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OO \ GILBERTO AMADO MINHA. FORMACAO NO RECIFE EDIGA( {INDICE GERAL te PRIMEIRO ANO I — Chegada ao Recife . . II — Nas Cinco Pontas e @ Porta da. Livraria Nogueira III — Na Rua da Imperatriz e na Rua do Impe- rador — Silvio Romero — Peste Bubénica IV — Camisas — Posigio do Homem no Universo V — Cireuncisio — Ligées de Quimica — Exame de Filosofia VI — Encontro com Augusto Comte VII — Viagem para as Férias em Itaporanga . VIII — Pecado em Itaporanga IX — Leituras no Sitio: Euclides da Cunha . X — Outras Leituras no Sitio . SEGUNDO ANO I — Lingiieta, Lamarao, Vapéres, Tubardes . II — Nabuco no Teatro da Aboli¢io IMI — D’Annunzio na Rua das Cruzes IV — Os livros me tapavam a vista . V — Nietzsche ... VI — Poesia e Humildade ... TERCEIRO ANO I — Na Rua das Cruzes .....seeeeeeee eee II — Apreciagio Sébre os “Golpes de Vista” UL — Dias Intensos... .. ervens IV — Caxangé e E V — Figuras e Episédios .... 16 24 28 33 46 53 58 64 69 81 94 102 108 114 121 141 154 158 166 VI VIL ‘VIII IX I IL Iv vI IL WI Iv — A Moda das Conferéncias Literdrias .. Incompreensées e Julgamentos Apressados — Encontro na Escuridio .. — Grande Momento: 0 Direito das Coisas,’ de Lafayette — Outro Grande Momento: a Histéria ao Brasil, de Joio Ribeiro QUARTO ANO — Na Rua da Aurora — O Papa-Estrélas . — Domingos & Beira-Mar e & Beira-Rio . — Carlos D. Fernandes — Cémico e Patético . — Exames — Prosédia Nordestina — Atrizes QUINTO ANO — Férias em Aracaju Por que me especializei em n Diveito Criminal © que nao tive olhos para ver em Pernambuco — Um Provinciano na Capital .. — Volta ao Recife — Saida do Didrio . Pags. 113 177 185 188 197 201 219 227 238 245 253 266 269 275 281 “When to the sessions of sweet silent thought I summon up remembrance of things past...” SHAKESPEARE, Sonnet XXX. “Je dy vray, non pas tout mon saoul, mais autant que je Vose dire.” MonTAIGNE, Livre III, Chap. II. “Em Pernambuco, para onde segui dois anos depois, em 1905, iria, na Faculdade de Direito e no Diario de Pernambuco, li- bertando-me das obsessées da adolescéncia, passar do moné- logo ao didlogo...” (Hisr6ria DA Mina INFANCcIA) PRIMEIRO ANO Chegada ao Recife ano ERA 1905. Cheguei a tempo da matricula. Fim de margo, coméco de abril, nao posso pre- cisar. Uma certeza tenho. Chovia. Porque, com a intengdo de olhar de longe Olinda (Oh, linda posi para_uma cidade n2:), subi ao tombadilho, para nao perder a a vista “famosa. Engravatado,. deixei_o cama- rote, gingando com 9 Jacuépe da Companhia Per bucana, que lutaya_desesperadamente com as ondas brabas do Lamarfio. Nao guardo outra viséo que esta de chuva caindo. Atracagio, desembarque, cais, Lin- giieta, Capibaribe... Tudo se oblitera num fundo, de que, alias, nada _desejo “arrancar. Certo eu poderia, a propésito da chegada ao Recife, alinhar perfodos e periodos, compor mesmo capitulos de reminiscéncias histériecas e evocacées poéticas, mas mentiria se falasse de Jofo Fernandes Vicira, em guerra dos Maseates, em Nunes Machado, em Pedro Ivo, de Maciel Pinheiro, de “A Vista do Recife”, de Tobias Barreto, de Castro Alves, Estaria fazendo literatura am- . da pior, da con- vencional, da que nfio devo fazer, Nada disso me veio. Nenhuma das imagens que ésses nomes sugerem exis- tia ainda em meu espfrito, virgem de histéria do Bra- sil. Tobias Barreto, s6 de nome conhecia, Exagero. Ja devia ter visto no Almanaque de Sergipe, ou ouvido recitar, na Estancia, ou em Aracaju, o “Beija-Plor”, que eu ia depois, quando me interessei por poesia, saber de 4 GILBERTO AMADO -éprio e para demonstrar aos par- ‘a prazer proprio cor, para P * ia romantica em sua H era poesia romanti a ‘i do Rio o que nasianos ii Brasil. yy expressio no _ - menor imagem risca-me..a.meméria_¢_se_projeta paraa pena: uma tabuleta — Horen, pe Frayga. Mas ter-me-ia fieado perdida na chuva da one do desem- parque se o préto que carregava a pain mala na cabeca, e que ia na minha frente, nfo me tivesse dito: «“Q senhor entre aqui no hotel até a chuva abrandar.” Entrei... e éste momento tomou importancia extraor- dindria por sua reperet vivéncia e énci sicolégica, por sua sobre- no meu.espirito.. Entrei no hotel. Um gato escapuliu da sala deserta. Do interior vinha uma voz de mulher falando francés. Achei-me, pela primeira vez, diante de uma coisa que eu nunca tinha visto: enormes espelhos, descendo ao longo das paredes até o soalho, espelhos de que sé tinha conhe- cimento pelas deserigdes de romances. No que estava na frente, meu olhar comegou a navegar como num mar siberiano, numa cinza liquida carregada de misté- zio. Em Sergipe, todos os espelhos do Estado, do litoral ao sertiio, de Sao Cristéviio e Estancia, cidades velhas, a Aracaju, cidade nova, niio dariam um s6 do tamanho nessa prin Bahia, colados um ao outro, dos que vi no Recife Hu havia estado dois anos na mas af 86 vivera em reptblica, sé freqiientara casas de Professdres, jamais residéncias de luxo. Recife @ espelhos... cis a primeira imagem. A dona do hotel, a quem depois tanto conheci, veio de dentro, ¢ disse: “Bom dia, senhorrr!” Hscancarou a Porta por onde eu entrara ¢ a outra, O salio clarcou- Se. A luz derramou-se nos espolh ‘a hora, Vi-me nfo sé de © MINHA FORMAGAO NO RECIFE frente como de lado, multiplicado ¢ devolvido a mim mesmo do fundo dagucles lagos luminosos. Entio tive a a grande surprésa... A mulher retirou-se de novo. Eu nao tirava os olhos de mim mesmo. Pela primeira vez me via de corpo inteiro. entao sé me tinha olhado