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Nb ~ ‘Titulo: Criangas, essas conhecidas tio deseonhecidas Regina Leite Garcia (org) Faw Themen Editoras Nilda Alves e Regina Leite Garcia Revisdo de provas Michelle Straoda Projelo grafico Bruno Cruz e Rodrigo Murtinho Capa Domus Design Diagramardo Fernanda Costa @ Silva Geréncia de produpdo Maria Gabriela Delgado CIP.Brasit. Catalogacio-na-fonte Sindicato Nacional dos Bditores de Livros, RJ 386 Criangas, 25805 conhecidas tio desconhecidas / Regina Leite Garcia (org). ~ Rio de Janeiro: DP&A, 2002. = (O sentido da escola) Inclui biblografia ISBN 85-7480:193-8 2. Orianges ~ condigées soviais. 2. Crianga I. Garcia, Regina Leite. II. Série, Formasao, ‘Dp 305.2 CDU 316.346.92.053.2 Ah. Sinica brocolax . Gducacé.o ADE I TEXTO UNID, CORAZZ, In: GARCL - 2002, p. 31-52 individuos gentes pequenas ¢ os ii F que conte outra vez? As dra. Era uma vez... Qu ‘A, San cidas. Rio de Janeiro: DP&A. onhe iangas essas conhecidas tio dese -gina Leite (org), Cri IA, Re; AZ Paginas Era uma vez... Quer que conte outra vez? - As gentes pequenas e 0 individuo Sandra Corazza* Nasce uma nova raca Era uma vez uma nova raga formada por gentes bem. pequenas. Surgiu assim, de repente, hd muito, muito tempo atrés, em um mundo parecido com o nosso. As outras duas ragas de gentes grandes que lé viviam eram antigas e fortes (embora uma delas se considerasse bem mais forte do que a outra), porque existiam hé milhées e milhées de anos, tinham aprendido a fazer muitas coisas, e dominavam (ou achavam que dominavam) todo o planeta, os seres que lé viviam, suas terras, mares, céus e as outras galaxias também, Como o surgimento das pequenas néo havia sido nada muito importante, as grandes tinham s6 uma vaga idéia de onde estas gentes vinham, mas nenhuma certeza, nem curiosidade: sabiam apenas que precisavam se juntar — Vrofessora da Universidade Federal do Itio Grande do Sul (UFROS). Griangas, essas conhecidas to desconhecidas se “conhecer”, como estava escrito em um antigo e pesado livro ~e entao elas apareciam, ¢ isto era mais do que suficiente. No comego, ninguém prestava atengéio as gentes pequenas. Suas criaturas eram mais ou menos como fantasmas, das quais ndo se falava, que quase nao se enxergava e que, por isto mesmo, também no incomodavam ninguém, As tais pequenas viviam soltas pelos lugares: comiam e bebiam do jeito que dava; dormiam onde tivesse uma beirada; vestiam-se com roupas que erara jogadas fora; circulavam no meio do passeio publico, nas lojas, nos mercados, junto com os gatos, patos, galinhas, porcos, cachorros, cavalos, vacas e bois. Muitas dessas gentes morriam, sem que ninguém chorasse; e, &s vezes, as outras duas ragas nem se davam conta de que faltava alguma, porque muitas nem nomes tinham; logo, logo, outras vinham e substituiam as que tinham morrido e ficava tudo bem. Aquelas pequenas que nao cesapareciam, faziam as mesmas coisas que as grandes, sem que ninguém Ihes pedisse algo diferente. E assim iam vivendo, um pouco como os bichos, um pouco ao lado das nativas, no méximo sendo consideradas umas delas em miniatura, uns andezinhos que ainda nao tinham crescido, nem eram completamente iguais. O Individuo é inventado Até que um dia, faz mais ou menos uns 300 anos, as grandes deram de inventar um sujeito que chamaram de “Individuo”, para viver num perfodo chamado “Modernidade”, que também estava sendo inventado. Este tal Individuo era um cara muito exibido, metido a besta, chato e irritante ~ “um mala-sem-alga”, como se diz hoje, ¢ ainda sem rodinha, no meio da rua, de papeldo e na chuva 32 Era uma vex... Quer que conte outra vez? ~; que comegou a prestar atengdo nas novas gentes. Nao uma atengio desleixada e qualquer, mas uma atengao sem limites, que ambicionava dar-lhes uma “vida prdpria’ (ele que criou esta expressio, com o sentido que queria), para fazé-las~ como ele dizia — “existir” em separado das gentes grandes, em um mundo especifico e auténomo, s6 delas! Corpo pequeno De tanto atentar, encasquetou que as pequenas tinham ‘um “corpo” e passou entao a observé-lo melhor — com olhos #40 grandes quanto os do Lobo que olhava para Chapeuzinho ‘Vermelho -, nao para devoré-lo, mas para implicar com ele, S6 para implicar com esse corpo - que ele embestou que no devia ser de qualquer jeito, mas “décil” e “itil” -, exigin que as pequenas se arrumassem melhor; que comessem e dormissom nas horas certas e nos lugares determinados; que Se