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METODOLOGIA © SISTEMATIZAGAD DE EXPERIENGIAS COLETIVAS POPULARES Educagao dialdgica e dialogo Texto extraido de Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido. 27° ed. Sdo Paulo:Paz e Terra, 1999, p. 80-93. (Todos os grifos sao nossos). “O didlogo, como encontro dos homens para a tarefa comum de saber agir, se rompe, se seus pélos (ou um deles) perdem a humildade, ‘Como posso dialogar, se alieno a ignorancia, isto ¢, se a vejo sempre no outro, nunca em mim? ‘Como posso dialogar, se me admito como um homem diferente, virtuoso por heranga, diante dos outros, meros “isto”, em quem nao reconhego outros eu? Como posso dialogar, se me sinto participante de um gueto de homens puros, do- nos da verdade e do saber, para quem todos os que esto fora sao “essa gente”, ou so “nativos inferiores"? ‘Como posso dialogar, se parto de que a prontincia do mundo é tarefa de homens sele- tos e que a presenca das massas na historia é sinal de sua deterioragao que devo evitar? ‘Como posso dialogar, se me fecho a contribuigao dos outros, que jamais reconheso, @ até me sinto ofendido com ela? ‘Como posso dialogar se temo a superagao e se, s6 em pensar nela, sofro e definho? Aauto-suficiéncia é incompativel com o didlogo. Os homens que nao tém humildade ou a perdem, nao podem aproximar-se do povo. Nao podem ser seus companheiros de prontincia do mundo. Se alguém nao é capaz de sentir-se e saber-se tao homem quanto 08 outros, 6 que Ihe falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles, Neste lugar de encontro, nao ha ignorantes absolutos, nem sabios absolutos: ha homens que, em comunhéo, buscam saber mais. Nao ha também didlogo, se nao ha uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e de refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocagao de ser mais, que nao é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens. Afénos homens é um dado a priori do didlogo. Por isto, existe antes mesmo de que ele se instale. O homem dialégico tem f6 nos homens antes de encontrar-se frente a frente com eles. Esta, contudo, nao é uma ingénua é. O homem dialégico, que é critico, sabe que, se o poder de fazer, de criar, de transformar, é um poder dos homens, sabe também que podem eles, em situacdo conereta, alienados, ter este poder prejudicado. Esta possibilidade, porém, em lugar de matar no homem dialégico a sua fé nos homens, aparece a ele, pelo contrario, como um desafio ao qual tem de responder. Esta convencido de que este poder de fazer e transformar, mesmo que negado em situagdes concretas, tende a renascer. Pode renascer. Pode constituir-se. Nao gratuitamente, mas na e pela ABUSER BO TENK GERADOR NA PRAXIS DA EBUGAGAG POPULAR Maal METODOLOGIA E SISTEMATIZAGAD DE EXPERIENGIAS COLETIVAS POPULARES luta por sua libertagao. Com a instalagao do trabalho nao mais escravo, mas livre, que da a alegria de viver. Sem esta fé nos homens o didlogo é uma farsa. Transforma-se, na melhor das hip6- teses, em manipulagao adocicadamente paternalista Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, 0 didlogo se faz uma relago horizontal, em que a confianga de um pélo no outro é conseqiiéncia dbvia. Seria uma contradigdo se, amoroso, humilde e cheio de fé, 0 didlogo ndo provocasse este clima de confianga entre seus sujeitos. Por isto inexiste esta confianga na antidialogicidade da concepgao “bancaria” da educagao. Se a fé nos homens é um dado a priori do didlogo, a confianga se instaura com ele. Aconfianga vai fazendo os sujeitos dialégicos cada vez mais companheiros na prontincia do mundo, Se falha esta confianga, é que falharam as condigées discutidas anteriormente, Um falso amor, uma falsa humildade, uma debilitada fé nos homens nao