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REFLEXOES SOBRE A ORIGEM DA CRISE AGRARIA NO NORTE DO PARANA' ELPIDIO SERRA’ RESUMO: No presente trabalho procura-se resgatar os problemas ¢ 0s processos hist6ricos que justificam a crise agréria no Norte do Parana, valorizando dois pontos principais: a ocupagao pioneira da terra agricola e a modernizacdo da agricultura regional, a partir dos anos 70. PALAVRAS-CHAVE: Reforma Agraria, modernizagio da agricultura, colonizagao, conflitos rur: REFLECTIONS ON THE ORIGIN OF THE AGRARIAN CRISIS IN THE NORTH OF PARANA ABSTRACT: In the present work it tries to rescue the problems and historical processes that justify the agrarian crisis in the North of Parand, valuing two main points: the pioneering occupation of the agricultural earth and the modernization of the regional agriculture, starting from the seventies. KEY Worps: land reform, modernization of the agriculture, colonization, rural 1, INTRODUGAO A. preocupagiio no desenvolvimento do presente trabalho é evidenciar as formas como se deu o processo de repartigao da terra agricola no Parana na fase da ocupagio pioneira, as transformagdes ocorridas no espaco agrario paranaense apés o esgotamento do estoque de terras devolutas e, interligadas a estas questdes, as diferentes formas de conflitos rurais originadas, quer a partir das distorgdes na fase da ocupagio pioneira, quer na etapa posterior, quando da modernizagio da agricultura, como conseqiiéncia do avango e consolidagao do capitalismo no campo Inserir a questo dos conflitos rurais no mesmo estudo em que se aborda as questes da organizagao do espago agririo pioneiro ¢ das transformagée: modernizadoras da atividade agricola se justificam diante do fato de que, no Parana, a luta no campo nao é recente, acompanhou e fez parte de todo o processo histérico da organizagiio e reorganizagio do espago agririo, embora assumindo diferentes formas ¢ niveis de intensidade no decorrer dos tempos. Ou seja: a luta que atualmente se desenvolve no campo, objetivando conquistas em termos de Reforma Agraria, deriva de processos nem sempre imediatos, em alguns casos motivados por erros cometidos ainda nos primérdios da ocupagio pioneira. O que se te Parand, na pratica, foi o processo de construcao da estrutura sendo acompanhado de perto por um proceso de contestagiio, ora aparente ¢ ora camuflado, mas nunca deixando de existir, em que pequenos produtores rurais, marginalizados do acesso & terra, passam a questionar, de inicio a forma como vinha se desenvolvendo a repartigdio dessa terra, via de regra em beneficio de alguns poucos ¢ privilegiados segmentos sociais e em seguida, ja organizados, evoluindo para questées mais ' Parte de relatério preliminar de pesquisa encaminhado ao CNPq em 1999. * Docente do Departamento de Geografia — Universidade Estadual de Maringa. BOLETIM DE GEOGRAFIA. 19(1): 45-58 (2001) 46 Serra, E. BOLETIM DE GEOGRAFIA complexas, envolvendo relagdes de trabalho e de produgio, até chegar, enfim, a luta pela Reforma Agraria Na luta pela Reforma Agraria, os trabalhadores passam a ser personagens de uma série de mudangas politicas, sociais, econdmicas ¢ fundidrias que se processam no espago agririo paranaense, particularmente na regio do Norte, a partir dos anos 80 ¢ que so estudadas no presente trabalho em duas dimensdes: a dimensio macro, envolvendo questes maiores, de ambito geral, e a dimensio micro, envolvendo a problematica dos assentamentos rurais, forma representativa da Reforma. Neste relatério preliminar, a preocupagio € trabalhar com as questies gerais, ou seja, a visio macro da organizagao espacial, afunilando para a reforma Agraria e os movimentos organizados de trabalhadores rurais, ficando para uma etapa posterior as questdes ligadas aos assentamentos rurais. Tanto para o desenvolvimento da primeira, quanto da segunda ctapas, a metodologia adotada envolveu levantamentos bibliogrificos ¢ entrevistas, sendo ainda aplicados questionérios que vao ilustrar apenas a segunda parte do trabalho. 2. OS PRIMEIROS PROCESSOS DE OCUPACAO E importante observar que 0 avango das frentes pioneiras, uma vez ocorrendo em periodos e em espagos de caracteristicas diferentes acabaram por incorporar, a partir do regime de sesmarias, diferentes mecanismos de apropriagao da terra, de certa forma refletindo as condigées e os interesses politicos que prevaleceram nos momentos em que se deu a ocupagao. Dentro desta stica de raciocinio, os movimentos expansionistas ocorridos no Parand antes da década de 30 vo marcar-se, na sua fase inicial, pela transferéneia da forma ptblica para a forma particular de apropriacgao da terra privilegiando, de um lado a grande propriedade e de outro lado, na condigaio de grandes proprietérios, elementos vinculados a uma reduzida faixa da populacdo, justamente a que melhor se relacionava com o poder politico dominant. Ha um momento, entretanto, que esta estrutura agrdria, construida com base na gran*~ propriedade (leia-se sesmarias) sofre um processo de desagregacao calcado + interesses maiores do poder dominante (importagio de trabalhadores livres } +: substituir o trabalhador escravo nas lavouras de exportagiio) e com isso é abert. no Parana espaco para a afirmagdo da pequena propriedade, destinada a outra catevoria privilegiada: 0 agricultor estrangeiro. O agricultor brasileiro teria assim que continuar um pouco mais de tempo na fila de espera No periodo pés 1930, o Estado passa a perseguir duas metas em relagio & estrutura fundidria em andamento: de um lado desenvolve trabalho de recuperacio das terras desviadas, basicamente através de grilos ¢ concessbes fraudulentas e, de outro lado, incrementa o processo de colonizagao que passa a criar um novo desenho para o espaco agrdrio a partir de entio. O processo de apropriagio irregular, quer através de concessdes fraudulentas, quer através de grilos, havia se constitufdo em poderoso suporte para a formacao e afirmagio de uma oligarquia agréria em plenas condigdes de participar diretamente do poder politico dominante, ou de medi