de pesquisa associado a0 historicismo reformado proporciona ao nosso estudo um método de “reconstituigao sistémica”. Nao estamos inte- ressados na histéria de “ideias elementares”* isoladas, nem. na busca pedante de “precursores". De uma reconstitui- ‘gio histérica sistémica, a poética surge como um conjunto elaborado de pressupostos, conceitas ¢ métodos que pro- gressivamente se vai construindo numa sélida abordagem 4 literatura. A tradigdo de pesquisa da poética é constituida por dois pressupostos gerais, um ontolégico e outro episte- molégico: a) a literatura é a arte da linguagem produ- zida pela actividade criativa da poiesis; b) a poética uma actividade cognitiva que se rege pelos requisitos ‘gerais da investigacdo cientifica. Esta natureza da postica ‘traduz-se em duas definigdes lapidares, separadas por décadas mas muito préximas no sentido: “A poética é a cigncia que se interessa pela poesia enquanto arte” (Zir- ‘munskij, 1928: 17). “A poética é 0 estudo sistemético da iteratura enquanto literatura” (Hrushovski, 1976: xv). As duas concepgies gerais de poética sio explicitamente rea- firmadas em termos diferentes por todos os representantes proeminentes da poética moderna, incluindo Jakobson, Mukafovsky e Lotman. Enquanto muitos criticos literdrios * “ideia elementar”, conceito de A. 0. Lovejoy, exprime um elemento idcoligico permanente © duradouro (numa csltura, Wadia, ete). (N. da T). 20 encaram 0 método cientifico como uma espécie de doenga contagiosa que destréi a poesia, os poeticistas tem facul- tado muitas anélises perceptivas, subtis e perspicazes, que muito engrandecem a nossa compreensio da poesia ¢ a nossa experéncia estética. O mais importante, contudo, é 0 reconhecimento de que as duas concepedes de poética esto jogicamente ligadas. Uma ciéncia da literatura s6 é possivel se a literatura for reconhecida como uma activi- dade artistica especifica; por outro lado, s6 uma poética cientifica que recuse abordagens deterministas ¢ redutoras da literatura pode justificar teoricamente a especificidade da arte literaria e defend@-la na prdtica cultural. Se a literatura for considerada como uma forma de ideologia ou de moral, ent&o, niio ha necessidade de desenvolver um estudo de literatura independente da filosofia, da ética ou da ciéncia politica. A conexiio légica entre as -duas concepgées de pottica ¢ corroborada pela explicagdo dada por um sinologista sobre a auséncia de teoria lite- raria na China Antiga: “A teoria literdria nao che- gou a desenvolver-se na China Antiga, porque os con- fucionistas — os itnicos antigos pensadores chineses que ‘se dignaram falar de literatura — se recusaram a encaréla ‘como uma entidade auténoma, separada da moral, dos rituais e da politica” (Holzman, 1978: 22). 4. © inventério dos temas gerais da pottica & até certo ponto, determinado pelo contexto cultural, pela atmosfera intelectual de um certo periodo histérico, pelos seus pressupostos filoséficos, estéticos, cientificos, etc. . ‘Contudo, sendo uma tradi¢So de pesquisa, a poética nfo se rege pelo devir acidentado das mudangas culturais. Pelo contrério, a poética cultiva uma continuidade légica © epistemol6gica através da constante revisiio do seu sis- 21 tema conceptual ¢ dos seus principios metodolégicos. A historia da poética, como a histéria de qualquer disciplina cientifica, é, antes de mais, uma histéria de hipdteses, de teorias, de métodos de observacdo e anilise, de forma- do e deformagio de conceitos, etc.. Nao atingiremos uma verdadeira compreensiio da evolucdo da poética se nao reconstituirmos esta histéria “imanente”. resultado principal da nossa reconstituigdio € a des- coberta de modos de poética, de sistemas conceptuais € metodolégicos que foram criados para fazer frente a problemas gerais da tradigfo de pesquisa nas suas varias fases de desenvolvimento. Neste processo, constituiram-se varios modos complementares: poética tedrico-pratica, universal-particular, exemplificativa-analitica, normativa- -descritiva, sincrénica-hist6rica-comparativa, retorica-linguis- tica-semidtica, etc.. Esta expansio dos sistemas epistémicos da poética — associada a0 progresso geral do pensamento cientifico — desloca cada vez mais problemas da investi- gacio literdria para a esfera de acedio da andlise cognitiva. Na continuidade da tradigdo de pesquisa, as proble- mas da poética surgem como sucessivos aperfeicoamentos de um numero limitado de themata* fundamentais (no sentido apontado por Holton, 1973). Acompanharemos os themata da pottica desde que entraram na sua histé- ria observé-los-emos aquando do seu reaparecimento, significativamente reformulados, enriquecidos e definidos com maior preciso. a) O primeiro shema fundamental da poética, 0 conceito de literatura come estrutura, & tio velho como o Holton prefere esia forma grega a temas, 0 mesmo acontecendo com ‘hema em vez. de tema. (N. da). envolvimento do Ocidente com a literatura. A expres- so tedrica deste conceito — o modelo mereolégico da poética — tem sido fortemente inspirada pela filo- sofia da cigncia. A sua primeira versio, 0 modelo aristotélico da tragédia (estudado no Capitulo D, segue ‘0s postulados gerais da teoria aristotélica da ciéncia; © alcance do modelo reduz-se as “esséncias” universais (genéricas) da arte poética. No segundo estadio do scu desenvolvimento, no Romantismo, a mereologia da poética foi dominada pelo modelo organico oriundo da filosofia contempordnea das ciéncias naturais (his- t6ria natural). A poética morfolégica romAntica alargou substancialmente o alcance do modelo mereoldgico: tornou-se possivel (como se demonstra no Capitulo 111) representar obras individuais e concretas como estru- turas altamente organizadas. No séc. XX as potencia- lidades da poética morfoldgica evoluiram para uma narratologia estrutural (Capitulo VI). Entretanto, a poética teérica atingiu uma nova fase no seu desenvok vimento — um estddio semidtico; liberta da metéfora orginica, ela apreende a literatura como um sistema especifico de