assoassem ¢ néio pusessem mais o dedo no nariz; que tomassem banho “regularmente”, que escovassem os dentes, apés cada refeigéio; que ndo fizessem mais xixi nem cocd nas caigas, nas camas e nos tapetes; que cuidassem onde estavam pondo as maos ~ “1d”, no podia mais, era pecado!: maos que, alids, deviam estar sempre muito limpas porque existiam — dizia ele ~ uns bichos causadores de doengas chamados “micrdbios” e “bactérias” (os quais, como nenhuma das Pequenas enxergava, todas, sem excegio, achavamn que era mais uma das deslavadas mentiras do traste). Boletim, palavrées, brinquedos e jogos Obrigou as gentes novas a serem “polidas” (mais uma palavra horrivel que ele criou), a pedirem “por favor”, “com aR Griangas, essas conhecidas tdo desconhecidas licenga”, a dizerem “muito obrigado” ou “muito obrigada”; aserem “simpaticas”, “gentis” e “agradéveis” com as grandes, mesmo se estivessem com raiva ou emburradas; a mostrar os brinquedos, cantar, dangar, sapatear e macaquear quando chegavam outras gentes, chamadas “visitas”; ¢, 0 que era pior, a exibir um tal de “boletim” para umas criaturas — que, alids, elas nem tinham escolhido - chamadas de “padrinhos” e “madrinhas”, a quem também tinham de pedir “a béngdo” e beijar a mao (que nem sabiam se estava lavada ou néo e tampouco podiam perguntar). Mandou as pequenas pararem de gritar tanto; que s6 falassem quando as grandes tivessem acabado de falar e, mesmo assim, em voz tao baixa, que quase ndo se escutava. E, coisa mais grave, deu para selecionar umas quantas palavras que chamou de “palavras feias” ou de “palavrées", ‘as quais ficaram expressamente proibidas de serem ditas; estabelecendo que o castigo para esta desobediéncia era nada mais nada menos do que colecar pimenta — de preferéncia, vermelha ~nas bocas pequenas que as falassem. Decretou também que, a partir de entdo, as gentes pequenas estariam, irremediavelments, condenadas a0 brinquedo e ao jogo: dia e noite brincando e jogando, nao com qualquer coisa, mas com objetos diferentes dos das outras ragas (sim, porque estas tinham seus proprios jogos e brinquedos!). De modo que, sempre que se pensasse nelas, as associasse com isto e se dissesse: — fi de brincar ejogar que as pequenas mais gostam! (Estava criada uma das equivaléncias preferidas das grandes: pequenas = brinquedo-jogo.) ProibigGes e injecées do Peste Assim, o Individuo (este peste, que s6 podia ter sido criado pelas gentes grandes!) proibiu que as pequenas 34 Era ura vex... Quer que conte outra ver? fizessem um montdo de coisas que elas estavam acostumadas a fazer, ¢ inventou outro monto de coisas, que elas nunca tinham feito, e que tiveram de dar um jeito de comegar a fazer, sendo “apanhavam” mesmo, ou ficavam “de castigo” (duas das estratégias — alids, sofisticadissimas~ inventadas pelo Individuo, apenas para produzir e melhorar a vida das pequenas) ‘Uma das principais proibigdes era que as pequenas nao poderiam entrar no quarto das grandes, quando estas tivessem fechado a porta, ou quando ouvissem sussurros e gemidos — até gritos — vindos 14 de dentro (o que s6 fazia aumentar os cochichos entre as pequenas, seguidos de muitas desobediéneias, por sua vez seguidas de surras e castigos Para sua grande dor, todas as pequenas foram obrigadas a tomar injecdo, laxantes tipo leo de ricino, supositérios ¢ lavagens, emulsao de Scott, cdlcios ~ iodados ou no ~ t6nicos fortificantes, tipo bioténico Fontoura. Isto porque queria porque queria que “crescessem? e se “desenvolvessem” ~ palavras também inventadas pelo infeliz — robustas ¢ saudaveis para concorrer a prémios da espécie “Bebé do Ano Johnson”. Bebezées: bumbum e choro Criou farinhas de arroz e de milho, aveias, sucrilhos, leites em p6, sopas de espinafre, canjas de arroz e galinha, sucos de cenoura e de beterraba, bifes de figado (argh!) um monte de vitaminas. Tudo para engordar as pequenas, de maneira que as grandes pudessem desfilar com seus “bebezdes” e mostrar o quanto era maravilhosa a criagao que Ihes davam. Fazia parte dessa arte da “boa criacdo”, Por exemplo, um enorme arsenal de talcos, pomadas, éleos, ungitentos, liquidos emolientes e sabonetes contra as Griamgas, essas conhecidas tdo desconhecidas assaduras do “bumbum” (porque “bunda” ndo podia mais ser falada), e uma forte e prolongada dose de “aleitamento materno” Nosentido de aperfeigcar tal arte, o Individuo promoveu acscrita de “manuais praticos” — com titulos como: Meu filho, meu tesouro; Nossos