podem gerar confianga. A confianga implica o testemunho que um sujeito da aos outros de suas reais € concretas intengdes, Nao pode existir, se a palavra, descaracterizada, no coincide com os atos. Dizer uma coisa e fazer outra, nao levando a palavra a sério, nao pode ser estimulo confianga. Falar, por exemplo, em democracia e silenciar 0 povo é uma farsa. Falar em huma- nismo e negar os homens é uma mentira. Nao existe, tampouco, didlogo sem esperanga. A esperanga esté na propria essén- cia da imperfeigao dos homens, levando-os a uma eterna busca. Uma tal busca, como jd vimos, no se faz no isolamento, mas na comunicagao entre os homens — 0 que & impraticavel numa situagao de agressao. O desespero é uma espécie de siléncio, de recusa do mundo, de fuga. No entanto a desumanizagao que resulta da “ordem” injusta ndo deveria ser uma razao da perda da esperanga, mas, ao contrério, uma razéo de desejar ainda mais, e de procurar sem descanso, restaurar a humanidade esmagada pela injustica. Nao é, porém, a esperanga um cruzar de bragos e esperar. Movo-me na esperanca enquanto luto e, se luto com esperanga, espero. Se 0 didlogo é o encontro dos homens para ser mais, nao pode fazer-se na deses- peranga. Se os sujeitos do dialogo nada esperam do seu quefazer, j4 no pode haver didlogo. O seu encontro é vazio e estéril. E burocratico e fastidioso. Finalmente, nao ha o didlogo verdadeiro se nao ha nos seus sujeitos um pensar ver- dadeiro. Pensar critico, Pensar que, nao aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles’ uma inquebrantavel solidariedade. Este é um pensar que percebe a realidade como proceso, que a capta em constante devenir e ndo como algo estatico, Nao se dicotomiza a si mesmo na ago. “Banha-se” KBUSGA DO TEMA GERADOR NA PRAXIS DA EDUGAGAG POPULAR — Ae METODOLOGIA © SISTEMATIZAGAD DE EXPERIENGIAS COLETIVAS POPULARES permanentemente de temporalidade cujos riscos nao teme. Ope-se ao pensar ingénuo, que vé o “tempo histérico como um peso, como uma estratificagdo das aquisigées e experiéncias do passado”, de que resulta dever ser 0 presente algo normalizado e bem-comportado. Para o pensar ingnuo, 0 importante 6 a acomodagao a este hoje normalizado. Para © critico, a transformagao permanente da realidade, para a permanente humanizagao dos homens. Para o pensar critico, diria Pierre Furter, “a meta no sera mais eliminar os riscos da temporalidade, agarrando-se ao espago garantido, mas temporalizar o espago. O universo nao se revela a mim (diz ainda Furter) no espago, impondo-me uma presenga maciga a que s6 posso me adaptar, mas como um campo, um dominio, que vai tomando forma na medida de minha agao", Para o pensar ingénuo, a meta é agarrar-se a este espaco garantido, ajustando-se aele e, negando a temporalidade, negar-se a si mesmo. Somente 0 didlogo, que implica um pensar critico, ¢ capaz, também, de gera-lo. ‘Sem ele nao ha comunicagao e sem esta nao ha verdadeira educagao. A que, ope- rando a superagao da contradigao educador-educandos, se instaura como situagao gno- siolégica, em que os sujeitos incidem seu ato cognoscente sobre o objeto cognoscivel que os mediatiza. O dialogo comega na busca do contetido Programatico Dai que, para esta concepgao como pratica da liberdade, a sua dialogicidade comece, no quando 0 educador-educando se encontra com os educando-educadores em uma sitagao pedagégica, mas antes, quando aquele se pergunta em tomo do que vai dialogar com estes. Esta inquietagao em torno do contetido do didlogo é a inquietago em torno do contetido programatico da educagao. Para 0 “educador-bancério’, na sua antidialogicidade, a pergunta, obviamente, nao € a propésito do contetido do didlogo, que para ele nao existe, mas a respeito do pro- grama sobre o qual