significacao. Comega, entéo, a histéria da versio semiética do modelo mereolégico (ver Capi- tulos V e VII). O avango do modelo mereolégico de uma fase /égica para uma fase morfoldgica e desta para uma fase semioldgica representa 0 percurso prin- cipal da histéria da poética. b) Desde os seus comecos que a poética se tem preo- cupado com a relagdo entre arte pottica e o “mundo”. A doutrina da mimesis ¢ uma velha formulagiio deste thema. A concepgao platénica de mimesis como imi- tagio foi posta em causa pela reforma aristotélica 23 que afirmou o papel activo da poiesis como represen- tagio. No séc, XVIII a crise da mimesis vulgarizada deu origem a primeira formulagio de uma poética ndo-mimética — a poética dos mundos possiveis ima- ginarios (Capitulo ID). Este estimulo da poética leib- niziana foi ignorado durante muito tempo, porque a poética estrutural aceitou a teoria néo-referencial do significada de Frege-Saussure como a base da seman- tica literdria (ver Capitulos IV e V). Enquanto estru- tura “auto-referencial”, a literatura nfo precisa de um “mundo”, real ou imaginario, como universo de dis- curso. SO a poética contemporanea tem construido uma teoria moderna, nao-mimética da relagdo entre a literatura ¢ o “mundo”; o incidente leibniziano apa- rece-nos agora como 0 comego de um trajecto signifi- cativo na tradigao de pesquisa — a poética do mundo possivel da ficcionalidade, ©) O problema da criatividade poética como thema da histOria da pottica ¢ to velho como o problema da repre- sentagio; na verdade, os dois podem considerar-se complementares. No grandioso modelo aristotélico de homem-agente, a actividade poética ¢ 0 exemplo por exceléncia da producdo (poiesis) (cf. Capitulo 1). Durante séculos a visio aristotélica foi anulada pela poética normativa que submeteu a criatividade 4 obediéncia a regras. Na histérica rebelifio contras as regras, ocor- rida no séc, XVII, a livre imaginagio humana foi proclamada soberana na criatividade artistica. A poé- tica romantica ligou inextricavelmente a individualidade do poeta e a originalidade do seu trabalho (ver Capi- tulos II III). No séc. XX, 0 thema da criatividade poética foi reformulado na teoria semidtica do sujeito 4 (apresentada no Capitulo VII); as potencialidades cria- tivas da imaginaco humana estiio em tensfo dialéctica com as condigGes histéricas ¢ as convengées culturais. @) A relagio entre literatura ¢ linguagem é um thema orientador da poética em todos os seus estadios, O constituinte crucial deste shema & 0 conceito de lin- guagem poética, criado para captar as oposigSes for- mais, semnticas e funcionais entre a poesia ¢ 0 dis- curso corrente. Esta matriz contrastiva é 0 que esta. por detrés da controvérsia Wordsworth-Coleridge € da filosofia da linguagem de Frege (Capitulo IV) e que reaparece na semantica dupla de Saussure (Capi- tulo V). Ao sublinhar a especificidade da linguagem pottica face & linguagem pratica, o Formalismo Russo reteve 0 thema no centro de interesse da poética modema. A semidtica da Escola de Praga deu, entio, © passo necessrio para integrar a linguagem poética no sistema funcional da comunicag&o humana (Capi- tulo VID. A tradic&o de pesquisa da poética ocidental estende- -se por milénios, ligando a estética aristotélica & semiética contemporanea da arte poética. A sua evolucio deve-se a intelectuais oriundos de muitos pafses e culturas dife- rentes, desde a Grécia Antiga & Suica do séc. XVI e & Alemanha do sé. xix. Com origem na Franca, Russia e ‘Checoslovaquia, a poética estrutural do séc, XX transformou- -se num movimento de alcance e cooperagao internacio- ‘nais sem precedentes. A dimensio internacional da poé- tica sé tem correspondente no seu alcance interdisciplinar; ‘a poética teérica tem, avidamente, experimentado e adop- tado ideias, modelos, métodos ¢ conceitos desenvolvidos na 2s filosofia, em ciéncias especializadas, bem como nas macro- -ciéncias modernas, Sendo um estudo cientifico da litera~ ura, a pottica desafia todas as formas de provincianismo cultural e académico. Tanto na estabilidade dos pressupostos gerais como na vitalidade dos modos e shemava, a poética revela caracteristicas de uma tradigZo de pesquisa firmemente estabelecida mas em constante evolugio. Em contraste com teorizagGes especulativas sobre literatura, enredadas numa monétona espiral de argumentos repetitivos ¢ incon- cludentes, a poética comprovou, ao longo da sua histéria, a possibilidade do crescimento controlado do conheci- mento sobre literatura. A poética contemporanea — no espirito da sua tradi¢o — continua a servir como medula cientitica 4 investigacio literaria e como fiel protectora da autonomia da arte poética. Capitulo T ARISTOTELES. POETICA EF CRITICA A Poética de Aristételes tem sido geralmente reconhe- cida como a pedra basilar da cultura literaria ocidental. Depois de mais de dois milénios de pensamento aristoté- lico,” novas abordagens desta obra podem ser acolhidas com cepticismo. Contudo, as décadas mais recentes assi- nalaram um novo estadio no estudo dos escritos de Aristételes, um estédio no qual a sua obra tem sido reconhecida como uma fonte de inspiragdo vital para a ciéncia, a filosofia, a légica e a estética modernas (cf. Tatarkiewicz, 1961; Veatch, 1974; Barnes et al., eds., 1975/79). Neste novo contexto, a Poética, que tio fre- quentemente tem servido de instrumento para justificar "Um estudo atamente instrutivo sobre a investigacio aristoiica pré- -modema, inctuindo o seu ramo aribico, encontra-se em During, 1968. © Como observou Veatch, “a ironia” da presente actualidade de Aristé- tees resulta do facto ce que “a propria origem da chamada ciéncia € flosofa -modernas [como também da podtica modema] foi, a principio, associada — ‘eertamente no pensamento de homens como Galileu ¢ Descartes — a um replidio catepbrico de Arisbtels” (Veatch, 1974: 4). 