em espelho pequeno, de pa- rede ou pequenissimo, de bélso, reproduzindo s6 rosto, gravata, pescogo. Jamais assim... todo, paleté, cal- cas, sapatos. Tive um choque. Ai é que tomei conhe- cimento da minha fealdade. Experimentei uma espécie de recuo diante de mim préprio, Eu era “aquilo”?! Mentiria se especificasse “impressdes ou nuangas de sentimento. Do que recordo é do estremegio recebido. Esse choque iria repetir-se a vida téda. Tra ver-me em espelho grande, de frente, e sobretudo de perfil, era ser abalado por uma sensagiio brusea, quase diria de susto, diante de mim mesmo, ao me ver tal qual “a natureza em mim proprio me resolvia”. Téda vez que. ia_experiment 1r_roupa_em_alfaiate, onde_os _espelhos. dos 3 ostram de frente, de lado e de costas, sacio_me—assaltava. Sensagio de mal-estar, quase diria de inimizade com o meu fisico._A cabega, _ grossa e pesada, se me enterrava.nos ombros, formando_ com _o torso empinado.um. Angulo_agudo. A queixada aproava num arremésso antipdtico. Depois, sempre, na casa da Viscondessa do Livramento (avé de Rosa e Silva Janior), onde os havia tio grandes como os do hotel, na casa de Joio Eliseo de Castro Fonseca, sena- dor estadual, na de Genaro Guimariies, professor da Faculdade, na do velho Gibson, onde me casei, ao me deseobrir todo, ao passar em frente désses grandes espelhos da Europa, acometia-me o espanto de me ver Até | GILBERTO AMADO 6 e€ de me encontrar Os _alfaiates que m Rua do Ouvidor, 0 lia, tal qual me havia feito a natureza. Ne serviram, 0 Almeida Rabelo da ; is da Franga, 0g de Londres, da Ita- da Suiga, ¢ nos iltimos Ourives, sorriam sempre si lencia, abanando a cabeca eo diante da minha exclamagiio a respeito de mim mesmo. “O camarada feio!...” Devo notar que a essa sensa- Gao... de mal-estar, de antipatia, de constatacio, nio se juntava desgésto, constrangimento ou tristeza pro- priamente dita. Era um fato... Nunca a realidade, Por pior que fésse, me foi ensejo a lamentagio initil. O que ei experimentava era apenas a estocad: mpaticamente, com benevo- om denegagées compassivas la fina que me atravessava o coragio, onde ficava pungindo, Pungéncia, é a expresso que define o que eu sentia. E, apesar do que ha nisso de paradoxal, é sensacio parecida com a que me produz a beleza sibitamente revelada, Um rosto de mulher cheio de amor, um des- cortinar de paisagem, um pedaco de misica em que Beethoven abre um rasgo inesperado de bondade na face da vida, sacode-me 0 peito ¢ perfura-me o coragio com a intensidade de uma facada penetrante. “Como “a eleva punge!” — eserevi num dos meus poemas. Minha reagio em presenga da minha fealdade era a mesma que me despertava_a de outros. Ver gente 1 Oo érdo feia_me_ddi, Sinto-me profundamente em desacdrd rai tag eiras de com certas caras, certos jeitos, certas mane Z 1 servar relagio caminhar. ‘enho que lutar para conservar em relag zer apélo aa minha bondade, Tenho que fazer ap a gente f eo ‘0 ser desearidoso a todos os recursos da cultura para na enere dentro de mim, sobretudo com mulher ou criang 7 MINHA FORMACAO NO RECIFE Por isso nio gosto de me olhar em espelho. Tenho médo de me indispor comigo mesmo. Ao _me_reconhecer_como_ era, tempo, respirar um sdpro, intenso_ de bouco inéspito. Anos depois “désse primeiro encontro com os espelhos grandes de Pernambuco, tive a reve- Jagio do efeito em outras pessoas dessa férea intima que palpitava em mim. Foi em 1912, na Holanda, quando ouvi Graga Aranha, entio nosso ministro em Haia, exclamar diante de provas de fotografia minha que lhe fui mostrar, pedindo conselho sébre qual esco- Ther: “Oh, quanta vida! Até faz médo!” De fa erueza da placa_revelada conio propulsada por port mando papel, mal | =Vambora! — dentro do salao. — Vamos! A_rala réde.da chuva, que se rarefazia, apanhou- me nos seus fios moles. N&o parava na sua morrinha. O negro ia na frente, com a mala na cabega, patinhando. Atravessei uma ponte... entia_ao_mesmo ida no meu _arca-_ lisse o préto, botando a cabeca | Il Nas Cinco Pontas e a Porta da Livraria Nogueira ‘AS PRIMEIRAS VIAGENS 4 Europa, um dos meus N maiores prazeres era de vez em quando, em qual- quer das grandes cidades que visitava, alugar um automével e dizer ao chofer: “Toque para a frente até que eu mande parar!” Fui-me muitas vézes, portas afora, principalmente de Paris, ao longo das estradas Aclicia de ir. Consultava a bélsa e; até onde me per- mitia ela, rolava, deslizava, livre, sdlto, sem objeto, sem enderégo, na voliipia de ser levado quilémetros e quilémetros num esti: lorestas, Alamos em fila, aldeias linas, castelos entre as aléias, igre- das. A estrada corria horas e horas paralela aos rios, de prata como o Oise, glaucos como o Sadne. En gertos periodos da minha vida, foi das maiores, esta alegria de deixar-me_conduzir. déste modo, estirada- Mente, pelo mundo, A que atribuir asso gdsto, tio profundo e ao mesmo ae tempo tio oneroso a financas de individuo de recursos limitados, ¢ que, ao contrario do due comumente acontece com os chamados poctas 1 maginativos, jamais perdeu de vista o senso dos anit em matéria de despesa e a quem extravagincia © pareceu tolice? Atribuo ésse gosto 8 9 MINHA FORMAGAO NO RECIFE a uma reagiio irresistivel, a uma incoerefvel necessidade de ressarcimento de frustragées que sofri nos primei- ros meses de permanéncia no Recife. Para atender ao custo da matricula, mais alto do que eu tinha imaginado, vendi quase todos os livros que possufa. Achei-me sem vintém, na grande cidade, sem ter a quem