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gta RESISTENCIAS INDIGENAS, ZONAS AUTONOMAS E OS ESTADOS ARGENTINO E CHILENO Gabriel Passetti Cacique Valentin Saygiieque Mujeres indigenas de la Pampa y ta Patagonia, Buenos Aires: Emecé, 2001, p. 81. 55 Utopias latino-americanas o-americanos no sé- ‘A construcao e a consolidago dos Estados latin povos indigenas culo xix se deram através do contato e do conflito com os pov controladores das terras. Entre os paises da regiao, dois deles no as umam ter associados as suas histérias os povos indigenas: a Argentina co Chile. Este capitulo tem como foco demonstrar como aqueles oe Estados ocuparam e dividiram uma regiao com intensa identidade indigena e ram protagonistas de suas histérias. Ao longo da grandes cacicados se formaram no que Patagénia e Araucania, ¢ ali estabele- conheceram e partici- como aqueles povos for segunda metade do século XIX, costumamos chamar de pampas, ceram tensas ¢ intensas relagdes com os Estados, param da politica e lutaram por suas autonomias e sobrevivéncias. AS SOCIEDADES INDIGENAS NOS PAMPAS E ARAUCANIA E A CONSTRUGAO DO WALL MAPU Desde os tempos pré-coloniais, pessoas, produtos e ideias circula- vam pelo sul da América, conectando a bacia do Prata, a regiao andina ea Patagonia, Caminhos indigenas, as chamadas rastrilladas, uniam di- ferentes povos e proporcionavam as mais amplas trocas e a mobilidade de grupos entre distintas regides.' Os estudos da Antropologia, da Arqueologia ¢ da Etno-hist6ria in- dicam também intensa diversidade de povos e culturas na regiao, geral- mente agrupados a partir de algumas caracteristicas comuns. Na Araucania, povos guerreiros de cultura mapuche resistiram aos avancos dos incas e depois dos espanhdis. Conseguiram garantir suas autonomias e soberanias e constituiram sociedades estruturadas em torno de poderosas chefaturas — os longkos -, habilidosas nas nego- ciag6es internas e com os demais povos, em reunides chamadas pelos espanhdis de parlamentos.? = = ee! = se intensificando os contatos e as mi- Pampas. Nessa regiao, alguns grupos - como os pampas e os quilmes - resistiram e foram combati los espanhdis, dos p en js ip quanto outros se mantiveram mais distantes das cidades ae ’ que iam se estabelecendo, e ainda outros foram se miscige- 0 € se integrando aos sistemas produtivos coloniais. 56 Resisténcias indigenas, = 45 autdnomas © os Estados argentino ¢ chileno Essas interacdes levaram a transformagées nas proprias estruturas sociais, politicas e econdmicas indigenas, com o fortalecimento de re- des comerciais e de trocas entre os diferentes grupos dos pampas, da Araucania ¢ as vilas e cidades dos dois lados da cordilheira. As relagdes de parentesco se expandiram, assim como as miscigenagées, as trocas culturais e a disseminagao do idioma mapuche ~ 0 mapugundum. Esta se tornou lingua franca na imensa area que envolvia a Araucania, parte consideravel dos pampas ¢ a PatagOnia: uma grande zona de trocas e interagdes, 0 Wall Mapu. Regides sob controle indigena e criollo no Wall Mapu ARGENTINA Mengora gan yig lo Cuart Santiago Chile no alLANTICO Felis eteindieas cbs. «180 TI Paros a tne chsee ES bine mpacte Caumen de Patsones © CD Petuerche FEI Coredengi Lennce TE) Cortecerji de Sura Gates Lins cetera SP Rasniaces Fonte: Joxts, Kristine. Warfare, Reorganization, and Readaptation at the Margins of Spanish Rule: The Southern Margin (1573-1882). In: Satowcox, Frank; Sctiwxrz, Stuart B, (ed.). The Cambridge History of the Native Peoples of the Americas, vol. tt, part 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, Adaptado. Os indigenas passaram a incorporar a pecuaria de animais de origem europeia e se tornaram importantes fornecedores, vendendo produgio propria e animais conquistados em invasdes de areas dos criollos (como eram chamados os descendentes de espanhdis nascidos na América). O weichdn (em idioma mapuche) ou malén (em espanhol), como essas invasdes foram chamadas, passou a ter papel central para aquelas so- ciedades. Assim eram reafirmadas as relagGes sociais e suas estruturas e fortalecidas as estruturas politicas dentro dos diferentes grupos étnicos. 