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Antropologia Social COMUNICACOES DO PPGAS, 1 Programa de P6s-Graduagéo em Antropologia Social | Museu Nacional - UFRJ Antropologia Social COMUNICAGOES DO PPGAS Publicagéo do Programa de Pés-Graduagdo em Ant ‘do Museu Naciona/UFRIJ, que visa divulgar tba dseavehios pelo seu corpo docente e discente. Coordenagao do PPGAS Jodo Pacheco de Oliveira (Coordenador) Otdvio Guitherme Velho (Coordenador de ensino) Eduardo Viveiros de Castro(Coordenador de atividades culmrais) ‘Supervisdo Tania Lucia Ferreira Soares Concepgdo Gréfica, editoragdo e Revisto Jurandyr Carvalho F Leite Digitagao Sergio Manoel de Faria Jr. Programa de Pés-Graduagio em Antropologla ‘Museu NacionayUFRJ pal sol EESA2) Quinta da Boa Vista, fa - $80 Crist6veo 20942 - Rio de Janeiro - RI ‘Tol. (021) 284.9642 / Fax: (021) 254-420 {NDICE 1, Os Inforténios da Luxtria: liberdade ¢ determinismo em uma obra de ficgdo higicnista da primeira metade do século. 2. No Giro do Caleidoscspio: a questo da identidade na criaglo fiterdria Verena Alberti vsesvessevcceccecsestenenceees B 3, Mundo das Mulheres: Relagéo politica ¢ cotidiano entre as feministas no Rio de Janeiro Carla Costa Teixeira . eee OF 4, Caetano Veloso: moderno, pés-moderno ou, noutras palavras, muito romantico? Santuza Cambraia Naves Ribeiro. +++ 0000 er eeeesss & 5. Samgue ¢ Amor: metéforas instituintes da familia em camadas médias urbanas Tania Dauster .. cece ee eeeeeeee eset BD 6: Fazendo Etnologia com os Caboclos do Quirino: Curt Nimuendaju ¢ @ Hist6ria Ticuna Joao Pacheco de Oliveira « « wees eee cece scenes 109 7, Trabalho Assalariado, Trabatho artesanal ¢ Campesinato Giralda Soferth «++ 000+ veces eee RT —_—_ APRESENTACAO _ Antropologia Social: Comunicagées do PPGAS ¢ uma publicagio do Programa de Pés-Graduagéo em Antropologia Social do Museu Nacional JUERI que representa a continuidade de esforgos anteriores, que resulta ram na Série Comunicagio do PPGAS, iniciada em 1974 ¢ que hoje se encontra em seu n? 21, Visa divulgar alguns trabalhos que resultaram de atividades desenvolvidas pelo corpo docente ou discente do PPGAS, isto incluindo relat6rios ou textos decorrentes de pesquisas em andamento, trabalhos realizados por alunos da pOs-graduagfo ¢ vinculados @ cursos ¢5- pecificos, bem como comunicagbes © artigos apresentados em semingrios organizados diretamente pelo Programa, ‘“Trata-se de uma série de formato editorial bastante simples, que opera fora do circuito comercial, possuindo uma tiragem de 500 exempla- res, distribuidos segundo mailing list que privilegia instituigDes de ensino € pesquisa em antropologia ¢ em disciplinas congéneres, do Brasil ¢ do extetior. ‘Com o objetivo de garantir maior agitidade na divulgagio de tais trabalhos, estamos operando a partir deste némero com um novo formato editorial € uma nova capa. Ao invés dos anteriores némeros monogrificos ‘efou monotemétices, cada exemplar de Antropologia Social: Comunieagtes do PPGAS passard & ter um cardter pluritemstico, reunindo contribuigies de diferentes autores sobre assuntos no necessariamente inter-relaciona- dos, 0 que impoe a mudanga de titulo € uma nova numeraglo. ‘Esta forma editorial mais compacta ¢ econdmica, aumenta bastante a capacidade da série de veicular maior néimero de trabalhos, respondendo ‘com mais propriedade ao ritmo de elaboragio © as necessidades de divul- gagio dos texios. Com 0 novo formato gréfico, pretendemos simplificar, baratear e agitizar ainda mais a feitura ¢ impressdo dos mimeros, dando continuidade a Série Comunleagio do PPGAS através de um novo titulo € de um visual diverso mas que, pretendemos, responde as mesmas nccessi- dades e intengdes de seu projeto original. Jo’o Pacheco de Oliveira Coordenador do PPGAS ee OS INFORTUNIOS DA LUXURIA Liberdade e determinismo em uma obra de ficgao higienista da primeira metade do século. ' Sérgio Carrara a T +.. Quanto a0 impulse da vortads pelo qual ola so diige para lim lado ov para o out, 90 ale nfo fossa voluniério © posto em nosso poder, o homem no deverla ser Jowado quando volte @s- Se espéele ‘de oto giratério da vontade paza bane superiores, ‘ham dovorie eer ineuipara quando [o volt] pare os, bens infers Too" Semenantemente, néo deveria ser de modo nenhum exortado PS yorar aleangar os. bens eterias, desprozando estos efeiores) 4 ando querer mal-viver, mae 2 querer bam-iver. Ora se algu cha que 9 homom ndo deve ser axortedo a Isso, merece Sor ro Tegade do niimoro dos homens ..* Santo Agostinho (1906:168) 4. Introdugo: 0 degenerado e seus duplos Nos times anos, tenho me dedicado a tarefa de remover co um pas: ado nfo muto distante — mas no qual [4 ndo nos reconhecamos factirente SaCtrna complexa rede de significados centrada na Witia da degeneregéo do Jer humano, Tragédia 2 um 86 tempo biol6pica © social que, soja pele extn fo do homo-saplens, seja pelo seu rebaramenio no quacro Herérquico das Sepéetes, apontava para a possblidade de um devi-outro, collivo ou societé- tio. Apeser de a “idsia do que 0s finos no tém mais © mesmo valer dos pais © + a nostsgia por uma antiga sabedoria culos sepredos $8 perdem na fpucura dos contampoténecs' ser, segundo Foucaut, *um dos temas mats trad ‘Sonais da cutura grecolatina’ (FOUCAULT, 1978:373), a nogdo da degeneragao Somente fol ceptureda nas malhas de um’ discurso clentfico, gozando @ togt- Midede que asso decorre, 20 longo do século XIX. Em sua primelra metade, & Trogto era manipulada por filoges, etnblogos @ naturalstas qua, defensores ca Tnuidade orginal da espécie numana (monogenisme), procurevam reconsttut Ge caminhos por onde, desde o casel primordialmente criado por Deus. as Giverses ragas ® Tumanas terlam se desenvolido. Quase sindnimo da queda ‘ou expulsée do paraso, a degeneragio era enido concebida como espéclo de 7 Comunicaghies do PPGAS, 1 proceso de degradagao fisico-moral que, 20 longo dos séculos, teria distribu do as diferentes ragas em posigées mas ou menos distanciadas da perteigao dlvina original: 0s europous obviamente mais prOximos do projeto divino © 08 ‘néo-ouropous, mals distantes (ct. STOCKING JR,, 1987:caps. Il IV). Nos quadros do pensamenio evolucionisia da segunda metade do sécu- lo XIX, @ nogéo parece ter incorporado novos signticados. Além de degrada (0, passou a denotar também um processo de involugéo a estéglas anteriores do desenvolvimento fisico-moral (08 néo-europeus no poderiam ser degenera- dos depois da terem se transtormado em ‘primiivos') © passou a ser utiizada na classiicago de indicus © grupos socials mais ou menos amplos quo viviam no interior da chameda civiizagao, A nogo de degensragéo transtor- mou-se assim em nucleo ariculacor da_uma taoria médico-antropoiégica que por mals de cam anos (até pelo menos a 2° Grande Guerra) configurou es Tepresentagbes e, em larga medida, determinou as altudes das sociedades ‘ocidentais frente &s diferengas sociais que emergiam dentro da seus préptios times. Com as caractersticas que adquifu na segunda metade do século pas- ‘sado, a taoria da degeneragao chamou minha alengao pela multplicidads de ‘objetos’ a que fistoricamente se ‘igou © cujos partis socials ajucou a datinear: © sifltico, 0 criminoso, 0 fouco, 0 génio, © homossenal, 0 judeu, © mulato, & prosttuta, 0s amantes do prazeres de came, Em elgum momento, todos sles foram acusados de degenerados ou de causadores de degenoragéo da espécie ‘ou da raca, pagando por isso pesado tributo. Nao hé divides quanto ao fato de as idéias dagensracionistas terem dexado profunda marca na paisagam Insttuctonal do Ockiento, Justticando © aparecimento de uma extensa redo de Intorvongoes sociais. Durante varias décadas, a educacao sexual, a eugenia, a luta contra 0 alcoolismo @ outres “drogas’, @ luta contra a sflls ® @ prositulgao €@ certas formas especials de contiole para algumas categories de delinquertes apreseniater-se como o8 meios mais seguios para implementar a urgente tare- fa de salvar a humenideds (ou algumas de suas ragas) de um colapso que #6 ‘acreditava Iminente (of. CARRARA, 1988). De um modo gerel, a deganeragto recobria todo 0 espectio de compor- ‘tementos a que Hoja nos acostumamos chamar de desviantes. AO que parece, uma vez “Ibartos" da Jurisdigao reigiosa onda fguravam como pecados, embo- ‘a ainda considerades Imotals, tals comportamentos néo se incorporarar facl- mente nem ao tol de crimes codificados pelos sistemas juridicos liberals @ panic de finais do século XVil, nem tampouco, 80 fol dos sintomas de ‘qualsquer das doongas mentais ou nervoses que as nosclogias psiquidricas distingukam progressivamente 20 longo de século XIX. Talvez, por néo fopresentaram pfopriamento atentados aos clratos de outrem (assim como a hhomossexuaidade @ prosttulgéo, por exampl), nem apresentarem © cardter Golrants das ciésscas ures de loucura, escapavam aos dole grandes sispos- tivos de seguranga erigidos durante 0 século XIX: 0 hospicio @ a pris? Embora predisposto a vérlas dosngas, 0 degenerado nao era propriae mente um doente. Um anormal, sem divida, cujas agGes ‘extravagantas’ eram explicadas por uma suposta anomalia organica (geraimente interessando 0 siste- 8 CCARRARA, Sérgio. "Os Infortinios de Laxtat ‘ma mervose) recebida como legacio ancestral @ inexoravelmente transmitide, ‘com agravamento progressivo, & descendéncia. Mais que uma situagio doen tla, a dagenscagdo designava uma condlgéo anormal permanente, iveversivel © progressiva, colocando seus potadores em posigao do infororidade biolégiea frente aos outros homens 4. Assim, incorporavam individualmonte uma trajt6rla ‘de degradagto ou de regressio bioldgica que, ao se generalzar através da he- reditaredade, comprometia toda a espécie humana, ameagando-a com @ extin- (G80 ou com o retorns a esidgios antariores da evoluglo fisica @ moral ‘Como outtos pasquisadores |é tiveram @ oportuniade de apontar, @ teo- fia da degeneragéo colocou