bebés, a eterna preocupacao; Meu filho, minha vida; Como euidar de seu bebé; A vida do bebé ~Para que as grandes (ou malhor, uma das ragas em especial, Porque a outra, por muito e muito tempo, foi autorizada a ficar completamente liberada desta incumbéncia) pudessem tratar melhor das pequenas, de maneira que até os jeitos de elas chorarem estivessem ali codificados, para que se soubesse © que cada altura de choro, tipo de gemido, suspiro e vagido significavam. Havia, ali, de tudo: téenicas para compreender e atender choros de fome e sede, de desconforto, raiva, irritagao, célicas, gases ¢ até de tristeza. Havia orientagdes prdticas e seguras para amamentar e desmamar, castigar, lidar com brigas e mentiras, alimentar, higienizar, disciplinar, regular os hordrios, tratar doengas, usar 0 penico, controlar os “esfincteres” (existe palavra mais feia?), e até identificar sinais corporais de “manipulagdo genital”, Um mistério secular Eo Individuo tanto fez que, logo em seguida, iria chegar um tempo, onde as gentes pequenas — imaginem! —, que antes ninguém via, nem ligava, dariam nome a um século, que ficou conhecido como 0 deHis Majesty, the Baby. O gozado deste tempo — vejam se é possivel! —é que o Individuo botou na cabega das gentes grandes que elas também tinham sido, alguma vez em suas vidas, gentes pequenas, 36 Era uma vex... Quer que conte outra vex? Parece que esta idéia foi muito importante para a tal Modernidade e para as gentes grandes — embora elas nao se lembrassem muito bem como era, quando foram pequenas ~ porque, quando queriam explicar alguma caracteristica (principalmente, do ponto de vista delas, “patolégica”) de alguém, toma que toma: iam procurar no jeito como tinha passado sua pequenez, ou como era tratado quando era equeno ou pequena, ou no que fazia, sentia, dizia, sonhava, quando era da raga nova. Pensando melhor, foi importante sim, porque as grandes, a0 falarem de seu ser pequero, 0 faziam com uma espécie de grande saudade e nostalgia e diziam: “Aquele tempo, sim, 6 que cra bom?”; “Quando a gente era pequena, é que a gente era totalmente feliz!",“Oh!, que saudades que tenho da aurora da minha vida”, Assim, davam a impressio de que ser gente pequena era uma espécie de ‘paraiso na Terra”, As pequenas ficavam indignadas com aquilo - mesmo roxas de raiva ¢ fulas da cara -, pois sabiam que no era nenhum paraiso, néo, ser “pequena”, especialmente depois das maquinagées do Individuo, Mas, o que era mais estranho desta moda era que, ao mesmo tempo em que as grandes lamentavam-se de nao ser mais pequenas, quando queriam ofender alguma gente de suas ragas, acusavam-na de ser, ou de estar agindo como as pequenas! Isso sempre foi um mistério, porque ser gente pequena ou era um paraiso, ou era um inferno, uma provagéo, uma coisa errada. Algo a ser superado, reprimido e necessitado de corregio e supléncia, ndo 6 mesmo? O mais misterioso disso tudo 6 que aquela raca nativa, que se considerava mais forte, aproveitou a idéia de que as antigas tinham sido pequenas um dia e passou, cada vez mais decididamente, a tratar a outra raga de que jeito? ~ Do jeito como tratava a raga nova!, constituindo outra equivaléncia: pequenas = uma das ragas antigas, (Acreditem se forem eapazes!) 37 Griangas, essas conhecidas tdo desconhecidas Melhores momentos Mistérios de lado, nossa histéria continua. No século seguinte ao de His Majesty, the Baby, o incansdvel Individuo inventou céleulos, exames, maquinas e diagnésticos que diziam, antes de as pequenas nascerem, qual seria seu sexo, eco, cetatura, magsa fisica; se teriam doengas graves vu néo; de quem eram crias — pelos tais “exames de DNA” -, impedindo uma das racas de inventar tal coisa (como, a8 vezes, se obrigava a fazer, por necessidade extrema). Chegou ao edmulo de produzir as pequenas em laboratérios, através de armazenamento de embrides em baixas temperaturas e em pequenas provetas, até juntar 86 glandulas mamérias com évulos; fato que, diga-se de passagem, muito preocupou aquela raga antiga que se supunha mais forte e perfeita do que a outra —deu um medao de se tornar “dispensével”! ~ e preocupou, mais ainda, as. gentes pequenzs porque, afinal de contas, estavam decidindo tudo por elas préprias, até lugar, hora, sexo, grau de inteligéncia, nivel de beleza, cor dos olhos, tamanho, peso, tudo. Imaginem se desse um ataque de loucura nas antigas e elas decidissem fazer as pequenas em série: uma, para tal tempo e lugar, em que