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PARTE 1 Visao e conhecimento Na cultura ocidental, a visdo tem sido historicamente considerada o mais no- bre dos sentidos, ¢ 0 proprio pensamento ¢ igualado a visio. J4 na filosofia _Btega, as certezas se baseavam na visio e na visibilidade. “Os olhos sfo tes- temunhos mais confidveis do que os cuvidos”, escreveu Herdclito em um de seus fragmentos". Plato considerava a visio como @ maior dadiva da huma- nidade’, e insistia que as proposig6es éticas universais fossem acessiveis ao “olho da mente, Aristételes também considerava a visdo como o mais nobre dos sentidos “por que ela aproxima mais o intelecto, em virtude da imateriali- dade relativa de seu conhecimento™. Desde os antigos gregos, 05 eseri:os de filosofia de todas as épocas tém metiiforas oculares abundantes, a tal ponto que 0 conhecimento se tornou andlogo & visio clara e a luz ¢ considerada uma metéfora da verdade. Si0 ‘Tomas de Aquino chega a aplicar a nogio de visio a outtras esferas sensoriais, bem como a cognigao intelectual, © impacto do sentido da visio na filosofia é bem resumido por Peter Slo- terdijk: “Os olhos sto o protétipo organico da filosofia. Seu enigma é que eles no apenas conseguem ver, mas também podem ver a si prdprios vendo. Isso Ihes confere uma proeminéncia entre as éngos cognitivos do corpo. Na ver- dade, boa parte do pensamento filoséfico é apenas reflexo dos olhos, dialética dos olhos, ver a si préprio vendo”. Durante a Renascenca, considerava-se ue os cinco sentidos formavam um sistema hierérquico no qual a visio esta 1no topo, € 0 tato, na base. O sistema renascentista de hierarquizacao dos sen- tidos se relacionava com a imagem do corpo césmico; a visdo se correlacio- ava ao fogo e 2 Iw ot 4 audigio, a0 a © olfato, ao vapor, o paladar, d égua e Delt A inven contra Mnvenfo da represemago em perspctvn trmou 0 ols ponto lo mundo perceptual, bem como do conceito de identidade pessoal. A : 1 em si pr6pria se tornou uma forma simbélica, no apenas desereve, mas também condiciona a percepcio. do on shiva de que nossa cultura teenoligca tem ordenado e epara- 08 sentidos de modo ainda mais dstinto, A visio e a audigao hoje sio os fesse privilegiados, enquanto os outtos trés so considerados "esas sensorasarcacos, om uma fungao merament privad e, gra mente So reprimidos pelo cbdigo cultural, Somentesenseges come oprazer olativo de uma rei a frgrincia das flores eas resposas temperatura © direito de chamar a atengio coletiva em nosso cécigo cultural centrado ‘nos olhes e obsessivamente higiénico. ‘A domindncia da visio sobre os demais sentidos ~ e sua consequente Predilesio na cognigao ~ tem sido observada por muitos filésofos. Uma cole- ie de enssios ce losfiaiulada Moderity and the Hegemony of Vision afima qu “desde os gregos anigos, a cultura oedentl tem sido dominada Pela paacgma centrado nos ols, uma interpetaio do conhecimento, da lade e da realidade gerada pela visio e nela centrada™. Este livro insti- ‘ante analisa “as conexes histdricas entre a visio e o conhecimento, a visio € ontologia, a visio e o poder, a visio e a ética”™. f snanga Yee Que o paraigma centrado nos olhos de nosa eacio com o tnundo cde nossa coneepeio de conhecinento~o priviélo episemlégico th Ws — tem sido revelado pels flsofos, também € importante analisar crtisumeateo papel da visio em relagio aos demas sentido, para 0 en dient ¢ pit da ae da arqleture, A argutetra, como todas as utes, eid intrinsecamente envolvida com questes da existéncia humana no ‘Sra eno tempo; el express erelaiona a conigd humana no mun, 4 srauitetra est profundamente envolvid