em cena um estranho ser — 0 degenerado — ‘que, sob tantas méscaras, manteve sempre um estatuto juridico-moral marcado pola embigtidade, no Imiar entra a responsabiidade @ a Iresponsablidade pe- nal, entre © crime © a loucura, entre a cidncia @ a moral, sem nunca ter por- tencido inteiramente a qualquer um cesses dominios. Empiticamente trata-s2, fa se v6, daquola "gentalha diferente cujos representantes, segundo Foucaul,*..d0 final do século XVII até 0 nosso, ..comem através dos intersticios da. socieda- cde perseguidos pelas leis, mas nem sempre, encerrados freqdentemento nas pris6es, talvez doontes, mes vitimas escandalosas @ perigoses preses de um festranho mal que trez © nome do “vicio' e, as vezes, de “delto”. (FOUCAULT, 1980:40/41). E justamente a ambigiidade do ostatuto jurioico-moral do dagenerado que faz da teoria da degeneragéo, para além de sua Importéncia para a histérla das instiigdes modsrnas, um’ objeto priviggiado de eflexdo pera 0 antropdio- G0 Interessado no perf que, om nossas sociedades, assumiu a cogao de pessoa am alguns ce seus aspectos essenciais, como os da responsabilidade ‘moral @ da liberdada de escolha ‘Como sabernos, ia segunda metade do século XIK, consolida-se no ‘émbito das cifncias humanas uma concepgéo de pessoa que, por medida de economia, chamerel equi do blodeterminista. Muto resumidamente: na origem Gas boas ou das més ag6es dos homens néo se supunha exisiéncia de ‘uma vontade que, 20 se utlizar de sua liberdade essencial, poderia ser cuipabi- lizada por seus erros ou premiada por suas virludes; mas sim, es determina ‘g6es imperiosas de um oiganismo que, 20 se desviar das leis da natureza somente poderia ser *compreendido’. Desle modo, negava-se radicalmente a0 homem 0 estatuto ds entidade moral, portadora de lvre-arofito. Como $8 sabe, 9 principio do tie-arbfria é elamanto essencial & concapgao de pessoa huma- nna caractaristica das sociedades ocidentais. E, lombremos, jé havia recebido, naquele momento, strevés do Direto Hberal e da filosofia das Luzes, uma de suas formulag6es mais plenas, abrangentes © sisteméticas. ‘A disputa ent “ivre-arbitisas" @ "biodeterministas* mobiizov grande par ta da Intelectualidade da passagem do século © as tontativas de concllagao @ ‘de superagéo da coniradicéo foram Inimeras. Pois, se os ciertistas da belle époque nao rtesistiam a tentagéo de explicer & maldade, perversidade, Imora- Iidade ou viclo através do blodeterminismo, em contrapartida, tiverem que dar uma resposta urgente & questo que, um século antes, Sade ‘propunha parver- samonte a sua feliz Justine: ‘Comunicasies do PPGAS, 1 ° ‘vote morale, votre religion, vas potences, vo ‘to peredis, vos dioux, votre enter, quand I sora démonte§ quo tol ou tel coure de quout, tlle corte do fibres, tol degré d'écreté dans lo. sang (0 Gane Joe exprite animaux eufieont & fake {oiz ole] vm apenas da moral que pretende ‘suprimir 0 lireprimivel, desviar de seu curso atragdes naturals, afinidades inven- clvais para assim favorecer interesses problematicos da sociedad (Ibidem:8). Nesse sentido, & sumamente inte'essanie perceber como Cléudio de Souza faz rassoar, através do discurso “daltante’ de Bodford, algumas Idéias de Freud evidamene reinterpretadas nos quadros co organicismo ainda vigente. Assim a lioido, sob ag4o da moral, dos costumes, da religiao, ou se desioca produzin- do parverstes hereditarlamente tansmissivels, ou se acumula, na forma de energia nervosa para explodir na sevrose: Sho argos que ci ot vice # 48 ponerse, aio Se thon dos denlccanonton de sid, el compressa Gamer! aards aks gareen. A tio nto tong, pocue 6s exbnok Go ak In pedi sun mach. siorneo Pace ote Sroaoe e fdes fox Sharon do vis, ound © anor E pasta ds graph gore com ta powerson om aun « motel a dogeerou. A Wide sound explo oe novo hah toon au ea eee endo mus ndo podem dencuregame ot tnguee € «pli da nevrose... (bidem:71/72). ms = ‘Assim, para Bediord, “A cultuta @ @ civlizagéo sa acomy smancipagso doe nsnion naire oo tino" (dons) E oo erempls cue Contimatiam esta assertiva pode'em, segundo ele, ser encontrados tanto na antiguidade cléssica quanto no mundo que the era contemporéneo. A antiguida do greco-latina aparece Idoallzada 0 a sofisticada civllzagdo que produzlu $6 8x. pilcatia pelo fato de nao ter infamado 0 amor-sensval. Princjpalmente os roma- tes tom dado lges esas & snsuaidace 0, por laso mesmo, dz © ncsso quliico: oma 6 0 borgo de obizag Ina, que até hoje noe ela © ease ent, aovés doe sScios, nanhura rage tem suplatago im ‘Algm do mundo antigo, a Franga seria outro exemplo privilegiado, Dentre ‘98 poves latinos, havie alcangado um nivel superior de civiizagao @ vivia sigu- larmente meiguihada em orglas, J4 Portugal e Espanha, om seu atraso, deba- tiam-se ainda no obscurantismo reigioso. Para Bedford: As change mete atl «alg 06 cles © «sont 0s st mt co spn oe ai» ae eden Po tea won ange, do aso ao do prpetagbo Ge epi bidonr:44). “e woe Em resumo, ai esié 0 nico das teorias de Bediord, Em torno dale or- bitavam slgumas idéias “emancipacionistas’ subsidiéras: te CARRARA, Sergio. “Os Infortnios Gt Luxarie™ 'A primeira delas dizia respetto a0 ostatuto social da rrulher que, segun- do © quimico, "Dé-s0 quando 6 a quem quer’ (ibidem:98). Bediord chega mes- mo a medir 0 nvel de civlizagdo da sociedade brasileira a part do grau do femancipagao das suas mulheres, Enquanto o Brasi era "umes aldelas isolacas’, "Nossas avés usavam roupas fechadissimas, do quelxo aos pés, © viviam fugl das do homem. Atrasaconas, semibérbaras, enclausuradas em casa’. Na passa ‘gem do século, aos olhos do quimico, quando o Brasil j& era uma civiizagéo Que so impunha, as mulheres estavam nas russ ‘t olhavam os homens com franqueza, com acsssiblidade, quando nao com eudacia provocadorat ((bidem 46). Entim, Bediord colocava-se claramente em cposig&o ao chamado "duplo ppadréo de moralidade’, A: nenhum homem sssiste © ditto ds monopolizer, de esoravizar @ ‘mulher, que ¢ ento qual a nés, com a mesma autonomia, com as theemas visceras 6 olindulas © inalinios ¢ deaejee. Por que #6 0 homem fom a feculdade de eatstazor Inromente © instinio soxual? € Injustige, dovpatieme, absurdo moral que as futums civilzagSes hio do corigit.. foldent1%). A segunda idéia subsidiéria dizia respaito & nudaz: "O nu nao ¢ imoral Deus fez-nos assim. Toda a natureza 6 nua’ (ibidem111). Finalmente, @ tercet- ra, observa & monogami oA poligamia esth em toda a natureza. Os préprios chvlizados ~ 08 seb ‘vagens seguem seu Instinfo ~ que impuzeram a monogamia como base dda sociedade, néo a respaitam, © tormam amantes ou, pelo divércio, ve- fism do mubver, As mulheres variam tanto quento podem... (idem 112419) ‘Aqui resumidas, as teotias de Bedford vao sa desenvolvendo lentaments 9 no sem contradigées, a0 longo de todo o romance. Representam para o autor — quo as classifica da delantes @ qua as atribui a uma porsonagam cu- jo tim seré tégico — armaditnes colocadas desde a pessagem do século na titha dos Jovens mals incautos ou jé predispostos, O mais importante dispara- dot da degeneragdo, com todas as suas consequénclas, serlam tals teorlas, Nelas, sob uma Hguagem ciontificista @ organicista, de um lado a caricatura de idéias de Freud aparece permeada por uma atiuce agonistica trante aos preze- res sensueis bem propria ao aristocratismo roméntico, @, de outro, por valores: femancipacionistas, principalmente relacionados & condigéo feminina. Mas, na passagem do século, ess conjunto de idéias, valores @ atitu- ‘dos encontrava expresso através de outros meies, além do discurso desarra- z0ado de um professor. Ao observé-los, 0 infolz Germano vai se convencendo, para sua desgraga, de que o mestre tinha mesmo razdo. Grande parte da “mo- demidade' ou "civilzagdo* que chegava entéo ac Brasil estava impregnada de sensualismo. Na tela do cinematografo, onda "As senhortas 8 menores, apesar dda proiblggo do juizado, entravam aos bandos, com 0 hébeas corpus requorido polos prdprios pais’, eam exibidos “Bajos longos, lnfindéveis, nos quais se Comunicagées do PPGAS, 1 2 sonia a suogéo, @ dentada, © gotisme'. Na Meratura que, segundo © narrador, formava a pubordade dos mocinnos de endo, As obras de Michelet, Sala-Bou- vo. Maupassant Lomatra, Anaile France, Fauber, Brunlere, Aled Vigny, oc, tsialam todas impregnadas de instinio sexual, toces “inepiades pola Wise”. "E fo teatro? Todo 0 teat francés vivia do surto gonéslco, ansia de amor © do Mmolencala @ tnquielagto do catwoiro moval. Nos Jomsl, através dos quas, Sob 0 andincio de "gindstea Inglse, ofeeciam se relapdes. sedo-mascquislas (ioicem71565817) Estas saram, portento, as causes extemnas da degeneragéo que atings as porsonagens do nosso romance. O sensuaismo expresso noe fies, pegas teats, romances, et, © perlgosemente dafencido por cionstas como Bodtora fra responsével pelo excess0 soxual, pela degeneragao @ seu corolro: 0 crime ea loucura. Mes Claudio de Souza além do atacer a dssolugdo dos costu- mes através da propria trata tdgica de seus personagons, no doka tam- bem, através do. Nunes, de responder aos paigosos ‘sotsmas” do Bedford Espécio do reloxo da personalcade do aur, essa jovern médlco vei ao longo Go romance contestando as teorlas de Bedors até sucumbi, ele mesmo, 20s poderes de alana Desde logo, Nunes v8 om Bodiord um ‘erético delirante’ ov “obsessivo sexuat, alingido por um mal cujo desenvolvimento 6 comparad ao ‘dactve dos t6xicos". A Insisténcia inicial na busca do "gozo normal" faz com que @s- ‘cassele @ proviséo de energla nervosa do organismo, tomando 0 préprio gozo Inacessivel. Perseguindo um prazer que se distancia a cada passo, os cbsessl- ‘vos saxuais Iam entéo, pouco a pouco, entregando-se a “intraduziveis caricies’, fa “inomindvels contatos", que apenas agravarlam seu estado de esgotamento ft. sico @ mental. Assim nos ensina Nunes: nosso gozo progratsivamente malor, tocem os exremes