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AQUISIGAO DA LINGUAGEM SCARPA, Ester Mirian: Aquisic#o da Linguagem. In.: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdugéo & linguistica: dominios e fronteiras. Sdo Paulo: Cortez, 2001. pag. 203-232. Contetido 1. AQUISIGAO DA LINGUAGEM: BREVISSIMO HISTORICO E ABRANGENCIA crm ot 2. TEMAS E ABORDAGENS TEGRICAS SOBRE A AQUISICAO DA LINGUAGEM 3 2.1. 0 velho debate pendular sobre nature (natureza) versus nurture (criago, ambiente). O inato © © adquirido. O biolégico ¢ o social 2.2. 0 cognitivismo construtivi Piaget, Vygotsky... 2.3.0 interacionismo social. 3. AQUESTAO DO “PERIODO CRITICO" 12 4, ESTAGIOS DE DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 15 5, ALGUMAS CONCLUSOES... 18 1. AQUISICAO DA LINGUAGEM: BREVISSIMO HISTORICO E ABRANGENCIA AA linguagem da crianga sempre provocou especulacdes diversas entre leigos ou estudiosos do assunto. Seja essa linguagem a manifestaco imperfeita de um ser incompleto, seja @ expresso primitiva da palavra de Deus, o fato € que relatos mais ou menos esparsos, porém constantes, tém sido registrados ao longo dos séculos e chegaram até nés, Tais relatos dizem respeito as primeiras palavras emitidas pelas criangas, ou a que condigSes a crianca deveria ser exposta para aprender a falaf’ Herédoto, por exemplo, narra que, no século Vil a.C, 0 rei Psamético do Egito ordenou que duas criangas fossem confinadas desde 0 nascimento até a idade de dois anos, sem convivio com outros seres humanos, a fim de se observarem as manifestacdes “linguifsticas" produzidas em contexto de privacdo interativa. Sua hipétese era que, se uma crianga fosse criada sem exposicdo & fala humana, a primeira palavra que emitisse espontaneamente pertenceria & lingua mais antiga do mundo. Ao cabo de dois anos de total isolamento, as criangas emitiram uma sequéncia fénica interpretada como "bekos", palavra frigia para "po". Concluiu, entéo, que a lingua que 0 povo frigio falava era mais antiga que a tios egipcios. Estudos sisteméticos sobre o que a crianga aprende e como adquire a linguagem, porém, foram feitos, como tais, apenas mais recentemente, Desde o século XIX, alguns lingiiistas, guiados tanto por interesse paterno quanto profissional, elaboraram didrios da fala esponténes de seus filhos. Algumas das amostras mais abrangentes da fala infantil foram registradas nas primeiras décadas deste século pelos chamados "diaristas", que eram linglistas ou fildlogos estudando seus préprios filhos. Os mais interessante deles s80 um estudo do francés por Antoine Grégoire, um 1 sobre a aquisico bilingtie alemao-inglés de Werner Leopold (1939), além do trabalho de Lewis (1936), sobre a descrig&o de uma crianga aprendendo o inglés. S40 trabalhos descritivos e mais ou menos intuitivos, que, ao contrario das pesquisas aquisicionais das Ultimas décadas, no se voltam & procura, nos dados da crianca, de evidéncia em prol de alguma teoria lingUistica ou psicolégica, embora se insiram nas teorias lingUisticas e psicolégicas da época (como o de Lewis, com tendéncia behaviorista). Esses trabalhos so do tipo longitudinal, uma das metodologias de pesquisa com dados de desenvolvimento hoje jé bem estabelecidos, iniciada exatamente pelos diaristas, Trata-se do estudo que acompanha o desenvolvimento da linguagem de uma crianga ao longo do tempo. As anotages, em forma de didrio, do que a crianga diz, em situagio naturalistica (isto é, em ambiente natural, em atividades cotidianas), foram posteriormente substituidas por registros em fitas magnéticas, cm audio ou video. Assim, grava-se a fala de uma crianca por um periodo de tempo preestabelecido (por exemplo: meia hora, 40 minutos, 1 hora etc), em intervalos regulares (sessdes semanais, quinzenas, mensais etc), dependendo do tema a ser pesquisado. Esse material é posteriormente transcrito da maneira mais apropriada para a pesquisa em pauta (transcric&o fonética, prosédica, cursiva, codificada segundo orientacdes sintaticas, semanticas etc). A suposigio que. registrando-se uma quantidade razodvel da fala da crianga de cada vez. pode-se ter uma amostra bastante representativa para se estudar como o conhecimento da lingua pela crianga é adquirido e/ou como muda no tempo. A partir da metade dos anos 1980, bancos de dados da fala de vérias criangas do mundo todo tém sido formados, seguindo codificacdes informatizadas. Uma outra metodologia de pesquisa em aquisicéo da linguagem, a de tipo transversal, baseia-se no registro de um numero relativamente grande de sujeitos, muitas vezes clasificados por faixas etérias. Embora ndo exclusivamente, @ pesquisa de tipo transversal geralmente também é do tipo experimental (por oposic&o a naturalistico), em que 0s fatores ¢ as varidveis intervenientes no fato analisado so isolados & controlados e depois testados. Dados naturalisticos destinam-se sobretudo a anélise da produgéo; os experimentais prestam-se mais a observagao e analise da percep¢o, compreensdo € processamento da linguagem pela crianca. De qualquer maneira, deve-se sempre ter cuidado com a visdo ingénua de que os dados aquisicionais "falam’. A metodologia adotada ¢ a propria selecdo dos dados dependem da postura tedrice que norteia a pesquisa. A Aguisicfo da Linguagem ¢, pelas suas indagacées, uma drea hibrida, heterogénea ou multidisciplinar. No meio do caminho entre teorias linglisticas e psicologicas, tem sido tributaria das indagacdes advindas da Psicologia (do Comportamento, do Desenvolvimento, Cognitiva, entre outras tendéncias) e da Linguistica, No entanto, na contraméo, as questdes suscitadas pela Aquisicéo da Linguagem, bem como os problemas metodoldgicos e tedricos colocados pelos préprios dados aquisicionais, tém, no raro, levado tanto a Psicologia (sobretudo a Cognitiva) como a propria Linguistica a se repensarem ca se renovarem. Por isso é que se diz que a Aquisiclo da Linguagem tem sido uma arena privilegiada de discussio tedrica tanto da Lingliistica quanto da Psicologia Cognitiva’. Hoje em dia, a AquisicSo da Linguagem alimenta os topicos recobertos pela Psicolingliistica,’ além de ser de interesse central nas ciéncias cognitivas e mesmo nas teorias lingUisticas, sobretudo nas de inspiragdo gerativista, como veremos mais detidamente adiante. A érea recobre muitas subéreas. cada uma formando um campo préprio de estudos. Eis algumas dels: a) aquisi¢Go da lingua materna, tanto normal quanto “com desvios", recobrindo 05 componentes "tradicionais" dos estudos da linguagem, como fonologia, seméntica e pragmatica, sintaxe e morfologia, aspectos comunicativos, interativos ¢ discursivos* da aquisigo da lingua materna. Sob a égide de "desvios", contam-se: aquisic8o da linguagem em surdos, desvios articulatérios, retardos mentais e especificos da lin- guagem etc; b) aquisigdo de segunda lingua, quer como bilingiismo infantil ou cultural, quer na verificaglo dos processos pelos quais se dé @ aquisi¢fo de segunda lingua entre adultos e criangas, seja em situaggo formal escolar, seja informal de imerséo lingtistica; ©) aquisi¢éo da escrita, letramento, processos de alfabetizago, relacdo entre a fala e a escrita, entre o sujeito e a escrita nesse processo etc. 2. TEMAS E ABORDAGENS TEORICAS SOBRE A AQUISICAO DA LINGUAGEM 2.1. Ovelho debate pendular sobre nature (natureza) versus nurture (erlago, ambiente). 