todas as novas seriam belas ¢ inteligentes; outra, para outro lugar ¢ tempo, em que todas fossem feias burras: — Qual seria a graga? Ou entdo — horror dos horrores ~ fazé-las todas como clones, exatamente iguais as grandes! Jd pensaram em um exército inteiro tirado de um 86 individuo? Do Rambo, por exemplo?! Trés Rambos em uma casa? 1,987 milhdo de Rambos numa vinica cidade?! (Ou um exército de um presidente sociélogo?) E fizeram tantos “embrides” de gentes novas que, um dia, estava demais: j4 eram milhées - tanto que daria para formar trés paises! Dai, por causa de uma lei, resolverain Eva wna vex. Quor que conte outea vex? extermind-los ¢ comegaram a descongelar e a pingar uma gota de dlcool em cada um, para que secassem e morressem, Algumas gentes grandes, as mais religiosas ou humanitérias, ficaram furiosas com aquilo e esbravejaram, dizendo que aquelas células jé eram, sim, “seres humanos”, ¢ que estavam cometendo um novo e verdadeiro “genocidio”! Tumulos, calcados, trancas, sensores Claro que o Individuo e seus asseclas — a caterva toda ~ também comegaram a chorar e a fazer belos tiimulos quando alguma das pequenas morria, a pintar quadros, a faz2r fotos, livros, brinquedos, roupas de renda, de babados e de marinheiro, calgados de tipo “Ortopé, Ortopé, to bonitinho”, cortes de cabelo, enfeites, méveis, casinhas, quartos de dormir, mosquiteiros, urinéis e tampas especiais para vasos sanitérios, bichinhos de estimagiio (o Desgragado tinha criado outra equivaléncia para que sempre se dissesse e pensasse que as pequenas “adoravam” os animais!), cadeires altas para comer, bergos para embalar, éleos protetores (com até 75 de Fes ~ Fator de Protecdo Solar) para o sol néo terrar as pequenas, carrinhos com guarda-chuva, sacolas, fraldas descartéveis, chupetas e colheres de silicone para serem esterilizadas nos fornos de microondas, protetores dequinas Para as pequenas nao se baterem nos méveis, adesivos antiderrapantes de banheiro para elas nao escorregarem, trancas para portas, janelas e armérios (que eram uma droga, pois nao deixavam mais ninguém mexer nas coisas, nem dar umas fugidinhas de casa, nem voar as vezes), Joclheiras para quem comecava a engatinhar, cadeiras ortopédicas para amamentar na posig&o “correta”, aparelhos elétricos para esquentar as mamadeiras, escovas de dentes musicais (que tocavam a musiquinha s6 quando as pequenas 39 Griangas, essas conhecidas téo desconhecidas sas, estivessem realizando corretamente sua “higiene bucal” ai, que horror!), termémetro especial para medir a temperatura da agua do banho (eo velho cotovelo nao servia mais?), aparadores de bergo para evitar que a pequena saisse da posigao “normal” enquanto estivesse dormindo, colchonetes adaptadores que “acomodavam” as pequenas nos bercos © em carrinhos, até — vocés nao vio acreditar nestas duas invengdes! - uma engenhoca dotada de sensor que emitia um sinal sonoro assim que uma leve umidade na fralda fosse detectada, e uma baba eletrénice com sistema de audio e video que permitia & mae e a outros interessados observar tudo o que a pequena fazia a distancia, Bilu-bilu, sapinhos, avidezinhos, sorvetinhos Inventou também uma linguagem estranha para falar- Ihes, que era uma espécie assim de balbucio idiota, cheio de “inhos” e “inhas” que acrescentava ao final das palavras usadas pelas antigas, e que cra uma desgraca para entender. E também expressées como “nhem-nhem”, “bilu-bilu”, “dandé”, “so-so”, que ninguém entendeu até hoje o que significam; ou entao sons guturais, vindos do fando da garganta das gentes grandes, que nem se podem escrever, de tao babacas que sao. Criou misicas especiais chamadas de roda, contos de fadas, gnomos, duendes, feiticeiras, mac&s envenenadas, abéboras que se transformavam em carruagens, sapatos pequeninos de cristal, sapos que se transformavam em principes ~ desde que alguém tivesse a coragem imensa de ~ ai, que nojo! ~ sapecar um beijo naquelas bochechas gosmentas; também inventou lendas de mula-sem-eabeca e de negrinho do pastoreio, poesias, histérias (como esta aqui), 40 Ere uma vez... Quer que conte outra ver? parlendas (que palavra horrivel!), quadrinhas (do tipo: “Quando eu era pequenina/ Minha mae me dava leite/ Agora que sou grande/ Minha mie me dé porrete” ~ que as antigas obrigavam as pequenas a decorare a declamar e riam muito @ achavam to bonitinha esta auséneia de qualquer bom gosto poéticol), calendarios, agendas, clipes coloridos, lépis