recorrer e sem esperanea de que adju- tério algum pudesse vir de casa. Felizmente a pensao exigira paga. lo. Nao me faltaria midi Os héspedes que coabitavam nesse sobrado Cinco Pontas eram passagciros da estrada de ferro, pequenos funciondrios, empregados no comércio. O, barulho, o vaivém, o furdungo, gente entrando e saindo, criada gritadeira, cabrocha de seios frouxos, arras- tando os pés descalgos, méscas, tantas e tio pegadicas, tornayam a permanéncia em casa um suplicio. O meu quarto, em ‘que mal cabia a cama de ferro rangente e enferrujada, dava para o patio onde lixo, que fermentava, chegando até, 4s vézes, a vapo- rar. Do enjéo que me causava_o chei engulhos_e fregii¢ntes vontades devon oposto do patio havia, expostos ao sol, uns tabuleiros se amontoava 0 onde vi, mexendo nos doces com os dedos cér-de-rosa, o vendedor morfético que botei numa cena de Inocentes e Culpados. Nos primeiros dias eu descia para a Fa- culdade, logo de manhizinha, em longa caminhada, calgadas e ruas esburacadas abaixo, Mas as aulas nio tendo comecado, nio havia alunos por li. Os corre- dores do velho convento tinham, porém, uma freseura agra avel, Os estudantes foram chegando do interior, da Paraiba, do Rio Grande do Norte, do Ceara, do Maranhio, do Piauf, cabegas-chatas, uns de ar doentio, GILBERTO AMADO » outros, sertancjos, de eabelos escorridos, dentes claros. Trés sergipanos, Rollemberg (Tonieo), Odilon! Martins, filho de um farmacéutico de Aracaju, rapazinho gor- ducho e pilido, que iria morrer de peste bubénica dois meses depois, assim como outro de um engenho da Cotinguiba. Numa das portas de entrada da Faculdade sen- tava-se um cego que tocava uma harmonica e as vézes uma gaita. Vi um estudante de ano adiantado, sujeito maduro, baixote, quadrado de ombros, fazer uma coisa que me repugnou e que me ficou na meméria: tomou a gaita do cego, meteu-a numa das narinas e soprou-a... Saiu-lhe da venta um som como de béca, mas como se a gaita estivesse sendo tocada por um menino. Revi- rando os olhos que riam de maneira desagradavel, soprou uma toada, duas; juntou roda. Vi-o va vézes repetir a proeza, recebida sem aborrecimento, ao contrario, com prazer, pelo grupo. Parava, passava na manga o bico da gaita, restitufa-a ao cego, que a embocava de novo. Aquilo horrorizou-me. Dado a trabalhos histéricos, 0 estudante eserevia nos jornais, tornou-se conhecido, déle. D Mas nunea pude aproximar-me Além do que o vi fazer, repugnava-me a palidez sehosa do seu rosto, Da Faculdade voltava eu para a pensio de onde saia logo apdés o jantar, Madalena, Torre, Pogo, Casa Amarcla, Caxang4, Varzea, Dois Irmaos, bairros de moradia, entre cujas Arvores ¢ jardins avultavam as velhas casas senhoriais, solares da monarquia, s6 os conheei depois, meses depois, quando me foi dado sentir no bélao o niquel para o bonde. Msta cireunstancia — hoje acaso inerivel — nunea me deixou de vir & lem- M1 MINHA FORMAGAO NO RECIFE branga quando na Europa, diante das grandes estradas macadamizadas, cu me sentia dominado pela ansia de rolar por elas. A privacio motivada pela caréncia de tostdes nos primeiros dias ¢ semanas em Pernambuco teve o efeito de fazer-me olhar para os pobres bondes. de burros do Recife, quando os via passar pela frente da Lafayette ou na Rua Nova, como olhei depois para os navios ancorados no Lamarao, palpitantemente, com © coragio a pular. Oh, poder tomar um déles... ir a prestigiosa Madalena, de que havia tanto ouvido falar, ver Dois Irmaos, Caxangé, onde iria morar mais tarde e por onde o rio passava devagarinho, ir a qualquer dos bairros! Pedir emprestado... a quem? Nao havia a quem. E decerto jd me prevalecia no dnimo a preo- cupacio de nao dever, que iria perdurar em téda a minha vida. Sedentario, em conseqiiéncia da impecuniosidade total, impossibilitado de manter-me na pensio pela zoadaria, fedentina e remelexo do ambiente, sem meios de comprar sequer os compéndios do ano, passava as tardes a frente da Livraria Nogueira, 4 Rua Nova, olhando os livros na vitrina e as mégas que desfilavam pela ealgada, com um ar diferente das de Itaporanga e de Aracaju. De manha, im que a biblioteca da Faculdade abria, nela me assentava sdzinho, olhado com ma vontade pelo pessoal que relutantemente me passava os livros que eu pedia.,. livros que nao esta- vam acostumados a procurar nas pratelei ‘as, por nao serem objeto de consulta dos estudantes, Dividia as minhas horas, de manha na biblioteca, de tarde d porta da Livraria Nogueira. As mégus avangavam da Ponte da Boa Vista. Vinham ondulando num passo caden- GILBERTO AMADO 2 ciado. Grandes-chapéus, saias compridas_¢ um ar_de Civilizagio assombroso para os meus olhos itaporan- guenses. O sangue fervia-me. ‘Era um golpe } para mim, uma pontada fina no peito, vé-las de perto, pois, como ja disse, a beleza déi, alanceia o Animo do adoles- cente, como lamina fina na carne. Eram quase tédas “pintadas”. Naquele tempo eu nio sabia que na evo- lucio social a maquilagem precedeu ao vestido, que os primitivos pintam a cara antes de cobrirem o corpo, que pintura tinha sentido mgico, litirgico, religioso, que sua origem era séria, em vez de incedente. Por que cara de mulher pintada me excitava mais do que cara sem pintura? 