2B ou refutar doutrinas ou priticas poéticas especificas, pode finalmente ser estudada unicamente pelos seus méritos. A publicagdo de dois excelentes e exaustivos comenta- tios (Else, 1957; Dupont-Roc, Lallot, 1980) permite agora que um ndo-classicista enfrente com alguma seguranga esse dificil e parcialmente obscuro texto que & a Poética: “O texto grego da Poética torna-se agora acessivel mesmo aos leitores menos proficientes na lingua grega” (Todorov, 1980: 5). Os estudos de incidéncia aristotélica tém dedicado muita ateng&o a conceitos-chave, ainda que isolados, da Poética, tais como mimesis, mythos, katharsis, etc.. O meu trabalho tera um método e um centro de interesse diferentes: seguindo 0 método da reconstituicio sistémica, € meu objectivo revelar os prinelpios epistemolégicos da Poética, Demonstrar-se-a, especificamente, 0 caminho que Aristételes seguiu na obtengdo de conhecimentos sobre a arte poética ¢ em que tipo de modelo ele representou esse conhecimento, 1. A Arte e as Citncias Produtivas Seria initil procurar nos escritos de Aristételes, inclu- indo a Poética, uma declaragao explicita sobre os prin- cipios epistemolégicos que deveriam orientar o estudo da arte poética. Na Poética, como notou Else, “escapa- snos algo que funciona como prefacio as principais obras da maturidade de Aristételes (Da Alma, Das Par tes dos Animais, Fisica, Metafisica, Etica a Nicémaco, Politica, Retérica), nomeadamente alguma declaragio geral, & guisa de orientacdo, que mostre como este cam- Po do saber se relaciona com outros tipos € niveis de ye) conhecimento” (Else, op. 2). Desde os seus comecos que o estudo da literatura se caracteriza por uma auséncia de reflexiio epistemoldgica. Conséquentemente, os funda- mentos epistemoldgicos da poética de Aristételes tm de ser reconstituidos a partir da sua pratica cognitiva. Uma breve stimula da filosofia aristotélica do conhecimento é um ponto de partida indispensdvel para esta reconstituigio. Segundo Aristételes, a mente humana é capaz de adquirir conhecimento de cinco maneiras diferentes: “Par- ta-se do principio que os estados em virtude dos quais o espirito apreende a verdade, por afirmagao ou negagio, sfo cinco, i. . a arte, 0 conhecimento cientifico, o saber pratico, o saber filosdfico ¢ a razio intuitiva” (EN 6, 3, 1139b). Neste contexto, a poética podia pacificamente ser classificada como uma arte, uma ciéncia ou um saber pritico. A classificagdo da poética como saber pritico negaria a diferenciagdo explicita que Aristételes fez entre “agir” (comportamento) e “fazer” (produgao) (EN 6, 4, 1140; cf. Meta 6, 6, 1025). O conhecimento chamado “saber pratico” € uma orientago racional para agir: “O saber pratico (...) deve traduzir um estado racional e verdadeiro da capacidade para agir relativamente aos bens humanos” (EN 6, 5, 1140 b). Uma vez que a poesia é um modo de “fazer” ¢ nfo de “agir”, ela nao cabe na esfera do “saber pratico”. A decistio acerca do estatuto episte- molégico da poética restringe-se, assim, a uma disjuncdo que é familiar a todo o estudante de literatura: A poética é uma arte ou uma ciéncia? Para averiguar a resposta de Aristételes a esta questo vejamos primeiro qual a sua concepe&o de arte. Incre- mentando a distingSo entre “agir” e “fazer” e dando a arquitectura como exemplo de “fazer”, Aristételes afirma que “a arte identifica-se com a capacidade de fazer ¢ 30 envolve um raciocinio verdadeiro. Toda a arte tem por objecto dar existéncia a algo, i. ¢. 0 objecto ultimo da arte consiste em descobrir os meios de dar existéncia a alguma coisa que pode ser ou nfo ser ¢ cujo principio reside no produtor e ndo na coisa produzida” (EN 6, 4, 1140 a), Seguindo esta linha de pensamento, Aristoteles designa os artistas (tais como Fidias, “o escultor”, ou Policleto, “o escultor de estdtuas-retrato”) como “peritos em artes” [hoi akribestatoi tas technas] (ibidem 7, 1142). Estas declaragées explicitas sobre as artes visuais fazem supor que a poesia seja, por sua vez, uma arte [techn] que produz obras poéticas e que os poetas sejam “peri- tos” nesta arte. Os poeticistas dedicam-se, obviamente, a uma actividade diferente, j4 que eles observam e des- crevem a arte dos poetas, os seus principios, origens, fungées, efeitos ¢ produtos. Enquanto Séfocles “produ- ziu” o Rei Edipo, Aristoteles “produziu” comentarios sobre © Rei Edipo. As actividades produtivas (discursivas) de Séfocles e Aristételes distribuem-se por dominios clara- mente distintos; se a actividade de Séfocles se designa como “arte”, a de Aristoteles tem de ser transferida para 0 dominio da investigacao cientificat”). Por exclusio de partes chegdmos & conclusiio que 0 conhecimento adquirido pela poética é do tipo a que se chama ciéncia; esta conclusdo é reforgada se observar- mos com cuidado a concepgio e a classificacio aristoté- licas das ciéncias. Sabe-se que Aristételes concebeu a ideia das ciéncias especializadas tendo em vista dominios ("A distingdo foi defendida por Frye: A Poctica de Aritteles bascinse fa crenga de que “é possivel atingit uma estrutura de conhecimento totalmente intetigivel sobre poesia, que ndo ¢ a prépria poesia nem a experéncin pottica™ (Frye, 1957: &4; cf Schaper, 1968: 58). ei especificos de indagagio € 0 uso de métodos especiais. Esta ideia culminou na sua polémica divisio tripartida das ciéncias em sedricas, prdticas © produtivas (Meta 6, 1, 1025 a, 1026 b; cf. McKeon, 1941: xxii; Robin, 1944: 38; Olson, 1965: 178; Stigen, 1966: 165-167; Granger, 1976: 333 € ss.; Schmidt, 1983: 21). Apesar do cardcter impreciso desta classificago, 0 seu principio & claro: “fazer” 0 dominio das ciéncias produtivas, “agir” o das ciéncias praticas e “natureza” o das ciéncias teéricas, A poética como conhecimento sobre 0 “fazer” de poesia situa-se nas ciéncias produtivas lado a lado com outras ciéncias que se ocupam da arte mimética e que se suben- tendem mas nao esto especificadas na estética aristoté- ica, E importante notar que uma ciéncia produtiva — tal como uma ciéncia pratica — estabelece uma rela especial com o seu dominio, O conhecimento adquirido por estas ciéncias pode ser usado como orientago para “agit” € para “fazer”, respectivamente. Dai