enfeitados, eldsticos coloridos, pastas incrementadas, apontadores com formato de miniaturas de carrinhos, trenzinhos, avidezinhos (viram? até eu peguei a mania dos “inhos”!), Incentivou dias especiais, como o dos aniversérios, com festas cheias de baldes-surpresa, velas-teimosas que se apagavam mas voltavam a acender, apitos, cachorros- quentes, negrinhos, branquinhos, linguas-de-sogra, batatas fritas, salgadinhos tipo Cheetos, refrigerantes, balas, chicletes e chocolates — brancos e pretos -, ¢ inventou o sorvete (isto foi bom, muito bom). Té certo, inventou todo este monte de coisas gostosas, porém proibiu que as gentes novas comessem muito, porque dava “vermes”, “diarréia’”, “dor de barriga” e “céries” nos dentes. Ah! e também porque aumentaya 0 “colesterol” ~ pode isto? - e tornava as pequenas “obesas”! (Mas, depois de comegar a comer estas “porearias” ~ que como o préprio que tinha inventado as chamava -, quem é que queria saber dessas coisas?) Alma, jogos eletrénicos, pés chatos, vista fraca, palhacos ‘Teve a capacidade de inventar até mesmo uma “alma” das gentes pequenas, para a qual foi preciso criar anjos da guarda, rezas, escapulérios, medalhas, santinhos de recordacdo, estatuetas, rituais, ceriménias — de batizado, comunhao, crisma (ah!, esta ligagio entre as pequenas ¢ Griangas, essas conhecidas tio desconhecias cristianismol), que originaram alguns almogos dominicais e aqueles chatos dos padrinhos e madrinhas (de quem jé falei antes), que davam de presente, quando as pequenas nasciam, plaquinhas com seus nomes, chupetas de ouro, lembrancinhas, e até, mais recentemente, colocavam antincios em jornal. Criou toda uma paraferndlia de objetos — quase soterrando as pequenas com eles -, como bonecas e carrinhos, “homenzinhos”, bambolés e bolas (até bolas de meias velhas, que cheiravam a chulé dos donos das ditas cujas), bicicletas, carrinhos de lomba, bolitas, tacos, bichos de pehicia, os sem-graga dos “brinquedos didaticos”, que nenhuma das equenas queria ganhar; e, bem mais tarde, fabricou tantos jogos eletrénicos que ndo paravam mais de serem Tangados e que precisava um caminhio de dinheiro para compré-los. Deu a idéia de cachinhos e permanentes, chuca-chucas, fitinhas, passadores, caleas curtas, bonés; e depois jéias, linhas de cosméticos, perfumes, batons, esmaltes, roupas de dormir e de sair iguais as das grandes, s6 para as gentes pequenas ficarem cada vez mais iguais a elas. Mandou fabricar botas e sanddlias ortopédicas (0 cara teve a caradurice de criar os “pés chatos”); aparelhos ortodénticos (porque implicava com os dentes das gentes novas que, para ele, eram “tortos”, “desparelhos”); éculos para corrigir as vistas (que ele adorava diagnosticar como “fracas”). Imaginou e fez até uma coisa chamada “circo”, com palhagos, bichos amestrados (e infelizes, coitados!), trapezistas, mégicos e tudo o mais que 6 sempre igual: € mandou que circo e pequenas formassem uma outra equivaléncia, como aquelas de pequenas = brinquedos-jogos; pequenas = uma das ragas antigas; pequenas = animais, Criou tanto e tanto que, muito tempo depois, chegaria a0 cimulo de gentes grandes j4 meio velhas pularem a2 Era mma vat... Cher que conte outra ver? brinearem, {vito umas abubadas, durante horas (coma 0 Individuo achava que as pequenas faziam), na frente de uma cdmera de televisao (aparelho que, muito tempo depois, funcionaria - também por ordem do Indivfduo — como as “babs eletrénicas” preferidas das gentes novas, 0 que era mais uma de suas renomadas besteiras!). Lucro © que eu sei contar 6 que toda esta lidagdo com as pequenas (que parecia ser imprescindivel para o desenvolvimento, bem-estar e progresso da Modernidade) acabou ficando muito lucrativa e que uma pareela (pequena, 6 verdadel) das antigas ainda iria ganhar muito dinheiro com todas estas invengdes; chegando a fabricar “mundos em miniatura’, tipo Disneyworld (e versdes mais chumbregas como © Beto Carrero World), onde umas “tias” levavam as pequenas com muita seguranca, diversos cuidados, ¢ a prego de ouro, Foram erguidos também shopping centers em miniatura, para que as gentes pequenas gastassem mais, por transforma-las no que seria chamado, em ingles, de “target” ou, em portugués mesmo, de “parcela significativa do mercado” (mercado que, ao final, depois de derrubarem alguns muros, seria mundializado globalmente, de modo que, para qualquer lugar que fossem, era sempre tudo muito igual). Seriam realizadas, entiio, enquetes e