1 que era pecado, chocava a minha moral, que era “sa”. O turvo prestigio que sdbre a erianga e o adolescente exerce o “pecado”, ou o que se considera pecado, é responsdvel por isso. Em Ita- poranga, nos dias de feira, para fazer suas compras semanais nos cargueiros j4 conhecidos que arriavam seus caguds em nossa calgada, minha mie vinha para a porta da casa acompanhada por nés criangas e pelos eriados, A certa hora dizia, com um ar triste, mas alto: “Meninos, para dentro!” Bla propria entrava a correr e as criadas comecavam a fechar as janelas. Eu ficava espiando como podia. Bram as mulher damas que passavam em fila, a caminho da feira, de charuto na mio ou na béca, rosa-palmeirio nos cabe- los, esteira debaixo do brago, pintadas de fazer médo, Maria Jeroma, a mais impressionante, recorta-se no fundo da minha infincia com algo de sobrenatural, como a expressiio do “mal”, Muitas das médgas de Pernambuco se pintavam como Maria Jeroma: demais. Daf a sua atracio para _taga de champanhe. Queri M4 GILBERTO AMADO mais _romantizei_meus Isso vem de natural composicgio de hu- angue, viseeras, glindulas, ou de filosofia eedo adquirida? Da consciéncia de que cada momento com- porta sua parte de mal e de bem e de que em todo escuro existe potencialmente o claro? Nao sei; 0 certo € que nesse perfodo lébrego de miséria completa, a primeira por que passei, minha alegria era total. Eu fazia o percurso das Cinco Pontas a Faculdade ec da Faculdade as Cineo Pontas, em que me tenho ene sofriment mores, nas pedras_pontiagudas ¢ nos buracos traigociros das calgadas do bairro de Sao José, com o sangue borbulhando num ferver de abracar o mundo todo na ¢xpansfio_do_men_ser.. Do ponto de vista moral tudo era agradavel. Fisicamente é que era o diabo. alimentacdo bastante e boa; falta de roupa lay: mudar com freqiiéncia; pés ardendo de tanto Apesar da minha resignagio e capacidad aceitar, uma coisa na pensio das Cineo P. gava minha resisténcia Falta de ada para marchar. le de tudo ‘ontas amea- — 8 percevejos. Em Ara aju, ou porque cidade nova, tudo limpo, areia por téda parte, Hog, Morar 29 palicio do governo, me esquect déloe, Foi nas Cinco Pontas, no bairro de Sao Toss, que retome tio diabdlicamente apare xar dormir mesmo S tio grandes. © ignios, 6, contacto com ésse bichinho Thado para a tarefa de nio dot adolescente cansado de caminhada, pereevejo, implacive tempo, o mais © sivel, 1 nos seus desi; ao mesmo vasivo dos inimigos, Cered-lo é impos- 40 ha protecio contra dle, de paredes pintaly: sua pre No meu quarto, Novos sinais de subiam inespe- loso do eolehio de pi adas por velhos e pingavam do ferro, ster a, Cles rados do fundo mi alha eréspa 15 MINHA FORMACA4O NO RECIFE e barulhenta. Na calma da noite quentissima, pareciam pipocar no quarto como bélhas na Agua fervendo, Eu me deitava no soalho, sdbre jornais. Tencionava assim ganhar tempo. Até que me chegassem aos pés ja estaria adormecido. Mas enganava-me. Percevejo corre como lebre. No escuro, voa. ons ( \ Ill Na Rua da Imperatriz e na Rua do Imperador — Silvio Romero — Peste Bubénica ( HEGOU UM MOMENTO cm que o efcito de varias noi- ‘tes sem dormir, nessa existéncia_de_pensio das Cinco Pontas, atingia-me os nervos; comegava a puir- me a corda da_vont ide,. esfiapando-a. Uma carta de Sergipe trouxe uns cobres. Oh, pulo! Nao muitos, mas bastantes para me permitirem a mudanca. Na mesma hora em que recebi as cédulas passei-me para a republica dos sergipanos, na Rua da Imperatriz, num segundo andar, defronte do cabelei- reiro Odilon Duarte, casa velha, de paredes sujas e soalho esburacado, mas com trés janelas dando para a rua, de onde se via o Senador Rosa e Silva, de barba nazarena, passar todas as tardes, de cartola, fraque e bengala, num passo vivo, de volta do Diério de Per- nambuco, em caminho de casa. As vézes 0 senador parava & porta do cabeleireiro, conversando, Os estu- dantes, da janela, discutiam politiea e pronunciavam entre outros nomes da época o de uma figura que me ia ser tao cara e ter influéncia na minha vida: Pinheiro Machado, Além da mudanga, o dinheiro providencialmente chegado permitiu-me realizar o que para mim teve aquele tempo a importancia que tem hoje para o pedes- 16 uw MINHA FORMAGAO NO RECIFE tre subir num Cadillac ¢ deslizar majestosamente pelas estradas: permitiu-me tomar bonde. Dias_seguidos, encostado no espaldar do banco, o peite empinado, com a empffia de_um paxé, dizia eu ao,cobrador:. “Até ao, fim da linha!” Ao passar-lhe o niquel, ia vendo aquilo tudo, o Recife colonial, monarquico, republicano, ia vendo arvores alinhadas sdbre fachadas brancas, azuis, amarelas, palmeiras, mais altas do que as que eu havia visto na praca do Palfcio ¢ da Matriz de Aracaju, pontes sdbre o rio e sdbre riachos, os j Os, clubes ingléses, mégas ao portdo, cavaleiros passando e_tirando-lhes..o. chapéu_com_ar_respeitoso.e.antigo, romances franceses que eu ja havia lido. Horas de tumescéncia intima, de comunhio global com o ambiente perfumado, dentro do claro sol, de cujos raios pareciam tecer-se as fibras da minha sensibi dade. Tomar bonde e ir até o fim da linha tornou-se para mim, no intervalo dos estudos, de tardinha, um calmante, um afrouxamento salutar dos nervos. As vézes, quando vazio o veiculo, eu conversava com o condutor e o cobrador, informava-me, convivia. As palmeiras da Madalena, na sua imponéncia ornamental, dava-lhes eu nomes de mulheres célebres que me haviam impressionado nas leituras... rainhas, imperatrizes, cortesis; uma era Semiramis, outra Teodora; a maior, a mais alta e majestosa, eu a chamava Zendbia, os Tapazes da repiblica, ao sair para essas excursdes. 