57 Utopias latino-americanas Diante de intensos e constantes ataques ¢ pressdes dos criollos ¢ com a ampliagio das redes comerciais, 0s cacicados foram se fortale. cendo a partir da capacidade retérica, oratoria, bélica e politica? As ivis e militares foram uma constante mento indigena das estruturas polj- es e incorporagées de praticas ea ados. Para os indigenas do Wall smentares, assim como a politica negociagées com as autoridades ¢ e exigiram cada vez mais 0 entendi ticas ocidentais. Ocorreram adapta¢6: centralizacao politica em grandes cacic Mapu, diplomacia e malén eram comple: ea guerra eram para as sociedades de mat A conformagao dessas relagdes tensas criollos nessa imensa regio sul da América foi marcada por negociacées yioléncias e combates miituos, riz. curopeia. ¢ intensas entre indigenas e econflitos, interagdes, comércio e guerra, V Enquanto espanhdis e depois os Estados independentes pressionavam sistematicamente por terras ¢ submissio, os caciques se organizavam e se militarizavam e respondiam a essas press6es, surgindo dai um sis- tema econémico pautado na guerra, nos ganhos € perdas de terras, no avanco e na perda de gado. Jé apés as independéncias, estabeleceu-se na provincia de Buenos Aires, através da acdo de seu controverso governador Juan Manuel de Rosas (no poder entre 1829 e 1832 e depois de 1835 a 1852), um novo tipo de relacio com os caciques. Apés executar violentas campanhas militares, em 1833, ele procurou novos e antigos lideres indigenas ¢ pas- sou a negociar um outro tipo de tratado de paz, procurando garantir a ocupacio dos territérios conquistados e bloquear novos malones através do fornecimento de gado e viveres diretamente aos indigenas, no que ficou conhecido como “negécio pacifico dos indios”’ A muitos caciques, isso pareceu interessante, j4 que 0 acordo era apenas com a provincia de Buenos Aires e, mesmo assim, de dificil con- trole, fornecendo, por outro lado, bens raros nos pampas, levando 4 consolidagao de seus cacicados. Talvez o mais importante novo aliado tenha sido um jovem € Fe cém-chegado cacique oriundo do outro lado da cordilheira, agora esta belecido nas estratégicas “Salinas Grandes” (ao sul de Buenos Aires, 94 atual provincia de La Pampa), de nome Juan Calfucura. A alianga entre © lider indigena ¢ 0 criollo possibilitou a expansio do poder de ambos ¢ 58 Resisténcias indigenas, zonas autdnomas eos F dos argentino ¢ chileno estabeleceu vinculos estreitos entre os chamados federalistas argentinos e parte consideravel dos caciques, criando consequentemente uma opo- sicio entre estes e os unitdrios que se prolongaria até a década de 1880 e marcaria 0 tensionamento das relacdes a partir da queda de Rosas. A migrago daquele grupo indigena para os pampas demonstra a intensidade dos vinculos entre os grupos do Wall Mapu e também as proprias dinamicas chilenas. O novo Estado que Id ia se constituindo era um dos principais mercados consumidores da carne oriunda dos pam- pas e também mantinha um distanci Com relativa paz, nao havia “negécio pacifico de indios” a ser proposto e também havia pressio demografica que levava jovens caciques a que- rerem se transferir para 0 outro lado da cordilheira. mento ¢ isolamento da Araucania. INTERAGOES, NEGOCIAGOES E CONFLITOS