com as questes metafiicas da ltalidade e do mundo, interioridade ¢ exterioridade, tempo e duracio, vida € morte. ‘As priticas estéticas e eulturais so peculiarmente suscetiveis as experiéneias mutaveis de espaco ¢ tempo, precisamente porque se envolvem 8 construgdio de representacies espaciais e artefatos oriundos do fluxo da experineia humana,” escreve David Harvey"*. A arquitetura é nosso principal instrumento de relagdo com o espaco eo tempo, e para dar uma medida hu- mana a esgas dimensoes. Ha domestica 0 espago ilimitado e o tempo infinito, ndo-o tolerivel, habitével ¢ compreensivel para a humanidade. Como consequéncia dessa interdependéncia entre 0 espago e 0 tempo, a dialética do cespago externo e interno, do fisico e do espiritual, do material e do mental, das prioridades inconscientes e conscientes em termos de sentidos e de suas fungées e interagdes relativas tem um papel essencial na natureza das artes € da arquitetura. David Michael Levin provoca a eritica filos6fica do predominio dos olhos com as seguintes palavras: “Acho apropriado desafiar a hegemonia da visio ~ 0 privilégio dos olhos dado pela nossa cultura. E acho que precisamos exa~ minar de maneita muito critica o caréter da visio que atualmente predomina em nosso mundo. Precisamos urgentemente de tum diagnéstico da patologia psicossocial da visio cotidiana - e de uma compreensao critica de nds pré- prios como seres vistondrios'*, Levin ressalta a tendéncia & autonomia e a agressividade da visio, assim como “os espectros do poder patriarcal” que aflingem nossa cultura centrada nos olhos: (0 desejo de poder é muito forte na visio, HA uma tendéncia muito forte na visio a agarra ea fxaea considerar como concreto a totalzar: uma tendéncia 8 do- tina, fizar e controlar que, por sr téo ferozmente promovida, em determinado tnomento assumiu uma hegemoni incontestvel em nossa cultura e seu diseur to filosético, estabelecendo, ao mancer a racionaidade instrumental de nosss tiltura eo eardter teenol6gico de nossa sociedade, uma metafisica da presenga centrada nos othos.” ‘Acredito que muitos aspectos da patologia da arquitetura cotidiana de nosso tempo também possam ser entendidos mediante uma andlise da epistemolo- gia dos sentidos e uma critica & predilego dada aos olhos pela nossa cultura, em geral, e pela arquitetura, em especial. A falta de humanismo da arquite- tura e das cidades contempordineas pode ser entendida como consequéncia da negligéncia com 0 corpo e os sentidos ¢ um desequilibrio de nosso sistema sensorial, O aumento da alienacio, do isolamento ¢ da solido no mundo tecnolégico de hoje, por exemplo, pode estar relacionado a certa patologia dos sentidos. f instigante pensar que essa sensaciio de alienacao ¢ isolamento seja frequentemente cvocada pelos ambientes mais avancados em termos tec- nolégicos, como hospitais e aeroportes. O predominio dos othos e a supressio dos outros sentidos tende a nos forgar A alienagao, 0 isolamento e & exterio- ‘A CENTRALIZACAO NO OLHAR E A VIOLAGAO DOS OLHOS 1 ‘A arquitetura tem sido considerads uma forma de arte dos oa, Otho Refletindoo interior do Teatro de Besan- ‘on, gravurn de Claude-Nicholss Ledoux. 0 leatto fol constnido entre 1775 ¢ 1784 Por- 2 ‘A visd0 & considerada 0 mais nobre dos sent dos, ©@ perda da vsdo, a mals grave defn ca tse, Ls Buue eSahvador Dal, Un Chion Andalou (C20 da Anda, 1929. A cena chocante na {qual oolho da heroina¢ cortado com uma li mina de barbea. Alto Mlakinininnish Fim Archive ridade, A arte da visio, sem diivida, tem nos oferecido edificagées imponentes © Instigantes, mas ela no tem promovide a conexio humana ao mundo, 0 fato de 0 vocabulirio modernista em geral nao ter conseguido penetrar na superficie clo gosto e dos valores populates parece ser resultado de sua énfase visual e intelectual injusta; a aryuitetura modernista em geral tem abrigado © intelecto ¢ 0s olhos, mas tem deixado desabrigados nossos corpos e demais: sentidos, bem como nossa meméria, imaginagao e sonhos. 