1105, arrabaldes, eu pedanteava as yézes, sabendo que_os irritava: “Vou visitar a rainha de Palmira,” “Quem?!” perguntavarn, intrigados, Eu respondia: “Zendbia!” GILBERTO AMADO 18 Nos primeiros dias chegava tarde & reptiblica. An- dei gastando o dinheiro que a familia tinha economizado. Dormia numa réde que um dos sergipanos me empres- tara. Af, na Rua da Imperatriz, li pela primeira vez o livro de Silvio Romero, Ensaios de Filosofia do Direito, que um dos colegas possuia. Foi ha justamente qua- renta e nove anos... nunca mais peguei nesse livro... nunca mais o revi.* Lembro-me, porém, de que por entre o sentimento de admiragao e.o proveito que auferi, ja al, a ésse tempo, verifiquei quao diferente o meu espi- rito era do _de Silvio Romero. senti arrastado pelas preferéncias e antagonismos de Silvio, que nfo podia conceber a vida e as idéias sendo sob o Angulo da antitese. Adorava Spencer e por isso julgava-se no dever de atacar Augusto Comte. ‘Nem uma s6 vez me Doutrina contra Doutrina, era o titulo de outro D ce do. ne 9.pau.no, primeiro. Jaa ésse tempo me apercebi do absurdo dessas atitudes, que me cons- trangiam e rebaixavam Silvio Romero no meu conceito. Ao fato de ser sergipano, penso eu, 6 que Gumer- cindo Bessa deve a publicagio, em apéndice na obra de filosofia de Silvio Romero, da sua definigio do Direito, apresentada por @le como a melhor e mais completa das até entéio publicadas. livro seu, anterior, em que pu mneés Nao pude na minha ignorancia comparé-la com outras mas recusei desde logo aceité-la como superior * Na data em que escrevo estas linhas, janeiro de 1954, gragas A Biblio- teca Naclonal, Yintco lugar onde o encontrel, acabo de repassar a vista neseo luvro, ‘edigho de 1695, @ fiquet encantado com a clareza © valor intrinsees a exposigéo, resumo inteligentissimo de teortas, sist , sistemas Mlosoficas da época, vp utenclas 19 MINHA FORMAGAO NO RECIFE 9 com & precipitagéo da idade, que se tratava de manifestagio de bairrismo, de sergi- e@ me pus em guarda, entaio, contra quase toda afirmacio ou julgamento de Silvio Romero. Atri- bui depois ter adiado minha leitura de Tobias Barreto Ao meu ver, na admiragio de a tédas. Conceluf, decert panismo, a essa cireunstinei; Silvio por Tobias entrava sentimento de ordem paro- guial, alheio ao valor objetivo das idéias, que ew considerava ridiculo. Penitenciei-me mais tarde, pois nenhum elogio de Silvio Romero a Tobias Barreto me pareceu superior ao mérito do autor dos Estudos Ale- mdes, de Menores e Loucos, de tudo que li depois, verso ec prosa. Quanto 4 definigéo de Gumercindo Bessa, nunea mais tive ocasido de examiné-la. Desde cedo, critica da amizade, 0 pois, me acostumei a separar a julgamento literdrio das razdes do coracdo. Um amigo pode me salvar a vida. Salvarei a sua, se for neces- sério. Tenho o sentimento da gratidao, o de que me enobrego, pois é sentimento que de. tio grande nao cabe no corat ¢io humano ordindrio. Darei ao amigo tudo, mas nfo direi que éle é um bom poeta, um grande prosador, um eseritor de talento, se éle nado o 6, pelo fato de ser seu amigo ou de lhe dever um favor, por maior que seja. Foi por ésse tempo e nessa mesma ordem de idéias que verifiquei a impossibilidade de accitar a teoria da coruja. Considero isto absurdo. Para mim uma coisa nada tem que ver com outra. Feio o filho, a mie o ama como feio, mais por isso mesmo, talyez; mas achd-lo bonito e vé-lo bonito, é faleo; nio aceito isto, nio, No Rio de Janeiro, anos depois, achando-me em conversa com um pai de nume- GILBERTO AMADO 20 rosos filhos, pessoa de alta posigéo, muito considerada, perguntei-lhe: — “Qual déles é 0 mais inteligente?” — “Posso la dizer, “seu” Gilberto? Sou pai!” Desprezei in petto o individuo por essa resposta. Subindo as escadas da reptiblica, na Rua da Impe- ratriz, poucos dias depois da minha mudanga, recue: trés, quatro ratos jaziam mortos nos degraus. riam_ruméres de que a peste bubdnica grassava_no Recife. Numerosas mortes, até de gente conhecida, cram relatadas. Pulei por cima dos bichos e, botando a alma pela béca, mencionei o encontro da escada aos “compan! eiros_da repiblica, “J& vieram desinfetar”, disse um déles, e deu de ombros. Os outros nao qui- hesitagito, i seram conversa sdbre o assunto. Se a roupa, sapatos, escdva_de dente na mala, e eu mesmo.a arrastei escada abaixc Iho féz aparecer gente & porta do primeiro andar. “Ratos mortos!” — gritei. “Ora!” — disseram, rindo, enquanto me ajudavam a puxar a mala. Trés diag depois morria Odilon Martins, o rapazinho sergipano, gorduchote e simpatico, como ja referi. Morreu o outro ealouro, também de Sergipe, da Cotinguiba, magricela de pince-nez, de cujo nome nao me recordo. Em varias outras reptblicas verificaram-se mortes de estudantes, Os comentarios eram nulos; a resignagio do nortista, sua_aceitacio primitiva da sorte, ai se manifestava, Minha nova morada, na Rua do Imperador, para além da igreja de Sao Francisco, do lado oposto, na diregio da praca, també bli "ora ¢ mbém republi ca, publiea de estudantes, era ES MINHA FORMAGAO NO RECIFE ainda no segundo andar de casa tio velha quanto a da Rua da Imperatriz. No primeiro moravam mulheres da vida baratas, mulatas, eafuzas, pretas. O tréfego risadas,. ¢ 0 trafico eram _continuos até alta noite. palavradas, gritarias. Na escada cruzdévamos com visi- antes subindo e descendo, pares enlagados, aos cochi- chos. Ouviamos e presenciévamos cenas, altercagées, policia chegando e saindo. Os rapazes da republica freqiientavam o andar; uns dormiam “em baixo”, outros traziam mulheres para cima, o que, tendo motivado protesto, deixou de acontecer. Entre as