NAS ZONAS DE CONTATO O ano de 1852 foi crucial para a transformacio nas relacées entre indigenas e criollos no Chile e na Argentina. No primeiro caso, 0 Estado elaborou uma renovacao de sua estrutura administrativa ¢ criou a provin- cia de Arauco onde antes era o territério indigena auténomo. Ao fazé-lo, definiu autoridades criollas, pretendeu instalar vilas, cidades, militares e missionarios e quebrar a autoridade dos caciques para ocupar suas terras. ‘Ao mesmo tempo, uma heterodoxa alianga entre as elites de Buenos Aires, de diferentes provincias e o Império brasileiro foi formada e, em campo de batalha, derrotou Juan Manuel de Rosas. Logo nova crise po- litica se estabeleceu e houve um racha entre a provincia de Buenos Aires, que se proclamou independente (sem ter conseguido reconhecimento internacional), e a Confederagao Argentina, congregando todas as de- mais provincias, sob 0 comando de Justo José de Urquiza. ‘A década de 1850 foi, em todo o Wall Mapu, momento de transi dos indigenas na politica criolla como resposta a de participagao ativa movimentos agressivos de expansio sobre suas terras. Tanto no Chile houve cacicados que se mantiveram aliados aos quanto na Argentina, m governos, enquanto outros que se associaram a criollos que parec reconhecer suas autonomias ¢ territérios. ‘A Confederagdo Argentina foi um desses grupos, reconhecendo-os s governantes de Buenos Aires como interlocutores politicos. Ja os nov' 59 Utopias latino-americanas partiram para uma politica de oposicéo e enfrentamento, associandy 08 caciques a Rosas. Enquanto isso, no Chile uma parcela consideraye| dos caciques se aproximou dos grupos regionais que faziam oposigao ao centralismo do governo de Santiago ¢ suas politicas agressivas de ocu. pacao das terras da Araucania. As aliangas entre caciques e grupos criollos nao pode ser entendida apenas como uma “manipulacio”. Naqueles tempos, havia alguns caci- ques alfabetizados e outros que contavam com secretirios (indigenas ou mesticos) e tradutores para o estabelecimento ¢ manutengao de comu- nicagao sistematica com autoridades civis, militares e eclesidsticas. A andlise dessa correspondéncia explicitou a articulacao politica dos caci- cados, aliancas assinadas, aces bélicas conjuntas e 0 reconhecimento, por parte dos criollos de autoridades ¢ soberanias indigenas.° Essas aliancas nao foram apenas conjunturais, mas, sim, refletiram in- tensa andlise sobre aliangas e inimigos comuns. Aos caciques, leitores dos jornais, ficou bastante claro que as novas elites de Buenos Aires e Santiago estavam interessadas na ocupagao das terras e no fim de suas autonomias, recorrendo a uma dicotomia que foi muito forte 4 época e deu anteparo inte- lectual as politicas violentas: “civilizagao” ou “barbarie”. Esse esquema bina- rio atendia a interesses proprios daquelas elites liberais na supressio de ou- tros grupos, do controle do campo e da expansao sobre as terras indigenas.” De forma simultanea nos dois lados da cordilheira, 0 ano de 1859 ficou marcado por rebelides e guerras em que os caciques tiveram parti- cipacdo ativa e consciente de suas opgdes. Enquanto no Chile parte con- sideravel deles se associou ao general José Maria de la Cruz para tentar derrubar — sem sucesso ~ 0 governo centralista do presidente Montt, na Argentina a atua¢ao conjunta dos caciques com Urquiza venceu as tro- pas de Buenos Aires. Esse sucesso, no entanto, nao foi definitivo. Dois anos depois, novo enfrentamento levou a vitéria derradeira dos unita- ios portenhos, materializada na unificagao argentina ¢ na elei¢io de seu primeiro presidente, o general Bartolomeu Mitre, em 1862. As vit6rias politicas e militares de Montt e de Mitre sobre aliangas com