0 ineto € 0 lagico e 0 social Os estudos sobre processos e mecanismos de aquisi¢do da linguagem tomaram um grande impulso a partir dos trabalhos do linglista Noam Chomsky, no fim da década de 1950, em reago ao behaviorismo vigente na época. O quadro cientifico era na época dominado pela corrente behaviorista ou ambientalista, dominante exatamente nas teorias de aprendizagem. A aprendizagem da linguagem seria fator de exposic#o a0 meio e decorrente de mecanismos comportamentais como reforco, estimulo e resposta. Aprender a lingua materna nao seria diferente, em esséncia, da aquisicSo de outras habilidades e comportamentos, como andar de bicicleta, dangar etc, jd que se trata, ao longo do tempo, do acmulo de comportamentos verbais. Skinner (1957), psicélogo cujo trabalho foi o mais influente no behaviorismo, parte de pressupostos tanto metodolégicos (como énfase na observabilidade de manifestacdes comportamentais, externas, mensuréveis, da aprendizagem) quanto tedrico- epistemolégicos ‘como a premissa da inacessibilidade & mente para se estudar o conhecimento, postura contréria & mentalista e idealista nas ciéncias humanas) & prope, entéo, enquadrar a linguagem (ou "comportamento verbal") na sucesso € contingéncia de mecanismos de estimulo-resposta-reforco, que explicam o condiciona- mento e que esto na base da estrutura do comportamento. Chomsky adota uma postura inatista na consideracio do processo por meio do qual o ser humano adquire a linguagem. A linguagem, especifica da espécie, dotacdo genética e no um conjunto de comportamentos verbais, seria adquirida como resultado do desencadear de um dispositivo inato, inscrito na mente. Tornou-se famosa esta polémica criada pela publicagSo, em 1959, da devastadora resenha, de autoria do entéo jovem Chomsky, do livro Comportamento verbal, de Skinner. Nela, 0 lingiiista posiciona-se contra a visio ambientalista de aprendizagem da linguagem. Chomsky comega por rejeitar a projec3o das evidéncias skinnerianas, provenientes de experimentos laboratoriais com animais, para a linguagem humana, especifica da espécie, resultado de dotacdo genética e inscrita na mente do sujeito falante. E continua argumentando que as estruturas de condicionamento e de aprendizagem, segundo as quais um modelo A é reproduzido, pelo aprendiz, por mecanismos de contingenciamento ou imitac3o, como A’, nem de longe comeca a explicar a complexidade e a sofisticago do conhecimento lingliistico (na primeira verséo da teoria chamado de competéncia linguistica) que tem bases bioldgicas (porque genéticas) e, portanto, universais. Os enunciados produzidos pelo falante e as préprias linguas do mundo séo manifestagdes da faculdade da linguagem. Assim, a crianca que aprende a sua lingua nativa ¢ uma imagem a que Chomsky retorna repetidamente, desde seus primeiros escritos, de maneira que se torne dificil discriminar sua teoria da linguagem de sua visdo da aquisic&o da linguagem. © argumento basico de Chomsky é: num tempo bastante curto (mais ou menos dos 18 aos 24 meses), a crianca, que € exposta normalmente a uma fala precéria, fragmentada, cheia de frases truncadas ou incompletas, 6 capaz de dominar um conjunte complexo de regras ou principios bésicos que constituem a gramatica internalizada do falante. Esse argumento, constantemente reafirmado, é chamado de ;obreza do estimulo". Um mecanismo ou dispositive inato de aquisic&o da linguagem (em inglés, LAD, language acquisition'device), que elabora hipéteses lingiiisticas sobre dados linguisticos primérios (isto é, a lingua a que a crianga estd exposta), gera uma gramatica especifica, que é a gramatica da lingua nativa da crianca, de maneira relativamente facil e com um certo grau de instantaneidade. Isto é, esse mecanismo inato faz "desabrochar" o que "jé esté Id", através da projectio, nos dados do ambiente, de um conhecimento lingiiistico prévio, sintatico por natureza. No bojo de modificagdes e reajustes que a teoria gerativa sofreu num segundo momento, introduzindo a chamada Teoria de Principios e Pardmetros, o argumento da obreza do estimulo" foi retomado e refraseado com uma atitude francamente platoniste ante a linguagem. A "pobreze do estimulo", um dos mais importantes argumentos em pro! do inatismo, vincula-se @ metéfora do problema de Platéo, a0 qual, segundo o lingiiista, filiam-se as questées centrais relativas & linguagem. O problema de Plato coloca-se da seguinte maneira: como € que o ser humano pode saber tonto diante de evidéncias tdo passageiras, engonosos e fragmentérias? Transferindo para a linguagem, essa questao quer dizer que o conhecimento da lingua & muito maior que sua manifestago. Assim, a linguagem esté vinculada a mecanismos inatos da espécie humana e comuns aos membros dessa espécie, dai a idéia de universais lingiiisticos. Esta visio, que coloca a linguagem num dominio cognitivo e biolégico, admite que 0 ser humano vem equipado, no estégio inicial, com uma Gramética Universal (GU), dotada de principios universais pertencentes & faculdade da linguagem, e de parametros "fixados pela experiéncia", isto 6, parametros no-marcados que adquirem seu valor (+ ou -) por meio do contacto com a lingua materna. Essa teoria de aquisigéo tem sido chamada de "principios e parametros" ou "paramétrica". Alguns dos parametros que tém sido estudados sdo: se a lingua opta por sujeito nulo ou por sujeito preenchido, por objeto nulo ou objeto preenchido, pela colocago dos cliticos, pelo tipo de flexéo ou estrutura temética do verbo ete. A separac&o estrita entre conhecimento e uso é decorréncia direta da postulacéo de conhecimento técito, prévio, biolégico, de cunho lingiiistico, in- 4 dependente dos fatores ambientais, culturais, psicoldgicos ou histdrico-sociais determinantes da aquisic&o da lingua materna. Oposto ao "problema de Plato” esté o “problema de Orwell/Freud", apropriado, segundo 0 lingista, para questées sociais, histéricas e politicas, ou para os desdobramentos sécio-histérico-psicanalitico- ideolégicos do uso da linguagem, que fogem & algada da teoria lingtistica. Este “problema de Orwell/Freud” parafraseia-se assim: como pode O ser humano saber téo pouco diante de evidéncias téo ricas e numerosas? Em sume, no proceso de aquisi¢&o da linguagem, @ crianga c exposta a um input (conjunto de sentences ouvides no contexto), sendo o output um sistema de regras para a linguagem do adulto, a gramética de uma determinada lingua. 1, Numa primeira versio da teoria, postulava-se a existéncia de uma série de regras gramaticais, mais um procedimento de avaliac3o e descoberta, presentes no Dispositivo de Aquisigio da Linguagem (LAD); ao confronté-las com 0 input, a crianca escolhe as regras que supostamente fariam parte de sua lingua (Chomsky, 1957, 1965). Num segundo momento, postula-se que @ crianga nasce pré-programada com principios (universais) e um conjunto de parémetros que deverdo ser fixados ou marcados de acordo com os dados da lingua & qual a crianca esta exposta. A crianca no escolhe mais as regras, nesta verséo de principios e parametros, mas valores paramétricos. A que tipo de dados ou a que quantidade de dados lingljsticos a crianca deve ser exposta? Trabalhos recentes (Lightfoot, 1991) afirmam que a crianca precisa ser exposta a uma guantidade relativamente pequena de linguagem, meramente a algum gatilho crucial, como pequenas clausulas simples, a fim de descobrir que caminho sua lingua materna tomou. Uma vez descoberto tal caminho, ela jé sabe, automaticamente, por meio de pré-programaco, um bom tanto sobre como funcionam as linguas daquele tivo. A aprendizibilidade é, assim, uma questo tedrica central da teoria paramétrica de aquisicfo da linguagem. Como é a linguagem aprendivel, se pode sé contar com as migalhas de fala ouvidas pelas criangas, que no fornecem pistas suficientes para o estado final da lingua a ser aprendida? Este também chamado de "problema légico da aquisicgo da linguagem": como, logicamente, as criangas adquirem uma lingua se néo tém informacéo suficiente para a tarefa? A resposta logica ¢ que trazem uma enorme quantidade de informacdes a que Chomsky chama de Gramatica Universal (GU), que é "uma caracterizaco destes principios inatos, biologicamente determinados, que constituem o componente da mente humana — a faculdade da linguagem”. Deve ainda ser lembrado que. de acordo com os principios chomskianos, as diferengas entre as linguas do mundo no so assim to grandes do ponto de vista sintatico, gramatical, o que ajuda a explicar o universalismo (Chomsky, 1993). Uma outra decorréncia do inatismo lingulstico ¢ a modularidade cognitiva da aquisi¢&o da linguagem: o mecanismo de aquisiggo da linguagem é especifico dela, néo exibindo interface Sbvia com outros componentes cognitivos ou comportamentals. A relacdo entre a lingua € outros sistemas cognitivos, como a percepcdo, a memoria e a inteligéncia, é indireta, e a aquisic¢8o da linguagem — ou o desencadeamento da Gramética Universal junto com a fixagdo de parametros — nao depende, necessariamente, de outros médulos cognitivos, muito menos de interacao social. As colocagdes inatistas de Chomsky suscitaram uma série de estudos, @ partir dos anos 1960, que se concentraram sobretudo na chamada fase sintética, onde a prioridade de andlise pendeu para 0 estudo da aquisicdo da gramética da crianca por volta do seu segundo ano de vida, quando a crianca jé comeca a produzir enunciados de mais de uma palavra. Tais trabalhos foram criticados e contra-evidenciados por duas vertentes tedricas que, junto com os trabalhos gerativistas, tem norteado os estudos na rea. Sdo elas: 0 cognitivismo construtivista e 0 interacionismo social, que veremos a seguir. 2.2. O cognitivismo construtivista: Piaget, Vygotsky A idéia de que a aquisicao ¢ 0 desenvolvimento da linguagem so derivados do desenvolvimento do raciocinio na crianga contesta a autonomia do chamado meceanismo de aquisicfo da linguegem ou da GU como dominio especifico de conhecimento lingiiistico. Em outras palavras, a aquisic&o da linguagem depende do desenvolvimento da inteligéncia na crianga. A abordagem chamada de cognitivismo construtivista ou epigenético foi desenvolvida com base nos estudos do epistemélogo suigo Jean Piaget, segundo o qual 0 aparecimento da linguagem se dé na superacéo do estagio sensério-motor, por volta dos 18 meses. Neste estégio de desenvolvimento cognitivo, numa espécie de "revolugdo coperniciana”, usando as palavras do préprio Piaget (1979), dé-se 0 desenvolvimento da fung3o simbélica, por meio da qual um significante (ou um sinal) pode representar um objeto significado, além do desenvolvi- mento da representago, pela qual a experiéncia pode ser armazenada ¢ recuperada. Essas duas fungdes esto estreitamente ligadas a outros trés processos que ocorrem concomitantemente e que colaboram para a superacéo do que Piaget chama de "egocentrismo radical", presente no periodo sensdrio-motor, segundo o qual existe "uma indiferenciaggo entre sujeito e objeto ao ponto que o primeiro nao se conhece nem mesmo como fonte de suas acdes". Em outras palavras, 0 autor fala aqui da indiferenciag&o cognitiva entre 0 sujeito e o mundo ou pessoas que o cercam. Estes tras processos so os relacionados a seguir: a) 0 da descentralizagdo das agdes em rela¢3o ao corpo prdprio, isto &, entre sujeito e objeto (ou entre "eu" e"o outro” ou "eu" e"o mundo”); 0 sujeito comeca a se conhecer como fonte ou senhor de seus movimentos; b) © da coordenagSo gradual das ages: "em lugar de continuar cada uma a formar um pequeno todo em si mesmo", elas passam a se, coordenar para constituir uma conexio entre meios e fins; ©) 0 da permanéncia do objeto, segundo o qual o objeto permanece o mesmo € igual a si proprio mesmo quando no esta presente no espaco perceptual da criance. Por meio de (a), (b) e (c], € possivel 0 uso efetivo do simbolo, da representacao de um sinal por outro, de exercer o principio de arbitrariedade do simbolo. A crianca passa, por exemplo, a ser capaz de usar uma caixa de fésforo para “fazer de conta” (representar) que € um caminh&ozinho. Assim também, para a crianga, um objeto, se deslocado do seu campo perceptual, continua existindo (isto é, 0 objeto torna-se permanente). Com a linguagem, © jogo simbélico, a imagem mental, as sucessivas coordenagées entre as acdes e entre estas e 0 sujeito, surge a possibilidade de internalizar conceptualizar as agdes: "... com mais capacidade de se deslocar de A para B, 0 sujeito adquire o poder de representar a si mesmo esse movimento AB e de 6 evocar pelo pensamento outros deslocamentos”. Quando essas conguistas cognitivas se unem, na superacdo da inteligéncia senséria e motora, a caminho da inteligéncia pré-operatéria de fases posteriores, surge @ possibilidade de a crianca adotar os simbolos piiblicos da comunidade mais ampla em lugar de seus significantes pessoais: em outras palavras, a linguagem se torna possivel (jé que a linguagem é entendida, por Piaget, como um sistema simbélico de representacdes), assim como outros aspectos da funco simbdlica geral, como é 0 desenhar, Em contraposicéo ao modelo inatista, a aquisic&o é vista como resultado da interacio entre o ambiente € 0 organismo, através de assimilacdes e acomodacées, responséveis pelo desenvolvimento da inteligéncia em geral, e ndo como resultado do desencadear de um médulo — ou um érgéo — especifico pare a linguagem. Dai se diz que a visdo de Piaget sobre a linguagem é ndo-modularista. Assim também, a viséo behaviorista é rechagada, com a crenca de que as criangas ndo esperam passivamente que 0 conhecimento de qualquer espécie Ihes seja transmitido, As pesquisas de inspirago piagetiana floresceram nas décadas de 1970 e 80. As criticas ao modelo piagetiano, que criaram forga também neste periodo, baseiam-se na interpretacio de que Piaget avaliou mal e subestimou o papel do social e das outras pessoas no desenvolvimento da crianca e que um modelo interativo social se fazia necessério para explicar o desenvolvimento nos primeiros dois anos, modelo esse que desse conta de como a crianca e seu interlocutor exploram os fendmenos fisicos e soci Ai é que surgiram nas elaboracdes tedricas ocidentais, as propostas de Vygotsky para melhor dar conta do alcance social da aquisico da linguagem. Psicélogo soviético, morreu prematuramente em 1934, mas o grosso de sua obra sé comecou a ser amplamente traduzido para o francés e para o inglés a partir dos anos 1960. Sua grande influéncia nos estudos de aquisi¢ao da linguagem comeca efetivamente nos anos 1970, no bojo dos questionamentos ao inatismo chomskiano e como uma alternative ao cognitivismo construtivista piagetiano. De orientagéo construtivista como Piaget, explica, porém, o desenvolvimento da linguagem (e do pensamento) como tendo origens sociais, externas, nas trocas comunicativas entre a crianca e 0 adulto. Tais estruturas construidas socialmente, "externamente", sofreriam, com o tempo (mais ou menos por volta de 2 anos de idade), um movimento de interiorizaczo € de representacdo mental do que antes era social e internalizado. Vygotsky (1984) parte do principio de que os estudiosos separam o estudo da origem e desenvolvimento da fala do estudo da origem do pensamento pratico na crianga. Em outras palavras, 0 estudo do uso dos instrumentos tem sido isolado do uso dos signos. Vygotsky propée, ao contrério, que fala e pensamento prético devem ser estudados sob um mesmo prisma e atribui & atividade simbdlica, viabilizada pele fala, uma fungo organizadora do pensamento: com a ajuda da tala, a crianga comeca a controlar 0 ambiente e 0 préprio comportamento. O poderoso instrumento da linguagem é trazido pelo que chama de internalizago da aco e do dilogo. Vygotsky entende © processo de internalizaggo como uma reconstrucéo interna de uma operacdo externa, mas, diferentemente de Piaget, para a internalizacko de uma operacéo deve concorrer a atividade mediada pelo outro, jd que o sucesso da internalizago vai depender da reac&o de outras pessoas. Assim é que, entre crianga € aco com 0 mundo, existe a mediacéo através do outro. Sdo