da libido, em 21 demenlaco, om jublagéo satinica de refinemontos eonserisis que of deka estendldes, fos, gelados, sem respira, em sincope longa no lato |& doloroso da volipia..Vém depols, © esgotamento © a impoténcla [al E & dosorganizaglo mental une-so a devastagio fisica, aucumbem por ter batldo demals as portas da vida .. (bidem’t). Do ponio de vista do meio social, a primara fase da “doenga’ 6 a mais perigosa, pols ¢ a menos perceptivel ao leigo. Nela, J& aguihoado por um de s8)0 Imperioso, 0 “doentst comeca a construlr um ‘filosoiat aparentemente cos- forte @ sedulora ne qual o prazer sexual figura como a razéo viima de todes as condutas e realzagées humanas. Neste fase, 0 obsessivo 6 signiicatvamen- te classticado de “louco Kicido". E, quando Nunes s6 refere.as recionalizagées do Badiord e de outros “obcassivos sexuals' na primeira fase do mal, encontra- mos de novo o fantasma de Freud que se esconde Insidiosamente atiés co ‘nosso quimico. Deles, dz Nunes: 20 CARRARA, Sérgio. “Os Infortnios 4a Lunia" Domina-os © pansexualismo {11}. E paradoxes onde +e encontrar os ‘enromoa, lovam & goneralizagéo #0 allzmar que no alo da cfianga que Inocertemente euga'o alimanto no eclo mateo hh o esbogo da Ince: iqdo sexual Todae 2 agdes humanes, da dor & piedads, dos tos vege fivoe Ae mela sles concepeées da arto 0 de mele Arcuas fabutas Ga ‘lénela pacocelhss que obedscem a um nico principio, mével ou apette {quo 89 resume na obsossio sexuel.. (SOUZA, a/d49). ‘Mas réo pareceu suficiente a Cléudio de Souza ‘patologizar" Bedtord @ ‘suas too1las, pois Nunes se preocupa também em desmortar @ argumentagao do quimico em seus préprios termos. Em relagao 20 mundo antigo, afima que ‘0 caudal da sensualismo groco-romano teria sido caracterstico apenas da fase de decadénda de tais ciilzag6es. Nos poves come nes indlvidues ao periodo de falsa axcttagho que o ‘xcessos provecam, seguese © deliio cujo fim & @ idictia, a abulla. O foto da luxira torna-ee o lato da invalidagtio e da morte, {.) A lubrick dade sexual conduz © Individuo & decedéncla, & rulna moral, © ao ne (Gees come as rages ao desaparecimento..Das civilzagées antigas 0 que Sebrovive nao 6 0 produto do sonsuelismo, mes © que deixam porpetus- 0 no bronze, no mérmore, ne tele, noe livros eternos da reno... fbidam 1878). Nunes néo ciscorda do fato de Paris, entéo cosiderada centro da civl 2aga0 ocidental, ser também a capital de toda devassidao. Porém, explica 0 tendmeno a partir de dois pontos de vista. De um lado, howe @ "Onda de luxtiia e de instintos que cresceu, se avolumou e $0 tonou Irrofredvel epés a {quarra [referee aqui A 1® Guorra Mundial] com a inversio dos valores, empo- ‘brecendo as camadas mais altas © enriquecendo © povo, que trouxe @ tona es balxas tendéncias © 08 violentos apatites dos novos ricos, sequiosos de conhe- cer todas a3 volipias que ontem, com indignagéo reprovavam* ((biderné3). A ‘2586 processo propriamente hist6rlco, vinha agregar-se um outro mais estrutural Yazado em modes Carwnnianios, Certamenity vs paises meio civiiendos a "uta pola Vidar seria mais acirada, produzindo um melor nimero de ‘vencides @ desequilibrados". Para Nunes, estes sariam os “desmanchados dos nervos, des- frelados da auto-fiscalizagéo, emancipados, pelo deli, da disciplina das trad ‘gOes. Mas asses “desequlibrados’, abarcdonados & “insdnia erética’, seriam uma ninoria @, segundo © nosso médico, "S6 um louco pode esquecer-se des altas Cconcapebes do genio frances, da obra imortal da seus escritores @ artistas para fatiibutias eo daliio gentar. A verdadelra cultura francesa, a despeito Ga mino- fie, continuaria rabalhando "Nos gabinetes, nos laboratérios, nos centros de cléncia @ de arta para salvar a continuidads das conquistas da raga do naufra- glo da brutaliiads @ da incontindncia(ibflent 63/4). ‘Assim, em oposiggo ao omancipacionismo de Bedford, Nunes ir defen det a jé ent&éo conhecida tase que via na contengéo do instinto soxuel pola moral @ pala tradigao a condigao sine qua non da chilizagéo. Contudo, 80 58 tratava somento de impedir que © homem retornasse a um estado de animal dade. No Frterior de um discurso como o de Nunes, a um 96 tempo cientfico ‘ComunicagSes do PPGAS, 1 a © moralista, a animalidade $6 pode mesmo aperscer sob 0 signo da ambigol dade, Est referonciada simultangemente a um ‘tundo bestia que, no homem, ‘80 opto & vida e ao bem @ um “undo biolégico" que, a0 contrério ( como para Bedford, alés), seria 0 proprio substato da vida em sua nudez primitiva Desse mode, a tradigo, a moral, 9 a razao ndo teriam simplesmente por fun- 80 teprimir © que no homem & n&o-humano (os instintos) pois o animal, sem ‘qualquer risco de degeneracéo, ‘Pode tor fives 08 inslinios, porque no 88 corrompe, dentto da inflexibiidade das leis naturais' (ibidem85). Embora possa parecer contraditério, para Nunes (@ para Cléudio de Souza) a fungéo da moral parece ser iguelmente controlar no homem aquilo que se apresenta como propriamante humano: @ Imaginagéo. ‘No homem [vic Nuves] 0 elemento de corrupgéo ¢ © poder imaginative’ (bidem85). Libertos do cativeio moral, os hhomens néo reencontrariam entéo a folicidade de um estado de natureza como desejava Bediord; antes, so afastariam dele pols, fia da imaginagéo sem limi- tes, a luxiria ‘Dotorma’ @ deprava o ato singslo que se dastina, apenas, pporpetuar a espécie, tal como praticam os lrracionais sem extravagSncles imagi- nativas® (ibidem 58). (© que estava_ em jogo, note-se bem, no era a condenagdo tout court dda atividade sexual. O perigo estava no abuso, no excesso, na luxtrie. 5. Um destino inscrito na care Ja esbogamos as citcusténcias mais gerais que, 20s olhos do de CCléudio de Souza, desem cxigem & “dosnga" de Badtord. Mas e358 conjunto de sparedores da obsesséo sexual néo sufciente para explicar todo 0 proces- 80 degensrativo a que sto submotidas as porsonagons. As causes socials ou ‘externas se somavam caracterisicas ou atiibutos propriamente indviduals que Cckcunscreviam, através da heredtaiedade mérbida, terenos mais ow menos prodisposios @ atuagéo de tals causas. Nesse somtido, podemos distibuir 28 Principals personagens do nosso drama no intaior de um quacro onde In- fluéncias Internas e externas se cruzariam do seguinte modo: Cause, Finca Interne Edema ‘Mariana Germano Bedtord Nunes Sem divida, todas as personagens do nosso drama esto igualmente ‘xpostas 20 deletério melo socio-moral que Cidudio de Souza procurava denun- iar. Mas, do ponto de vista das causas intemas, elas poderiam ser distrbuidas ‘ao longo de um continuum, Marlana 6 som divida degenerada em mais ato {Grau @, Por Iss0, no sou caso a Inluéncia extema 6 Inslevante. Nao 6 possivel CARRARA, Sérgio. "Os Infortinios de Lair! nem masmo considers-Ja precisposta & degeneragao pois nla o mat jf se re- velou desde a Infancia. Antes mesmo de se casar com Bedford, Mariana 6 deserita como uma espécle do "Viigem pecaminosa’, um "engenho de domina- 20%, “Instintvamente amestrada para o amor’, Adolescente Inquista, sonhando acordada com o titimo belo que vis no cinema ou seduzindo garotos mals, aves que ela, Mariana era filha de prostituta @ por 1580 trouxera no “plasma’, ‘por horanga' toda a arte de sedugdo desenvolvida pela mae. Lamarckianamen- te, © que ora aptidéo adquirida pela mae, transforma-se, na filha, em "poder ordado", ou como diz © proprio narrador: fina, com a heranga, vieram todas aquelas anos © tteltos © sot: ‘set @ olhares © engenhos de atragéo no préprlo plesma Mariana ecebera @ exorcia o formidivel poder, néo ertfcial como fora o ma- terno, mas espontineo, natural, Inconscients... (SOUZA, s/d:21). Assim, Malaya Youxera no sengue & obsessio sexual, a indolincia pasmada 0 alcouce que e6 a laselvia deeporta. A idéla lisidinosa, como praga ‘que dovasta um torrano @ 0 toma Impréprio a qualquer outra cultvagho, fembotaradhe © cérebio om vide vegstativa de instintos, 96 instintos. (idem:289). ‘Sendo herdado, © comportamanto sexual naturalments excessive de Mariana — como alias qualquor outro tipo de anomaila hereditéria ~ n&o podia ‘80r cortigido ou “curado", nem tampouco estava sob 0 controle de sua vonta- de. E como diz Nunes ao descravé-la em certo momento do livro: LO olhar sublinhava do lascvia inconacionte as frases, a¢ palevras, prdpias sllabes, Sous nos quando tontaasem repelir © homem, deviam ‘tor a ontonagéo dos sine do cutras mulheres. Nascera para o amor, para 4 vollpia, Nenhuma resistinela podla opor.ine... bidern:131) Discriminando ou estigmetizando de modo Indelével seus supostos porta- dores ou ‘vitimas’, a dageneragao tinha entretanto © poder de inocerté-los por seu cOmportamento, irresponsabilizando-os moralmente. E o que faz Nunes ‘quando, om carta a Germano, aproxima metaforicamente Mariana a um “doen. te", Antes do mais nada, ola seria um: ‘mal ambuiente, perigoso & saide piblica, come quelquer doente de melbstia contagicea. &, eoltada, foco Inconaclante de agdo funesta Nada faz para provocer desgrages, mas provocs-as Pord dolirantes ‘quantos homens se aproximarom dela... Para abel @ soduzir néo precisa famanettar-s0. € como 60 the fosse @ fungéo, a oxterorizagho natural..aja ‘quantas dasgracas vel someando © quantes crimes poderé semear Invo- luntarlamente sua etragéo fatal, contra a qual nada podem at leit! Pois nko era 0 caso do insular tae doontes come so Insvlam os colicos, 08 famartics, 08 diftéricos © oultos?.. (bidem176). ‘Comunicagses do PPGAS, 1 Mariana é sem divida a encamagio do mal, 2, assim sendo, pode 16- pprosentar om folaz0 aos homens que “contaminat 0 papal da uma causa ox- ferna como um micrblo, um vitus ou uma vibora. Porém, no final do romance refletindo sobre o rosério |é extenso de tragédlas que clicundava Mariana, além do Inovanté-la, Germano aponta para o fato de nao serem afinal todos os ho- ‘mens iguaimente stingldos por seu poder: -[Mariena] Inocente em sua esetncla como @ matéria condensadora, como 0 vidio que cortém o téxica, como & eerpente que sacreta 0 vene- ro..nenhum dano provocatia, sem ecasiso proplcia, Os prediepostor, o€ taradoe, entre os que pareciam Invuneréveie come Nunes, 6 quo chegam fogo @ essa pobros condonedae da heranga trégioa..Eram née, 8 sxétices latentes que provocdvames a oxploedo © nela eucumblamos... Culpadas, pole, nio sic essas pobres minas humanss. Que nenhum minoto Ines chogasce a Mimpada da prépria novrose 0 talvez clas eo- ‘aulscem pola vida som provocer catdstotes...