ativa participacao indigena deram forga para aqucles que reafir- mavam a oposi¢io “civilizagio” e “barbarie” e que pretendiam ocupar pela forga as terras indigenas. Esses grupos criollos dos dois lados da 60 Resistencias indfgenas, zonas autdnomas ¢ os Estados argentino ¢ chileno cordilheira tinham muito mais semelhangas do que diferencas: pen- savam no Estado no molde liberal, 0 que incluia naquele momento a definicao clara do territorio, a afirmagao da soberania sobre quaisquer grupos que contestassem 0 monopélio do uso da forga. Para eles, a permanéncia de terras sob controle indigena era uma afronta e ameaca ao Estado. Em seu entendimento, a permanéncia de regides em que o Estado nao podia se fazer presente, ou entao se fazia mediado e tutelado por caciques, era 0 simbolo do fracasso. Em seus discursos, era nece: rio combater esses indigenas, garantir a soberania do Estado e 0 acesso a terras a investidores e colonos europeus. O contato tenso e intenso entre indigenas e criollos fez com que os caciques nao apenas conhecessem e reconhecessem os projetos ela- borados para combaté-los, mas também com que eles cada vez mais se apropriassem da retérica, dos discursos e vocabulirios politicos ibero- americanos para o estabelecimento também de estratégias discursivas de defesa de suas soberanias que passassem pela politica criolla. A anilise dos usos e entendimentos indigenas do vocabulirio po- litico ibero-americano utilizado nas cartas é importante indice para 0 entendimento que eles tinham de suas relages com os Estados e de como eles viam os poderes criollos. Para eles, “Gobierno”, por exemplo, era a autoridade momentinea com quem se negociava (visto que seus cacicados se mostravam muito mais longevos e estaveis do que sucessivos grupos que se alternavam no poder criollo). Da mesma forma, “Reptiblica’ nao era indicada como uma forma de organizagao politica, mas, sim, as terras sob o controle daquele grupo de criollos (a “Republica” da Argentina e a “Republica” do Chile). Nesse mesmo sentido, “Argentina” e “Chile” nao estavam associados a um ou outro Estado, mas eram nomes dados as terras de um lado e de outro da cordilheira — inclusive as terras indigenas. Eles conheciam esses nomes desde os tempos coloniais. Para eles, “Reptiblica Argentina” eram as ter- ras controladas pelos criollos nos pampas, enquanto “Repiiblica do Chile” eram as terras controladas pelos criollos a oeste da cordilheira.* Podemos ver como, entre os caciques do Wall Mapu, havia um claro entendimento dos grupos criollos em disputa e como eles nao identificavam 0 controle estatal sobre suas terras. A eles era corriqueiro informar sobre 61 Utopias latino-americanas idas e vindas de “indios argentinos” ou “indios chilenos’, sem isso significar a submissio a tal ou qual Estado, mas apenas uma procedéncia geografica, Dessa forma, ¢ possivel verificarmos como, naquela segunda metade do sé- culo XIX, apesar de negociarem recorrentemente com Os representantes dos Estados e conhecerem os planos de avangos sobre suas terras, os caciques As terras indigenas como autonomas do poder ver algum tipo de autoridade indigena supe- m, era preciso lutar ese ras, poderes e riquezas, permaneciam se referindo criollo. Para eles, nao deveria hi rior a todos os demais (tum Estado indigena), mas, si enfrentar o continuo assédio sobre suas ter} unir para TERRITORIO, SOBERANIA E RESISTENCIAS No Chile e na Argentina, a década de 1860 foi marcada por confli- tos internacionais e esforgos para a reorganizacao do Estado. Enquanto a Espanha declarava guerra a Chile, Peru, Bolivia e Equador - na Guerra Hispano-Sul-americana de 1865-1866, a Argentina ingressava ~ com 0 Império brasileiro e o Uruguai - na