dissertara a seus alunos. E a esta pergunta responderd, ele mesmo, organizando seu programa. Para 0 educador-educando, dialégico, problematizador, o contetido programatico da educagao no é uma doacao ou uma imposigao - um conjunto de informes a ser depo- sitado nos educandos - mas a devolugao organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este Ihe entregou de forma desestruturada. ‘A educagao auténtica, repitamos, nao se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo. Mundo que impressiona e desafia a uns e a outros, ori- ginando visdes ou pontos de vista sobre ele. Visées impregnadas de anseios, de dividas, ABUSER BO TENK GERADOR NA PRAXIS DA EBUGAGAG POPULAR METODOLOGIA E SISTEMATIZAGAD DE EXPERIENGIAS COLETIVAS POPULARES de esperangas ou desesperangas que implicitam temas significativos, a base dos quais se constituird o contetido programatico da educagao. Um dos equivocos de uma concep¢ao ingénua do humanismo esta em que, na ansia de corporificar um modelo ideal de “bom homem', se esquece da situagao concreta, existencial, presente, dos homens mesmos. “O humanismo consiste (diz Furter), em permitir a tomada de consciéncia de nossa plena humanidade, como condigao obrigacdo: como situagao e projeto” Simplesmente, néo podemos chegar aos operarios, urbanos ou camponeses, estes, de modo geral, imersos num contexto colonial, quase umbilicalmente ligados ao mun- do da natureza de que se sentem mais parte que transformadores, para, a maneira da concepeao “bancéria" , entregar-Ihes “conhecimento” ou impor-lhes um modelo de bom homem, contide no programa cujo contetido nés mesmos organizamos. Nao seriam poucos os exemplos que poderiam ser citados, de planos, de natureza politica ou simplesmente docente, que falharam porque os seus realizadores partiram de uma visdo pessoal da realidade. Porque nao levaram em conta, num minimo instante, os homens em situagao a quem se dirigia seu programa, a nao ser com puras incidéncias de sua agdo. Para o educador humanista ou o revoluciondrio auténtico, a incidéncia da agao é a realidade a ser transformada por eles com os outros homens e nao sobre estes. Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adapté-los cada vez mais 4 rea- lidade que deve permanecer intocada, sao os dominadores. Lamentaveimente, porém, neste “conto” da verticalidade da programagao, “conto” da concepgao “bancéria”, caem muitas vezes liderangas revolucionérias, no seu empenho de obter a adesao do povo ago revolucionaria. Acercam-se das massas camponesas ou urbanas com projetos que podem corres- ponder a sua viséo do mundo, mas nao necessariamente a do povo. Esquecem-se de que 0 seu objetivo fundamental é lutar com o povo pela recupe- ragdo da humanidade roubada e nao conquistar 0 povo. Este verbo nao deve caber na sua linguagem, mas na do dominador. Ao revolucionario cabe libertar e libertar-se com 0 povo, nao conquisté-lo. As elites dominadoras, na sua atuagao politica, sdo eficientes no uso da concepgao “pancéria’ (em que a conquista é um dos instrumentos) porque, na medida em que esta desenvolve uma ago apassivadora, coincide com o estado de “imersao” da consciéncia oprimida. Aproveitando esta “imersao” da consciéncia oprimida, estas elites vao trans- formando-a naquela “vasilha” de que falamos e ponde nela slogans que a fazem mais temerosa ainda da liberdade. Um trabalho verdadeiramente libertador é incompativel com esta pratica. Através dele, © que se ha de fazer é propor aos oprimidos os slogans dos opressores, como problema, KBUSGA DO TEMA GERADOR NA PRAXIS DA EDUGAGAG POPULAR — Mel METODOLOGIA © SISTEMATIZAGAD DE EXPERIENGIAS COLETIVAS POPULARES proporcionando-se assim, a sua expulsdo de “dentro” dos oprimidos. Afinal, o empenho dos humanistas