(bidorr2145) "Predispostos’, ‘tarados’, erGticos latentes, “nevrosados* eram, sem dtivi- da, Bedford © Germano, pois, além de expostos &s influbncias do meio (e de Mariana) traziam consigo um terreno tavorével a0 desenvolvimento do mal. O primelro, além de possuir ‘antacedentes tarados" e de ter caldo na infancia, 1e- Tindo © “frontal dreitot, possula um espiito fragiizado polo ‘excessivo trabalho ment” a que se entregou. No segundo, a tara hereditéra - possula um tio ‘que enlouquecere - era agravada pela “impressionabildade" caracteristica da adolescéncia. Ambos degeneram em contato com @ mulher fatal, E suas traje- tdrias tematizam iguaimente a Inexorabiidade da degeneragao, uma vez desen- ccacieada em terteno predisposto, Essa ineluteblldads do processo dagensratlvo se explica 6m larga medida pelo substraio orgfnico que mobilza, contra o qual ‘a vontade dos individuos nada pode, Assim, ainda no comego da historia @ jé reduzido a miséria, tentando lutar contra a fetaidade, Bodford val a0 gabinete ‘do seu maior cliente para retretar-se. Porém, no meio da conversa, sua aten- go 59 pords nas cuvas de uma varus de gesso que astava sobre a mesa, Nao havia mets retomo: proteplasme, nicleos celulares; corriadhe na lina, no sangue; caletcare-so fos osso8, nas vérebres; coagularaso na module; ostatficersee nos ner vos. Todo ele era Mariana, Marans, +6 Mariana, ou antes libido, libido, 36 Mido. Ubifem:30/), Ao final do um trajetéria social, mora, intelectual ¢ fisica irreversivelmente: ‘decadente, dado 0 determinismo bioldgico, somente restou a Bedford a consia tagtio auto-complecente: wE @ mals tementivel 6 que tinha conscifncia de minha queda, 8 no podla suster-ma...(bidem:189). AA trajetéria de Germano reproduz a de sou mestre, Nola, porém, 6 ros- saltada de modo ainda mais onfético a longa 0 ingléria luta da personagem 4 CARRARA, Step. “Os Inforténios 42 Lutes" contra as determinagées organicas. No inicio do drama, depois de Bedtord ter rado de lecionar, Germano 6 0 nico aluno que continua a frequenter o lax oretério. $6 mais tarde viria descobrir a razdo: Era © elkivio impondorével, a omanagie fetal daquola carne lbrica do Thuther que Ia ve epoderando de mim... foldym:40 ‘Suometido & dlssolugao dos costumes caacterstca das grandes cida- dos, sob a infufncia das iéias de Bedford © acuado por sua tara heredtéria, néo ha ‘saivagéo" para Germano depois do primeiro Contato com Mariana Mesmo as intervenes bem intencionadas ce Nunes acabam por agravar um mel que JA esté detnitvamente instalado em seu corpo. E ¢ em rolagéo & In tarvengSo mais patética do jovem médico que vemos claraments rfieido © pe- igo que © préprio romance de Cldudio de Souza representava, caso calsse om ‘méos erradas’. Como vimos, para convencer Garmano a abandonar a compa hia de Bedford, Nunes 0 lava até o manicémio, Af the apresenta o ‘inferno sexual. Jé sabemos que este era 0 objaivo do prdprio Cléudio de Souza, 20 fescrever © publicar 0 sau romance, Poxém, se 0 horror das cones presencia das no manicdmio faz com que Germano 30 afasto momantanaamorte do pro- fessor © Je sua mulher, raz uma consequtncia muito mais nefasta e profunda, pois ineute em sau espiito predisposto ‘A primeira curiosidade viciosa’ Debalde procureva afaatéle [confessa Gormano, depole da visita 20 ‘hanicémio. Estava dentro do mim, no sei de minha substincia, Fore fponas despertada.,. A betta erguers-se dentro de meu corpo...Sentia-a indomével a grtarme que a vida, a alogria da vide ere sua @ nto da tma; do ineinto © nto da razio... (ibidem:S8/9) Em meio @ um confito tervel entre sua razéo impotente © sous insti tos incontrolévels, Germano val lentamente perdendo a autonomia de sua vontade, Mobiizando 0 organismo predisposto, nada pode impedir 0 passo da degeneragéo. O dastino se inscreve na prépria carne @ as mulheres fatals (co- mo, aliés, todas es outras causas da degenoragao) encontram sua metiéfora ideal na serpente com sou veneno... © veneno elas deixem ne caine, dentro do corpo, como a vespe, como 2 cobra, Pode-se quelmar © luga’, nfo adianta, 0 veneno corre logo ne Senguo © & para toda a vidal..Eias no fazom mal porque qusiram. Séo ‘como cobra; matam gem saber que matam...jbidom:256) Enfim, esta Nunes. Diferertemente des trajetérias do Bedford @ Germano, a'de Nunes tematiza sobretuda 0s perigos do meio social, No sou ‘caso, © mal vam predominantamente de fora. ‘Ja apontel 6 falo de o jovem médico ser apresentado pelo autor como modal de masculinidade.. nto de homem, us gostos eram (bide. Comunicagbes do PPGAS, 1 6 [A palevra de. Nunes ee. vibrant incisive, com fo {de macullno sadio, do bifo eangrento © dentes voraza ‘scudidos, de “quebcote a cara’, ds box ou fula romans. 12 de normalidade. Era ‘forte’, "bem equilbrado’, “serenct, “tesoluto’, @ dotado de “sel/-controle’ [sic]. "© homem so, sem neivos, sem sentimental mo, sem romantismo" (jbidemn:179/60). Além disso, um médico, um cientista. Sem sombra de diivida, © tipo ideal de homem vitoriano. Como se debxara ccontaminar por Mariana? Depois de abendoné.la @ antes de tomar o trem que © conduziia ao “exflo’, ala mesmo confessatia a Germano que... Pun sneer aon de cota made «at no celégo, na eniversiado, com ® mpamazea exponen. tae tien «ero roma eqn camo ose, om co ‘chico, pudesors Gerioronarseeeémm num’ soe, ao ober de mulher... ibiden:231). “" Embora misteriosa, ou a0 menos surpreendente, 6 a trajet6ria de Nunes ‘que om larga medida confere sentido ao romance enquanto obra de exorta¢so moral. Nas méos de gente como Mariana, Bedford ou Germano, 0 romance apenas ‘instilaria © veneno', contibuindo para que revelassem seus “instintos {otroados’, como noteva o dr. Renato Guimardes em seu artigo © adveria o [proprio autor, Entéo seriam os normais que poderiam sorver-he os ensinamen- 40s, procurando evitar © perigo? Era para eles 0 'libelo” que Cidudio de Souza publicou sob 0 isco do provocar a “quada’ de muitos pradispostos? Na res- posta a tal qussiao reside, 20 que parece, a chavo para a compreensao do ‘modo polo qual ciéncia e moral se articulam nos avatares da degeneracéo. 6. 0 inferno ndo esté longe daqui Como vimos, a nogéo de degeneragao pode ser considerada como prin- ciplo estruturador de uma variante do modelo biodeterminista da pessoa, con- forme elaborado no século XIX. Em sua verséo mais radical, tal modelo negava ‘@ possibllidade de qualquer arbltrio humano sobre as ages humanas. Operava assim | um cote categérico radical Haveria homens naturalmente bons @ normals homens atures maus e monsiuesos, wo sei téeneo do Mes so as coisas se passassom dasse modo com a degeneragéo, tea ‘mos de reconnecer necessarlamente que 0 lio de Cléudio de Souza era Int! aos normals @ nefasto aos predispostos ou ja “doentes'. Ora, tando ou nao controle sobre sous atos, de quo Serva esse lio-adverténela 80 homem que Por ser normal, nBo teria qualquer incinagéo ao mel? Nessa hipstese, o empre- ‘endimento de Claudio de Souza repouseria sobre um paradoxo, neutralizando 08 fotos esperados @ produzindo aqueles contra os queis luta explicitamente. Acenas mal una amas, eqiprel tq qu buss dunt mesmo, muitssimo mas perigosa. Resteria 20 eto St Sit a ate Sinan meet oat 80. Poderlamos sem duvida fazer ilagées sobre suas intengdes inconsclentes: 64 Incontessavels. N80 ‘ria ele utlizado 0 manto da morel @ da religiao apenas para recobrir uma obra ascandalosa © de sucesso edioril soguro? Ou 26 CARRARA, Sérgio. "Or Infortdnioe de Lux teria langado mao da ciéncla com seus degenerados apenas como espécis de {iog40 cuja momenttnea crediblidade poderia ajudéo a atingir objelivas mora listas @ conservadores? ‘Mas, no 0350 caso, 0 raclocinlo dualista parece apenas obsouracer a ‘quostéo, fazendo com que escape palos vaos dos dados (ou das idéias) um fntendimento mais acurado do significado da degeneragio, do modo como era UUsualmerte manipulada por intelectuais como Ciéudio de Souza, @ até mesmo ddas raz6es de seu enraizamento t80 profunde er nosso Horizonte cull necessério lembrar que, embora em alguns contextos a degeneragao possa ser um operador do clferenciagdes categéricas entre indwviduos ou gru- pos, snies do mais nada, ela se refere a um proceso, E um conceite dinm!