que a diferen- ciagio entre uma ciéncia produtiva como a poética e a arte da poesia nao implique uma separacdo entre as duas actividades. O conhecimento adquirido pelo poeti- cista pode ser apropriado pelo poeta que o transformard numa base racional da sua arte. A poética como ciéncia produtiva niio ¢ apenas uma teoria da poesia mas cons- titui também um factor significativo na sua pratica'”, © Nolese que uma diferenciagdo rigida entre “céncia produtiva” ¢ “arte” fda € geralmente aceite. O prbprio AristSteles uma fonte de confusto na medida em que tanto usa indiscriminadamente os termas “céncia” [epitém@] “ane” [techné] quando se reere as “citncias produtivas” (cf. Robin, 1944: 31) ‘como os diferencia noutros contextos, especialmente no passo crucial da EN 11398, Na esteira desta hesitagio de Anst6iels, McKeon nio escapa a uma posiglo inerentemente contraditéria. Por um lado, afirma que as ciéncias pro- conhecimento cientfica do tipo produtivo” como “a base racional dda ante ov produgdo” (Olson, 1965: 178, 180, 186). Atkins diferencia entre “ciéncia produtiva” c arte" mas também as associa:" Enquanto a5 cidncas teb~ rieas visaram apenas o conhecimento € 1 contemplago do conhecimento, 0 objetivo das ciéneins produtivas'¢ pritcas era a aplicago do conbecimento lum fim definido. Assim, as ciéncias priticas visavam 0 conhecimento com © propésio de influenciar 0 comportamento e as cigncias produtivas visavam 0 conhetimento com propésito de produzir objectos utes ¢ beios” (Atkins, 1934, 1: 73). Recentemente, Granger defendeu uma distingo rigida entre “cifncia produtiva”e “arte": “As cigncias produtivas e priticas continuam a set ciéneias ¢, por conseguinte, visum exchusivamente © conhecimento, $6 na natureza dor objectos que exploram & que clas diferem das ciéncias tebricas (No que diz respeito as sechnaf, estas constituem um nivel intermédio entre ciéncia produtiva [epiiém® poteike] « operagies efectivas. Elas $20, por assim dizer, conhecimenro aplicado(..). Um anista ou um praicante & preci- Ssamente aquele que domina tanto o conhecimento produtivo como a arte de © aplicar” (Granger, 1976: 252, 338, 343). A diferenca entre producto c a sua teoria foi eafirmada por Edel: Nos trés dominios do conhecimento, “Aristéte- ‘ks preocupese com as ciéncias ou corpos de conhecimento e com a experin- sia, A Erica a Poltica sfo, em sentido amplo, estudos teéricos indispenséveis, A organizaro da vide. Por isso também as obras sobre poiésis so estudos ‘e6ricos ou eitncias indispensdves & producio* (Edel, 1982: 337). 33 gerais para a aquisicio e formulagdo de conhecimento cientifico. Trés teses da filosofia aristotélica da ciéncia so essenciais para 2 compreensio da epistemologia da Pottica: @) As ciéncias visam revelar “os atributos essenciais do género que tratam” (Meta 6, 1, 1025). E este objec- tivo que impulsiona o conhecimento cientifico para alm do Ambito da percepeao: “A percepgdo diz res- peito ao particular enquanto o conhecimento cienti- fico implica 0 reconhecimento do universal” (APst 1, 31, 876)."" Na filosofia de Aristételes no ha lugar para uma ciéncia de entidades particutares ou de pro- priedes contingentes: “Nao pode haver tratamento cien- tifico” do “acidental”. “Nenhuma ciéncia, seja cla pré- tica, produtiva ou tedrica, se preocupa com isso” (Meta 6, 2, 1026 b; cf. Joja, 1971: 99 e ss.; Granger, 1976; 346 e ss). 4) A fim de passar do particular para o “universal”, a ciéncia serve-se de dois métodos complementares: a indugo ¢ o silogismo (deducao). £ do conhecimento comum que 0 método do silogismo foi pormenoriza- damente desenvolvido por Aristételes (ver 0 recente trabalho de Lear, 1980). A indugdo foi alvo de um trata- ("Para nfo deixar divides acerca do objectivo do método centifico, Aristeles dé-nos uma defingio explicita do seu objecto: “Designo por “uni. versal” o predicado que perterce a todo o sujeito, per se, e enquanto tal. Dai resulta que todos os predicades universais pertencem necessariamente a0s seus sujetos” (APst J, 4, 73b). Tem sido sugerido-que além das reguiaridades vali das por necessidade, Aristtcks previu um akcance maior para a citncia, ie. regularidades validas apenas ptra a maior parte dos casos. Com esta alteraglo pretende-e abranger as ciéncias emplricas (Berka, 1983: 77) 3 00 mento menos formal, mas o seu cardcter global torna- -se bastante explicito: trata-se de um método para “demonstrar o universal mediante o particular j4 conhe- cido” (APst 1, 1, 71a). Como tal, podemos dizer que a indugdo funciona como uma ponte entre 0 dominio do particular contingente ¢ o das esséncias universais, ‘A indugo penetra na esséncia universal através da anilise sistematica e exaustiva de grupos de particula- res em continua expansdo (cf, APst 2, 13, 97 b). c) A ciéncia esforca-se por organizar conhecimento com base nos principios da demonstrago (apodeixis). A demonstragdo é um silogismo de inferéncia valida que procede de “premissas imediatas” (‘axiomas primeiros ¢ indemonstraveis”) (APst 1, 2, 71 b). A “ciéncia apo- dictica” de Aristételes tem sido caracterizada como. “um sistema axiomatico dedutivo compreendendo um conjunto finito de apodeixis ou demonstragées em conexao” (Barnes, 1975: 65).