as seguintes as 1 transformacdes que ocorrem no processo de internalizaga a] uma operacio que, inicialmente, representa uma atividade externa é reconstruida e comega a ocorrer internamente, dai a importancia da atividade simbélica através do uso de signos; b) um proceso interpessoal é transformado num processo intrapessoal: as fungées no desenvolvimento da crianca aparecem primeiro no nivel social e, depois, no individual. Em outras palavras, primeiro entre pessoas (de maneira interpsicclogica) e, depois, no interior da crianga (intrapsicoldgica). Assim, segundo Vygotsky, todas as fungées superiores (meméria légica, formaco de conceitos, entre outras) originam-se das relagdes reais entre as pessoas; ©) a transformagéo de um proceso interpessoal num proceso intrapessoal ¢ resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento, isto é. a histéria das relacdes reais entre as pessoas so constitutivas dos processos de internalizagao. Segundo 0 autor, a internalizac8o das atividades socialmente enraizadas & historicamente desenvolvidas é a principal caracteristica da psicologia humana Os trabalhos de inspiraco vygotskiana entendem a aquisi¢ao da linguagem como um processo pelo qual a crianca se firma como sujeito da linguagem (e néo como aprendiz passive) e pelo qual constréi ao mesmo tempo seu conhecimento do mundo, passando pelo outro. Esses trabalhos tém sido considerados parte do chamado "interacionismo social", que no se esgota nos trabalhos vygotskianos, como veremos a seguir. 2.3. Ointeracionismo social Numa viséo que se distancia em graus variados tanto do cognitivismo piagetiano quanto do inatismo chomskiano, esté o interacionismo dito “social”, Segundo esta postura, passam a ser levados em conta fatores sociais, comunicativos culturais para a aquisi¢do da linguagem. Assim, a interagdo social e a troca comunicativa entre a crianca e seus interlocutores so vistas como pré-requisito basico no desenvolvimento lingtiistico. Segundo essa abordagem, rituais comunicativos pré- verbais preparam e precedem a construcéo da linguagem pela crianca, As caracteristicas da fala do adulto (ou das criancas mais velhas) sdo estudadas e consideradas fundamentais para o desenvolvimento da linguagem na crianca. Alguns estudos demonstram como esquemas de acdo e atencdo partilhadas pela crianca pelo adulto interlocutor-bésico precedem categorias linguisticas. A fala a que a crianga esté exposta (input) é vista como importante fator de aprendizagem da linguagem. A este respeito, uma das questes que se tem colocado é se 0 bebé seré atingido por toda e qualquer amostra linguistica ou manifestacdes lingUfsticas ao seu redor ou se as amostras que iro ter influéncia na aquisi¢lo tem um caréter seletivo. Embora essa questo no tenha ainda tido uma resposta definitiva, as, pesquisas tem apontado para a segunda alternativa: a crianga é afetada pela fala dirigida a ela. A afirmagdo inicial de Chomsky sobre o input degradado, composto de frases truncadas e agramaticais, foi desafiada por pesquisas subseqiientes, abundantes nos anos 1970 e 80, que examinaram dados naturalisticos da fala adulta dirigida crianca 8 (snow, 1978, Bullowa, 1979). Tais estudos apontam, isso sim. para modificagdes que a fala adulta sofre quando dirigida & crianca, em contraposic&o & dirigida ao adulto e a criangas mais velhas, além de caracteristicas especificas de comunicacdo entre adultos e bebés que nada tinham de "agramatical” propriamente, como a hipdtese de "pobreza do estimulo" sugere. Vejamos algumas das caracteristicas mais reportadas na literatura sobre tais "modificacdes" que a fala dirigida & crianca sofre, cm comparacao com a fala dirigida a criangas mais velhas e a adultos. Trata-se de modificagées fonolégicas, morfoldgicas, sintéticas, semAnticas e pragmaticas: a) entonagio "exagerada", reduplicacdes de silabas ("au-au", "papai", "dodéi"), velocidade de fala reduzida, qualidades de voz diferenciadas, tendendo para o "falsetto": b) frases mais curtas e menos complexas: expansées sintaticas a partir de uma palavra dita pela crianca ou "traducdo" de gesto feito por ela; ©) referéncie espacial e temporal voltada para o momento da enunciago; 4d) palavras de contetido lexical mais corriqueiro, mais familiares e freqUentes na rotina cotidiana da crianga; ©) pardfrases, repetigBes ou retomadas das emissdes da crianga. Desde o nascimento, o bebé é mergulhado num universo significativo por seus interlocutores basicos, que atribuem significado e intengo as suas emissdes vocais, gestos, direc&o do olhar. Até mesmo os diversos tipos de choro so "interpretados", ignificados" € "classificados" pelo adulto interlocutor. O bebé é assim, visto como potencial parceiro comunicativo do adulto, que empreende uma "sintonia tina" com as manifestagdes potencialmente comunicativas e significativas da crianga, qualquer que seja seu contetido expressivo (gesto, voz, balbucios, palavras ou frases). Hé um ajuste miituo nas conversagées entre adulto e crianga, de maneira que as vocalizagdes infantis n3o caem num vacuo comunicativo. Segundo Ochs & Schieffelin, os adultos "respondem as agdes de bebés muito pequenos como se fossem intencionalmente direcionadas a eles" e "esta pratica de tratar 0 bebé como um autor corresponde a tratar o bebé como um destinatério, pois os dois papéis combinados instituem 0 bebé como um parceiro conversacional”. Essas caracteristicas foram encontradas numa variedade bastante grande de comunidades culturais ¢ lingiisticas, de tal modo que a concluséo imediata é que so caracteristicas universais. A suposta universalidade da fala modificada adulta dirigida & crianga desencadeou reacdes opostas. Citarei duas delas. A primeira recrudesce o inatismo. Relaciona-se com a retomada, nos anos 90. de interpretagdes que nos anos 1970/80 tinham caréter cultural-comunicativo, mas, desta vez, com roupagem inatista. Assim & que propostas recentes tém visto a universalidade de modulacées de voz da chamada entonacéo "afetiva" (negacio, conforto, privaco, atenc&o) como manifestacdes de comportamentos pré-adaptativos da crianca, numa visdo declaradamente neodarwiniste. Segundo este viséo, a crianca vem pré-programada, devido a processos de seleco natural, a reagir as curvas entonacionais préprias de situacdes de conforto, desconforto, privaciio etc. Tais modulagSes propiciariam a saliéncia prosédica de constituintes gramaticais que seriam, assim, desencadeados (Fernald, 1993). A segunda reacdo desafia a viséio universalista do tipo de interac&o adulto-bebé e explora diferencas culturais de interac#o e de transmiss&o cultural. Trabalhos de campo realizados com comunidades outras que no a branca, classe média, ocidental, mostram diferentes caracteristicas na interac3o adulto-bebé que as até entéo reportadas na literatura. Os trabalhos mais famosos nesta dire¢o so com os maias do grupo quiché da Guatemala (Pye, 1992), com os kaluli, povo de Papua-Nova Guiné (Schieffelin. 