- Go Que entaiza @ releGzo de continuidade © no de soparagao catogtiica entre ormalidada @-anormalidade, Parece sor essa justamente a caracteristica que the pormite clerecer-se como espécio de comutador entre duas concepyoes contradtérias da pessoa humana Supostamente menos degenerado, © homem Ccomum teria ainda alguma canacidade do evitar tudo aquio que pucesse des- pertar om si as forgas da cogenoragao. Tudo se passa como se quento mais hormal © sadio fosse 0 Individuo, malor controle exerceria sobre si mesmo, Nada mais justiicéval, portanto, que alortar os "quase normals’, ou aqueles que festéo no limiar da predisposigao, do petigo que vitualmente 09 espreita no interior do s9u propre organismo, podendo vir a aliand-los caso se abandonas- ‘som as infugncias de um meio social degenorador. ‘Mas, 180 podemos conclu a parti disso que quanto mals normal 0 tnaviduo mais responstivel por seus stos, ou soja, que © continuum entre nor maidade © enormeldade eepelharia fisimente em outro nivel, a continuisads tentie lvre-arbisio © determinismo. Através das inimeras passagens ciadas aci- ima. fA osté bastanto claro qua Marlane, Bedtord @ Germano, no poceriam ser fesponsabllzados por suas agbes pois eram sufciontemente degenerades para rn8o torem qualquer coniole sobre elas. Mas era de so esporar que, sendo 0 mais normal, Nunes fosse também 0 mais responsvel Nao 6 isso o que ‘conlecs. Como 0s outros, Nunes 6 apenas mals uma vilma da Marana @ de ‘Sous prOprios insintos, née merecendo qualquer julgamento moral por parte do autor. Essa incorporagdo parcial do principio do lvre-arbito, torna-se percept vel quando analisamos © modo pelo qual Cidudio de Souza treta a5 tentativas fempreondida por suas personagens no sentido de inverterem 0 curso de seus ‘esti. Seria de se esperar que um suto-proclamado moraista, Commo @ © cat So do nosso eulor, aproveitasse teis momentos para exaltar a “orga de vonta Ger, 0 poder dos valores morais 9 religios0s ou, simplesmente, a capacidade a rezso, mesmo abalida, de recuperar suas prerogatvas... S80 185 esses momentos: a fuga de Germano para a fazenda, a de Nunes para o latrior © tdocisdo co Mariana de Intemar-se em urn asi. Vejamos. ‘Germano foge depois de, em uma note de orgia, tomar um dos fittos proparados por Becford culo objetivo era provocar ao mesmo tempc a sensa- ‘p40 do prazer sexual ¢ da mote, JA na fazenda, Germano se pergunta como teria podido escapar, ¢ responde: Comunicagies do PPGAS, 1 ” Pot minha vortade? Néo, ela nko existe mala. Vimo reduzido © auté- mato pot vlclo de *hibitet Com © abuso daquele tnice setor de minha ‘enorgia, todas as domsis atvidedes do senséiio so haviam ombotaco. nia 26 @ oxclusivamente da seneuslidade. Toda a eneigla decrosconta que 0 ofganiemo enfraquecldo podia fabricar era, imadiataronte, solieta- dda para roperar eo pordas daquolo coter @ tudo © mals tava assim des- provido © inatvo. Nio £0 podia pols esporar reagéo alguns... (SOUZA, id:t17) Fol o ‘impressionism fantéstico" do momento de proximidade da morte quo, sogundo diz, ‘me tomou a5 rédeas aos nerves, 20s Impulsos @ & razéo. Impelido sem ssber por que force, pus-me de pé, vest” (bidem 121). E fy ‘iu. © mesmo parece ter acontecido a Nunes que confessa a Germano tor @s- Capado de Mariana por “um estorgo miracuioso" (bidem234). Quanto @ Mavia- na, Cidudio da Souza ancartega Nunas de desquelificar sua decisdo final como possivel ‘ato de vontade’, Segunco ale, sua Intongso de recolherse a um aslo era platénica. A doonga estava- ihe na carne € @ vontade néo podia com ela. Conseguiia quande muito dorivar © vicio eamal pera lubricidades enccbertas, pare o misliciemo dos {Sxtas0s, das alucinacées de convent, emprestando carétor raligiose aos Impulsos sexual... (bidom234/5), ‘Assim, @ nogao de responsablldada individual em seu sentido pleno get- manece heterogénea & teotla da degeneragao manipulada pelo autol. E certo que, 20 nivel des causas interns, a continuidade entre normalidade ¢ degene- ago, fazia com que, no polo da “quase normalidade’, um grande conjunto de individuos fosse paticularmente suscetival & influBncias do maio social - 0 que, aliés, lornava fundamental 0 confronto “ideo!6gico" e @ proflaxia moral no Interior de um plano mals global de higianizagéo do corpo social. £ certo tam- bbém qua, 52 08 individuos pouso degenerados nao incamavam 0 sujeto livre & soberano dos lkuministas, no deixavam, entretanto, de possuir uma certa cope: cidade de resistir as forgas degeneratives. E como se os seres humanos s6 th vessem a capacidade da resistir ao mel, sando a opedo pelo bem apenas uma forma de resisténcia a0 mal Em momento algum a imoratidade, o crime cu 0 vicio sto considerados frutos de uma vontade fire que se cesvia de lel ou da norma moral, mas sim, como futos da faléncia dessa vontade frente a forgas que, se néo emenam do interlor dos. organismos, Invademn-nos desde fora. Emanagoes do organismo colativo, da sociedace. © homem pode resistir 20 mal, dal a procedéncia de intervengées moralizadoras~ como a de Cléudio de Souza - que visem @ ‘eforgar tal resisténoia. Mas, quando néo 0 faz, no pode ser Integralmente in- culpado ou responsabtlzado por isso, Na verdade, 0 que 08 antigos moratistas Cchamavam de vontade live parece ter $0 transformado na momentanea rever- beragéo do choque, no Interior da um ser humano dllacerado por dois determi- rismos, entre a8 forgas Inlenas, bioiégicas @ as forgas extemes, morals ov socils *% CARRARA, Sérgio. "Os Infortinios da Lund" ‘ho que parece, chegamos a uma possibildade de dalogo entre @ nogdo do pessoa jurdico-racioalsta © ums outa, biodaterminista. Atibuindo & moral Gade um papel quase tio fundamantal quanto o da biologia na. determinagdo 0 comporiamente humano @ deixando 20 individuo certa capacidade de resis- fancia a osse dotorminacéo, a teoria da degeneragao consegue operar uma mo- diagto entre doterminisro « tvre-arbitlo, Mes seré que estamos 140 distanles do antigas crengas retgiosas ou das cldssices formulagdes teoldgicas? A tooria da degeneragao parece reprock- 2, em Iinguagem cientfica, caracteristicas fundamentals de uma concepgao de pessoa que, pelo menos desde Santo Agostinno, esté presente no pensamento 0, especialmente no cafoiciemo. Pode-se perceber com carta clareza que, hos, quadros do peneamento clenttico, a degensragéo vem ocupar @ mesma pesiggo simbélca do pecado orighal nos quadios da teologia crist&: espécio 9 capital de dagradagéo moral que todo homem traz consigo ao nascor. Ho- mologia parcial, pois se antes todos os homens eram, “de dete’, pacadores, passaram quase todos @ ser de fato deganeradcs em algum grau, Ou, polo Trenos, sensiveis & degeneragéo quando expostos a certos melas socials. ‘além clsso, também a rejeigéo da idéia de ura responsablidace Indt- ual plona parece sor a atualzacdo cientiicista da vertonte da teologia cristé que via 0 pecador rrals como vila que transgressor. Em seus timos fscitos, Santo Agostinto defandia exatamente esta fd6ia, subtraindo ao ser hu: ‘mano @ tiberdade voitiza que um dia jé the concedera '%. Para ela o tinico pecadortransgressor tera sido Adéo, quo, depois do pecado cxginal, perdera a Capacidade de contiola’ seus atos (principalmente 08 relacionados aos desejos sexuais), Resumindo as idéias do Santo Agostino a esse respeto, diz Foucault, sufidam ‘tied to scope God's wil and 10 acquire a wit of his own, ‘groring ths fact the existence of his own will depended ontrely on the wil of God, Adam lost contol of himsolt. He wanted to acquire an ttvionomous wil, and lost the ontological support for that wil. That then became mxod ine indissosiable way with Involuntary movements, and this weekening of Adam's will had a disastrous effect His body, end parts ‘ot hi body, slopped obeying hie commands, revolted agaist iim, and the exual parb of his body were the fist to rise up in this disobedience. (FOUCAULT © SENNETT, 1981). ‘Assim, através ca heranga do pecado original, 08 filhos de Adao seriam espécie de pecadoresivfimas. Merecedores de infinita piedade por nao poderem ‘mais controlar de modo absoluto alos @ desojos. Carentes de dirigentes espi ‘uals € secularas que pudessom “ajudé-los" nessa sua incapacidade. ‘0 “modelo clemifico manipulado por Ciducio de Souza esté estrutural mente muito proxmo cassas antigas idéias religiosas. E é sem dtvida essa ‘proximidads que pormie ao pensamento daslizar sem sobressaltos da moral re ligiosa para a cidncia e vice-versa, Ao Invés de pecado, degeneragio; a0 Invés de salvagto, regeneragao; ao invés da came, organism; 20 invés dos padres, médicos eugenistas @ a0 invés das tentagdss, as permiclosas influéncias do melo, ‘Comunicagées do PPGAS, | » Finalmente, © infemo parece tor encontrado sou lugar neste mundo. £, a0 Invés dessa ospago mftico, vernos surgir um outro bem mals conereto: o ‘manicémio judiciério, no qual, aiém de Garmano, foram, sem diivida, mower as frustradas esperangas daquele perverso merquss. Notas 1. Ese ontalo fol criginamenta apresentade come trabalho final para 0 curso Indviduo © Sociedade, ofeecido pelo PP-GAS/Museu Nacional ¢ ministedo pelo prot. Lu Fomnando Dies Dune. Agradego a Lulz Fernando Dias Ouse, Tana Saiém, Birbara Musumesi Sosres, Miguol Anunclage, Jayme Arana e & Cislana Basis pele feta ‘torte que fizoam da primolre vereko do texto e polas prociosas eugestdee que go- norosamnente me doram 2 Note-se quo, duran © sboulo XX « Inco do séeule XX, @ nogéo de raga nko donc- fave ume realidad estlamerta Licégica.Além dos caractoes falcoe. Jo. Um rupee mento humano, a raga encerporave suse caractoritioas montas, cual, of, 8. Prncipalmonto eravés dos wabalhos de FOUCAULT (1987) © CASTEL (1970) J6 conhacorios bem toda compieva e ardiosa ginkiica teSdca empreendice pelos Plguate do céoule passedo. eo eatem convidedos a “expicar ea confer | Gesvierts. As Intindéva's discussées acadéimlcas om tomo da loucurs Kick, da ou: cure mora, de monomanla o, finmerts, de degenoragéo atestim a ciouidade, « twofe ¢ 0 ompenho com que a sla se entregaram os psiquatas, ansiceos por de- rmonstrarem a exceléaca do sou saber © 6 utidade social de sua intorencéo. 4. Sobre a cfioonge ente doorga e anolemie, ver CANGUILHEM (1983) 5. Essa Invosligagdo faz pao do projeto ‘Histrie das doengas vonéroas no. Bras IMSiF. FORD que coordeno e do qual paricipam as antopsloges Gantuza Neves Ribeiro © Bévbara Musumecl Somes. 1, Os dados bloglloos foram celetados no acewo de recortes de jomal rferente & matte de Ciéudlo de Souze, mantio no arquivo da ABL. Albm desse arquivo, tam bém conautel os Anuérios da Academia Braslora de LeWas pala ce ano de 1205 2 1946/1947. 7. Todos os gis nos techos extaldos do remance © cltadce « coguir neste tabaho foram fates por rim. 8, Evidencoveo, na vordade, uma preocupagéo|& antiga do autor, cua tose do dovte- ramento, apreseniade & Faculdade de Medicina do Rio do Janel, am 1897, vorsava Justamente sobre « degenoragto (SOUZA, 1897. 