\"' Insistindo na sua ideia das ciéncias especializadas, Aristoteles postula axiomas especificos de cada ciéncia. Uma vez que o conheci- mento de axiomas é “independente da demonstragio” (APst 1, 3, 72), levanta-se a questZio da sua origem, No ultimo capitulo de Analfticos Posteriores, Aristé- teles dé a seguinte resposta: “Uma vez que nao existe conhecimento cientifico das premissas primeiras e dado que nada, & excep¢do da intuigéo, pode ser mais exacto do que o conhecimento cientifico, sera a intui- cdo que apreende as premissas primeiras” (APst 2, 19, 100; ef. EN 6, 5, 1141 a), Note-se que a intui¢go " Uma explicagio mais pormenorizada do conceito aristotéico de demonstragdo encontrase em Scholz, 1975. soon 35, de Aristoteles é racional e empirica; baseia-se na expe- riéncia acumulada por duas capacidades bdsicas do homem: a percep¢So sensorial e a meméria (APst 2, 19, 99b-100b; cf. Meta I, 1, 980.a-981b). A base intuitiva da ciéncia nfo a afasta da experiéncia; na verdade, conhecimento deduzido de axiomas basea- dos na intuiggo decorre da experiéncia. Tem sido frequentemente sugerido que a ideia da ciéncia demonstrativa foi inspirada pelo alto grau de forma- lizagio atingido pela matematica e pela geometria gre- gas. Aristdteles sabia, contudo, que nem todas as cién- cias se prestam & axiomatizagio; ele parece sugerir que graus diferentes de exactidao cientifica dependem da natu- reza do dominio de cada ciéncia: “A nossa discuss0. serd satisfatéria se ela for to clara quanto 0 assunto permite, dado que no se pode pretender 0 mesmo grav de precisio em todas as discussdes (...). O mesmo se passando em relacdo a cada afirmagio; porquanto é sinal distintivo do homem culto exigir das coisas um ‘grau de precisiio 4 medida do assunto em questiio” (EN 1, 3, 1094 b). Em ciéncia politica, & qual a citacdo se refere especificamente, a necessidade de exprimir e aceitar a verdade “grossontodo ¢ em linhas gerais” resulta da “flu- tuagio”, da instabilidade e da variabilidade dos fenémenos politicos. A aceitag3o de um grau inferior de exactidao é a tinica concessio que Aristételes se dispde a fazer as ciéneias que se aventuram nos dominios da “flutuagio”. 3. A epistemologia da poética Como ja se referiu, Aristételes nao formulou os pres- supostos epistemoldgicos da sua investigagaio sobre a arte 36 da poesia. E especialmente surpreendente que ele néo tenha tido em consideragdo 0 alto grau de “flutuaciio” que existe nesse dominio, como fez no caso da ciéncia Politica. Seria de esperar que do enconiro do método cientifico aristotéico com o dominio da arte pottica sul, ‘assem strias dificuldades epistemolégicas. O autor da Pottica prefere resolver estas dificuldades através da pra- tica analitica e no através de uma reflexo teérica. A fim de recuperar a epistemologia “oculta” da Poéiien de forma concis Partiei, na minha reconstituicgo, do ponto mais elaborado e sistemético da andlise de Aristételes, i. €. a sua descri¢ao da estrutura da tragédia,) A A pottica universaliia, Enquanto a “futuagio” neste dominio justitica um grau inferior de exactidao, ela no pode constiwir motivo para deslocar 0 centro de Serd, necessariamente, a de descobrir os “atributos essenciais” dia poesia e ignorar as propriedades contingentes ¢ vari veis das obras potticas individuais. Uma poctica baseade os prineipios da filosofia aristotélica da cigncia esti con. denada a ser uma poética universaliva, uma teoria dec ST A posicio central assumida por Ariséteies na deseriggo da estrutura a tropédia, que encontramos na parte que nos rata de Poética, tem sido ca iene Geos em conta que 0 moo de gi fo ae {ax f° tatamento do sero pico e, provavenene da conta (cf, Janko, 1984), | 7 categoras literérias gerais que no se “preccupa’ com a a sua [da tragédia] natureza essencial” ela especifen ag categorias constitutivas da tragédia como género, Com Geremos a definiedo de um destes constituintes 5 mento” [anagnorisis}: “O reconhecimento & somo a palavra indica, a passagem da ignorancia ao connect inen'o, para amizade ou hostiidade de pessoas previa, Henle destinadas a um estado de felicidade ou infelich dade” (Poet 11, 1452). O reconhecimento é aqui defnido 38 B. A mereologia de Aristoteles, As categorias uni- versais do género trégico estio ordenadas num modelo sistematico € exaustivo, Facilmente se vé que o modelo se constréi “de cima para baixo”, i. e, categorias menos abstractas ¢ de nivel inferior derivam de categorias mais abstractas ¢ de nivel superior. O resultado ¢ um modelo estra- tificacional, ic. a representagdio da tragédia em varios niveis correspondentes a varios graus de abstraccio em ordem decrescente (ver Esquemas 1, 1a, 1 b, Ic). O pri- meiro nivel (nivel A) estabelece a estrutura mais elevada Para a teoria da tragédia — as caracteristicas distintivas das artes miméticas (Caps. | 4). No segundo nivel (nivel B), estas caracteristicas so substituidas por aspec- tos especificos do género trigico (Caps. 2 e 3). O mesmo nivel € retomado na definicéo de tragédia que agrupa todos os aspectos jé derivados (Cap. 6). Atinge-se 0 nivel C substituindo os “aspectos” da definigHo pelas seis “partes” da tragédia (Cap. 6). Chega-se finalmente ao nivel D através da diferenciagSo entre os Possiveis constituin- tes das “partes”: da trama (Caps. 7-10), das personagens (Cap. 15), do pensamento (Cap. 19). Deve acrescentar-se que no dominio mais elaborado do modelo, i. e. na repre- sentagio da trama da tragédia (cf. Esquema | a) Aristételes atinge um nivel ainda mais baixo de abstraceo ao dis- tinguir as varias espécies de peripécia (Cap. 11), de catés- trofe (Cap. 14) ¢ de reconhecimento (Cap. 16). Enquanto a forma estratificada do modelo aristoté- lico da tragédia é evidente (cf. Ingarden, 1961/62: 170), a sua fundamentaso légica, i.e, o procedimento ou proce. dimentos derivatives usados no desenvolvimento do modelo so muito menos Sbvios. No primeiro estudo moderno da Poética de Aristételes, 0 proceso derivative & equi- Parado a “demonstragao cientifica”: se as “partes” da 39 tragédia constituem “os elementos essenciais e indispen- sdveis inerentes & prépria nogdo de tragédia”, elas sio “necessariamente deduzidas da definigio” (Solmsen, 1935: 199) De facto, a derivagio que Aristételes faz do modelo comega com um silogismo demonstrative. A defini¢ao de tragédia ¢ deduzida do axioma da estética de Aristé- teles, i. e. da sua especificago de “arte mimética” em ter- mos dos seus aspectos — meio, objecto, modo ¢ funcao.” Note-se que, de acordo com a filosofia aristotélica do conhecimento, 0 axioma estético — a “premissa imediata” que define “o género que esta ciéncia trata” (Hintikka, 1972: 62) — se atinge através da intuigSo racional. Sé entio se aplica o silogismo para derivar do axioma os “aspectos” da tragédia.”’ A incorporagao da poética aris- "A, posigio de Else € idéntica, “As seis ‘parts’ da trapédia so todas clas deduidas do coneeito de tragédia como género dramética” (Else, 1957: 233). A impressiva tentativa de Battin para demonstrar que se chega B defini- lo de tragédin através da divisio (dizeresis)condu2, paradoxalmente, a dividas sobre a eficicia do método :“A definigio produzida pelo método diertico & insatsatéria. Botti conclu que, depois deste desaie, Avsteles "rejela 0 imitodo dos seus mestres” (Batin, 1974/75: 301). Qualquer que seja a nossa opiniae sobre a interpretaglo de Battin, devemos notar que & sua reconstitu lo da derivagio aristotéica se interrompe aquando da definigio da tragéd 1c. num ponto inical da evolugio da modelo Temos de inci, na definigSo de mimese, 0 quarto aspecto — fun- so —, embora ele nio venha mencionado na enumerasio iniial (feta no Cap. 1, 1847). Noutro contexto, a fungio & explicitamente referida e caracte- fizada como “0 prazer que se retira das obras de imitago" (Cap. 4, 1448 b). A incluso da “fungio” no modelo das artes miméticas explica o aparecimento do “iiem catarse™ na definigdo da tragédia (cf, Golden, Hardison, 1968: 115), Caso contriio, a introdugSo da “catarse” aparece como uma anomalia no Procedimento derivaivo de Aristétels (cf. Buti, op. cit: 300 ¢ ss. ° Estou a pensar num silogismo da seguinte forma: (1) Todas as artes miméueas contém os aspectos a, b, «, ¢ d. 2) A poiesis trdgica € uma arte mmimética. Q) A poisis trigica coniém os aspecios @, 6, ¢. © d. O aparece ‘mento, na definiglo de tragédia, do termo “aoxto" em vez da esperada expres- silo “homens em acgio™ seri explicado mais tarde (cf. infra, nota 2 pag. 51). ‘Yunal (1982: 501 ¢ 5s.) no se deu conta da inconsisténcia, porque ignorou 0 plano global do modelo antstotdico. totélica na estética, apontada por Bal (1982: 177), é garan- tida pela inferéncia — 0 elo légico mais forte, Neste ponto, contudo, o procedimento derivativo de Aristételes muda radicalmente. A demonsiragio dé lugar 4 mereologia. O silogismo logico € substituido pela and- lise mereolégica. A representagéio da tragédia tomase um modelo estrutural. O género € representado como um todo compésito constituido por um conjunto de par- tes; sendo cada uma delas, por sua vez, um todo consti« tuido pelas suas partes, etc. A decomposi¢ao aristotélica da estrutura da tragédia est4 no Principio de uma longa, mas relativamente lenta, evolueio do modelo mereolé. gico na pottica (cf. infra). A mereologia de Aristételes baseia-se em dois postus 4) O postulado da néo-aditividade que diz que o todo é mais que a soma das partes, O postulado foi enun- ciado na Metajisica de Aristételes ¢ exemplificado. Por uma estrutura linguistica e biolégica: “A silaba &, entdo, alguma coisa — no apenas os seus elementos (a vogal e a consoante) mas também algo mais e a came no é apenas fogo ¢ terra ¢ 0 calor ¢ 0 frio, mas também algo mais” (Meta 7, 17, 1041 b). © “algo mais” € aquilo @ que agora chamamos propriedades “emergentes", i. ¢. as propriedades do todo que nao "0 desenvolvimento do modelo merectégico nn podtca tem sido cer- |amente dificukado pelo tento progresso da mereologia em geral. S6 no sée. xx a mereologia se estabeicceu como um ramo bem fundamentado da lgica © da filosofia, especialmente nas obras de Leéniewski, Husserl ¢ Whitehead, Para mais informagdes sobre o seu estado actual, ver Reseher, 1955; Lemer, ‘ed. 1963: Grossman, 1975; Giri, 1976; Smith, Mulligan, 1982; Simons, 1982, 4! derivam das propriedades das partes.” © postulado da niio-aditividade explica de que modo um conjunto de partes como “trama”, “personagem”, “expresso ver. bal”, etc., pode constituir uma entidade de ordem supe- rior — a tragédia, O postulado ¢ especialmente impor- tante para a compreenso da estruturacZo de conjuntos cujas partes sfio aspectos entrelagados ou “momentos” em vez de componentes ou “6rgaos” bem definidos ¢ destacdveis. E ébvio que as partes da tragédia sio momentos ndo-destacaveis; podem separar-se ¢ isolar-se mas apenas com vista 4 anilse e A descrigo estrutural. 4) O postulado da completude foi especificado na Pod: fica, em conex&o com a enumeragio das “partes” da tragédia: “Por conseguinte, é necessério (..) que a tragédia como um todo tenha precisamente sets “partes” em relagéo a esséncia que constitui a sua especifici- dade; (...) além destas partes ndo h4 mais nenhuma” (Poet 6, 1450). O postulado da completude & res- Peitado em todos os niveis mereolégicos do modelo; toda a categoria de ordem superior é substituida por um conjunto necessario € exaustivo dos seus consti- tuintes, A estrutura aristotélica estd completa em todos os seus conjuntos de categorias. Ao enumerar todos "Na mereologia contemporiinea, © postulado da nio-aditividade & formulado pela oposiio entre agregados simples e agregados estruturados, Num agregado simples “a propriedade do todo é uma funglo aditiva das propriedades das partes”, num agregado estruturado “a propredade do todo produzida por propricdades das partes, nfo sendo, no enlanto, qualitative ‘mente semelhante™: Por outras palavras, os agregados estruturados “possuem Propriedades que no s80 propriedades Jos individuos que os consituem (..). AAs cdiulas individuais no ‘nem falar, mas o agregado que € 0 ser hhumano (40 (Har, 1972: 164; 145; ef. infra). 