forgas com éle. A partir de 30, no entanto, a resisténcia desse poder paralelo ao Estado comega a minar, contribuindo para isso os efeitos da crise econdmica de 1929, que debilitou a classe dominante em praticamente 0 mundo todo ¢ os efeitos da Revolugao de 30 no Brasil, ANO 19(1): 45-58 (2001) 47 Reflexoes sobre a origem da crise agrdria no Norte do Parana que ao imprimir nova ordem institucional no Pais originou as condigées politicas necessirias para a adogdio de medidas de impacto tendo em vista a reversio do quadro de apropriacao da terra no Parana. Ao retomar as terras desviadas, 0 Estado passou a ter condigdes de estabelecer nova ordem na ocupacao do espago, tendo a colonizacio como processo basico. A colonizagao, a propésito, € que marcaria a partir dai ¢ até o esgotamento das frentes pioneiras, nos anos 60, os processos de repartigo ¢ de apropriagaio da terra agricola no Parand No proceso de colonizagdo, o Estado passa a se relacionar com grupos empresariais privados nacionais e estrangeiros, encarregados de desenhar a nova estrutura fundidria. As empresas colonizadoras, via de regra, para serem bem sucedidas em seus empreendimentos, passam a atrelar 0 processo de venda dos lotes a uma motivagao econdmica, sempre representada por alternativas de exploragio ¢ uso da terra agricola. No caso da regio Norte, por exemplo, a principal colonizadora, Companhia de Terras Norte do Parand, associou a comercializagao da terra repartida com © sucesso das lavouras cafeeiras e a velocidade de seu deslocamento a partir da frente de expansao, na época estacionada a Oeste do Estado de Sao Paulo. De maneira geral, portanto, as empresas loteadoras, para serem bem sucedidas, sincronizavam a mercantilizagio da terra com seu potencial uso econdmico. Além disso, para agilizar a venda dos lotes, simultaneamente a comercializagao da terra providenciavam as denominadas “obrigagdes sociais” em termos de construgio de estradas ligando os loteamentos aos centros urbanos préximos, montagem de sistemas de crédito, de comercializagao de safras etc., além de outras obrigagdes voltadas & seguranga e ao bem-estar social dos compradores, passando pela garantia do acesso & terra sem problemas com posseiros, grileiros ou indfgenas. Algumas empresas, caso da Companhia de Terras Norte do Parané, assumiram de fato 0 elenco de obrigagdes e como resultado foram bem sucedidas em seus empreendimentos imobilidrios. Outras, no entanto, fracassaram e tiveram suas reas retomadas pelo Estado. No caso do loteamento da CTNP, 0 sucesso dependeu, em grande parte, das estratégias utilizadas pela loteadora, no que se refere a localizagtio das cidades, uso da terra e sua dimensio. Publicacdo divulgada pela empresa, a propésito, revela: “As cidades destinadas a se tomarem miicleos econdmicos de maior importincia seriam demarcadas de cem em cem quilémetros, aproximadamente, Entre estas, distanciadas de 10 a 15 quil6metros um do outro, seriam fundados patriménios, centros comerciais ¢ abastecedores intermedidrios. Tanto nas cidades quanto _nos patriménios a drea urbana apresentaria uma divisio em datas residenciais ¢ comerciais. Ao redor das reas urbanas se situariam cinturdes verdes, isto é, uma faixa dividida em chécaras que pudessem servir para a produgio de géneros alimenticios de consumo local, como aves, ovos, frutas, hortalicas € legumes. A rea rural seria cortada de estradas vicinais, abertas de preferéncia ao longo dos espigies, de maneira a permitir a divisio da terra da seguinte mancira: pequenos lotes, de 10, 15 ov 20 alqueires, com frente para a estrada de acesso e fundos para o ribeirio. Na parte alta, apropriada para plantar café, 0 proprietirio da gleba desenvolveria sua atividade agricola basica: cerca de mil quinhentos pés por alqueire. Na parte baixa, construiria sua casa, plantaria sua horta, criaria seus animais para ‘consumo proprio, formaria seu pequeno pomar. Agua seria obtida no ribeirdo ou posos de boa vazio. As casas de virios lotes contiguos, 48 Serra, E. BOLETIM DE GEOGRAFIA alinhados nas margens dos cursos d’égua, formariam comunidades que evitassem 0 isolamento das familias e favorecessem o trabalho em mutirao, principalmente na época da colheita de café” (CMNP, 1975:76) Como resultado da estratégia utilizada, da qualidade das terras apropriadas & cultura do café e do valor que 0 produto atingia no mercado externo, “até 1943, a Companha de Terras Norte do Parand vendera cerca de 117 mil alqueires. Dez anos depois, em 1953, haviam sido vendidos 400 mil algueires, divididos em cerca de 26 mil lotes agricolas, cuja érea média era de 15 alqueires. Nesse mesmo ano, em média, quatro familias estavam localizadas em cada lote, ou seja, cerca de 100 mil familias na érea rural colonizada pela Companhia” (WESTPHALEN, 1968:19). Quanto ao prego de venda dos lotes, no loteamento de 515 mil alqueires, 0 correspondente a um milhdo e trezentos mil hectares, a Companhia adquiriu suas terras a baixos pregos do Governo do Estado e, assim, teve condigdes de também vender a baixos pregos e obter grandes lucros. Ela “adquiriu suas glebas do governo do Estado a razio de 20 mil réis por alqueire paulista, em 1925. Quinze anos depois, em 1940, ela os vendia & razio de 500 mil réis. Uma década depois, 1950, 0 preco por alqueire nao ia além dos dez mil cruzeiros, ou seja, cerca de quinze vezes 0 salério minimo fixado para a regiao norte-paranaense e oito vezes 0 estabelecido para a cidade de So Paulo. Assim sendo, uma pessoa que adquirisse, em 1950, um lote de trés alqueires, por 30 mil cruzeiros, poderia pagé-lo em 48 prestagdes, 0 que significava pouco mais de um salario minimo por més” (PADIS, 1981:106). Significa isso, levando em consideragio 0 loteamento da Companhia de Terras Norte do Parana, que houve condig&o de acesso a terra, na época da ocupagao pioneira, por parte de populagées de baixa renda, Tendo a compra do lote facilitada, os pequenos proprietérios afluiram para a regido em grande escala, 0 que pesou significativamente para a rapidez com que se desenvolveram os processos de