1990), e com os samoanos da Samoa Ocidental, na Polinésia (Ochs, 1988). Nessas comunidades, a interag3o verbal entre criangas e adultos minima, isto porque @ crianga n&o tem o papel de destinatério até que consiga pronunciar palavras reconheciveis pela lingua. As vocalizages do bebé so ignoradas pelos adultos e no ha intengdo atribuida elas. Segundo Ochs & Schieffelin (1997), os kaluli adultos ficaram surpresos com o fato de os pais americanos (presentes na comunidade) utilizarem baby talk (fala infantilizada) para as criangas pequenas e se espantaram com © fato de as criancas americanas conseguirem aprender adequadamente uma lingua sendo expostas a amostras "deturpadas” de fala segundo a visdo de sua cultura. Dentro ainda de uma postura oposta ao universalismo da fala dirigida a crianga, @ proposta neodarwinista, exposta anteriormente, também tem sido questionada Cavalcante (1999), replicando os experimentos de Femald em duas diades brasileiras, também contesta a universalidade de marcas vocais interacionais e chega concluséo de que nem as situages de "afetividade" so sempre assim t8o marcadas como a que Fernald encontrou em seus sujeitos interagindo com os respectivos adultos, nem as modulagdes de altura, considerades foneticamente recortadas e universais por Fernald, dos sujeitos brasileiros analisados seguem 0 mesmo padréo de contorno entonacional mostrado pela autora americana. Cavalcante chega igualmente & conclusio de que tracos culturais e discursivos da interacéo adulto-crianca contribuem para marcar linguisticamente as interacdes entre mae e bebé. A meio caminho entre propostas cognitivistas construtivistas (desenvolvimento da inteligéncia — e da linguagem — pela interacdo entre organismo e ambiente) € interacionistas sociais, Bruner (1975) pode nos fornecer um exemplo sobre como a aquisi¢go do sistema de transitividade pode decorrer da construcdo e internalizacdo de estruturas linguisticas a partir da interacdo do bebé com 0 outro e com o mundo fisico, A partir dos 6 meses de idade, 2 crianca e 0 adulto engajam-se cm jogos (empilhar blocos, esconder o rosto atrés de um obstéculo e depois mostrar a face etc.) que patenteiam instancias de atencio partilhada e aco conjunta, Tais esquemas interacionais formam 0 espaco da partilha com o outro, no qual @ crianca vai desenvolver determinadas fungdes, quer lingliisticas, quer comunicativas, primeiro em ivel gestual e depois em nivel verbal. Assim, pode-se tracar uma trajetoria entre a aco conjunta adulto-bebé e o estabelecimento de papéis no discurso € no diélogo (pessoas gramaticais) mais ou menos da seguinte maneira: nos jogos referidos, o adulto instaura a brincadeira enquanto a crianga observa (esconder 0 rosto, por exemplo). Assim, 0 adulto toma o papel do “agente” ou tomador do turno ("eu"), 20 Passo que a crianca funciona como “paciente" e interlocutor ("tu"). Numa etapa posterior, a crianca vai reverter os papéis: tomar a iniciativa de comegar o jogo ou a etapa do jogo, isto é, tomar o papel do “falante”, enquanto o adulto sera o espectador, © “interlocutor”, Esses esquemas gestuais, de inicio, sero lingUisticos quando a crianga tiver meios expressivos para exprimir as funcdes. Essas fungdes primérias tem. 10 além disso, um papel na determinacdo des fungSes gramaticais de agente/acio/paciente, responséveis, segundo modelos funcionalistas de gramatica, pelos sistemas de transitividade nas linguas. Nos jogos descritos, a crianca aprende uma espécie de embrido, na acdo e interacdo, em fases pré-verbais, do que mais tarde emergiré como marcagSo lingtistica. E primeiro "paciente” ou "objeto da aco" pra- ticada pelo adulto, que é, neste momento, “agente” da acdo instaurada por ele préprio, Numa etapa posterior, a estrutura se reverte, com a partilha de papéis: a crianga aprende a ser "agente" da aco conjunta, isto é, da qual participam ela e 0 adulto interlocutor basico. A atengéo partilhada, por sua vez, desenvolveré conceitos como tépico/ comentério, uma das maneiras de expressar sujeito/predicado. O adulto, numa fase pré-verbal, focaliza um ponto de atencdo qualquer, espera que a crianca acompanhe seu foco de atenc&o e comenta sobre ele. Isto é, a crianca participa de esquemas em que se focoliza ou topicaliza para depois se comentar ou predicar. J4 nocées de aco completa ou realizada vs, aco n&o-completada que serdo responsdvels pelas marcagdes de tempo e de aspecto nas linguas, seriam igualmente instauradas em esquemas interativos. Os pontos salientes de um evento sfo sempre marcados lingiiisticamente (pelo adulto) ou vocal ou gestualmente (tanto pelo adulto como pela crianga). O que é gesto ou balbucio da crianga numa situaco de troca comunicativa seré verbal em etapas posteriores, por meio, neste caso de flexiio verbal de tempo e uso de particulas temporais ou aspectuais. Um exemplo corriqueiro é "cai/caiu", que, tanto na fala do adulto, quanto na da crianca observando aces ou eventos ou realizando aces, indica aco incompleta (ou em progresso) ago completada ou presente vs, futuro, As expressées "cai"caiu", quando instauradas, séo "coladas" 4 aco tanto realizada pela crianca quanto pelo interlocutor e posteriormente se inte- gram go sistema temporal e aspectual do verbo ne lingua-alvo. Uma das vertentes do interacionismo social é a que se convencionou chamar de “sociointeracionismo". Propostas sociointeracionistas afirmam que a linguagem é atividade constitutiva do conhecimento do mundo pela crianga. A linguagem é 0 espago em que a crianca se constréi como sujeito; 0 conhecimento do mundo e do outro é, na linguagem, segmentado e incorporado. Linguagem e conhecimento do mundo esto intimamente relacionados e os dois passam pela mediacao do outro, do interlocutor. Os objetos do mundo fisico, os papéis no didlogo e as préprias categorias linguifsticas no existem a priori (isto é, no estao a priori segmentados, conhecidos ou interpretados), mas se instauram através da interacdo dialégica entre a crianca e seu interlocutor bésico, Esta interacdo vai proporcionar, a0 mesmo tempo, a criacéo da crianca e dé préprio interlocutor como sujeitos do didlogo, a segmentaco da acto e dos objetos do mundo fisico sobre 0 quais a crianca vai operat, e a propria construcéo da linguagem, que por si é um objeto sobre o qual a crianga também vai operar. Essa proposta ndo se centraliza sobre o produto linglistico (o que a crianca, de um lado, € a mae, de outro e separadamente, dizem], mas no processo comum aos dois interlocutores. Segundo Lemos (1982), 0 objeto de estudo que se toma é a linguagem enquanto atividade do sujeito. Neste caso, enfrenta-se a indeterminago, a mudanca e a heterogeneidade deste objeto. Os processos dialégicos sao revalorizados. Ha trés processos basicos no didlogo: especularidade (identificacio entre os sinais dos dois interlocutores), complementaridade (incorporacio de parte ou de todo 0 enunciado, ou gesto, do interlocutor e complementacéo criativa) e reversibilidade de papéis (assumir 0 papel do outro e instituir 0 outro como interlocutor). 2.3.4, Facetas atuais do sociointeracionismo Dando continuidade as suas indagacdes sobre como, através da interacéo com © adulto, a crianga chegeria & lingua. Lemos (1992, 1995, 1998, 1999) deu uma direcdo alternativa ao sociointeracionismo presente nos seus escritos até os anos 1980. preferindo, atualmente, chamar sua postura simplesmente de "“interacionista’, Inspirada em leituras de Saussure e do psicanalista Lacan, estuda as relacdes do sujeito com a lingua e questiona as nogdes de desenvolvimento e conhecimento linguistico que tém sido a base das teorias psicolinguisticas, psicoldgicas ¢ linguisticas. Posiciona- se contra a nocéo de conhecimento prépria do “sujeito psicolégico", que esté presente nas noges de desenvolvimento, e de sujeito onisciente, e contra a nogéo de representacao mental, que é a fonte e 0 alvo da aquisic#o do conhecimento linguistico. Assim, recusa-se a ver a aquisi¢éo da linguagem como a aquisi¢éo ou construcéo de conhecimento da lingua, concepg&o consagrada pela expresso “desenvolvimento lingtiistico". A autora ndo mais assume que. num determinado momento, o conhecimento da lingua permite & crianga passai de interpretado a intérprete, da incorporacdo da tala do outro @ assungao da prépria fala, tornando-se, assim, um falante em pleno controle de sua atividade lingiiistica. A presenga de fragmentos da fala do outro na fala da crianga, além de autocorregdes e hesitacdes, nao autoriza, se- gundo a autora, que se fale em "conhecimento pleno da lingua" nem de um estégio estével final. Passa, ento, de uma viséo diacrénica para uma viséo estrutural. £m vez de "construgio" e “desenvolvimento”, entende que a crianca € colocada numa estrutura em que comparece o outro, como instancia representative da lingua, 2 prépria lingua em seu funcionamento e a crianga como sujeito falante. Essa estrutura é a mesma em que se move o adulto, dai que no ha propriamente "desenvolvimento", nem "construgéo". O que identifica as mudancas no processo de aquisic&o séo as diferentes posices da crianga nesta estrutura, ou melhor, as diferentes relagbes do sujeito com a lingua, em que 0 pdlo dominante da estrutura pode ser 0 outro, a lingua ou o préprio sujeito. O leitor & agora convidado a examinar uma ilustrac3o da polémica inato vs. edquirido ou natureza vs. ambiente: a questiio popular e recorrente do periodo critico de aquisic&o da lingua materna e de segunda lingua (L2). Vamos a ela. 3. A QUESTAO DO "PERIODO CRITICO" Todos sabemos como é dificil (tentar) dominar uma segunda lingua em idade adulta, ainda mais em situag&o formal, escolar. Por mais brilhante e esforcado que seja © aprendiz, mesmo que 4 proficiéncia final seja bastante satisfatdria, tanto em termos gramaticais quanto lexicais, e suficiente para atingir plenos objetivos de comunicacéo numa segunda lingua, sempre ficam, na fala do aprendiz, certas construgdes gramaticais malajambradas, erros fossilizados, ou, mais certamente, um sotaque “estranho" aos ouvides dos falantes nativos. Segundo Pinker (1994), 0 sucesso total em aprender uma segunda lingua em idade adulta, ainda mais em situagao de sala de aula, existe, mas é raro e depende de "puro talento". Lenneberg (1967) buscou bases bioldgicas para argumentar em favor do eriodo critico” para a aquisicao da linguagem. Eis suas palavras Entre dois e trés anos de idade, a linguagem emerge através da interacdo entre maturacdo aprendizado pré-programado. Entre os trés anos de idade e a adoles- céncia, a possibilidade de aquisic#o primédria da linguagem continua a ser boa; 0 individuo parece ser mais sensivel a estimulos durante este periodo e preservar uma certa flexibilidade inata para a organizaco de funcdes cerebrais para levar a cabo a complexa integracdo de subprocessos necessérios @ adequada elaboracéo da fala e da linguagem. Depois da puberdade, a capacidade de auto-organizacdo e ajuste as demandas psicolégicas do comportamento verbal declinam rapidamente. O cérebro comporta-se como se tivesse se fixado daguela maneira e as habilidades primarias e bésicas ndo adquitidas até entéo geralmente permanecem deficientes até o fim da vida Pinker (1994) afirma que a aquisicao de uma linguagem normal é garantida até a idade de 6 anos, é comprometida entre 6 até pouco depois da puberdade, e é rara dai para @ frente. Este autor chega a especular que 0 periodo critico se explica por mudangas maturacionais no cérebro, tais como 0 declinio da taxa de metabolismo e do numero de neurénios durante a idade escolar € da diminui¢o do metabolismo e do numero de sinapses cerebrais na adolescéncia, No entanto, nem mesmo essas justificativas biolégicas tém sido explicagdes finais e convincentes para o fenémeno do “periodo critico" de aquisi¢ao. Aitchinson (1989) aponta para a insuficiéncia explicativa dos argumentos arrolados em favor desta hipétese. Pelo menos quatro deles tém sido citados: a) casos de estudos de individuos que foram isolados de qualquer convivio social ou troca lingUistica e adquiriram a linguagem tardiamente; b) © desenvolvimento da fala de criangas com sindrome de Down; ©) a suposta sineronia do periodo critico com a lateralizagao hemisférica; 4) dificuldades de aquisic&o de segunda lingua depois da adolescéncia. Velamos mais detalhadamente cada um deles. Em relagdo as criangas isoladas lingtistica e socialmente, os casos mais conhecidos, reportados neste século, sao de Isabelle, Genie e Chelsea. Isabelle era a filha ilegitima de uma mulher surda e cérebro-lesada com a qual passava a maior parte do tempo, ambas enclausuradas num quarto escuro, na casa de seu avé, no interior do Estado de Ohio. Quando me e filha escaparam da priso domiciliar nos anos 1930, Isabelle tinha 6 anos e meio e no falava; apenas emitia sons guturais. Mas, uma vez resgatada para 0 convivio social, seu progresso na aquisi¢éo da linguagem fol fantéstico: em dois anos e meio, sua linguagem mal se distinguia da de criangas da mesma idade que tiveram condicdes normais de desenvolvimento. Ele dizia, por exemplo: "What did Miss Mason say when you told her | cleaned my classroom?" (0 que a senhorita Mason disse quando vocé Ihe contou que eu limpei minha sala de aula?) Genie, entretanto, nao teve a mesma sorte. Descoberta em 1970, com quase 14 anos, tinha vivido toda sua vida em condigSes sub-humanas. Confinada a um cubiculo desde a idade de 20 meses e agredida fisicamente pelo pai quando emitisse qualquer som, nao falava nada. Apesar de, depois de resgatada, ter aprendido a falar de modo rudimentar, progredia mais lentamente do que uma crianga normal. Eis um exemplo B do que ela conseguia dizer, depois de anos de aprendizado: "Mike paint” (Mike pintar); "Applesauce buy store” (Molho de mac& comprar loja); "Neal come happy. Neal not come sad" (Neal vir contente. Neal no vir triste). Genie demonstrava, porém, grande habilidade em memorizar vocabulério. No entanto, memorizar listas de itens lexicais no é evidéncia de saber falar uma lingua. O caso mais recente foi o de Chelsea, deficiente auditiva, que fora incorretamente diagnosticada como mentalmente retardada e por isso criada numa cidade remota do norte da Califérnia. Aos 31 anos de idade, ela foi encaminhada para um neurologista, cuja primeira providéncie foi instalar um aparelho de audigéo, que fez melhorar muito sua capacidade auditiva. Foi sé ent3o que Chelsea comecou a aprender sua lingua materna, sob tratamento intensive com uma equipe especializada. Ela tem um vocabulério razoavel, Ié, escreve, comunica-se € trabalha, Sua linguagem, porém, ficou "agramatical”. Eis alguns exemplos: "The small a the hat” (O pequeno um o chapéu); "Banana Ihe eat" (Banana a come). Aitchinson (1989) ressalta que tais casos, além de isolados, devem ser tomados com cautela quanto a representarem evidéncia cabal em prol da existéncia de um perfodo critico de aquisicéo da linguagem. E possivel, lembra o autor, que a extrema privacio fisica, comunicativa e emocional de Genie tenha propiciado um certo retardo mental: seu hemisfério esquerdo é levemente atrofiado. Genie c Chelsea tm. portanto, problemas nGo-lingUisticos que podem explicar, pelo menos parcialmente, sua linguagem rudimentar. Em relago ao segundo argumento, é corrente na literatura a afirmago de que as criancas portadoras de sindrome de Down e de Williams seguem as mesmas trilhas na aquisigéo e desenvolvimento da linguagem que criancas néo-portadoras desta deficiéncia, mas muito mais lentamente. O consenso, até pouco tempo atrés, era de que estas pessoas nunca conseguem alcancar a crianca normal porque sua capacidade aquisicional diminui bastante depois da puberdade. Mais recentemente, esta explicacdo tem sido contestada pelo fato de que ha grandes diferencas individuais no desenvolvimento lingiifstico de portadores da sindrome de Down (Camargo & Scarpa, 1996), de tal maneira que hd desde criangas que param num estdgio estavel de aquisicgo bem antes da puberdade até jovens que continuam seu processo de aprendizagem tanto de diferentes modalidades discursivas, como o desenvolvimento de processos bem criativos e auténomos de escrita, J8 em relago ao terceiro ponto, até pouco tempo atrés, achave-se que 0 processo de lateralizag#o cerebral ocorria eproximadamente dos 2 aos 14 anos de idade — periodo este estipulado como coincidente com o "periodo critico" de aquisic&o da linguagem. Pesquisas neurolinguisticas mais recentes, porém, mostram, de um lado, que a