nao pode ser o de opor os seus slogans aos dos opressores, tendo como intermediarios os oprimidos, como se fossem “hospedeiros” dos slogans de uns e de outros. O empenho dos humanistas, pelo contrario, esta em que os oprimidos tomem consciéncia de que, pelo fato mesmo de que esto sendo “hospedeiros” dos opressores, como seres duais, ndo esto podendo ser. Esta pratica implica, por isto mesmo, que o acercamento as massas populares se faga, no para levar-lhes uma mensagem “salvadora” , em forma de contetido a ser depositado, mas, para, em didllogo com elas, conhecer, ndo sé a objetividade em que esto, mas a consciéncia que tenham desta objetividade; os varios niveis de percepgao de si mesmos edo mundo em que e com que esto. Por isto € que nao podemos, a nao ser ingenuamente, esperar resultados positivos de um programa, seja educativo num sentido mais técnico ou de ago politica, se, des- respeitando a particular visao do mundo que tenha ou esteja tendo o povo, se constitui numa espécie de “invasao cultural" , ainda que feita com a melhor das integdes. Mas “invasao cultural” sempre. As relagées homens-mundo, os temas geradores e conteudo programatico desta educagao. [1 O momento deste buscar é 0 que inaugura o didlogo da educagao como pratica da liberdade. E 0 momento em que se realiza a investigagao do que chamamos de universo tematico do povo ou o conjunto de seus temas geradores. (p. 87). [1 O que se pretende investigar, realmente, nao sao os homens, como se fossem pe- as anatémicas, mas o seu pensamento-linguagem referido a realidade, os niveis de sua percepgao desta realidade, a sua visdo do mundo em que se encontram envolvidos seus “temas geradores”. (p. 88). [1 ‘Ao se separarem do mundo, que objetivam, ao separarem sua atividade de si mes- mos, ao terem 0 ponto de decisao de sua atividade em si, em suas relages com o mundo © com os outros, os homens ultrapassam as “situagées limites’, que ndo devem ser tomadas como se fossem barreiras insuperdveis, mais além das quais nada existisse. No momento mesmo em que os homens as apreendem como freios, em que elas se configu- ram como obstaculos a sua libertagdo, se transformam em “percebidos destacados” em sua“visdo de fundo”. Revelam-se assim como realmente sao : dimensées concretas BUSCA DO TEMA GERADOR NA PRAXIS DA EDUGAGAU POPULAR METGDOLOGIA E SISTEMATIZAGAD DE EXPERIENGIAS CGLETIVAS POPULARES ehi icas de uma dada reali jade. (p.90) Cl Esta é a razao pela qual nao sao as “situagées-limites’ em simesmas, geradoras de um clima de desesperanga, mas a percep¢ao que os homens tenham delas num dado momento histérico, como um freio a eles, como algo que eles ndo podem ultrapassar. No momento em que a percepedo critica se instaura, na ago mesma, se desenvolve um clima de esperanga e confianga que leva os homens a se empenharem na superacdo das “situagées-limites”, Esta superacdo, que nao existe fora das relagdes homens-mundo, somente pode verificar-se através da agdo dos homens sobre a realidade concreta em que se dao as “situagdes-limites’. Superadas estas, com a transformagao da realidade, novas surgirao, provocando outros “atos-limites” dos homens. (p. 90-91). L-] Estes, ndo somente implicam outros que so seus contrarios, as vezes antagénicos, mas também indicam tarefas a serem realizadas e cumpridas. Desta forma, ndo ha como surpreender os temas histéricos isolados, soltos, desconectados, coisificados, parados, mas em relacdo dialética com outros, seus opostos. Como também nao ha outro lugar para encontra-los que nao seja nas relagdes homens-mundo. O conjunto dos temas em interagao constitui 0 ‘universo tematico’ da época’, KBUSEA DO TEMA GERADOR NA PRAXIS BA EDUGAGAG POPULAR Ae

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