Guerra da Triplice Alianga contra 0 Paraguai (1865-1870, na cronologia argentina). De uma forma geral, esses conflitos internacionais fizeram mo- mentaneamente os Estados tirarem seus focos sobre as terras indigenas, mas também proporcionaram o equipamento, treinamento ¢ cresci- mento dos exércitos que logo na sequéncia seriam mobilizados contra as soberanias dos cacicados. O Estado chileno havia intensificado seu avango militar sobre a Araucania no inicio da década, com uma estratégia denominada de trans- posi¢ao da fronteira, levando a area sob controle estatal do rio Biobio para outro mais ao sul, o Malleco, ¢ instalando ali uma série de fortes, cujo marco foi a refundagao da vila de Angol (1862). O inicio das tensdes com a Espanha suspendeu temporariamente as ages, mas em 1868 ocorreu 0 oe avango, novamente com muita resisténcia de parte consideravel rer patna «Guo da Tle Alma ibcesaetowoe: to de parte considerdvel dos soldadios d a ae mee : l a los fortes da “fronteira indigena para o Paraguai. Os caciques logo perceberam a movimentacao e passa- rama pressionar por novos tratados, em melhores padicbes, No entanto; em 1867, o Congresso, inspirado pelas operagdes militares executadas 14 62 Resisténcias indigenas, zonas autonomas ¢ os Estados argentino ¢ chileno Araucania, aprovou uma lei para a ocupacao dos pampas apés 0 encerra- mento do conflit cacicados da regio ~ em especial os de Salinas Grandes e de Leuvucé - superaram rivalidades e passaram a articular atuagao conjunta nao apenas paraa defesa de seus territérios, mas inclusive para a expulsio dos criollos. A anilise dessa articulagao é importante para entendermos 0 que os proprios indigenas concebiam como Wall Mapu. Para eles, apesar das muitas ¢ hist6ricas rivalidades entre os diferentes grupos regionais e dos dois lados da cordilheira, ficou muito claro que o territério indigena era um sé e sob ataques paralelos e que pareciam coordenados, provenien- tes dos Estados argentino e chileno. Derrotados e enfraquecidos, parte dos caciques araucanos ingres- sou, em novembro de 1870, em uma inédita articulagdo indigena que ternacional. Ao tomarem conhecimento, os grandes reuniu guerreiros dos mais diversos grupos dos pampas e da Araucania em um ataque tinico e coordenado contra uma tinica regido, a de Bahia Blanca, na provincia de Buenos Aires, j4 que os produtores e politicos daquela regio eram os mais hostis aos indigenas Naquela oportunidade, a articulagao, a mobilizagao ea escolha de um ponto especifico e simbdlico eram claros: uma vez que o Estado argenti- no havia declarado guerra e pretendia ocupar militarmente os pampas e que a situagao ja estava bastante desfavoravel no Chile, os indigenas agora resistiriam unidos. O resultado foi materializado em correspondéncia do novo comandante militar do forte, enviado apés o ataque. Para ele: “Sinto manifestar que aqui nao encontrei absolutamente nada. Nao ha soldados nem cavalos, a ponto de nao ter como enviar esta mensagem”? O sucesso daquela acao estimulou nova e semelhante a¢io, em mar- co de 1872. Mais uma vez contando com guerreiros de diferentes gru- pos, 0 foco foi entio a regiéo de San Carlos, novamente na provincia de Buenos Aires. Milhares de guerreiros organizados e coordenados sitiaram a regiao, saquearam as estancias, roubaram gado, demonstraram poder e 0 objetivo de permanecer retomando terras na guerra contra os criollos. No entanto, dessa vez 0 resultado foi o oposto. As taticas do Exército Argentino se atualizaram com a Guerra da Triplice Alianga, assim como sua infraestrutura. Naquele ano de 1872, 0 telégrafo ja conectava as vilas ¢ for- tes da “fronteira sul” e possibilitou a circulacao instantinea da informagio 63 Utopias