lateralizacZo comega na crianga jé a partir de alguns meses de vida Assim, como nao hé evidéncias, em relaglo a este fendmeno, de um suibito comeco do periode critico por volta dos dois anos, também no ha evidéncias cabais de um stibito cessamento deste mesmo fendmeno depois da adolescéncia. Por outro lado. hé cada vez mais evidéncias que contestam a especializac#o hemisférica compartimentada da linguagem. Por Ultimo, um argumento contencioso tem sido a contraposi¢o entre o bilingiiismo infantil, 0 bilinguismo sucessivo na infancia ou adolescéncia € @ aquisicgo de segunda lingua na idade adulta, De acordo com interpretacdes inatistas, o que pode explicar a dificuldade do Ultimo em contraposi¢ao & facilidade e naturalidade dos dois u primeiros seria 0 acesso — ou a falta dele — 4 Gramética Universal por parte do aprendiz. Essa discussdo tem servido de laboratério para teorias de aquisic&o. Apesar de haver discordancias mesmo entre os adeptos da teoria gerativa, uma interpretaco mais ou menos comum é que. nos dois primeiros casos, a GU esta disponivel e dela desenvolvem-se duas ou mais linguas. J a disponibilidade & Gramética Universal nao é to dbvia em casos de aquisicfo de segunda lingua por adultos. Segundo Meisel (1993), a aquisicao de segunda lingua depois da adolescéncia ndo & mais fungo de Gramética Universal, mas é um processo cognitive, de aprendizagem de habilidades. Dai se explicam as fossilizagSes e julgamentos limitados de gramaticalidade. No entanto, explicagées ndo-gerativistas desafiam esta explicacio. A difi- culdade de aquisicéo de segunda lingua depois da adolescéncia tem sido revista e relativizada. Argumentos interacionistas so levantados com relacio as diferencas entre a aquisiclo da lingua materna ou estrangeira na infancia e depois da adolescéncia. Contemplam diferentes fatores interativos e socioculturais de aquisicgo nas duas situacdes, 0 que explicaria a extrema diferenca individual tanto no proceso de aquisigSo de L2 em idade adulta, quanto no alvo a ser atingido: o grau de dominio. do alvo pretendide € muito variado. Fatores interativos também contemplam as modificagées e ajustes da fala simplificada, dirigida ao falante ndo-nativo da lingua. Este tipo de fala (foreigner talk) é igualmente muito variado e de modo algum semelhante aos ajustes da fala dirigida a crianca. Mais recentemente, as diferentes relagBes do sujeito com a lingua na aquisi¢So da lingua materna e na aquisic’o de segunda lingua ou lingua estrangeira também tém side invocadas como explicacéo para os casos em questio. 4, ESTAGIOS DE DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM Antes de qualquer coisa, ¢ preciso que se diga que o conceito de estagio é dinémico e no estético, como aponta Perroni (1994). A autora afirma que a sucesso de estagios no se dé linearmente, e, para descrevé-la, a "metéfora da espiral (é) mais apropriada (...) que a dos degraus de uma longa escada. £ um conceito intrinsecamente ligado ao de desenvolvimento; assim, os estdgios "nao séo pedagos justapostos uns apds os outros, mas cada um se enraiza no outro, precedente, e se prolonga no seguinte”. Dito isso, 0 que segue € uma breve exposicao sobre os estégios de desen- volvimento linguistic por que passa a crianca pré-escoler. Segundo Bates & Goodman (1997), a trajetoria do desenvolvimento da linguagem parece ser, com algumas especificidades, universal e continua. As criancas comecam com balbucio, primeiro com vogais (cerca de 3 a 4 meses, em média), depois com combinacdes de vogais e consoantes de complexidade crescente (geralmente entre 6 e 12 meses). As primeiras palavras emergem entre 10 e 12 meses, em meédia, embora a compreensio de palavras possa comecar algumas semanas antes. Depois disso, as criangas passam varias semanas ou meses produzindo enunciados de uma palavra, No comeco, a taxa de crescimento de seu vocabulério é reduzida, mas hé um stibito acréscimo nela mais ou menos entre 16 e 20 meses. As primeiras combinages de palavras geralmente aparecem entre 18 e 20 meses e. no comeco, tendem a ser telegraficas. Lé pelos 24 a 30 meses, hé outra espécie de exploséo vocabular e aos 3. ou 3 anos e meio, a maioria das criangas normais dominou as estruturas sintaticas Is morfoldgicas de suas linguas maternas. © quadro anterior seria perfeito se n&o fosse t&o polémico e to cheio de contra-exemplos, como as préprias autoras alertam. Para efeito deste texto, porém, vou limitar-me @ apontar alguns aspectos do desenvolvimento da linguagem na crianga, sobretudo baseada num prisma sociointeracionista, que pode acrescentar pelo menos certas nuances no quadro delineado. Desde que nasce, a crianca jé € inserida num mundo simbélico, em que a fala do outro a interpreta e Ihe imprime significado. Por outro lado, segundo alguns trabalhos, com alguns dias de vida, a crianca tem uma reaco positiva aos sons da fala, que Ihe so confortadores e gratificantes. A partir de algumas semanas de vida, @ crianga jé consegue discriminar a fala de outros sons, ritmicos ou ndo. Com 3, 4 meses de idade, os bebés comecam a balbuciar seqiiéncias de sons que se aproximam da fala humana. A fregiiéncia do balbucio aumenta e este comeca a ser cada vez mais padronizado até cerca de 10 meses. O ritmo, a entonacSo, a intensidade, a durac&o da fala, que no inicio s8o assisteméticos, comegam a ser recorrentes e estruturados, As silabas comecam a se estruturar (discriminagdo entre C e V) e se repetem (reduplicac3o). Aparentemente, os sons que a crianga balbucia no comego séo universais: os sons do balbucio inicial no s&o especificos de sua lingua materna. As criancas surdas conseguem balbuciar nesta fase, embora, depois disso, néo acompanhem o desenvolvimento normal da crianca ouvinte. Conforme o balbucio se padroniza, antes do aparecimento das primeiras palavras, a seqiiéncia e 0 acervo de sons passam a se assemelhar mais as caracteristicas fonéticas da lingua materna. Os elementos prosdédicos, como ritmo € entonacio, so bastante salientes tanto na fale da crianca quanto na percepgio que a crianga tem da fala do adulto. So recursos expressivos muito importantes, na falta de recursos léxico-gramaticais do adulto, Varios trabalhos mostram o ajuste miituo entre adulto e crianga nesta fase e 0 papel fundamental que esses elementos prosddicos ai representam. Alguns trabalhos apontam para os processos dielégicos que se instauram jé nesta fase. A contribuico da crianca é gestual e vocal; 2 do adulto, gestual lingiistica, através da aco e atencio partilhadas. Os estudiosos adeptos desta visio afirmam que o adulto interpreta primeiro os gestos da crianga, depois suas manifestacdes vocais, inclusive imprimindo-lhes intenc&o. Dessa maneira, a fala da crianga se enquadra numa interpretac3o dada pela fala do adulto através de seus gestos e sons vocais e 0 préprio adulto se vé "interpretado" pela crianga. Um rapido langar de olhos aos dados de uma interacdo verbal entre adulto e crianga nesta fase mostra os processos de especularidade e complementaridade que perpassam as emissdes de ambos os interlocutores. Exemplo: (1) A crianga estende a m&o para um brinquedo e vocaliza algo; a mae imediatamente interpreta o gesto e a voz da crianca e responde com algo como: O au- aul (nomeando)... K 0 au-au que vocé quer? (enquadrando o turno da crianga em algum significado ou numa cadeia de signos linguisticos). Isto é, a mae parafraseia a suposta intencdo da crianca, por um processo de especularidade e complementa a paréfrase, expandindo seu enunciado. No fim do period do balbucio, comegam @ aparecer na fala da crianca as primeiras palavras reconhecfveis como tais pelo adulto. Para algumas criancas, o balbucio cessa quando as primeiras palavras aparecem, mas outras criancas continuam a produzir sequéncias balbuciadas junto com as palavras. A