ocupagio humana e de desenvolvimento econdmico na Regio, 3. AS TRANSFORMAGOES NO CAMPO DEPOIS DOS ANOS 60 Enquanto, particularmente na regidio Norte, havia terra disponivel para colonizagio nas frentes pioneiras, apesar das frentes tradicionalmente se marcarem como espagos de violéncia no Parané, o Estado dispunha de uma poderosa valvula de escape que Ihe possibilitava manter sob controle eventuai: perfodos de tensio social no campo. O desemprego em épocas de crises nas lavouras € desequilfbrios na distribuigio da populagio rural no territério, que levavam algumas regides a ficarem mais saturadas que outras, eram problemas, por exemplo, que o Estado tinha como resolver, simplesmente executando ou autorizando a iniciativa privada a executar projetos de colonizago nas frentes pioneiras. As populagdes excedentes ou marginalizadas do acesso a terra eram entao persuadidas a aventurar rumo as frentes de colonizagao pela possibilidade de se tornarem proprietérias rurais. Esse trunfo politico, no entanto, escapa das mios do Estado quando se esgotam as terras devolutas e quando a fronteira econdmica alcanga a fronteira politica. O Estado vai, gradativamente, perdendo o controle sobre os deslocamentos populacionais e sobre os negécios de terra, que passam a seguir as ANO 19(1): 45-58 (2001) Reffexdes sobre a origem da crise agririano 49 Norte do Parana leis do mercado imobilidrio. Como resultado direto, as populagSes que nao haviam ainda adquirido acesso & terra, véem suas chances bastante reduzidas, ainda mais Ievando em conta que a simples diminuigdo da oferta de éreas virgens, levou & valorizagio das dreas j4 ocupadas ou j4 apropriadas. Duas tendéncias, a esta altura, se delineiam e vao marcar o processo de ocupagio e exploragio da terra agricola dos anos 60 em diante: uma, patrocinada pela classe empresarial emergente no campo que opta em fazer investimentos na lavoura, reinvestindo na terra o lucro de sua exploragao agricola, 0 que em tltima anélise se reflete na melhoria da quantidade ¢ da qualidade da colheita; outra, patrocinada pela classe latifundiéria tradicional, que opta em continuar investindo em terras, geralmente ampliando os limites horizontais da propriedade, neste caso passando a incorporar terras de terceiros, © que vai se refletir no primeiro processo de concentragio fundidria no novo perfodo. Em fungio destas duas tendéncias, duas classes comecam, efetivamente, a se definir a partir de ent no Parana: uma constituida de proprietérios de terras, na condigio de empresirios rurais ou na condigao de latifundiérios; outra constituida de empregados rurais, com pouca ou nenhuma chance de atingir ou recuperar a posse da terra, A. categoria dos proprietdriosrurais, com a crescente monopolizagdo da propriedade da terra, quer em fungiio do interesse de expandir os limites da drea pioneira, quer em fungio do interesse de tirar 0 maximo aproveitamento econémico da terra, comega a abalar o modelo de ocupagio planejada voltado & pequena propriedade e ao trabalho familiar que chegou a predominar, por exemplo, em toda a zona cafeeira paranaense, particularmente na extensa drea loteada pela Companhia de Terras Norte do Parand. Como resultado, volta a se manifestar a estrutura fundidria altamente concentrada que predominou nas regides do Parana Antigo antes da década de 30 ¢ que foi abrandada a partir do modelo de repartigiio fundidria posto em pritica depois desse perfodo nas novas frentes de expansio, em fungao dos projetos de colonizagio. Paralelamente, o interesse politico do Estado de manter 0 homem: no campo produzindo para sua subsisténcia e vendendo 0 excedente, entra em choque com 0 interesse econémico do proprio Estado ¢ do empresariado rural, de fazer a agricultura trilhar 0 caminho do desenvolvimento, produzindo para o mercado. O choque torna-se inevitével A medida que © novo modelo passa pelo fortalecimento da categoria dos proprietérios rurais, pela transformagdo da estrutura agrdria e por profundas mudangas nas relacGes de trabalho ¢ de produgao até entio vigentes, ou seja, rompe com a agricultura tradicional geradora de mio-de-obra ¢ por isso mesmo alimentadora do “colchdo de ar” que evitava ou atenuava os impactos da tensiio social no campo. A categoria dos trabalhadores rurais, com pouca ou nenhuma terra, ndo teve como reagir ou tirar algum proveito das transformagGes que se processavam no espago agrério paranaense. Em vista disso, em nome do capitalismo no campo, que ndo sabia exatamente do que se tratava, acabou sendo despojada, em primeiro lugar da terra que desbravou e tornou produtiva e, em seguida, de sua propria fora de trabalho, apropriada pelo capitalista junto com o monopélio da propriedade da terra. Opera-se desse modo no Parand 0 que MARTINS (1982:54) chamou de “instauracao do divércio entre o trabalhador e as coisas de que necesita para trabalhar — a terra, as ferramentas, as méquinas, as matérias-primas”, 0 que, segundo o autor, constitui “a primeira condico e 0 primeiro passo para que se 50 Serra, E. BOLETIM DE GEOGRAFIA instaure, por sua vez, 0 reino do capital e a expansio do capitalismo. Essa separacio, esse divércio, é o que tecnicamente se chama de expropriagio ~ 0 trabalhador perde © que Ihe & proprio, perde a autoridade dos seus instrumentos de trabalho ao capitalista, que é quem tem agora esses instrumentos”. Tal transformagio faz com que no Parana o espaco agricola se transforme em fator de expulsio de mao-de-obra, j4 nos primeiros anos da década de 60, quando comega a desagregar a pequena unidade de produgao familiar. “Seria ingénuo atribuir as condigdes de wabalho no contexto da pequena produgio pré- capitalista, conotagdes de estabilidade e fartura. No entanto, ndo hé divida de que a pequena produgio familiar era, de longe, a maior fonte de emprego e de renda para a populagdo rural, Assim, a desestruturagiio sistemética dessa categoria pela capitalizagao do campo provocou um descompasso entre o ritmo de reprodugao da forca de trabalho rural e 0 crescimento das oportunidades de trabalho no campo” (MARTINE, 