42 os possiveis constituintes da estrutura tragica, o modelo ‘tinge um alto grau de coeréncia légica; ao mesmo tempo nio se pode ignorar 0 pieco pago pela com- pletude: ela nao deixa lugar & inovaco estrutural.”” ‘A derivagio mereolégica € 0 procedimento dominante na formacao do modelo aristotélico; ela da origem as seis categorias medulares da estrutura — as “partes” da tragédia. Nao podemos deixar de notar, contudo, que 0 nivel inferior do modelo (nivel E do Esquema | a) se atinge ainda através de outro procedimento derivacional, Os constituintes da trama nao sao decompostos em par- tes; as diferentes variedades da “peripécia”, do “reconhe- cimento” e da “catastrofe” obtém-se, antes, pelo procedi- mento da “divisio” [diaresis]. O procedimento conta com © critério das propriedades especificas [differentiae specificae] para dividir uma categoria de ordem superior em “opostos” potencialmente nela contidos (cf. Eco, 1984: 61). Na cate- goria da peripécia, por exemplo, sio possiveis dois tipos de alternativa: uma mudanga da mé fortuna para a boa e, inversamente, uma mudanca da boa para a ma fortuna. ‘Ao contrario dos constituintes mereolbgicos que so neves- sariamente complementares, as variedades alternativas so mutuamente exclusivas. Se se escolhe a peripécia “nega- tiva”, a “positiva” é necessariamente omitida e vice-versa. "Esta avaliagdo do modelo aristotélico ndo comtradiz a observacio de Ricoeur, segundo @ qual todos es conccitos da Podtica possucm “caniciet ‘operacional” (Ricoeur, 1983: 57). Apenas devemos ter presente que “a arte da composigho" que exes concites deserevem produz um género € nilo obras ppottcas individeais, Uma caractestica fundamental da poética universalista 4 0 facto de os corjuntos de categorias dos seus modelos serem completos & cexaustivos, Todavia as manifestagdes paniculares da esirtura abstracta 380, geralmente, “incompletas", i. c. no envolvem todas as categorias esruturais, 43 Se a nossa reconstituigiio da formagio do modelo aristotélico da tragédia esta correcta, entio, podemos con- cluir que nela interferem trés procedimentos logicamente distintos: a inferéncia, a andlise mereoldgica e a divi- ‘so. O procedimento mereoldgico é essencial & derivacéo ‘e muito importante do ponto de vista historico. Ao dar a Aristételes a oportunidade de demonstrar a analise mereolégica, a poética adquiriu — a par com a ciéncia dos organismos vivos — significagao histérica para o desenvoivimento da epistemologia cientifica. O estudo das estruturas poéticas inspira estudos estruturais gerais, Por outro lado, a introducdio do modelo mereolégico na poé- tica foi um acontecimento muito importante na institui- fio da poética como uma disciplina cientifica. As suas tarefas cognitivas mais importantes esto estabelecidas: estudar as propriedades “emergentes”, as hierarquias estru- turais ligadas pela derivacdo e pela integrago, as milti- plas relagdes entre partes ¢ partes, entre partes ¢ todos numa palavra, estudar as estruturas poéticas. Para além disto prevé-se na mereologia aristotélica uma associagio duradoura entre a poética e 0 “modelo organico”; a poética tedrica sera fortemente influenciada pelas analo- gias entre as estruturas da poesia e as estruturas da natureza viva." Em todos estes aspectos a heranga mereo- logica aristotélica é absolutamente crucial para a postica. E uma chamada de ateng&o categérica que qualquer método, teoria ou modelo de poiesis, que se limite as partes, sem atender ao todo, é sempre insatisfatério. © papel desempentiado pela “analogia orginica” na mereclogia aris. totélica da poética foi apontada por Edel: “As partes [da tragédia) slo trata- das quase da mesma mancira como so tratados, nas obras de bologia, os ve queria averturarme na tena de exrever uma obra de posit Ng pie aero, eu nha traduzido pare alemdo a [fgénia de Raine...) Cone encod nas verdadeias regs do paleo” (J. Chr. Gotschet Werweishet, itado de Herrmann, 1970: 139). re pstoria do conccito de Naumachahmung oa erica ¢ na estticn lemis foi estudada in Nivele, 1960. 61 normativo alemio o seu requisito fundamental: as obras Je arte tém de assemelhar-se ou corresponder & natureza. Tanto a producao de arte como a prética da sua critica deviam obedecer & norma da semelhanca. Os intelectuais te Leipzig e de Zurique — 0s dois centros mais impor- tantes da Germanistik na primeira metade do séc, XVIII oe iniram-se na defesa da norma, apesar da sua notéria fivalidade. Gottsched, 0 doutrinador de Leipzig, estava Convencido de que 0 sucesso ou o fracasso de uma obra de arte dependia inteiramente da sua obediéncia & norma da semelhanca: “A beleza de uma obra artificial nao fadvém da escuriddo vazia, mas assenta firme ¢ ncoessa- iamente na natureza das coisas. As coisas naturais so elas em si mesmas. (...) Portanto, a imitago da natu- reza perfeita pode conferir perfeigo as obras artificiais, (2) € 0 desvio do modelo (Muster) conduziré sempre a algo informe e fétuo” (GotCD: 132). A conhecida recusa de Gottsched em accitar a 6pera como uma forma de arte justficase precisamente pela norma da semelhanga: “Onde fest 0 prototipo (Vorbild) destas imitagdes? Onde esté a natureza com que estas fabulas se assemelham? (ib: 740). Em Zurique, Bodmer acentuou a primazia da natureza sobre a arte em termos nao menos inequivocos: Todos ‘0s artistas — pintores, escultores ¢ poetas — “reconhecem. a natureza como professora € mestra ¢ todos a tomam ‘como protétipo ou exemplo, estudando-a ¢ imitando-a” (BodCB: 28). Note-se que a concepgo bodmeriana de hatureza (em conformidade com a tradi¢&o) é ampla € compreende trés dominios: 0 mundo divino, o humano co material. As imitagdes artisticas so representagdes Ge coisas que existem nos trés dominios, com especial intensidade no mundo humano (ib.: 57 € ss.). Dado que a natureza como modelo é primaria e que a arte como 2 imitago é secundaria, a norma da semelhanga ¢ 0 crité- rio principal da perfeigdo artistica. Sem reluténoia em repetir lendas antigas e banalizadas, Bodmer reafirma que o melhor artista ¢ 0 mestre “que pinta com tal pericia ‘a natureza que a sua copia (Nachbild) se confunde com (0 protétipo (Urbild)” (ib.: 41). 