2. E bastante dell petceber como funcionam as conexdes ceusals no ntrior do mode to da dogeneragée. Tudo pode oer causa ou “antome’, dependenco do contexte. A distingdo quo fago equi entre “causes externas? “internas” § spenes insumertl 6 ‘pa medida om que as primeras parecom sor considaredas resimenta ofcectes ape: ‘nas quando agom sobre ‘oranos pledlepestor lgumes veros me role a oles come “dioparadores" da dogoneragde. Ao tata, em arigo recente, deo Klas dogenoracle- ristas do KratEbing, Duarte note quanto & ariulagéo enire causes fekcee © morals promovida pelo modslo da degoneragio: ".. 80 & verdade, por um lado, quo a8 Auesices morls podem ser consleradas [-] como “tnelonal ou "eptenomenai? fem telagéo & determinagéo fsioa, hé também, por outto ade, efatos de retorno. do nivel moral sobre 0 fsleo, desde que ~ ossas tungbes" no estjam totalmente olds es ou subvertiées pela gravidade do estado de degoneragie ..” (DUARTE, 1988:16) 10Atravbs dos clscussées lovartades @ parir do surgimonto da AIDS, parece que vivo- ‘mos hole nove ponto de Inlexdo nosse processo. Com @ Inporticia erascenta do ey CARRARA, Sérgio. "Os Infortinios dx Lax" stoma imunoligloo na axplicagio das doongas, a promiscuidade veliou a ser, no Inforior de uma outrarecionalidede, nove tonto de horrores jtiLombremos qua, na passagem do século, 0 epfiete de “pansexualitat ora trequento monte etfibuide 8 pensamento de Froud. Como nos revela Poter Gay, seus crticos iam nelo um “.. pfofoin sedutor do puro instinto desentreado ..* (GAY, 1989: 149, 316, 411, 412-9, 487, 589) - 12.8ebr0 « mudanga das posigéce de Santo Agoslinho # sobre « adequagio do sua no- ‘va intorpretagie do pecado original aos designios da uma igraja cuja relilio #0 ttansformava em raliglto de Estado, vor PAGELS (1998). Além dias, pare uma exoe lente interpretagio do mite do pesad original, vor RICOEUA (5988:cap. 1). Reterénclas bibliogréficas Livros @ folhetos ‘CANGULHEM, Georges. 1882 - O normal e © patolégloo. Fic do Janoiro, Forense-Universtria. CCARRARA, Sérgio. 4888 ~ ‘Crime @ lovcute: o aparesimonto do manicémio judietrie na passage do boule, Diszortagio de mestiado, PPGAS/NN/UFRI. 1878 — A ordem psiquldttlea; a idade do outo do alisnismo. 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"Os Tnfrtnios da Lanta —_—_— NO GIRO DO CALEIDOSCOPIO A questao da identidade na criagdo literaria 1 Verena Alberti see (© presente texto prelende discutr elgumas implicagoes da Identidade do sscritor no processo de criagd, e com 1ss0 problematizar @ Idéia ca identida {do univoca do suielto mocerno, Trata-sa de um exerciclo de apraximagoes & fnalogias, que, 56 por um lado, complaxticam (e compicam) a questéo da ‘dertidada, de outro, tém a variagem (@ a inlengao) de justamarte sublinhar seus paradaxos. ‘Sou ponto de partida 6 0 retrato de Garcia Marquez sobre a morte do ccoronel Aureliano Buendla em Cem anos de solidéo: Sim, eu sabia que, em determinado momento, nha que matélo © née usava. © coronal jé ostava velho, fazendo os seus poixithos do ouro. E lima tarde persol: “Agora sim que néo tom mais elt!” Tisha que maté- fo. Quando termine! © capitulo, subi temendo pera o segundo andar da fo quando viu linha cera. (0 cotonel J& morretr, disse. Oolto>ms na came © fiquei ‘chorando duns horas. (MARQUEZ, 1982197), Como esse, poderia ter escolhide outros tantos rolatos, de escrtores, ‘totes, artistas plasticos, erfim, que parscam sugerir uma rolagao de contighida- de entre crlador 8 criatura, como se esta titima fosse téo real quanto © primel- 10, @ ponto de ser possirel chorar @ tremer pela morte de alguém que néo ‘existe, Afastando 0 véu "roméntico’ que cobre a imagem do aftista - alguém ‘que vive na intersegéo entre o ‘real’ @ @ ilsdo, que parece ndo ter os pés no ‘chao - 8 que poderia sewvir de expiicagao para 0 relato transcrto acima, nos~ sa proocupagio aqui 6 de focalizer mais agugadamente tais situagoes, em que fa idortidade do artista se mova enire aquilo que “é", aquilo que cria ® aquilo ‘em que se consubstancia através da publicagao de sua obra’ E essa "movén- ‘dla’ do sujeto que aqul nos Interessa, desviando-nos da nogao primeira que nos diz quo arte e artista "sao assim mesmo’. E para investigé-la, restingimos ‘9 estudo 20 campo da literatura (2 néo da arte "em gerat) ©, neste, optamos por comparar os movimerios atualizados por esse sujolto *moventet nas produ- (bes do autoblografia e ce flcgio. 'No primeira item, scutimos 0 papel da literatura na modernidade, seu surgimanto (ou nao) enquanto campo especttico @ sua relagao com a idéla de Comnisisgses do PPGAS, 1 3 “individuo" sujeto-ctiador. O segundo iter destace duas especiticidades do ‘tte- ratlot relevantes para a discusso subsegiente, que nos foram suscitadas pola lelura de textos que tomam a fteratura como objeto de estudo. O tercsiro iter, finalmente, cuida da discussao de tr6s situagdes de identidade do escrtor no processo da criagdo, passNeis de serem veriicadas na produgéo de romances de fiogdo, na produgdo de autobiogratias © na “realizagéo' do livro uma vez tor- ‘nado pablice. Como desfecho, optamos por um ‘epliogo" que, onge de encer. far a questéo, lovanta uma possibildade de interpretagdo co lugar da arte na elaboragdo que fazemos do mundo, © ponto central, portanto, consiste em fazer girar 0 “caleldosoépio" do Yindividue modermo' — cuja esséncia *monoitica’ justamonte questionamos — 6, pola perspectivacso de planos, registrar diferentes modalidades de “movénclet do "eu" duranto 0 proceso de criagéo Iteréra, 4. Literatura na modernidade -e@ done ca language, qui ne alt ren, ne 80 tal jamais of S‘appello “itératuro'? (FOUCAULT, 1866:317) A porgunta felta por Foucault parece condansar aquilo que, aos olhos dos pensadores contemporéneos, diz respeito & Fteratura: algo dificil - ow im- possivel — da definic © que, a0 mesmo tempo, diz @ néo diz, Uma iinguagerh espectica, a que s@ voltam escritorss @ leliores, que precisa do “Ivro", alraves- ‘82 @ ecitora, as livrarias, 6 objolo de circulagéo, loventa quest6es, ou passe 20 largo dolas, © 6 parte constitute da cutura acumulada pelos homens. De acordo com Welter Benjamin (1969) — ocupado com a distingao centre “narragao’ @ “romance” - 0 surgimento do romance esta estrettaments vvinculado a0 contaxto ds consolidagéo da burguesia, momento em que a nar- ago teria comagado a ‘retrocader bem devagar para 0 arcalco" (BENJAMIN, 4969:60), sendo uma das raz60a desea transtermagéo a Instauragaa de dominio da Impronsa, que retia da narragao a fungéo de informar @ explicar acontec- montos de forma plausivel, © do narracor, a atribulgse de ditundir (e ensina’) experiéncias para serem apropriadas pelos ouvintes (como na tradigdo oral, no conto-defadas, na saga e em outres formas do “género" épico). Essa lenta transformagao ‘cria', Segundo Benjamin, uma nova situaggo, teservada ao comancista, que segregouse. © local do nascimento do romance 6 ¢ individuo na cua salidio, que JA no consegue exprimi-se exemplarmente (como exeinplo 0 ensinamento) sobre sous intorossos fundamentals, pols ole mesmo ost esoriontado @ née sabe mais aconsethar, Escrever um romance significa evar © Incomensurével a0 auge na representagéo da vida humane. Em rmsio plenitude da vids © através da representagéo dessa plenitude, 0 ‘romance dé noticia da profunda descrientacéo de quom vive, (BENJAMIN, 1969360), “ ALERT, Verena, "No Giro do Caleidoscépiot © que esta carctarizagio do romance © do romeancista tn de commum com a iia quo fazomos. do teratura e -escrtor? S80 aquolalinguagem do ue fala Foucaut 6 0 sujeto que a cil consiugbes especticas da "modomiga: Ger, produridas e consumes pelo "indviduet em sua soldsc? Pode-se falar Ge -oraure were os "hdios”? Ou seré que om relagao a cuturas nko marcas polo “noiidvalsmo" sora mals eproprado fslar's9 de “natraglo" {rformageo dos euvntes raves de relatos que d80 conla de expedéncias, acontecimentos, expleagoes? claro que a designacéo Ieratura nao se aplca apenas a romance, © rmosmo 0 aparecimerto deste cima nfo signficou um corte ieversivel quo Inviabiizasse 0. desenvolvimento de out tipo,de "géno.o Iteréio, ou do “gbne ros" “anteriores” 2quele que entéo se institula ®. Mas 0 simples aparecimento da ta8ia do indduorsupto credor Ja noe convida @ estabelocer um paraio'o com f= possbildade de emergéncia cease indivguo soltaio em sua crag (@ na tetra). epetindo: pode-se falar de “eraturat fora da to controvertida "modern dade"? Historicamente, segundo Alain Viala (1985), ela teria surgido apenas em meados do século XVII, com a criago das principais academias, o surgimento dos direitos autorais e ‘0 crescimento do comércio de obras, quando enléo a faite de ascrever comegou @ separer-se do saber orudifo © as expross6es gens de Lotes ou homme de Lettres jé néo eram suficientes para expressar a dife- renga entéo esbogada. A distingéo lexical mais imediata fol dada ent€o pelo tor- ‘mo poeta, que se diforenciava do letrado ou especialista do saber, mas se aplicava @ todos os ‘mestras da forma’, fossem eles autores de obras om ‘verso ou Om prosa, de literatura de arte ou de entretenimento, A substituigso dessa designagéo abrangenta pelo termo escritor parece localizarse ainda no ‘s6culo XVI, quando “esclor comega a ganhar o sentido de criador de obras ‘com objetivo estético, © qual passou a se impor sobre a aplicagao em vigor at6 entdo, de "escriba’, “copista’ E interessante Observar a sobreposigao do termo escrltor 20 de autor. Viala chama atencéo para a ellmolagia do segundo termo, que reune as acep- ‘goes gtoga @ latina de “crlador, “autoridade’ @ “aumentar” (aquele que traz algu- ma coisa a mals), formando um sistema semartico onde a autoridade do autor se epoia sobre sua qualidade de originaldade; concluindo-se entéo que aquele {que copla no autor. Por outro lado, se 0 escritor era alé esse momento 0 "copista’, com a nova acepefio, tornar-se-4 termo laudatério para designar os crladores de literatura de arte, ullapassando ov mesmo suplantando o autor