1987:61). Com a ocorténcia da desestruturag’o e a conseqiiente quebra no ritmo de oferta de trabalho, os trabalhadores desempregados no campo so levados a abrir novas frentes de luta, em busca da garantia de sua sobrevivéncia. Algumas alternativas que passam a adotar: 1) Como ja haviam feito antes, quando desbravaram as terras virgens do Parand, ir de encontro as novas frentes pioneiras que se formavam distantes do territério paranaense, basicamente em Mato Grosso, Rond@nia, Acre e Paraguai, para onde se dirigiram em grande quantidade a fim de reiniciar a tarefa do desbravamento e novamente tentarem se fixar na terra, O resultado desse deslocamento é que o Parand, que tradicionalmente havia se caracterizado como polo absorvedor de populagdes, passa a ser dispersor a ponto de, no Censo Demogrifico de 1980, com uma populagio recenseada de 7.629.392 habitantes, acusar uma taxa de crescimento populacional de apenas 0,94%, a segunda menor do Pais, perdendo apenas para Roraima, que registrou no perfodo o indice de 0,22%. Em sentido contrario, as mesmas regides para onde se estabeleceram as cortentes migratorias a partir do Parand, caso do Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Rondénia, tiveram as maiores taxas de crescimento populacional no periodo. “: fronteira paranaense se beneficiou de condigdes excepcionais ¢, teoricamente, deveria ter gerado uma regio prdspera, capaz de absorver e manter grandes contingentes de miio-de-obra rural. Isso ocorreu, de fato, durante mais de 30 anos. Mas as taxas de crescimento do Parand ~ que haviam se mantido em torno de 6,0% a.a durante 0 perfodo 1940-70, devido & forte imigragdo de destino rural ~ caiu drasticamente para 0,94% a.a durante a década de 70. Mais importante € 0 fato de que a populagdo rural do Parand teve um crescimento negativo de -3,5% a.a nesta década. Isto constituiu a reversio mais abrupta jé observada no Brasil; partindo da condigao de foco mais importante de atracdo, as dreas rurais do Parand passaram de repente a ser os maiores fornecedores de emigrantes do Pafs” (MARTINE, 1987:75).. 2) Tentar ganhar a vida como trabalhador volante ou “béia fria”, morando nas periferias dos espagos urbanos e mantendo precérios vinculos com a lavoura. O que conseguiram, com esta alternativa, foi engrossar as fileiras dos “exércitos de reserva” aquartelados nos chamados “bolsées da miséria” que se formaram no entorno das cidades paranaenses. 3) Permanecer no proprio campo e disputar 0 agora minguado mercado de trabalho nas lavouras capitalistas, sujeitando-se a um nivel de remuneragio to baixo que mal passou a permitir a sua reprodugdo como forga de trabalho. ANO 19(1): 45-58 (2001) _Reflexdes sobre a origem da crise agrdriano >! Norte do Parana Em linhas gerais, quer mantendo-se no mesmo espago, quer migrando para outras esferas, trabalhador rural foi, a0 lado do pequeno produtor familiar independente, 0 que pagou o prego mais alto pelas transformagdes que se processaram na estrutura agrdria paranaense. Com a expansio da agricultura de bases capitalistas e com o crescente desaparecimento da propriedade familiar, justamente a que detinha maiores contingentes de mao-de-obra empregada no ‘campo, o trabalhador passou a sofrer um processo de violéncia que embora diferente daquele que havia sofrido quando lutava corpo-a-corpo com os grileiros de terra ¢ as companhias colonizadoras, nas frentes pioneiras, no era menos doloroso. E € desse novo processo de violéncia, que vai surgir a esséncia da nova crise agréria no Parand que, por sua vez, vai alimentar um novo sentido de luta no campo. Esse novo sentido vai ocorrer & medida que as transformagdes do espaco agrario tenderam a expulsar o trabalhador e a tornar mais seletiva a posse € 0 uso econémico da terra, diferenciando, neste particular, em relagio a0 processo anterior, ocorrido nos anos 40 e 50, em que a luta foi marcada, nao pela falta, mas pela ocupagao irregular da terra. Por outro lado, hé que se considerar que 0 esgotamento das éreas devolutas nas frentes pioneiras vai se constituir no elo de ligagaio entre a primeira a e a segunda fases de conflitos, ou seja, quando néio hé mais terras dispontveis e a estrutura fundiria se completa, desaparece uma forma de uta e imediatamente aparece outra, bem mais complexa. ‘Como fatores que levaram as transformagées, contribuindo para a expulsao de trabalhadores do campo, destacam-se, pela ordem de sua ocorréncia: 1) A erradicagao de ada pelo Governo Federal através do programa IBC-GERCA a De acordo com relatérios oficiais, divulgados pelos executores do pro; icados no Parr QASBSTOOO) 7, resultando no-desemprego pés de café no perfodo de junho de imediato de 58,000 familias, im ano depois, o nimero de desempregadas se elevava pal ‘0 mimero de trabalhadores para IBC-GERCA/DAC, 1967:32). 2) A implantagio do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963. A nova legislagdo trabalhista, que proporcionou aos trabalhadores do campo direitos idénticos aos desfrutados na época pelos trabalhadores urbanos (férias remuneradas, décimo terceiro salério, descanso semanal etc.) deu aos proprietérios rurais mais atrasados, ou menos preparados para absorver o avango da legislacdo, ou em dificuldades financeiras, a oportunidade de se livrarem de seus empregados. Para “ocupar” o lugar dos trabalhadores demitidos, é intensificada a compra de méquinas agricolas, principalmente tratores, Como resultado, a frota de tratores, que era de 5.181 unidades em 1960, se eleva para 18.619 unidades dez anos depois, incremento da ordem de 259% (IBGE, 1960 ¢ 1985). 3) As fortes geadas, que atingiram as lavouras cafeeiras ¢ e ‘A economia paranaense, particularmente da regido Norte, ey jungao da cafeicultura, j4 havia sofrido duros golpes com as geadas di que deixaram danos acima de 50% como quebra de safras. AS geadas seguintes, n0 ainda maiores,principalmente a 12 1975, qv dimen 0, localizado na regido Norte, e que totalizava Ges de covas. 