latino-americanas da chegada do malén, dando tempo para a coordenacao do contra-ataque, As tropas sairam de diferentes fortes ¢ atuaram coordenadas. Sa ae armados de rifles, enfrentaram os indigenas que usavam langas. O embate campal resultou em estrondosa e sangrenta vitbria do Estado © 0 que se se. guiu foi um rapido declinio da outrora poderosa forga indigena, ‘A derrota militar na chamada Batalha de San Carlos marcou infle na correlacio de forcas entre indigenas e criollos nos pampas. A diminui- ao do poder dos caciques forgou a readequacio de sua politica diante dos Estados, mas nao significou o desaparecimento da defesa de autonomias e soberanias, Nessa nova conjuntura, carta de Juan Calfucurd ao presidente argentino Domingo Faustino Sarmiento, em janeiro de 1873, € simbdlica do esforgo para 0 uso do vocabulario politico ibero-americano. Para ele, em contundente afirmagao: “Nés somos os donos desta América justo que nos deixem sem campos”"” Ao recorrer a uma das mais abstra- tas e genéricas construgées discursivas europeias — a “América” -, 0 caci- que demonstrou nao apenas conhecer e compreender esse conceito, como também sua forga e a possibilidade de usé-lo para reivindicar a manuten- ¢40 do controle das terras - ou, ao menos, de parte delas — pelos indigenas. xo nao é OS ESTADOS E OS ATAQUES MILITARES AO WALL MAPU Na década de 1870, no entanto, havia uma combina intensa atuando entre os criollos que tensionava cada vez mais ao. Nas zonas de contato" entre 0 Wall Mapu e as terras controladas pelos criollos, os colonos (fossem mesti¢os, criollos ou imigrantes euro- peus) estavam se armando e executando Pequenas e médias operagies de expansio sobre as terras indigenas, Apoiados pelos comandantes militares locais, eles mantinham @ fensao constante, perpetravam pequenos ataques, boicotavam tratados, ‘am violéncias e eram submetidos & violénci: teressava a muitos: aos préprios colonos, de morte realizavam avancos que pareci; ia. Essa estratégia in” que mesmo submetidos ao risc? mas’eram‘en jam pequenos na escala do Estado. Ormes Para seus ganhos pessoais, e também aos militares “frontei: a” i ae 7 ae se mantinham no centro das atengdes dos ministérios 4 ‘ambem conseguiam a ocupagio de terras para si proprios. 64 Resisténcias indigenas, zonas autdnomas ¢ as Estados argentino ¢ chileno A difusa entre indigenas e criollos em romance 10 sistematica de relatos, noticias ¢ historias das violéncias obras de arte, textos politicos e na imprensa ajudou a disseminar 0 entendimento de que havia um cho- que entre a “civilizacao” ea “barbari Naquela década de 1870, havia uma quantidade enorme de priorida- des entre os politicos argentinos e chilenos: a modernizagio do Estado, a dinamizagao da economia e sua insergio mais aprofundada nos circuitos internaciona de imigrantes, o modelo étnico nacional pretendi- do ea area sob controle do Estado, As noticias ¢ os relatos vindos da frontei- racom o Wall Mapu lidavam e tencionavam intencionalmente estes pontos: afirmavam haver um embate entre 0 que se pretendia como Argentina e Chile modernos, liberais e europeizados a um futuro possivel de submissio a “indigenas barbaros’, com violéncias ¢ perdas de territérios. Ao divulgar noticias sobre as reunides de guerreiros contra 0 Estado, os colonos e os militares associaram a “barbarie” 4 violéncia, a perda de poder por parte dos criollos e a contestagdes soberania do Estado sobre aqueles territérios. Sendo um embate de bases tao profun- das, abria-se a possibilidade de mobilizar, nas capitais, os sentimentos, discursos e recursos para a execucao de grandes expedicdes militares para a submissao dos indigenas. Essas expedigoes resultariam em ga- nhos imediatos aos préprios instigadores das violéncias: os estancieros os imigrantes e os militares - os “colonos”. A esta mobilizacio denomi- namos de colonizagéo da barbarie.'