entrevistas com elas, perguntando do que gostavam e deixavam de gostar, © que comiam, bebiam, viam, escutavam, cheiravam, usavam, brincavam..., e lhes dariam contas bancérias, cartées de assinantes e até de crédito, que poderiam usar ara pagar telentregas, querendo que gostassem muito de ‘umas comidas com gosto de isopor salgado, tipo McDonald's, 43 Griangas, essas conhecidas tio desconhecidas Em familia e na guerra: o amor ‘orém, tudo isso s6 foi possivel porque o tal sujeito, que nao descansava nunca —e, claro, que nao deixava mais as pequenas em paz ~ prestou tanta atengo nelas que cismou que as grandes, a partir de entdo, eram formadas por pais, mées, avés, avos, tias, tios, primos, primas ete., os quais todos, sem excego, estavam obrigados ~ a qué? — a “amé-las”, (Quinta equivaléncia preferida: pequenas = familia.) Foi assim que tudo comegou a ficar ainda mais complicado, porque as tais antigas tiveram mesmo de comecar a demonstrar tanto amor, tanto afeto e tanto carinho, que ndo largaram mais o pé das novas, cuidando-as, protegendo-as, satisfazendo-as, amando-as; e desejando que fossem muito felizes, que nao sofressem, que realizassem s6 coisas boas ¢ que fossem tao maravilhosas, plenas e perfeitas quanto — adivinhem quem? — o préprio Individuol Até guerras, revolucdes e mortandades fizeram para que isso acontecesse, querendo que aqueles ectoplasmas narcisistas do tal Individuo—as novas individualidades das gentes novas — retratassem, como numa foto utépica, arealizagao plena de um bem-estar (aligs, nunca aleangado) pelas grandes. (Toda esta linguagem complicada foi também: criada pelo tal Individuo, em apenas uma tarde chuvosa e cinzenta de suprema inspiragao critica, em que ele nao acertou os bolinhos de chuva-embatumaram —e ele estava muito irritado com tudo o que vinha criando.) Este amor foi mesmo o fim! Era grudento, asfixiante e pegajoso: ~ Gostoso? $6 as vezes. A partir dele, ficou decretado que as gentes pequenas precisavam, além de serem amadas, serem também instruidas, formadas e educadas, porque eram “de menor” (se elas sempre tinham sido pequenas!), dependentes, insuficientes, carentes, frageis, desprotegidas, 44 es wim vezi. Quer que conte ovtea vex? imperfeitas, irracionais, moralmente heterdnomas etc., ete.; isto é, tudo o que as racas grandes nao eram, e-vi-den-te- men-tel Governos, conferéncias, emergentes, professoras Ai, das nativas ele fez surgir quem? Um monte de, gentes com ocupagses dirigidas s6 para as novas: baby-sitters, moralistas, filantropos, humanistas, legisladores, pediatras, utopistas, religiosos, médicos, puericultoras, psiquiatras, psicélogas, psicanalistas de pequenas, confessores, assistentes sociais, diretoras de marketing, fil6sofos e socislogas da educagao, cientistas politicos, irmas de caridade, socialites, dondocas ricas - desocupadas, culpadas -, primeiras-damas assistencialistas ¢ antropdlogas soliddrias, emergentes da Barra da Tijuca ou de outro ponto, frades, conselheiras tutelares, guias espirituais, fiscais de diseiplina ete. Mas, acima de tudo, fez aparecer as professoras (e, mais tarde, os professores) que deviam amar tanto as Pequenas e, até mais do que todas as gentes daquelas neupagdes, tudo fariam para torné-las cada vez mais rapidamente iguais, iguaizinhas ao Individuo — livres, soberanas, racionais, auténomas (e mesmo “cidadas”, tal como o Cidadao, um primo-irmao do Individuo, que eu até esqueci de apresentar). Mas ndo pensem que a coisa ficou s6 por aqui — apenas na familia, nos professores e professoras, e nessas grandes que se ocupavam das pequenas -, porque os proprios governos também comegaram a xeretear em suas vidas e todos os governantes dos paises “civilizados” — em desenvolvimento ou j4 desenvolvidos ~ fizeram e assinaram uma declaragdo universal de seus direitos, Griangas, essas conhecidas tio desconhecidas escreveram estatutos, colocaram-nas nas constituigdes, eriaram comissées, fundagées, comités, conselhos, oNGs, congressos, conferéneias mundiais...; ¢ até sistemas de seguranga nos automéveis, obrigando-as a sentar, totalmente presas, no banco de trés, se nao as grandes levavam pesadas multas. Deram mesmo para enfatizar — porque muitos safados J4 vinham fazendo isso, hé muito tempo ~ que as relagdes das gentes grandes com seus governantes tinham porque tinha de ser iguais as das gentes pequenas com as. antigas ~, o que resultou em muita confusdo, muitas brigas, processos por assédio sexual, 2 