'A ligagdo entre a poética normativa ¢ o conceito de Naturnachahmung revelou-se fatidica para ambos. A nor- ma da semelhanga é tio geral que chega a ser vazia; nenhum critério especifico para as representagGes artisticas se pode retirar dela. Além disso e talvez mais importante ainda, o proprio conceito de natureza, notoriamente vago, estava a tornar-se cada vez mais problematico 4 medida que as ciéncias naturais ‘evolulam. Nestas circunstancias, tada ctitico mimético construiu a sua propria imagem da natureza, confundindo crengas pessoais © convengées sociais."” A ‘base de um conceito tao vago, s6 uma pré- tica critica puramente arbitraria poderia ser levada a cabo. ‘A poética normativa que surgiu reclamando ter desco- berto na norma da semelhanca um critério critico uni- versal, acabou por ser uma critica meramente subjectivista. Quando nos lembramos que este subjectivismo critico se emparelhava com um dogmatismo autoritirio, podemos compreender por que razo a poética normativa foi desa- creditada no despontar da era moderna. \ © carketer impreciso do conceito de natureza na neoclasicismo foi cconvenientemente descrto por Ker: **Natureza” signfiea o que quer que 0 Gotor bem entenda; as vezes ¢ a realidade copiada pelo artista; as veces, mais comummente, s40 0s principios da raziio na poesia © outras vezes 6 Ideal" (Ker, 1925: xxiv-xxs). Lovejoy enumerou dezotc sentdos do termo Natureza* como norma estélica ¢ dezanove interpretacies possiveis do eitério *correpondéncia&natureza” (Lovejoy, 1927; @-T), A “relaividade do conccito de notural” na dovtrina neocassiista também foi aponteda por Marlewardt DMterkwordt 197 2231, 63 Simultaneamente, a rigida interpertagdo neoclassicista evelou as graves deficiéncias epistemologicas ¢ Logicas ‘fe doutrina da mimese. PressupSe-se que a poética mimética idescreva as caracteristicas da poesia na sua correspondén- ‘Ga A vatureza representada. Um poeticista nia tem, todavia, aoesso directo & natureza nem metodologia para o seu conhe- cimento ¢ compreensao. Ele tem que estudar a natureza nas Fepresentagdes poticas ¢ através delas. Este problema episte- mologico bisico da poética mimética foi involuntariamente fevelado por Bodmer. Se quisermos saber — diz Bodmer _— como se exprime a alegria de ver regressar a casa uma pessoa querida depois de uma longa auséncia, devemos ler a Odisseia de Homero ou um poema de Herr Kénig, ou uma ode de Giinther (BodCB: 309). Partindo do prin- cipio que as “grandes” obras poéticas oferecem uma c6pia perfeita da realidade, quando um poeticista estuda as imi- tages de uma emogio, é a propria emocio que ele estuda. A postica mimética substitu a psicologia e, por conse- guinte, todos os dominios do saber. Numa corajosa tenta- tiva de contrabalancar esta absurda consequéncia, Bodmer apenas piora a situa¢do ao sugerir que os poeticistas sigam uma abordagem dupla. Primeiro, “eles tm de selec- cionar exemplos das composigées poticas ¢ oratérias mais comoventes”. Segundo, “eles devem fazer observagdes profun- das ¢ filosdficas e saber em que consiste originalmente a natureza da emogio, (...) e de que modo a sua propria forma de expresso ou configuragio é necessariamente determinada por estas circunstancias” (ib: 315). Por outras palavras, 0 estudioso de poética mimética tem de estudar a poesia ¢ a natureza e as suas miiltiplas relagdes. Este Fequisito maximo € verdadeiramente a unica epistemolo- gia adequada & poética mimética, porque vai ao encon- tro das suas exigéncias te6ricas, Niio admira que uma poética 4 de to imenso alcance n&o pudesse desenvolver-se; cla nfo podia ir além de um vago conhecimento sobre poe- sia & mistura com um conhecimento de segunda mao sobre “natureza”, 2. © aparecimento da poética dos mundos possiveis Foi preciso um longo periodo de transigio — todo o séc. XVIII — para minar e, finalmente, destruir a auto- ridade da poética normativa na cultura literdria curopeia. Em oposi¢ao ao conceito de regras universais ¢ objecti- vas, muitos criticos afirmaram, mais ou menos a forga, © papel dos factores subjectivos na actividade poética, designando-os de diversas maneiras: “génio”, “gosto”, “sentimento”, e sobretudo, “imaginacdo”. A riqueza ¢ a complexidade do periodo de transigdo atraiu a atengdo de um grupo de historiadores das ideias, da filosofia, da cultura e da critica. Possuimos muitas descrigdes desta fascinante evolucao, de varias perspectivas e em varios graus de pormenor.” Nao ha necessidade de apresen- tar de novo a miscelnea de reflexdes que se fizeram no sée. XVIII acerca dos factores subjectivos envolvidos na arte da poesia. O meu objectivo ¢ encontrar, nesta avalancha de ideias, o embrido de uma teoria radical- mente nova da relacdo entre literatura e realidade, um esbogo de uma alternativa cocrente & poética mimética. Esta nova teoria tem origem na crise intelectual ¢ estética De entre os estudos mais recentes, of seguintes slo especialmente dignos de nota: Cassrer, 1951: 297-3895 Abrams, 1953; Welle, 1955, vol. 15, [ivelle, 1960; Foucault, 1966; Markwardt, 1970, vol. 2: 25288; Herrmann, 65 do séc. XVII, mas a sua importncia tedrica transcende de longe o periodo histérico da sua formulagio." Nao nos surpreende que o pensamento critico ¢ esté- fico que defendeu o papel de factores subjectivos na poesia e nas artes estivesse geralmente associado com a filosofia anti-racionalista. A queda da poética normativa ¢ o declinio do racionalismo do séc. XVIII foram aconte- cimentos historicos simultaneos. O cardcter anti-raciona- lista e intuicionista do pensamento estético do séc. XVIII tem sido apontado por Cassirer em relacdo a Shaftes- bury € Dubos. Nos seus pontos de vista sobre a esséncia da beleza e da poesia Shaftsbury e Dubos diferem subs- tancialmente, mas as suas praticas epistemolégicas reve- Jam uma profunda semelhanca: “Eles (...) manifestam-se contra todas as tentativas de compreender a natureza do belo através do mero raciocinio, de definigdes discursivas e de distingGes analiticas. Defendem um conhecimento “imediato” (unmittelbare Erkenniniss) do belo” (Cassirer, 1951: 323). Esta corrente do pensamento estético do séc. XVIII n&o podia conduzir a uma fundamentaciio tedrica da poética moderna. O intuicionismo est4 em desacordo com o postulado epistemolégico fundamental da postica. A formagio da poética moderna remonta aos pen- sadores do séc. XVIII que, ao acentuarem © papel dos factores subjectivos na criatividade poética, reafirmaram, "Abrams (1953) oferece-nos o relato mais completo das virias idei

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