produgao das primeiras palavras e frases (incorporadas como um bloco do discurso do interlocutor basico) mostra indeterminag3o semidtica (0 mesmo significado pode ser veiculado por um ntimero bastante grande e variado de sinais), fonética (a variagio fonética do sinal c grande) c categoria! (o mesmo significado pode ser expresso por uma boa variedade do que, na lingua adulta, pertenceria a categories diversas). O que também se observa, na transiggo de enunciados de uma ou mais palavras, é a ndo-segmentabilidade de seqiéncias de sons em palavras. Muitas vezes, frases inteiras so incorporadas da linguagem adulta, sem que haja nelas evidéncia de que a crianca analisa o sinal em unidades discretas. {) que acontece é que a crianca incorpora, junto com a seqiiéncia fénica, 0 contexto especifico que deu origem aquele enunciado, como se vé no exemplo a seguir, selecionado da fala de uma crianca de 1; z (2) "Tatente" ("td quente") para denotar café. Assim, as formas maduras aparecem, num primeiro momento, em contexto de especularidade imediata de algum item da fala adulta. Num momento posterior, ou @ forma desaparece paia reaparecer adaptada ao sistema fonolégico da crianga muito tempo depois, ou sua forma “menos madura", varidvel, percorrerd varios meses de mudanca até se tornar estavel. A forma "desviante" indica reorganizacdes que a crianga empreende na sua trajetéria lingiistica Com as primeiras palavras aparece também a flexdo ou a aparente flexio. Digo aparente porque em muitos casos nao hd ainda evidéncia de que realmente as flexdes representam morfemas categoriais ou de classes gramaticais como na linguagem adulta, Exemplo: (3) © possivel sufixo -eu, na fala de uma crianga, por volta de 1 ;7 41:8 endeu" correspondente ao adulto "acendeu", ndo indica pasado, nem pessoa. Pode denotar: (i) anunciar aos presentes que acabou de acender ou apagar a luz ou tocar 4 campainha de um telefone de bringuedo ou que esta prestes a realizar uma dessas aces; portanto, neste caso, denota tanto uma acéo completada quanto a intencéo de realizar uma ago; (ii) pedir a0 adulto que faca uma dessas agdes?(iii) nomeer © feixe de luz que entra pela janela. © que esse exemplo mostra € que n&o se pode considerar a desinéncia - eu como um morfema de tempo e pessoa. Mostra também que o que acontece com o significado nesta fase de aquisic3o é um fenémeno que na literatura é chamado de superextenséo ou supergeneralizagéo, segundo o qual a faixa semantica de uma palavra é alargada a limites muito mais amplos que na linguagem do adulto (é conhecido 0 exemplo, em portugués, da palavra “au-au", cujo sentido abarca pelo menos todos os animais de quatro patas, 0 bichinho de pelticia e a figura de animais) Uma possivel explicac#o para @ superextensdo seméntica € aquela néo restrita as propriedades componenciais do significado da palavra. A crianga incorpora, via especularidade, todo ou parte do enunciado do interlocutor, emitido naquela situaco especifica, Da-se, ent#o, um processo chamado de recontextualizacio, isto é, a 7 extensdo do item em questo para outras interacdes dialégicas, com a recorréncia ou a associagio a outros discursos. Em muitos casos, no ha clara evidéncia, no comeco, de segmentacio ou analise gramatical propriamente dita. A anélise (ou reanilise) se dé num estagio posterior, com a reorganizacio do sistema da crianca, dentro de outros didlogos. Coincidentemente, as primeiras sentencas espontaneas da crianca so jus- taposiges de enunciados monovocabulares (de "uma palavra") que ela produz & maneira de fala telegrafica. Por exemplo, veja a sequéncia de enunciados da fala de uma crianga de 1:10; (4) Babadoi (gravader) Chéo Pée badadoi chao (pe 0 gravador no cho) Os erros ou desvios da norma muitas vezes indicam, segundo alguns estu- diosos, que um proceso de anélise e segmentaco esté se instaurando, pois revelam as hipéteses que a crianca faz sobre o objeto lingUistico. Por exemplo, numa fase posterior a produgio aparentemente "correta" do sufixo verbal de passado, a mesma crianga, com 1;11, produz alguns itens que indicam a adi¢So do sufixo a raizes ndo- verbais. (5) Vai lé (observando 0 pica-pau de brinquedo descendo a haste, bicando-a), Vaild (observando a chegada do pica-pau na base da haste). Guarda (da cama) (observando a mae baixando a guarda da cama). Guardo (emitido apés a completude da aco por parte da mae). A colocagio do morfema fora de seu lugar usual indica que um processo de anélise esté se efetuando e que a crianga reorganiza seu sistema para passar para outros niveis de andlise e aquisicéo. A partir de 2 a 3 anos, a crianca jé comeca a contar histérias. A produg3o do texto narrativo como tal exige descentracéo do contexto original da histéria, capacidade de compreender e expressar sucesso € concatenacéo de eventos (que implica, entre outras coisas, dominar lingiiistica e cognitivamente a categoria tempo), relacdo causai entre eventos e uma provavel gramatica do texto. No comeco, a crianga ainda no domina estas categories — sua aquisi¢ao, de fato, é tardia. O que se dé é a construc&o conjunta de textos, num jogo instaurado pelo adulto € logo incorporado pela crianga, que preenche os arcaboucos ou "esquemas narrativos" subjacentes &s historias ou relatos narrados. A trajetéria para @ aquisicg0, do discurso narrativo é longa: aparentemente, no é antes dos 5 anos que a crianca se torna uma narradora proficiente. © quadro de desenvolvimento linguiistico aqui tragado obedece a uma de- terminada visio do problema, chamado, genericamente, de interacionista. Ob- viamente, 0 quadro seria outro se a interpretacéo seguisse outro programa cientifico ou outro enfoque tedrico. 5. ALGUMAS CONCLUSOES © que vocé leu nas paginas anteriores é apenas a eleico de alguns temas € 0 esboco de algumas posturas tedricas colocadas no campo da investigacSo sobre a aquisigSo da linguagem. Tal selecdo n&o esgota absolutamente a eleic3o de temas, Is metodologias e correntes de pensamentos que acompanham o recorte dos fendmenos que envolvem a area. E preciso, porém, deixar claro que as polémicas que envolvem as grandes questdes da 4rea esto ainda em aberto. Se, por um lado, ¢ pouco afirmar que a aquisicgo da linguagem se restringe a internalizacio de regras fonoldgicas, morfoldgicas, sintaticas, seménticas e pragmaticas da lingua materna do aprendiz, por outro lado é ainda pouco clara a natureza da passagem entre estruturas interativas pré-linguisticas e a gramética adquirida, @ natureza do conhecimento linguistico vinculado ou nfo ao conhecimento do mundo, a dificuldade metodoldgica causada pela falta de transparéncia da fala da crianca (e da prépria fala do interlocutor), entre tantos outros mistérios, Ainda mais, apesar de recentes avancos no estudo do cérebro, pouco se sabe hoje sobre a relacdo entre conexées neurais e 0 uso/conhecimento da linguagem ou sobre a relaco entre mente e cérebro e seu papel nessa aquisic&o. Em outras palavras, 0 desafio ainda continua a ser a relacio entre o inato e 0 adquirido, entre 0 bioldgico € 0 sécio-histérico, entre o lingliistico e 0 extralingliistico, entre o sujeito aprendiz ¢ 0 objeto a ser aprendido. Felizmente, o campo continua aberto a uma gama bem variada de investigacées. Uma coisa € certa, porém: quando vai para a escola, a crianca jé percorreu um longo caminho elaborando sua linguagem, inserindo-se na lingua de sua comunidade. Lingiiisticamente, a crianca no é tabula rasa. Ela € perfeitamente proficiente em sua lingua materna e continua @ aprender outras formas pertencentes a outras modalidades da fala/linguagem, dentro e fora da escola. Isto é, a operar com objetos linguisticos, Assim, a escola vai Ihe proporcionar 0 acesso a outras “gramaticas" pertencentes a modalidades escrites.

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