4) A modernizagao da agricultura, a partir de 1975, que veio completar a fase de transformagdes que se processavam no espago agririo regional. Embora, na 52 Serra, E. BOLETIM DE GEOGRAFIA pratica, tenha comegado antes, ainda na década de 60 quando ao se completar 0 processo de ocupacao das terras agricolas, parcela significativa de proprietdrios rurais opta por desenvolver lavouras de café mais intensivas de capital, € na década de 70, basicamente depois das geadas de 1975, que 0 processo de modernizagio é intensificado. Em poucos anos, 0 que significa antes de se completar a década de 70, a modernizagio fez surgir, no lugar da agricultura tradicional dependente do trabalho familiar, uma agricultura dependente do capital; no lugar da pequena propriedade que produzia para a subsisténcia dos seus trabalhadores, a grande empresa agropecuéria produzindo para o mercado; no lugar do trabalho sem pressa nas lavouras de café, a produtividade ou a intensidade do proprio trabalho, levando neste aspecto ao desenvolvimento das relacdes capitalistas de produgao. 4. A MODERNIZACAO DA AGRICULTURA E SEUS IMPACTOS SOCIAIS Antes de se entrar no mérito da questio modernizadora da agricultura no Estado e, particularmente, na regio Norte, bem como de suas conseqiiéncias sociais, principalmente em termos de concentragao da posse e uso da terra, de expulsdo de trabalhadores, de danos ambientais e, paralelamente, em termos de elevagdo dos indices de rendimento da terra agricola, é valido destacar que 0 novo modelo, que coloca a agricultura paranaense sob 0 comando do capital financeiro e do capital industrial, € parte integrante de um pacote tecnolégico, denominado “Revolugio Verde”, importado dos Estados Unidos na década de 50 pelo governo brasileiro. Portanto, ndo h4 como negar que 0 processo de modernizagao no aconteceu por acaso, nem foi produto de circunstincias ou de decisées politicas internas, embora o ambiente e 0 momento tenham sido favordveis por causa das geadas de 975, mas foi resultado de niveis de interesse mais amplos, ligados as esferas nacional e internacional O “pacote”, importado nos anos 50, ganha nos anos 60 corpo forma. A partir de 1964, © novo modelo passa a sustentar a ideologia da modernizagéo conservadora do campo, adotada pelo regime militar, Durante 0 periodo do “milagre brasileiro”, da segunda metade da década de 60 em diante, a modernizagéo conservadora ganha impulso gragas a uma politica de créditos subsidiados destinados & compra de méquinas agricolas, insumos © sementes selecionadas, que melhorariam o rendimento das lavouras, tornando-as, agora sim, essencialmente capitalistas. Na década de 70, ocorre a profunda integracao do setor agricola com outros setores da economia, particularmente os setores fornecedores de méquinas, insumos © sementes, constituindo as bases do CAI — Complexo Agroindustrial, definido como “conjunto dos processos tecno-econdmicos e sociais ligados & produgao agricola, ao beneficiamento e sua transformagao, & produgao de bens industriais para a agricultura e aos servigos financeiros e comerciais correspondentes ...” (MULLER, 1982:81). Como caracteristica, CAI vai se manter no Parand em fungio de um profundo grau de interdependéncia, de um lado entre seus componentes basicos —o comércio, a indistria e a agricultura — e de outro lado entre tais componentes € 0 sistema financeiro e o Estado, como agente que passa a direcionar, mediante politica de créditos subsidiados, o setor produtivo de base agricola. A conseqiiéncia é que os niveis de intervengao do Estado, que até ento se mantinham em fungo de alguns produtos agricolas isolados, caso do café em fungao do IBC ~ Instituto Brasileiro do ANO 19(1): 45-58 (2001) a7 Reflexdes sobre a origem da crise agréria no Norte de Parand Café, passa através do CAI para o conjunto da economia afunilada para a agroindustrializacao. Sob a dtica da consolidacao do capitalismo no campo, 0 proceso de modernizagio produziu resultados altamente positivos, tanto no Paran como nas demais regides brasileiras onde foi implantado. Sob a dtica dos impactos sociais que gerou, no entanto, os resultados foram adversos. Vale observar que em paises desenvolvidos, caso dos Estados Unidos, de onde o Brasil importou o “pacote” da modernizagio, as transformacées no campo aconteceram gradualmente ¢ com isso os impactos foram minimizados. Os Estados Unidos, a propésito, iniciaram a modernizagio na década de 20 para consolidar na década de 70, enquanto o Brasil, que deu inicio ao processo trinta anos depois, optou pelo tratamento de choque, para consolidar 0 novo modelo, em parte de seu territério, em cerca de apenas 20 anos. A conta da pressa, no campo social, quem pagou foi o trabalhador rural. Se no contexto da agricultura brasileira as mudangas, ocorrendo em 20 anos, produziram impactos, 0 que nao dizer a nivel de Parand, onde as transformages no demoraram mais que 5 anos? Vale lembrar que somente depois das geadas de 1975, quando os cafeeiros destrufdos foram erradicados liberando espacos para novos cultivos, € que o processo de modernizagdo comegou de fato no Estado, para ser consolidado na virada da década de 70 para a década de 80. Antes disso, como foi citado anteriormente, 0 que existiam eram apenas indicios isolados da modernizagao posta em pratica pela classe empresarial emergente, mas sem apoio mais amplo por parte do Governo. E sendo indicios isolados, no eram representativos no conjunto da economia agricola. Com 0 advento dos novos cultivos, basicamente as lavouras mecanizadas de soja ¢ trigo ¢ as pastagens plantadas, em substituigdo as pastagens naturais e as lavouras de café, que predominavam principalmente na regidio Norte é que, frise-se, ocorre efetivamente a modernizagio da agricultura no Parané. A esta altura, estando 0 processo ja quase que consolidado, por exemplo, em Sio Paulo ¢ no Rio Grande do Sul, Estados que tomaram a dianteira da onda modernizadora, 0 Parana teve condig6es de transplantar para seu espaco agrdério as inovagées que deram certo e abrir m&o das que nao deram certo, suplantando assim a fase de experiéncias internas. Tal fato ajuda a explicar a velocidade