como termo relerente a um prestigio. Assim, se autor maniém-so como autori- dade, originalidade @ autorla, escritor passa @ ser reservado apenas aos “auto- res" que t8m um valor a mais, 2queles que juntam & criagéo a arte da forma ‘Alm disso, para 0 escritor mals do que para 0 autor, tome-se necessa- rio publicar a obra, porque ser escrtor no teré valor sem o ato que instaura a relagdo com © lettor: bert secdde en ce temps au rang de valeur culture majeure on mé me femps que la qualté d'écrivain ecedde au rang de tie de dignié ‘Comunicagées do PPGAS, 1 as Ne pouse étre dlstingud comme tel que celui qui aure pis le risque do Sexposer eu jugement public, do mettre son nom on jou sur fo marché litérae. (WALA, 1985:278) Da, portanto, a fort selagéo daquoles que tém acasso a essa condligdo. € noses Spoca também que Viela loostiza 0 Inicio da omanclpagéo da literatura, que, aposar de constar nos dicionaios como sinBnimo do ~coutina’ @ “aucigio" ~ Iso ¢, sabor daqueles que fee muito e muito setveram das leturas; ‘saber dos letrados, enfim - comega a aproximarse des. belles Latves, em oposigéo &s Letras savantes. Entretanto, essa mutagao iniciada em meados do século XVII nao deve levar-nos a infos a existéncia do “ierériot na socladede cléssica: 0 autor subi ‘nha que sua auionomla estava apenas so esbocande, ne conjunto do confitos @ eleos da um movimento que s6 seria consumado no século seguinte. A produgéo “iterélat do século XVI ainda seria marcada pela ambigbidede da due piicidade © da ‘consegragdo confiscade’, ou seja, @ consagragéo do escrtor coniiscada pelo Estadio, a cansura e cooplagdes dversas ‘Uma segunda inierpretagdo do rascimento da literatura ~ @ de Foucault ~ situa esse momento ainda mais proximo do nés, especticamante no século XK, colncidenie com © que, para esie autor, foi 0 surgimorto do “homer (FOUGAULT, 1986, passin) {..) depuis Dente, dopuis Homére, il a bien existé dans le monde cock? dontal une forma de langage que nous auttes maintenant nous sppelons ‘itéretwe Mais le mot est de trache dato, comme ost résent aussi dans notre cufure solement d'un langage singulier dont la medalité propro est tro “trav, Crest qu’au début du XD eldcle, & Tépoque ou fe lan gage s‘anfongait dans son Spelsseur dTobjet ot 0 lelseat, de part on Port, raverser par un savoir, il $e reconstiult alleue, sous une forme ire dépendenie (.) tout entire réfréo & Tacte pur d'Sorke. (312) ‘A Iteratura. assim terla surgido como a principal compensaczo 30 rive: lamento da tinguagem ~ @ aqui o nivelamento correspond a sua tragmentacéo fem dominios como filologia, formalismo, exegese © a propria literatura - 0 qual, apeear do comolhanta 20 cofacolsmento ocorrido com a histéxia natural @ andlse das riquezas, diferencia-se destes umes por impedir elguma forma do reagiupamento: pare Foucault, a unidade da linguagom fol impossivel de ser restaurada, E sua fragmentago em dominios midtiplos, tornendo-se objeto de onnecimento, é, para 0 autor, aquilo que permitiu o aparecimento do "homemn* ‘como objeto diticl @ sujeto soberano de todo conhecin.anto. Sendo assim, pa- fa Foucault, a literatura @ © homem S80 costéneos; 0 uhimo tendo surgido do nivelamento da linguagem e a primeira, como compensagéo desse nivelamento. Retenhamos, por ora, esta coincidéncia, para acresceniar esta interpreta: (40 & teflaxéo sobre 0 “nascimento da iteratura. Com efoto, a opitiao de Fou- ‘cault, epeser de percorter um caminho diverso do de Vala ¢ de suger um marco mais recente para a consitigao do ‘itera’, reforga a idéia de que, 60 ‘@ ‘modernidade" pods no deter exclusivamonto a *patornidadet da Meratura, 20 menos @ nela que nossa represantagao do "Iterério' se consurstancla, colnck Pa ALBERT, Verena. "No Giro do Coleidoscépio" indo com aquilo que, sogundo Benjamin, caracterizarla o romance: © Indi. ‘duo-sujeto da crlaggo, 0 lio @ © lelfor am sua solido (am oposigao & narra ‘G80, que se atualza no ouvinie, prescindindo do lio @ da solidéo da leur). E, além disso e particularmerte, uma ‘nova’ modalidade de oriagao, cvja espe- cofickiade 6 dada pela etualvagio de ume “inguagem’ singular, @ Ierérl, fazendo ds seu autor um escittor. 'A oposiggo entre narraggo © romance desenvolvide por Benjamin sugs- fe uma correlagéo do tipo narfagao : sociedade :: romance : individuo, na me- dida em que 0 romance, 20 contrério da narragéo, seria © lugar do indviduo revelar-se independente de uma sociedade que (n)forma, aconselha, cifunde resguarda a tradigéo. O romencista, condicionado pelo contexto histérico em ‘que surgi, néo poderia falar do outta coisa a ndo ser de sua desorentagto; a socledade, os acontacimentos épicos, 03 conselnos, tendo passado para @ 0s- fera publica da impronsa. Sate-se, contudo, que a socledade @ também uma ds “ctiagdes' da modernidads, constiuida a partir da Idéla de um “contrato so- cia entra individuos iguais @ autdnomos, difsrenciando-se assim, como socie- tas, da universiias, modelo de sociedade derivada do principio de hierarqula (CASTRO & ARALJO, 1977:138). Sendo assim, num primeira nivel, néo 6 pos- sivel pensar o individuo como oposto & sociedade, uma vez que tal ‘contrato” ppressupe sua existéncia e autonomia anteriores, sendo firmado com base nos direitos © deveres dos indivicuos como sujetos morais e poiticos. Entretanto, ‘como bem mastram Vivir do Castro & Araujo no artigo ctado, ao lado do ser moral aut6nomo, signatério do contrato social, a modemidade também cla © individuo nico @ singular, 0 ser psicolégico, que “aparece quando 0 soclal passa a ser visto como estatal, 0 oficia, 0 central, aquilo que & essenciaimente exterior & dimanséo interna dos individuos, onde 0 que reinaria 6 0 amor @ sentimentos semelhantes" (161), permitindo-nos, entéo, num segundo nivel, falar de oposigéo entre individuo @ sooiedade, E om grande parte a este ‘individuo que se pode relacionar o espago da iteraturei na modernidade; @ no s6 dela, como também da arte como um todo, da genialidace e da loucura. O génio, 0 IouX°o, 0 artista @ 0 escrttor des- tacam-se, por assim dizer, de ‘lodo* social @ podem falar além dele, fora dat prnclpalmente, com mais ‘sabedoria, com mals “razéo", com mais “originalidade’, do que os individuos comuns. Se, num primeico movimento, consituem expressées de um ‘desvio" & norma nfo se pode esquecer que es- se mesmo “desvio" vem acompanhado de clevada valorizagéo em nossa culty: a, que, eo mesmo tempo em que prvlegia a sogmentagso/indlviduaizagao, pa- radoxalmenio promove o ‘phralsmo" — a “elternativat, a “mudanga cultura’, @ “diterengat — para preserar 0 valor encompassador do individualismo (QUARTE, 19836:8 © 12). (© ‘espago da literatura, da criagéo Weréria, em nossa cultura, entéo, ‘encontrarla paralelo com aquio que contere a0 individuo lugar especial e priv- legiado, destacado da sociedade, enquanto ser nico @ singuler, Endo é em ‘outta diregéo quo caminham algumas das idéias sobre a arto de escrever da modernidade: ctiago solitérla envolvendo uma "psicologia" dos personagens @ ‘uma ‘psicologiat do eutor, axada sobre o terna da ‘inspiragéo Intima, devendo Comunieagées do PPGAS, 1 a brotar das profundazas do individuo-autor (DUARTE, 1983b: espaciticamente, uma Hnguagem propria ao individuo criader (2, portanto, con- trarla_& norma), de fungao expressiva (e nao estitamente comunicativa), onde: se priviegia a polissemnia (em detrimento da ciareza) @ efeitcs de deslocamanto; finguagem esta que por muito tempo foi associada & ‘conolagéo’, em oposig&o a “denotagéo’, ulllzada na comunicagéo coticiana, néo ‘pottica’, da sociedade (UMA, 1973:3), Assim, além do soltaria e inima, 6 também na sua especttick dade — 0 dominio da linguagem — qua a arte de escrever, tal qual concebida ‘em nossa cultura, revela Seu ancoramento a0 primelfo terme da dicotomia Inc Viduo versus sociedade, E, s@ formos um pouco aclante, veremos que, se no “individuo" (sulel- to crlador ou sujeto leit) que a Iteratura se consubstancia, 6 nele também que ela péra, ou seja: se 0 desvio 6 valorizado enquarto ‘manifestagéo da individualidade Gnica em sua plenitude, 86 0 4 enquanto Imitedo & dimenséo individual; enquanto esctitor @ sociedade pastiharem "da mesma conviogdo quanto & ‘normalidade’ néo-postico, isto 6, da sociedade(LIMA, 1973:7) @ criago litera no incidir sobre cbjetos “dotados de poréncia’ modiicador (ibidem). Assim, uma vez valorizada @ enquadiada como desvio, a Iiteratura ‘adguire legtimidade propria que the confere plena liberdade de ctiagdo, onde tudo se toma possivel — jé nao tem “responsabildade social” 8 pode, por ISSO mesmo @ nestes limites, ravelar & socledade sua loucura, propor quesioes, per- mitindo © prazer na duvida (LIMA,1972-65; 1984a:71): “Discurso do desvio, por exceléncla (..), @ leratura pode s8-to sob 0 prego de nunca se tomar o discurso da socledade." (LIMA, 197265). E, mais uma vez, vetifica-se como fespago da iteretura na modernidade faz pesar 0 primsiro termo da. dicotomia Individuo versus sociedada, a ele alinhando-se. AA roflexéio emproendida até aqui sobre 0 espago da Iteratura na moder- nidade permit incontiicar esse espago com aquele corferido ao individuo tinico @ singular, 0 sujeto pslcolégico, que se configurou juntamente com os sujeites politico @ morel no .contexto espectico a nossa cultura, Assim, 6 80 indlviduo unico, soltérlo, exteror @ 20 mesmo torpo acima da sociedade, que 186 pode relacionar a lteratura — 0 escrtor, o lator a propria criagéo ~ enquanto expressao desviante @ live, ndo mais narrago de Informagdes @ da tradigéo, mas criagéo fatima de possiblidades Incomensurévels; néo mals *res- ponsabildade social’, @ sim luger da quastéo @ da duvida, a ter6 sido posstvel verticar que esta “individuo" em questo 6 equele que dive, com seu "homénimo" ‘quanttetivo', os bastidores dos “paracoxos" da modemidade. Ou seja, estamos nos reportando no ao individuo "igual pe- rante todos’, signatério do "pacto social’, ¢ sim aquele que é particular em sua aiferenga (Cr. SIMMEL, 1976). € claro que ambos séo coetinaos — e dal a “oraga" 6 jusliicativa do paradoxo — @ nao podemos nos referir um sem Imencionar seu complemento (de que inclusive nos servimos para defini o primolro). 