* Esse discurso sobre a necessidade de uma submiss: indigenas, da superacdo de suas resisténcias e da imposicao derradei da soberania do Estado sobre o Wall Mapu foi sendo disseminado ao longo das décadas de 1860 1870. As elites politicas e econdmicas da Argentina e do Chile receavam a possibilidade de alguma poténcia im- perialista europeia vir a se estabelecer naquelas terras naquele momento de rapida e violenta expansao sobre o globo. No entanto, além de recearem essa expansio, elas também fai te dos circulos de elites intelectuais que debatiam esses temas, acompanha- vam a expansio para o Oeste dos EUA, a ocupagio da India e da Oceania, a partilha da China, a abertura do Japio ¢ as incursdes sobre a Atrica, Para aquelas elites latino-americanas, a expansio dos Estados “modernos, 0 militar dos 65 e.g nptimeene opias latino-americanas liberais e civilizados” sobre territérios ocupados por povos nativos “atra. sados e barbaros” era o esperado, 0 dbvio, “uma missao”. Para argentings e chilenos, nao havia Wall Mapu, mas, sim, ind vilizagdo, 4 modernidade e bloqueavam 0 enriquecimento ¢ 0 progresso, ocupavam territérios que eram “paturalmente” dos Estados argentino ¢ chileno e deveriam, por isso, se submeter ou se render ou ser eliminados," Grande parte do Wall Mapu esteve em disputa entre os dois Estados até o final da década de 1870. Como nao havia clareza nos documentos coloniais espanhdis se aqueles territdrios res] Rio da Prata ou 4 Capitania do Chile, e tamp' na regido, houve intenso debate sobre a qual 14 Nesse sentido, instalar postos militares, conseguir a ‘ou entio ocupar militarmen- Jigenas que resistiam a cj. pondiam ao Vice-Reino do jouco havia presenga criolla | Estado aqueles territérios corresponderiam.' submissio efetiva de caciques a0 Estado, te a regido passaram a ser opgoes discutidas cotidianamente. Difundir que aqueles mesmos indigenas eram inimigos “barbaros” era bastante conveniente para que seus interesses fossem desconsiderados e se desse inicio a longas negociagées por tratados para a definicao de fronteiras e, simultaneamente, ocorresse uma corrida militar para a ocupacio da regido por tropas e combate as resisténcias nativas. Na Argentina, sucessivos avancos € ocupacées militares ocorreram nos pampas depois da Batalha de San Carlos (1872). Até 1876, optou-se por es- tratégia semelhante & chilena, de avangos sistematicos da fronteira com ains- talagio de uma rede de fortes (em uma area muito maior do que a chilena). Em 1878, vencia uma série de tratados com caciques e, Nova Po- litica do general Julio Argentino Roca colocou em execugio a lei de ocupacio territorial de 1867. Nas chamadas Campanhas do Deserto (1878-1879), o Exército argentino ocupou os pampas até os rios Negroe Limay traindo caciques aliados, atacando indiscriminadamente aqueles que encontrava com 0 objetivo declarado de “extirpar o mal pela raiz¢ destruir esses ninhos de bandoleiros que o deserto protege ¢ mantént Em questao de meses, foi assassinado ao menos um ter¢o dos indigen* ee que outro terco morreu nos meses seguintes em marchas pelo pais, no que hoje é chamado de um genocidio.' fowaretch ai semelhante ocorreu no Chile. No mesmo ano de i facou novamente, ocupou mais territérios € levot! 