com que o setor agricola paranaense integrou-se & modernizacdo em relagio ao tempo gasto pelo setor agricola paulista e gaticho, onde as transformagdes comegaram antes. Por outro lado, assim como o Parand modernizou sua agricultura na esteira do processo ja em fase adiantada em outros Estados, dentro de seu espaco agrario interno algumas regides também vao inovar na esteira de outras. Ou seja: 0 processo interno de modernizagao no Parané nao foi uniforme, abrangendo a um mesmo tempo e com a mesma velocidade todas as regiées agricolas. As desigualdades regionais em termos de absorcfio e de respostas as inovagées tecnol6gicas vao estar diretamente ligadas, em primeiro lugar as condig6es naturais, caso do clima e do relevo, e ao proceso historico em que se deu a ocupagao pioneira ¢, em segundo lugar, & dindmica politica e econdmica e & estrutura fundidria que vio caracterizar os compartimentos regionais, tornando-os mais ou menos susceptiveis As inovagées. Isto, de certa forma, vai explicar, por exemplo, 0 contraste em termos de desenvolvimento econémico entre os setores agricolas da Grande Regio 54 Serra, E. BOLETIM DE GEOGRAFIA. Norte ¢ do Parand Antigo. O fato da face Norte do Parand “ter sido ocupada por produtores com interesses mercantis, através de uma atividade ligada a0 polo dinamico da economia brasileira — Sao Paulo — gerou um forte potencial de acumulagio entre os produtores rurais ¢ uma infra-estrutura produtiva moderna ...” (FLEISCHFRESSER, 1987:7), 0 que a colocou logo de inicio em posigio de vantagem em relacdo a regido do Parana Antigo, que teve sua ocupacao pioneira voltada ao tropeirismo e as atividades extrativistas, tendo ainda predominado na sua estrutura fundidria os latifiindios improdutivos, heranga histérica do regime de sesmarias, 5. A EXPULSAO E A EXPROPRIACAO DE TRABALHADORES Nem havia comegado direito 0 proceso de modernizagio ¢ GRAZIANO DA SILVA (1978:32) constatava, na década de 70, que a “propriedade da terra no Parand encontra-se submetida a um grau de concentragio considerado muito forte” e que “no obstante isso, a dinmica das condigées de acesso & terra, ou seja, de sua posse, indicam uma tendéncia de aumento desse grau de concentragao através da expropriagdo dos pequenos produtores que tém uma precéria condigao de acesso A terra, quais sejam, os parceiros, arrendatérios, pequenos possciros e pequenos proprietirios. E sao justamente esses pequenos produtores expropriados de ‘ontem que sao os béias-frias de hoje ou os migrantes em busca de novo eldorado em Rondénia e Acre” Assim, considerando que a revelago do autor foi publicada em 1978, com base nos dados do Censo Agropecuario de 1975, retratando, portanto, uma situagio anterior esse perfodo, o que vale dizer anterior as transformages provocadas pelas geadas que destruiram © parque cafeeiro paranaense e levaram os agricultores a optarem por novas formas de cultivo, tem-se como certo que outros fatores j4 vinham atuando no Ambito do espago agrario, com forga suficiente para levar & expropriaco e posterior expulsao de trabalhadores e a radicais mudangas nas relagdes de trabalho e de produgio até entdo vigentes. Com efeito, segundo GONZALES e BASTOS (1979:41), “na regido de Maringa constatamos que, de abril a junho de 1973, foram dissolvidos, em Juizo, mais de mil contratos de parceria de café. Além do mais, dados o processo de inflagdo e as condigdes de mercado, 0 pagamento do trabalho em espécie nao é mais compensador. E mais lucrativo pagar um saldrio em dinheiro que, a cada dia vale menos, do que entregar produtos que se valorizam”, As transformages, tanto no que se refere & concentragio da propriedade ¢ uso da terra, quanto as relagdes de trabalho e de produgdo, com reflexos em termos de expropriagao e expulsdio de trabalhadores, haviam de fato comegado bem antes das geadas, sendo no entanto intensificadas depois, a ponto de © ano de 1975 poder ser considerado, efetivamente, o divisor de Aguas, 0 que separou a velha ¢ a nova fases da problemdtica agréria paranaense. As primeiras manifestacdes de mudanga vao ocorrer logo que a atividade cafeeira entra em crise, ji na virada da década de 60 para a década de 70, quando ocorre 0 processo de desarticulagio dessa economia agricola. A propésito, antecipando-se ao desfecho da fase critica do café de certa forma procurando minimizar seus efeitos junto 2 classe produtora, as préprias cooperativas de cafeicultores j4 vinham, bem antes de 1975, preparando seus associados para o desenvolvimento de novas praticas agricolas, de menores riscos em uma regido sujeita a geadas constantes. A COCAMAR - Cooperativa de ANO 19(1): 45-58 (2001) 55 Reflexdes sobre a origem da crise agraria no Norte do Parané Cafeicultores e Agropecuaristas de Maringa, € exemplo disso: no final dos anos 60 estimula seus associados a diversificarem suas lavouras, surgindo entio 0 algodao como nova alternativa econdmica em sua Area de atuagio no inicio dos anos 70; quando a soja mal comecava a penetrar no espago agrdrio paranaense, na época como cultura intercalar a0 café, constr6i o primeiro armazém graneleiro do Norte do Parana para estocar 0 produto, com capacidade para 30 mil toneladas de gros; em 1975, quando acontecem as geadas ¢ quando enfim as lavouras de café sofrem seu duro golpe de misericérdia, a Cooperativa ja estava estruturada para receber, armazenar ¢ comercializar 0 novo produto agricola e ainda para orientar o quadro associativo quanto ao desenvolvimento de lavouras mecanizadas, incluindo, além da soja, 0 milho e 0 trigo. Significa isso, em relagao a classe produtora, que houve todo um processo anterior as transformagSes no campo, que se nio conseguiu evitar os impactos, pelo menos ajudou a amenizar seus efeitos mais imediatos. Deve ser salientado, no entanto, que esse “treinamento” preliminar beneficiou apenas parte da classe produtora, basicamente constituida de médios e grandes produtores rurais, deixando de atingir nas mesmas proporgdes a categoria dos pequenos proprietirios e principalmente a categoria dos trabalhadores