mulatas, uma havia mais atrevida do que as outras, pois batia & nossa porta alta noite. Falaya cicioso, mas ndo sem _certa graga. Era visivel, porém, A mais ligeira inspecio, que estava carregada de moléstias do mundo. Conta- minou quase todos os “republicanos”. Dominado, desde cedo, por um senso naturalistico da vida, aereditando em_micrébios, contagio, infeegio, e disposto a nao sacrificar definitiva e desnecessiriamente a satide, nao me deixei arrastar e imolar na facilidade em que via tantos colegas se desgracarem. Trogavam-me, na sua inconsciéncia; nfo podiam compreender que eu me preservasse como o fazia. A mulata_provocava-me, usava de todos os meios de atracio. Defendi-me, nao a deixci sequer aproximar-se. Tinha médo até do halito distante. Dois anos depois, encontrava-me eu ja escre- vendo no Didrio de Pernambuco, ganhando bem, mo- rando nio mais em reptbliea, mas num quarto de frente, limpo, cujas janclas no terceiro andar abriam- se sdbre a copa de altas arvores que ensombravam a rua. Recebi em mau papel uma carta em péssima caligrafia_e pior ortografia. A mulata, do hospital, 22 GILBERTO AMADO Lembrara-se do meu nome, ou Tho haviam insinuado? ito. Nao pedia-me um “auxilio”. lia 0 Didrio de Pernambuco, m leitor de_ romance, ba D e, boa soma, como me interessci Infor- 6 mandei o que pude, com os servigos do hospital em beneficio dela. i maram-me depois que, curada, voltara Deen cidade do interior de onde viera, a fim de readquirir carnes para continuar a vida. Nunca mais a revi. 7 Notei que um dos colegas da repiblica, sujeito magro, de olhos fundos, ar nervoso, de poucas falas, nao saia nunca de noite. Voltando da rua uma vez, bem tarde, nfo sei levado por que motivo, ansia de conversa, necessidade de livro, qualquer outra coisa, bati-lhe & porta. Demorou a abrir. Entrei. O quarto, quase no escuro, tinha um armirio préto, grande, que, em vez de encostado na parede, estava puxado para 0 meio do soalho. O rapaz atrapalhou-se com a minha presenga. Mas, diante do meu desejo de ficar, resig- nou-se. Feehou, pé ante pé, a porta e, bem junto de mim, sorriu e soprou: “Psiu!” Estirow-se de brugos no canto do lugar de onde afastara o armario e aplicou 0 rosto ao cho. Demorou, ajustando a vista ao buraco que vi logo ali existir, go ali exis Demorou-se um bocado. T evan- sain i ae neatetctee tando-se, ‘afinal, uquejou, num pigarro: — Venha ver! — woe he 08 olhos acesos. Meses a seguir, tédas 48 Noites, ia i y fazia isso o estranho rapaz, casa velha do velho Recife. invaridvelmente, naquele andar de taculo satisfazi insti set a ulo satisfazia-lhe o Instinto de voyeur, Pensei néle anos mai t " ae tarde, quando em Paris encontrei um brasi- clro, alias de Posicio, que foi logo me dizendo, depois eee 23 MINHA FORMAGAO NO RECIFE do abrago: “Tem uma casa na Rue Navarin... ali se vé tudo sem ser visto!” Mudei-me pouco depois dessa reptiblica. A peste Dubénica deu na casa. Em fase de intensificagéo da luta contra a epidemia, jé entao declarada e confes- sada pelas autoridades, 0 prédio foi evacuado. O voyeur, que estava coneluindo o curso, desapareceu. IV Camisas — Posigéo do Homem no Universo s RECORDAGOES DA INFANCIA avultam tanto no eapirito A do sexagenirio que ameagam ocupé-lo completa- mente. ‘Os pormenore: as _cenas mais minuciosas lhe ‘estado presentes na sua cor, nos seus relevos, aa gua movimentagio. As imagens e figuras que viveram ‘com 0 menino voltam no fim da idade madura, com wma intensidade imensa. Na Wistéria da Minha Infaéncia deixei de considerar grande parte, mais de metade talvez, de quanto me recordava ao escre- vé-la, e que me tumultua e fulge na memoria. Sé humanos, animais, paisagens, detalhes significativos, téda_ordem se_precipitavam para 0 no. papel limitado. s anos. Aos dezessete, quando cheguei a Pernambuco para estudar Direito, formado em Farmacia, j4 meio literatizado e filoso- fante, ésse passado infantil nao existia na minha meméria. Acamava-o, dentro de mim, uma crosta nova, que com a idade se quebrou, debaixo da qual as lem- brangas irrompem num esfervilhar de maripésas em torno de lampada no escurecey do.verio. Quero ver-me agora em Pernambuco, quando ali desembarquei, em recordagées di 1905. Tenho de esforcar-me para afastar da memoria a ramaria das recordagdes anteriores que me entopem. Rompo o caminho como quem avancga num mato cerrado, Estarei j4 tio velho? Oua reconquista do paraiso per- 24 Co | ' ‘CIFE 25 MINHA FORMAGAO NO RE dido, o retérno 2 meninice exerce apélo demasiado grande a quem precisa de férias?’ Recordar a infancia é isso para o homem nas minhas condigoes. += 0! libertar-se do quotidiano, reentrar no reino magico da irresponsabilidade, reintegrar-se no que foi antes de ser, voltar a busear, nessa liberdade e desocupagio, 0 encantamento que a vida nfo lhe deixou usufruir? Na idade avancada ja nfo achamos graga em nés mesmos, nao simpatizamos mais com o que gomos, nao nos re- vemos com delicia na propria imagem. Narciso nie | encontra mais fguas trangiiilas onde se mirar... § Em Itaporanga, eu era parte de um mundo, de um conjunto, pai e mie, rio e mar, meninos e cavalos; era parcela de uma soma, de uma forma de convivéncia : e de cultura, quase poderia dizer de um sistema de valores. JA em Aracaju comecara a desintegragio de um universo, ecuménico e total, fragmentara-se-me 0 espaco vital em blocos de estrutura diferente. Vivi como estudante em Pernambuco cinco anos. Conquanto intensos e vividos, parecem ralos... ténues, diluidos niio na sua