0 que Importa registrar aqui 6 que tal “indiiduo’ — @ talver, como tencionamos, & prépria literatura ~ consttul 0 espago da “otaidade’ em nossa, cutura. 38 ALBERTI, Verens, "No Giro do Caleidoscdpio" Fol principalmente a partir da obra de Louis Dumont, fortemente inspira- da_no trabalho pionelro de Marcel Mauss, que a antropologia social e outras isciplinas das ciéncias humanas atentaram para especticidede da identidads da pessoa na cultura ocidental moderne, marcada pela idéia de individuo inde- pendente @ aul6nomo, Surgia entéo a necessidade de distinguir entre duss no- ‘468s de Indlviduo: 0 ser empitico, membro da espécie humana, encontrado em todas as sociedades, @ © individuo enquanto valor, sustentado pelos ideals de Fiberdade e igualdade préprios & modemidade. Esto ultimo distingula-se, entéo, da pessoa enquanto categoria de identidade prépria a culturas hollstas, nas quais predominavam a hierarquia 8 a diferenca. No pensamento dumontiano, a categoria "valor vincula-se estreitamente & hlererquia, na medida em que 6 0 valor que faz a diferenga entre dois ou mais termos numa rolagdo hierérquica (Ct. DUARTE, 1986:40-52). O exermplo mals conhecido desea relagSo seria o da hierarquia entre a mao direita 6 a mao esquerda (estudado por ‘HERTZ, 1960, @ DUMONT, 1983): @ relagao entre ambes 83 mos néo 6 uma rela¢ao do igualdade & que depois seria acrescido tum valor, tomendo-a hierdrquica; a0 contrério, © valor ja nasce junto com as maos © a relacdo entro as duas @ de "antemdo" marcada pelo encompassa- mento da esquorda pola ciroita. Assim, 0 valor, em Dumont, ¢ 0 que funda a folagio hierérquica, 2 qual, no entanto, tendemos a desconsiderar em virtude da facionalidada formal propria & modemidade: as Invés de hierarquia, pressu- pomos a igualdade; ao invés do valor, pressupomos a existéncia do fato, da natureza’, que garante a igualdade primeira entre mao diceita e mao esquerda. Entretanto, apesar do nossa racionalidads excluir hierarquia @ valor, para- doxaimente 6 possivel referi-se a um valor individuo em uma cultura onde o que se pressupde 6 ola sor um fato que mantém uma relagéo de igualdade ‘com outros fatos iguals a ole, E provavelmente em virtuds dessa racionalidade formal, que nos condiciona a separar fato de valor, que se toma dificil conside- rar que com 0 nascimanto do "individuo’ ccidental moderno deu-se a mesma colsa que com as macs direita @ esquerda: ele [4 nasceu como valor encom- passador, apasar de fimado na igualdade; como totaiizador, apesar de nivelado @ fragmentado, Assim, temos, em nossa cultura, ‘come ‘totalidade’justamente um principio que a nega: como valor encom- ppassedor fstamente o que segminta, prvaza, indvidualze, © como reli (930, justamonto 0 que eecular2e, des-magiciza, racionalize. (DUARTE, 1980.) Em seu estudo sobre 0 amor 9 0 poder na cutura ccideatal modema, CASTRO & ARALJO (1977) sublinham o carter tolaizador do primeiro, no que diz respato 20 individuo, jf qua, s@ por um lado, exprime a liberdade individual frente & l6gica: social, de outro, 6 carregado de atributos totalizedoras como 0 destino ou leis psicoldgicas, que sugerom uma l6gica céemica a que estara submelido. Os estudos de DUARTE (1983a, 19830, 1983c) nos levam gualmen- te na mesma dlegéo, aponiando para a totalizago do Individuo moderno, operada pola psicandiise, © manismo, a ressacralizagao da_memésia, num Comunicagses do PPGAS, 1 » movimento que tende a reotalzar 0 fragmentado © 0 nivelado. Assim, por fexemplo, 86 a linearizagao do tempo (0, portanto, seu nivelamento) remete a sua Infnitude, nun movimento Inverso 1 Vide do cada sujeilo passa @ eet medida ne linha da fleche que passa {2 conatuir um mlorostempe fundamental, espetho © demonstragto de sua fealdade eésmica. O que s6 se compreande totalmente na medida em ‘que 0 priprio indvidue passou a ser um microunivereo, sujeto absoluto ‘8 auténomo, am toino de cujos etibutos se passa a ver, por exemplo, ‘movida Histéria. (DUARTE, 1983b:37) © individu moderne constituria entéo uma compensagao totaizadora & fragmentagéo © a0 nivelamenio deodos oss dominios, o lugar da unidade, do todo © do valor, em oposigéo & segmentagéo, & igualdade @ ao fato, com que ‘aprendamos a conceber 0 mundo. , 80 possivel reconhecer neste “Individuot o espago da totaidede em nossa cultura, acreditamos poder avangar um pouco ® supor que tal espago ‘soja também ocupado pela leratura. Em primeico lugar, por constitu uma das modelidades de expresso © operagéo daquela totaidade: soja porque, no pro- asso de criagdo, 0 sscritor procure, em seu “foro Intimo", na completude da solidéo, uma léglea césmica que feuna ao mesmo tempo sua experiéncia de vida, @ experiéncia do mundo @ 0 incomensurével, dando-ine sentido @ conte ‘indo uma totaidade propria aqulo que antes parecia fragmentado; sela porque uma totalzagéo semetnante operada pelo leltor, na solidéo da lel paitir do uma expariéncia de vida distita; sela porque @ prépria obra impressa, independente @ softéria, quarde om si uma tolalidade secreta, 6 possivel identi- flcar na Iteratura uma vonteds de totaizacéo, articulada @ andloga aquala quo se deposta no individuo enquanto valet. Em segundo lugar, porque néo deve ser por acaso que conferimos & Iteratura aributos “sagrados", emprestados portanto 20 dominio da religao, “ow tegorla de nossa cuffura segmentada com que procur[amos] entender 0 espa- 0 da tolalidade’ (DUARTE, 19838:5). © escritor tocado pola inspiragéo atings tum estado sublime, pura lavtago do espiito, a que o leltor ¢ também lavado, uma espécie de sagracao purlicadora do que nele h4 de mals intimo, Nesse culto' a que chamamos fiteretura, a obra Wteréria se consagre, transforma-se ‘om uma espécie de ‘esciitura’, @ 0 escitor, assim como os deuses, tomna-se tum Imortal, porque detém, indecitrével, um dom especial: fla [@ crlagho anistios] néo so teduz (.) & uma trensctigéo dos aspectos fermais ou formalizados da experiénsla do vida do artiste, ela se onrique- ce da expresséo de slguma qualidade impslpével, sobre cujas caracterst- tas tantes se deterBo, ansiceoe da dlasocagio dosso roviduo eagrado da Ingplagso (.). (QUARTE, 1983b:43; gfifo meu) E, 80 tomermes um exemplo apenas de como a teretura pode ser con- ccobida na elexéo garal sobra a modernidede, veremos como so ihe atibul uma capacidade de totaizagio muito mals abrangente @ ampla do que alé aqui fol sugerido. Este exemplo, vamos enconté-o em Foucault, para quem a « ALBERTI, Verena, "No Giro do Caleidescipio" iterate 6 potencialmente aquilo quo pode operar a transtormagao da episteme moderna. \J4 ma refer 20 contexto no qual Foucault siuou © nascimento da. itera: tura: de uma fragmentagdo da linguagem, surgiam seus dominios miiipios, Gontwe clas a lnguagem Ieréria; sendo esse nivelamento responsével palo aparecimento do *homam no inicio do século XIX, H4 aqui duas indicagoes a roter para compreender de que forma & interpretagéo de Foucault daposta na leraura. um potencial totaizador. 0 nivelamento da inguagam e © nascimento 0 "homem Com rolagdo & primeira, a Iteratura sora @ mals importante compensa: ‘go para a fragmontaggo entéo instaurada, consttuindo uma espécie de *conte- ‘lscurso' para contrabalengar 0 funcionamento signifcativo da linguagem, inettuido desde 0 século XVII, quando as palavies se sepererem das coisas @ nguagem tomou-se um caso particular da representagéo, consttvindo-se ‘aperas como discurso. O lugar da itratura na rmodemidace nao estaria entéo anceiado a uma teoria da signiicegdo (como eslava na época cléssica), e. sim, ccom alguma ateragéo, 20 ate vif du langage da Renascenga, em que a siii- tude © as ‘marcas (signature) permitiam que os nomes estivessem deposiiados sobre aquilo que designavam (FOUCAULT, 1966, passim; especialmente p. 51, 58 € 59). Componsagso do esfacolamento da linguagem no momento em que foi tomada como objeto, a Heratura constuia entéo 0 lugar de sua “reunifica ‘¢8o", 0 lugar onde a inguagem fala de si mesmo e dé relavo a seu ser [Au moment ou le langage, comme parole répandue, cevient objet de ‘connaissance, voll quil rbapparelt sous une modalité strictement opposéa: tiloncieuee, precaitionnause dépostion du mot sur In blancheur d'un pepier, ou i'ne peut avok ni sonorté ni interlocuteur, ou it n'a ten dau: fre a dre que so), on dautre a fire que scintiler das Téclat de son te. (919) Assim, do ponto de vista da linguagem, 6 possivel dizer quo a iiteratu- ra, para Foucaul, se reveste do um caidtor totalzador, compensando @ ragmentagso daquala. Ja no que diz respeto ao nascimento do "homer, 0 catéler totalizedor da lteratura, tem Implicaeoes externas a dominio da Inguagem @ pods resuttar ra tanstormagao da episteme moderna, Para Foucaut, foi apenas no final do século XIX, ou mesmo no inicio do séoulo XX, que a linguagem voliou a ser ‘objeto da flosofia, surgindo como uma multipicidade enigmética que era preci- so administrer @ tentar reunificar (idem'316); tarefa que Nietzsche teria iniclado ra flosofia; Mallarmé, Artaud @ Roussel, na literatura, © @ que a lingilstica também se vollave, revelando-se assim imporativa, no contexto estrte da experi- énoia contemporanea, @ pergunia sobre O que Soria a linguagem em seu ser (iden:394-8). Essa recondugao viclenta do pensamento contemporéneo em cire- {go & Iinguagem em sl, a seu ser tnico @ dif, apesar de constiur questéo de astatuto ainda obscuro (:317), estaria anunciando, para Foucault, uma nova, corriguragéo, que ainda néo podemos pensar, mas na qual ja se pode visium- bar 0 desaparecimento do "homem ‘Comunicaghes do FPGAS, 1 a

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