66 Resistémcias indigenas, zonas autdnomus © os Estados argentino e chileno a fronteira ao rio Traiguén, aprofundando o cerco sobre os cacicados aut- nomos, sufocando-os economicamente e levando a morte de milhares, Um ultimo esforgo conjunto de resisténcia ainda ocorreu em 1881, com indi- genas que fugiam dos ataques ¢ da morte dos pampas ¢ da Araucania, mas uma vez mais eles foram derrotados, agora pelo exército chileno, dando fim a um processo denominado, pelos criollos, de “Pacificacao da Araucania’ Simbolo final dessa derrota militar indigena foi a refundagdo, por parte do Estado chileno, da cidade de Villarica, destruida pelos mapuches em 1602. No inicio da década de 1880, com a rapida expansio dos Exércitos argentino e chileno sobre os pampas, a Araucania e a Patagénia, as chan- celarias dos dois Estados negociaram um tratado de fronteiras que, em 1881, separou em duas, ao menos no papel, aquela imensa regio indigena. CONCLUSAO: WALL MAPU HOJE O genocidio argentino resultou em baixa presenca indigena no sul do pais até hoje e em estratégias das mais diversas de sobrevivéncia e adaptagao daqueles que permaneceram quase sempre vivendo nas pe- riferias de pequenas e médias cidades dos pampas. No Chile, os mapu- ches se submeteram, mas nao foram exterminados fisicamente, apesar das milhares de mortes. Sofreram intimeras perdas e invasées, foram subalternizados e desqualificados pelo Estado, por imigrantes e pelas novas companhias de exploracao que se estabeleciam na regiio. Desde o final do século xx e com muita forga no século XX1, ganha- ram proeminéncia e destaque os movimentos indigenas do Wall Mapu, seja em terras sob 0 controle do Estado chileno, seja naquelas sob a ban- deira argentina. Organizados em torno de suas comunidades, passaram a reivindicar o controle de terras outrora sob os cacicados, além de au- tonomia diante do Estado e oposigio aos projetos de exploragao inten- siva dos recursos naturais e de implementagao de monoculturas para a exporta¢ao, Suas ages de politica direta, muitas vezes com a interrup- §40 das unidades produtivas e da infraestrutura, t¢m sido classificadas € combatidas como “terrorismo”, levando a intimeras mortes e prisdes de indigenas e 4 manutengao de uma tensio que parece jamais deixar aqueles povos viverem tranquilos em suas terras. Para eles, aquela guer- ra secular contra o invasor esté apenas em nova fase. 67 Utopias latino-americanas Notas vera pis de os araueanos, Buenos Aires, Sudamericana 1992, Herrero yl nacibn, ye pueblo mapueche: De la inclusion aa ex itoria del Pucblo Mapuche, Santiago, Sur 1996; G. Foerster 2, em Revista de Historia Indigena, v1, © Radil Mandrini e Sara Ortelli, Vo 2 Jorge Pinto Rodriguez, La formacién d clusin, Santiago, DIBAM, 2003; José Bengoa, 1.1. Vergara, “Relaciones interétnicas 0 relaciones fronterizas 1996, pp. 9-33. » Martha Bechis, “Fuerza Salvatore (comps.), Caudillismos rioplatenses: Eudeba, 2005. «Real Osvaldo Fradkin ¢ Jorge Daniel Gelman, Juan Manuel de Rosas La construccién de un liderazgo politico, Buenos Aires, Fdhasa, 2019. eee to =zFinanzas pblicas 0 negocios privados? 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Estados y capital en la colonizacion de Patasoris (Arent y Chi, 1830192) ae, Universidad Austral de Chile, 2019. 4 Pablo Lacoste, La imagen del otro en las relaciones de la Argentin -2000) 30/Buenos Aires, Universidad de Chile/rcr, 2003. toes) hl 12 00 ea 3 or Garon Wai ta cong del Desierto, Buenos Aires, Circulo Militar, 1964, p. 808. * Ingrid De Jong, "Guerra, genocido y resistencia: apuntes para discuti el finde as fronteras en Pam'¥ , Norton siglo xem Hab. 16. 2.2018 ei fe deletes i © Claudia Tarquini, Largas noches en la pampat itine gen (1878 Cla Theil, Lp ree tee: arrest de la poblacién indigens (18 4 criolla del sigho xis’, em Noemi Goldman e Ricardo ndigenas en la politic : das a un viejo problema, Buenos Aires, nuevas mirad ‘em Domingo Faustino Sarmiento, Facundo: 68

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