consisténcia, em comparagfio com os anos den- sos e profusos, numerosos e inesgotéveis da infancia. ‘ B que em Pernambuco, uma parte sé, minima, do ser, o intelecto, sobrepés-se ao todo, usurpou o dominio, concentrou em seu poder, como um cavaleiro as rédeas do animal, o movimento, o impulso, nfo dirigido na infancia para um fim determinado. Mas nao exage- remos... O rapaz de dezessete anos, calouro na Facul- dade, estudante pobre ansioso de honrar as esperancas paternas e arranjar meios de aumentar a mesada insuficiente, com o pensamento no éxito, no futuro, é também um animal jovem, cheio de apetites carnais e GILBERTO AMADO i sensuais sob tédas as formas, comida na mesa, miulher na cama, roupa decente, sapato de boa marca, gravata bonita, chapén de féltro, bengala de junco. Certo, todas essas preoeupagées tinham importineia. Eu sonhava dormir em cima de lengol e nfo apenas em cima de pano gretado em colchiio fedorento de palha, pintal- gado de pereevejos. Desejava mudar de camisas. De todas as formas da miséria estudantina a pior nfo é a auséneia na mesa de um bife normal e de arroz sem pedra, de feijio sem cabelo ou pele de barata nadando dentro, A pior e a mais aborrecida das formas de “pobreza de estudante, que experimentei no Recife nos primeiros meses, foi a retengio pela lavadeira, para assegurar-se contra impontualidade de pagamento, das mudas indispenséveis de roupa branca. Tudo me era leve e suportavel, menos 0 ter de. lavar.a cuspo colari- nho e punho de camisa, como dias e dias e, sem exagéro, semanas e semanas. Ia cingiienta anos, camisa em Pernambuco, mesmo para estudante, era de peito duro, engomado, e punhos tam- bém duros, tubos enormes. Colarinhos, ésses entio, ultraduros, altissimos, Retirar a orla preta de um colarinho sujo 6 arte que sé estudante pobre conhece. Em Pernambuco havia mestres nessa arte. A ésse tempo, pé de dente era vermelho, Quando comecgaram a aparecer P6 e pasta brancos, tiveram uma utilidade além da que lhe era propria: serviam para branquear orlne de punhos e colarinhos; disfargavam bem. Sem es vases eram problemas, porém problemas inci- ao Marcaram.a.meméria em cardter,impera- tivo. Co) cmeaae ~e mo outros do mesmo género, esvaeceram-se. i tantos rapazes fazerem Ld MINHA FORMAGAO NO RECIFE s pr s do H que o espirito estava usurpado pelos problem ‘ “3, mi ass 0 jntelecto. Se era importante para mim a esse emp carts ; ss ” pensar em camisa limpa, muito mals importante ¢ saber a posicio do homem no universo, a origem deste, as leis que presidem 4 formagiio da socicdade, a situa- gio do individuo nesta. Monismo, Dualismo, Teoria ¢ Critica do Conhecimento, Livre Arbitrio e Determi- nismo, Causa Primaria, Causa Eficiente, Causas Finais, Idéia, Substancia, Vontade, Incognoscivel, Absoluto, Lei dos Trés Estados, Classificagio das Ciéncias, Meca- nicismo, Teleologia, tudo isso, que sio epigrafes ou titu- los de capitulos e expresses para vocabulario filosdfico, eram naqueles dias abismos a transpor, viagens a empreender, labirintos a desemaranhar, dominios a conquistar. Meses imensos! Horas céncavas, cada qual mais funda, querendo contetdo. Do sentimento da falta de camisas, suprida par- cialmente pela prosperidade monetaria em que logo no ano seguinte comecei a investir-me, s6 me curei com- pletamente em Paris, na minha primeira viagem, em 1912, sete anos depois de ter chegado ao Recife. Ao entrar no Doucet, na Rue de la Paix, sentindo as libras esterlinas no bélso, escolhidos a fazenda e os padroes, respondi ao caixciro que me perguntou: — “Quantas?” — “Trés diizias!” Nunca mais © assunto camisas me ocupou o espi- tempor ‘iver o mest “ respeito dos temas con- smo, alismo, ete.? quem comegou a filosofar cedo na vid se liberta. Déstes, a quase nunca Vv Circunciséo — Ligdes de Quimica — Exame de Filosofia FIRO ACABOU DE NOVO. Foi-se embora em DINHE on Ore em prazeres @, sobretudo, numa operagao , ica que me assemelhou a Jesus Cristo e ao cirirg’ rv téla feito em povo judeu e gragas & qual, por : duzentos filisteus, Davi ganhou, afinal, como diz a Biblia, Micol, filha de Saul. O texto (Samuel 18) 4} é dos mais tipicos do Velho Testamento. ! A propésito, / , a tradugaio portuguésa, editada em Genebra, de Jojo } iva.de Almeida, — péssima.|; Naéo me consolei, | como brasileiro, de ser obrigado a ler a Biblia em inglés e néo na minha lingua. Mas, como poder, sabendo-se inglés, deixar de preferir a King James Version — que ¢ em linguagem o que Bach é Jargao, desprovido de téda nobreza e grandeza biblicas, do mouco tradutor portugués, uma das pessoas mais destitufdas de ouvido que ja existiram? Arnébio Marques, mulato gordinho, famoso ci- rurgiéo do Recife, acedeu, com muita relutancia e desamor.,. gestos bruseos... ar desdenhoso, em vir uma manhi ao meu quarto, gu pagamento adiantado, Nao me lembro da soma, restava, De ma vontade, fez comigo o que Davi hav: realizar a operagio. xi- Queria mais do que levou. porém foi tudo quanto me sem simpatia nenhuma... ia feito com os filisteus... 