impeachments! Bicho-papao, Disney, Super-Homem Claro que, com tudo isso, as gentes novas, agora “indefesas", comegaram a ter medo das coisas e, para inerementar ainda mais este medo, o Individuo criou um exército de personagens perigosos, como o bicho-papio, o homem-do-saco, a cigana que roubava criangas, o negro bébado, a bruxa descabelada, os fantasmas cruéis, amadrasta erversa, vampiros, frankensteins, predadores, Tyrannosaurus rex, homenzinhos verdes de Marte, #78, 08 monstros todos. Botou isso em gibis, em revistinhas, filmes e livros e— pasmem! ~ nos tais “desenhos animados”, que obrigou as pequenas a “adorarem” (sexta equivaléncia: pequenas = desenhos animados, que os esttidios Walt Disney “adoraram” muito mais!) e onde valia tudo. Até que um dia, inventaria 0s super-herdis, para que as novas se sentissem finalmente iguais As antigas, isto 6, poderosamente imbativeis e onipotentemente imortais (?); ai, fez aparecer o Tarzan, Mandrake, Fantasma, Roy Rogers, Zorro, Cavaleiro Negro, Capitao América, Super-Homem, Mulher Maravilha, 46 Era uma ver... Quer que conte outra ver? Batman e Robin, Shazam, O Anjo, 0 Sombra, Jeronimo — e Heréi do Sertao, Falcon, Demolidor, Homem-Elistico, Gavido Negro, Homem-Aranha, Homem de Ferro, Lanterna Verde, Allan Rocky Lane, Gene Autry, Apache Kid, Flash Gordon, Hopalong Cassidy, Wolverine, Supermoga, Jiraya, Capitdo Marvel, Surfista Prateado, Homem-Bala e Mulher. Bala, Conan, Thor, He-Man e She-Ra, Hulk, The Flash, 0 Homem de Ferro, Robocop, Changeman, Jaspion, Namor, Spectra Man, Comandos em Ago, Thundercats, X-Men, Quarteto Fantastico, Cavaleiros do Zodiaco, Tartarugas Ninja ete., ete, (Ufa!) Individualizagao e totalizacao do desgranido Passou a chamar cada pequena por seu nome e scbrenome (e mesmo por “apelidos”); e, imitando um lugar que jé existia ~ chamado “paréquia”~ onde, hé muito tempo, registravam seus nomes, criou um lugar civil chamado “cartério", para ali também registré-los (menos os apelidos, ‘ue ficaram mais ou menos privados), com data e hordrio de nascimento e tudo, (Ser que dobrou tal espécie de registro por medo de perder os nomes das pequenas? Ou porque ainda nio havia criado os microcomputadores?) O engracado desta parte da histéria é que, ao mesmo tempo em que individualizava o maximo que podia cada uma das gentes pequenas para analisé-las, o desgranido do Iniividuo criou um sistema de totalizacdo, agrupando-as para conté-las; e, deste jeito, poder dizer quantas viviam e quantas morriam; quantas adoeciam; quantas estavam crescendo bem e quantas estavam “minguando”: quantas eram de tal lugar e quantas de outro; quantas tomavam vacinas ¢ quantas nao; quantas pegavam gripe e quantas a7 Griangas, essas conhecidas tio desconhecidas no; quantas mamavam nas tetas de uma das gentes nativas ¢ quantas nas mamadeiras; quantas eram de tal casal e de tal pafs; e assim por diante. Um inferno para a ratatuia ‘Nesse dia fatfdico, em que comecou a reuni-las em um mesmo lugar, nao s6 para cont-las e medi-las, mas também para “olhé-las” por dentro e por fora e em conjunto, além deste duplo constrangimento, o Individuo inventou o pior: uma instituigdo e um discurso que tratavam e falavam delas, dizendo como eram, o que queriam, o que deviam ser, quais as que se desenvolviam de acordo com seus padrées quais as subdesenvolvidas, quais as espertas e quais as bobas, quantas aprendiam e quantas tinham uma coisa chamada “dificuldade de aprendizagem”, quantas eram normais e quentas anormais, quantas eram inteligentes e quais eram burras. Esta instituigdo — dizia ele - era um lugar muito importante, do qual os Estados necessitavam demais para muitas coisas! Em tal lugar, colocou a trabalhar, como assalariados e assalariadas, aquelas criaturas antigas que mais amavam as pequenas, isto 6, os professores e as, professoras (que, mais tarde, seriam chamadas de experts, embora trabalhassem sob condigdes indigentes e reecbessem salérios de fome!), ironicamente ordenando-Ihes que, a partir de agora, com aquela multiddo toda ~ que, as vezes, era referida como “ratatuia”, numa clara alusao inferiorizante auma determinada raga de roedores, que se reproduzia com muita rapidez —, cada uma das gentes pequenas tivesse seus interesses, necessidades, ritmos e desejos satisfeitos, de modo que virassem verdadeiros Cidadaos e Cidadas, que exercessem plenamente sua cidadania - de preferéncia, democrética, 48 Quer que conte outra vex? Isso era muito dificil de