0s ctiticos da priorizacao dos olhos dor do A tradiglo da primazia dos olhos e a consequente teoria do espec conhecimento no pensamento ccidental também encontrou ci filésofos bem antes de nossas preocupagdes atuais. René Descartes, por exem- plo, considerava a visio como o mais universal e nobre dos sentidos, e sua filosofia objetivadora consequentemente se baseava no privilégio da visio, Contudo, ele também equiparov a visdo ao tato, um sentido por ele consid rado “mais certo e menos vulnerdvel a erros do que a visio", Friedrich Nietzsche tentou subverter a autoridade do pensamento oct Jar, em uma aparente contradicZo com sua linha geral de pensamento. Ble ci ticava “o olho fora do tempo e da histéria"” pressuposto por muitos fildsofos, Nietzsche chegou a acusar os fildsofos de uma “hostilidade traigoeira e cega contra os sentidos™. Max Scheler claramente chama essa postura de “édio do corpo". [A visdo “anticentralizagio nos olhos” e necessariamente critica da per. cepgio ¢ do pensamento ocidental centrado nos olhos, que se desenvolveu na tradigo intelectual francesa do século XX, é profundamente analisada por Martin Jay em seu livro Downcast Eyes ~ The Denigration of Vision in Twentie th-Century French Thought”, O escritor investiga o desenvolvimento da cul tura centrada na visfo, passando por campos tao diversos como a invengiio da imprensa, a luz artifical, a fotografia, a poesia visual e a nova experién- cia do tempo. Por outro lado, ele analisa as posicdes antioculares de mui tos dos escritores seminais da Franga, como Henri Bergson, Georges Bataille, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Jacques Lacan, Louis Althusser, Guy Debord, Roland Barthes, Jacques Derrida, Luce Irigaray, Emmanuel Levinas ¢ Jean-Frangois Lyotard. Sartre era francamente hostil ao sentido da visio, 10 ponto da ocul a de sete mil referéneias ao “olhar™, Ele se pre ocupava com o “olhar objetivador do outro, ¢ o ‘vislumbre ce medusa’ (quel ‘petrifica’ tudo com o qual entra em contato™. Para Sartre, o espago superou © tempo na consciéneia humana, como consciéncia da priorizagao dos olhos". Esse inverso da importineia relativa de acordo com as nogdes de espaco ¢ ‘tempo tem importantes repercussdes, no nosso entendimento, dos processos fisicos € histéricos. Os conceitos predominantes de espaco ¢ tempo e suas inter-relacées formam um paradigma essencial para a arquitetura, como Sied- fried Giedion afirmou em sua histéria ideolégica seminal da arquitetura mo- dema, Space, Time and Architecture™. Maurice Merleau-Ponty langou uma critica incessante do “regime ese6- pico perspectivalista e cartesiano” e de “seu privilégio a um tema aistérico, desinteressando e incorpéreo totalmente desvinculado do mundo”. Toda sua obra de filosofia foca na pereepcao em geral e na visio, em particular. Po- rm, em vez do olho cartesiano do espectador externo, o sentido da visio de Merleau-Ponty é uma visio corporificadai que é parte encarnada da “carne do mundo™. “Nosso corpo é tanto um objeto entre outros quanto um objeto que 05 ve e toca”. Merleau-Ponty via uma relagio osmética entre a individuali- Gade ¢ 0 mundo elas se interpenetram e se definem — e enfatizava a simul- taneidade ¢ interacao dos sentidos. “Minha percepgio é [portanto] nao uma soma de pressupostos visuais, téteis e auditivos: eu percebo de maneira total com todo meu ser: eu abarco uma estrutura tinica da coisa, um modo tinico de ser, o qual fala com todos meus sentidos ao mesmo tempo”, ele esereve™ Martin Heidegger, Michel Foucault e Jacques Derrida também afirma- Fam que 0 pensamento e a cultura da modemnidade nio apenas tém dado continuidade ao privilégio histérico da visio, mas exacerbado suas tendéncias negativas. Cada um dos escritores, de sua maneira, considerou o predominio da visao na era contemporanea distinto daquele de épocas passadas. Na nossa ‘a, a hegemonia da visio tem sido reforcada pelas incontéveis invengies tec- nol6gicas ¢ a infinita multiplicagao e producéo de imagens — “uma incessante chuva de imagens”, como chama Italo Calvino". “O evento fundamental da era moderna € a conquista do mundo como fotografia", escreve Heidegger, Acespeculaio do flldsofo sem divida se materializou em nossa época de ima. gens fabricadas, produzidas em massa e manipuladas. ado hoje penetra furido na 0 olho teenologieamense expandido ¢ refor {ria © no espago ¢ torna o homem capaz. de langar um olhar simultane laos opostos do globo terteste. As experiéncias de espago € tempo tenn se fundido pela velocidade (David Harvey usa a nogio de “compress ten) po-espago"™) e, como consequéncia, estamos testemunhando uma inversiio dlistinta das duas dimens6es ~ uma temporalizagdo do espago e uma espacia lizagio do tempo. © tinico sentido que ¢ suficientemente ripido para acom olégico é a visio, panhar 0 aumento assombroso da velocidade do mundo t Porém, 0 mundo dos olhos est fazendo com que vivamos cada vex. mais em um presente perpétuo, oprimidos pela velocidade e simultaneidade {As imagens visuais se tornaram mercadorias, como ressalta Harvey: “Uma avalanche de imagens de diferentes espagos que chega quase simulta neamente, sobrepondo os espagos do mundo em uma série de imagens na tela de um televisor... A imagem dos lugares e espagos se tora to suscetivel a produgao e ao uso efémero quanto qualquer outra [mercadoria} " ‘Adestruigo radical da construsio herdada da realidade nas ditimas a cadas tem, sem duvida, resultado em uma crise da representagio. Podemos ‘até mesmo identificar certa histeria com panico na representagiio das artes ‘em nossa época. O olho narcisista e niilista Na opinido de Heidegger, a hegemonia da visio primeiramente nos trouxe visbes glorosas, mas nos tempos modernos tem se toma cada vex mas i lista. Hoje, a observacao de Heidegger de um olho niilista é particularmente instigante; muitos dos projetos de arquitetura dos iltimos 20 anos, tornados famosos pela imprensa internacional da arquitetura, apresentam caracteristl- cas nareisistas e nillistas, (0 olho hegeménico busca o dominio sobre todos os campos da prod ‘sao cultural, e parece enfracuecer nossa capacidade de empatia, compaixtio € participagdo no mundo. 0 olho narcisista vé a arquitetura como um meio de autoexpresso e como um jogo intelectual ¢ artistico desvinculado de associacées mentais e societérias. enquanto o olho niilista deliberadamente promove o isolamento ea alienacéo sensoriais e mentais. Em vez de reforgar a experiéncia do mundo integrada e centrada no corpo, a arquitetura nilista ‘lesconecta e isola 0 corpo, e, em vex de tentar reconstruira orem ¢ ultural, {bina impossivel uma leitura da significacao coletiva. © mundo se torng dis rnnda visual hedonista, mas insignificant, evidente que apenas 0 Gistanciamento ¢ a sensagéo de desconexiio da vis&o permiten une visio nilista; é impossivel se pensar em um sentido nillista do tato, Por exemplo,