rurais. Como resultado, os efeitos da metamorfose ocorrida no campo se propagaram, desde seu inicio, de maneira desigual. E sendo desigual, serviram para acelerar 0 proceso de diferenciagio sécio-econdmica entre trabalhadores e pequenos, médios e grandes proprictirios que, na pratica, ja existia desde a época das culturas tradicionais, mas que vai ser consolidada a partir do adyento das culturas mecanizadas. Vale salientar que nesse processo de diferenciagao sécioeconémica, o Estado teve participacdo ativa na medida em que, para facilitar 0 desenvolvimento da nova agricultura, procurou liberar financiamentos a juros subsidiados que beneficiaram os grandes € os médios produtores, justamente os que mais teriam condicdes de se adaptar a0 novo modelo em fungio da extensio de suas reas agricolas, em detrimento dos pequenos produtores que nfo tiveram, de imediato, uma alternativa econémica vidvel, rentavel e segura para ocupar o lugar do café, e que se adaptasse a reduzida extensao de suas areas de cultivo. ‘A diferenciagdo sécioeconémica entre os produtores-proprietirios ¢ amarginalizagao de um grande contingente de trabalhadores rurais, pelos impactos que produziram no contexto da estrutura fundidria, vaio se constituir no lado indesejdvel da modernizagdo da agricultura no Parana. 6. A_REACAO CAMPONESA E A LUTA PELA REFORMA AGRARIA No comeco, as distorgdes que aconteceram na fase da ocupacio pioneira do espago agrario: depois, as marcas sociais deixadas pela modernizagao da agricultura: foram fatores que, a0 teem como ponto em comum a concentragio da posse da terra e a expulsio ou expropriago do trabalhador rural, ora como tendéncia, ora como fato consumado, levaram, de um lado & reagio dos trabalhadores, de outro lado a intervengao do Estado que sob presstio social ¢ levado 1a tomar algumas medidas reformistas no sentido de democratizar 0 acesso & terra € tentar reverter © quadro de injustigas praticadas ao longo dos tempos contra 0 homem do campo. 56 Serra, E. BOLETIM DE GEOGRAFIA A intervengio do Estado, embutindo a questio da Reforma Agraria, vai ocorrer no Parand depois dos anos 70, embora antes esta mesma questo fizesse parte do discurso oficial. Inicialmente, ou seja, antes de ser completado o processo de ocupagdo pioneira, a Reforma vai aparecer como preocupagao do Estado, ou em perfodos de tensdo social nas frentes pioneiras, ou quando a apropriagdo indevida da terra, nestas mesmas frentes, escapava da fragil capacidade de controle do poder politico dominante. Nos tempos mais recentes, a preocupagaio do Estado tem se manifestado, ou quando a conjuntura nacional favorece, ou quando os movimentos de pressio atingem seus melhores niveis de organizagio, conseguindo assim mais facilmente acionar os mecanismos de Governo. Portanto, sendo a década de 70 0 divisor de 4guas quando se trata da intervengao do Estado, fica evidenciado como fato conereto que as providéncias tomadas pelo poder piiblico antes e depois desse perfodo vao ser diferentes entre si porque as preocupagdes que as embasaram eram também diferentes. Nas intervengdes mais recentes, por exemplo, o Estado aparece preocupado com a estrutura fundidria comprometida por uma série de distorgdes, que levaram a excessiva concentragao da terra e ainda com focos de tensio social que se generalizavam em praticamente todo 0 espago agrério; ao tentar solucionar esses problemas, ndo mais através da pura e simples distribuigao da terra, mas da implementagao da Reforma Agraria, que se daria pelo acesso a terra e também as condigdes para sua exploracdo econémica, evidenciou como metas a atingir, no campo social, o equilfbrio na relago homem-terra ¢ a restauragdo da “paz agréria”, © que particularmente implicava na corregdo de injustigas de que estava sendo vitima 0 trabalhador rural, despojado tanto de seu espago de producao quanto de seus instrumentos de trabalho. Dentro desta Iégica de raciocinio a Reforma Agraria, saida basicamente dos movimentos de trabalhadores organizados, passaria a ser 0 vefculo manobrado pelo Estado que vai Ihe permitir manter um pé no freio da tenso social e outro pé no acelerador que vai determinar 0 avango do capitalismo no campo. O avango e a sobrevivéncia do capitalismo, metas que passariam a ser perseguidas inclusive como estratégia de desenvolvimento rural, seriam consolidadas pela via do aproveitamento econdmico das terras até entio improdutivas e pela via paralela do proceso de acumulago. Isto levando em conta que o avango do capitalismo e a consolidagao do capital vio depender diretamente da exploragao agricola e nao da especulativa concentragdo e manutengao da terra como reserva de valor. Em relagdo aos movimentos organizados de trabalhadores rurais, deve ser destacado que importante empurrdo, que levou & mobilizago camponesa no Parand, foi dado a partir da construcao de usinas hidrelétricas, num primeiro momento a Usina de Salto Santiago, no rio Iguacu e posteriormente a Usina de Itaipt, na foz do rio Iguacu com o rio Parand. A Usina Salto Santiago, ao ser concluida em 1979, deixou submersas grandes extensdes de terras agricolas na regio Sudoeste, desabrigando 170 familias de pequenos agricultores. Na época, os movimentos sociais no campo nao estavam ainda organizados, 0 que eqilivale a dizer que nao havia ainda organizacio social por parte dos desabrigados, no sentido de negociar melhores condig6es quanto A indenizagdo das terras inundadas. Aproveitando-se disso a Eletrosul, responsdvel pelas obras da Usina, jogou para baixo o valor das indenizagdes. O caso Santiago se constituiu em derrota para os agricultores, mas serviu de alerta para a importincia da organizacio, tendo em vista o anincio da ANO 19(1): 45-58 (2001) 37 Reflexdes sobre a origem da crise agréria no Norte do Parana construgdo de novas usinas no Paran4, com a conseqiiente repetigao do processo de expulsio e de terras inundadas. Pouco tempo depois, a propésito, a histéria do baixo valor das indenizagdes s6 nao se repetiu nas desapropriagdes para a construgio da usina de Itaipt porque os agricultores, cientes