28 29 MINHA FORMAGAO NO RECIFE ‘iquei dois meses sem poder rude e sumariamente. sair, Noites e noites sem dormir. . Apelos a Arnébio para mandar um assistente fi- earam sem resultado. “1” assim mesmo — respondeu, quando afinal o empregado The péde falar. — Sara.. 0 processo de cicatrizagiio as vézes demora, porém sara...” Veio febre. Os estudantes que me visl- tavam impressionaram-se; trouxeram afinal um pra- tico de farmacia que, com medicagio adequada, apres- sou @ cura. Foi nesses meses de imobilidade que comecei a dar ligdes de Fisica e Quimica e de Uistéria Natural. A prinefpio, a uns rapazes que iam fazer exames de preparatérios na Paraiba (exames por atacado) e em seguida a estudantes da Escola de Farmacia, que se inaugurara no Recife. O nimero de estudantes cres- ceu tanto que, quando pude sair, ja o fiz de bélso cheio. Ditei pontos de prova escrita, alinhei férmu- las e preparei textos de respostas 4s perguntas dos professdres para dezenas de estudantes: alguns pa- gavam mais do que deviam, com entusiasmo e gene- rosidade, As vézes eu queria recusar esta, mas a ne- cessidade podia mais do que o escrépulo. Durante ésses meses as horas passavam na ani- magio de estudantes entrando e descendo em tumulto. Eu comia comida fria trazida em marmitas ou em tabuleiros da pensio vizinha. No intervalo das ligdes atirava-me aos livros que entio me absorviam, todos de filosofia e assuntos correlatos. A le’ tura, alta noite, era nfo raro interrompida Por serenatas de estudantes. As vézes, vendo liz na GILBERTO AMADO 30 minha jancla, que dava para a rua, os rapazes subiam, ficavam até no amanheeer, sujando-me 0 quarto de pon- tas de cigarros. Um cearense, palido e madurio, muito magro, sempre de fraque de casimira verde, darrido (nfio me lembro do prenome), cantava com uma voz séca, meio trémula, acompanhando-se a0 violio, a que sabia comunicar sentimento. Que im: pressiio._ me causava aquela voz subindo da_rua_solita- ria, alta madrugada, para_a_ minha. vigilia! Enquanto a mim Trei vivendo Meu ideal de amor Que é sempre novo No verdor da primavera Na lira austera Que o Senhor me féz tdo bela Seré meu estro... Apesar da letra, a melodia penctrava-me 0 co- ragio. As vézes, sem nada a bicorar, o estémago vazio, “ardiam-me os olhos no calor da insénia que eu forgava. Chegava A janela, os rapazes me viam, can- tavam mais e mais. Do alto, eu pedia outras. Mi la vinham emboladas e modinhas arrastadas. Numa, evocativa, passava uma falua para rimar com lua. Nessa casa conheci um rapaz de Siio Paulo, cha- mado Jarbas, a quem 0 pai, rico, mandara completar o curso no Recife, para o punir nio se sabia de qué. Alguma_coisa de sério devia ter sido, pois_o rapaz guardava um segrédo que_o atorment: Tomava cachaga aos copos. Certas noites, nem podia abrir a porta do quarto, cafa no corredor, adormecia, resso- nando, debatendo-se, murmurando as vézes no sono de 31 MINHA FORMAGAO NO RECIFE Eu tinha a impres- epri sras incompreensiveis. easy ébrio palavra iP «suicidio”, sfio de que éle aealentava um pensamento de ‘ ape pois nio bebia por prazer de estudante, com espirl' ° farra, mas para se destruir, na ansia de apagar a fogo interior que 0 devorava. Nao terminou © curso, desapareceu. Deu-me ésse rapaz uma idéia de per- sonagem que eu iria encontrar em Dostoievski, pelo senso de desgraga que déle se desprendia e pelo con- traste entre 0 seu modo de ser quando sdbrio, limpo, lavadissimo, bem penteado, cabelos abertos no meio e uma espécie de pastinha sdbre a testa, que nunca . nas noites de be- vi em ninguém, e o seu ar tragic bida. Antecipou-me a_figura de Dmitri Karamazov. Por ésse tempo comecei a ter barba a fazer dia- riamente, como homem. Minha gratidio pela indis- tria americana, que criou a navalha gilete, é grande, pois me libertou de mao molhada de barbeiro, recen- dendo a cigarro, na minha cara. Metido em casa, deixei naturalmente de freqiien- tar as aulas: is de Direito Romano sé fui uma ou duas vézes durante o ano inteiro, O professor, po- Iitico local, ameno de aspecto, mas insignificante, nao tinha gdsto pelo que dizia. Saber Direito Romano, era visivel, jamais constitufra preocupacio do seu espirito. Tinha tido antecessor no autor de um com- péndio para uso de calouros, professor da cadcira, geragées atras, Pinto Junior, O zélo no tempo da Monarquia por é@sse ramo de Direito nio era maior do que no da Repiblica; ésse compéndio o atestava. Os estudantes mais interessados em aprender liam os manuais franceses, a tradugio de Mackeldey,” Vr GILBERTO AMADO a8 tolan e Apostilas da Faculdade de Direito de Paris, Xaula de Filosofia fui com mais freqiiéneia, para ouvir Laurindo Lefio, figura pitoresca, moreno, magro, cabe- Jos grisalhos, olhos no alto, passo vivo, fraque leve, caleas brancas, colarinho paixo. Entremeava as pre- legdes de exuberantes apologias a propria espdsa e ao sexo feminino em geral, que jhe inspirava pla- ténica idolatria. Nao desejo exprimir-me sdbre Lau- rindo Leaio como filésofo ou professor. Nao vejo o seu compéndio ha cingiienta anos. Do que éle dizia guardo sensagio confusa. ‘Mas_do _homem emanava um _calor_simpitico. Nomeado por Deodoro da Fon- seca, fazia as vézes na aula o elogio do proclamador da Reptblica. Devo-lhe um grande momento. Ele n&o me conhe- cia, pois minha presenga, rara na aula, passara despercebida. Quando teve de notificar aos estudantes o julgamento das provas escritas de Filosofia, levan- tou-se, agitou as félhas de papel na mao e, em voz alta, declarou: “Esta aqui, dez pontos é pouco. Ha dezenove anos que examino. Nunca vi prova igual.” Gritou-me o nome: — “Quem 6?” Vieram chamar-me no corredor. Mandou-me ler em voz alta, para a aula, a prova... 0 que, pelo fato de ter a minha gagueira aumentado pela emogio, it pude fazer, Outro estudante, bonitio, féz a lei- ura por mim, Saf da aula cercado de amigos... € de inimi i imigos. Que teria eu escrito naquela prova que entusiasmara Laurindo?

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