do que havia acontecido em Salto Santiago, resolveram se organizar e reagir contra o valor arbitrado para as terras que seriam inundadas, reivindicando pregos mais justos. Interessante observar que 0 fato da empresa Itaipti Binacional, responsavel pela construgo da Usina de Itaipu, ter demorado para abrir um canal de negociagdes com os agricultores, foi titil no sentido de dar tempo para aprimorar a organizago camponesa. Durante 0s quase quatro anos de mobilizagao, a CPT ~ Comissio Pastoral da Terra, ligada as igrejas Catélica e Luterana e as liderangas sindicais, como forcas politicas envolvidas na questio, tiveram condigdes de criar € testar um conjunto de estratégias, voltadas basicamente ao que fazer ¢ ao que nao fazer nos acampamentos. Ou seja: tiveram a oportunidade de descobrir 0 “caminho das pedras” em termos de mobilizago camponesa. O resultado maior dessa mobilizaco, além da justa indenizagao para as terras inundadas, foi a fundagdo do MST ~ Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, nascido dentro do canteiro de obras da Usina em 1984. ‘A fundagdo do MST deu novos rumos & luta camponesa, tanto no Parana como em todo o Brasil. A estratégia que 0 Movimento utiliza, com algumas excegGes: ocupar terras ociosas e pressionar pela sua desapropriacao e implantago de assentamentos rurais, onde passam a ser alojadas, na condigdo de trabalhadores rurais, os camponeses expulsos do campo, tanto na época da ocupagao pioneira, como nos tempos mais recentes, em fungdo do processo de modernizagio da agricultura. 7. CONCLUSAO O secretério da Conferéncia Nacional dos Bispos do Brasil, Dom Luciano Mendes de Almeida, ao prefaciar “Caminhada e Esperanga da Reforma Agrdria”, de Nelson Ribeiro, afirmou que conflito agrario, nascido da questao fundidria, coloca em tensdo as duas concepgdes de propriedade da terra: a de quem busca a sobrevivéncia pelo trabalho e a dos que fazem da terra um instituto sagrado de enriquecimento e poder”. O pressuposto apresentado pelo lider religioso, encontra respostas convincentes no Parand, tanto na fase da ocupacao pioneira do espago agrario, quanto na fase mais recente em que o espago agrario sofre transformagées a partir do processo de modernizagao da agricultura. Na primeira fase o conflito vai estar relacionado com as divergéncias de interesses entre 0 pequeno posseiro, elemento que de fato procurava extrair da terra as condigdes de sua sobrevivéncia, e o grileiro ¢ intruso, elementos que tinham na apropriagao o instrumento ideal para manter ou aumentar seu poderio politico e econdmico. O confronto entre as partes ocorria, via de regra, quando grileiros e intrusos avangavam em dirego as dreas ocupadas pelos posseiros, na tentativa, quase sempre bem sucedida, de incorpord-las a seus dominios, Para dirimir os conflitos, na tentativa de dar ordem e ter sob controle 0 processo de ocupagdo pioneira, vai aparecer o Estado que com estratégia 58 Serra, E. BOLETIM DE GEOGRAFIA politica para desmobilizar a luta, amplia a oferta de lotes rurais através de projetos de colonizagio que desenvolve diretamente ou através de empresas privadas. E importante ressaltar que nesta fase hist6rica do processo de ocupaco, os trabalhadores rurais lutaram, na maior parte das vezes, isolados ¢ sem © minimo de organizagio, mas sempre visando a posse da terra. Paralelamente, a ago e a fungio do Estado se esgotavam com a distribuigio e a titulagio da terra reivindicada pelos camponeses, ou seja, com 0 reconhecimento dos direitos sobre a terra ja possufda naturalmente. Nestes pontos, tanto a luta dos trabalhadores e seus objetivos quanto a fungao do Estado, vao ser diferentes na fase seguinte quando termina a ocupagao pioneira e tem inicio o processo de modernizagao da agricultura. Nesta fase, os trabalhadores passam a lutar em grupos organizados, visando conquistas bem mais amplas: ndo mais apenas a posse da terra, como faziam antes, mas a Reforma Agriria, envolvendo tanto a terra quanto as condig6es para seu racional aproveitamento econémico, passando pelo bem-estar social dos agricultores beneficiados. Na contrapartida, vai competir ao Estado atender as reivindicagdes ¢, através delas, atingir os objetivos fundamentais que estabelece para a Reforma Agrdria: reordenar a estrutura fundidria, democratizar 0 acesso 2 terra, corrigir distorgdes no aproveitamento econdmico do solo agricola e reincorporar as atividades agricolas os trabalhadores expulsos do campo. Quer dizer: passa a haver sintonia entre os interesses do Estado e os interesses dos trabalhadores, sendo que em fungo desta sintonia e, logicamente, em fun¢do da presso social desencadeada de baixo para cima, é que a Reforma Agrdria passou a ser implementada. 8, REFERENCIAS BIBIOGRAFICAS . COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARANA. Colonizagio ¢ desenvolvimento do Norte do Parana. Sao Paulo, 1975. (publicagao comemorativa dos 50 anos da CMNP). FLEISCHFRESSER, Vanessa. Modernizagao tecnolégica da agricultura: contrates regionais € diferenciagao social do Parané na década de 70. Curitiba, Livraria Chain Editora, 1988. GONZALES, Elbio & BASTOS, Maria Inés. O trabalho volante na agricultura brasileira. In: Capital ¢ trabalho no campo. Sio Paulo, Hucitec, 1979. p. 25-47. GRAZIANO DA SILVA, José. A estrutura agréria do Estado do Parand. Revista Paranaense de Desenvolvimento. Curitiba, BADEP, (64):9-41, ago/set, 1978. IBC/GERCA-DAC. Programa de Diversificagio Econdmica da Regio Cafeeira, 1967 (Relat6rio). IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica. Censos Agricola e Agropecuarios: 1960, 1970, 1975, 1980, 1985. MARTINE, George. Exodo rural, concentragao urbana e fronteira agricola. In: Os impactos sociais da modernizac&o agricola (Coordenagio: MARTINE, George & GARCIA, Ronaldo Coutinho). So Paulo, Caetés, 1987. p. 59-79. PADIS, Pedro Calil. Formagao de uma economia periférica: 0 caso do Parana, Sao Paulo, Hucitec, 1981. PRADO JUNIOR, Caio. Histéria Econémica do Br: 1970. Sao Paulo, Brasiliense,

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