fazer e foi preciso criar “téenicas”, “instrumentos” ¢ “mecanismos” para realizar tal proeza: uns eram mais simples, como a palmatéria e o quarto escuro, ou entdo, um outro uso~nunea antes pensado ~ que articulava, 0s joelhos das pequenas aos grdos de milho (quem diria que as especializaces aleangariam tal nivel de elaboragao?); outros, mais complexos, como a redistribuigtio do espago e do tempo, os aleagiietes de sala de aula, as sinetas, sirenes, alto-falantes, e os registros nos famigerados “livros de ocorréncias”, copiados daqueles usados nas delegacias de policia. O ponto maximo de tais tecnologias foi alcangado pelos exames, e por suas crias mais contemporaneas, os democraticos “pareceres descritivos” - também chamados de “relatérios de desempenho escolar” ~¢ a verdadeiramente participativa ficha de “auto-avaliagao”, em que se exigia que as pequenas falassem de si mesmas até perderem 0 lego, as mAos ficassem secas, e as cabegas, ocas. inferno estava feito! Pois, além da familia, o tal sujeito tinha criado também a “escola” popular e compulséria (sétima equivaléncia, esta bem forte: pequenas = escola) e seu acompanhante perpétuo, 0 famigerado “laboratério de psicologia”, que trabalhava sem parar com testes comportamentais e mentais (e, no fim de um outro século, também com testes emocionais). Ciéncias da bolsa: um caso Convocou entao todas as grandes que fez existir para 86 se ocuparem das pequenas ¢ elas se instalaram na escola, com aqueles discursos que o Individuo chamou “ciéncias da educacao”, os quais “descreviam” (2!) as gentes pequenas. © negécio todo era obrigatério mesmo; tanto que, no finalzinho de um século, o Individuo pagava-- uma miséria, 4a Griangas, essas conhecidas do desconhecidas éverdade! ~ para que as grandes mantivessem as pequenas neste lugar, chegando a criar um sistema chamado “Bolsa- Escola”, que avaliava cada pequena em R§ 15 mensais. E olhem s6 que honra! Desde o dia dessa criagao, cada Pequena, mais do que ser ela mesma, passou a ser, nada mais nada menos do que “um caso”: ao mesmo tempo, um objeto a ser conhecido e sobre o qual se atuava, e um ative sujeito conhecedor de si mesmo; em outras palavras, um sujeito da raga pequena, ligado a alguém pelo controle ¢ dependéncia e vinculado A prépria identidade pela consciéncia e autoconhecimento — um sujeito — meu Deus, por fim! — livre, especifico e assujeitado, Também distribuiu e classificou todo 0 conjunto de casos individuais, tratando as pequenas como uma populago de casos e registrando seus desvios quantificdveis da norma. Nao mais fantasmas, mas verdades de sujeito Tais saberes e seus efeitos de verdade nao deixaram, nunca mais, que as pequenas vagassem astutas, como fantasmas invisiveis que eram quando tinham aparecido, onde nenhum conhecimento desse tipo fortalecia o poder nas. relagdes com as Tagas antigas. Ou seja, o Individuo inventou verdades em que todos acreditavam, até mesmo as gentes novas que passaram a falar de si, a agir e a se pensar do mesmo modo, porque acabaram acreditando e fazendo tudo aquilo que o desgracado tinha inventado. Fizeram assim para terem uma identidade e serem um sujeito com uma verdade. Mas também, o que élas poderiam ter feito, se nao isso? A ndo ser ficarem convictas de que seu verdadeiro Eu individual era aquele mesmo que estava Era uma vor... Quer que conte outra vez? descrito e classificado pelos conhecimentos (psico)pedagégicos © que, simultaneamente, serviam para legitimar todos os atos de poder escolares, politicos, culturais, sociais? Todas as condutas que conduziam e determinavam suas condutas? ‘Todos os jogos estratégicos que produziam verdades sobre si mesmas? Todos os cuidados de si em suas relagdes com os outros? Termina a historia: igualdade, liberdade, fraternidade Como esta histéria esta muito comprida, termina por aqui; nao sem antes afirmar que tudo isso aconteceu nao do mesmo modo com todas as gentes pequenas, mas com uma parcela delas; enquanto a outra parte, embora nao tivesse participado diretamente de todas as invengées, paraferndlias e técnicas do Individuo, a elas ficavam referidas e implicadas; integradas, justamente por nao participarom, nem terem, nem serem e, por isto, estarem marcadas como verdadeiras “aberragdes” a serem denunciadas em clima de pénico moral ‘e-em tom apocaliptico. Por enquanto, acho que ficou bem contado que as gentes pequenas ~ as inclufdas e as ditas exclufdas também — nfo viveram felizes para sempre, nfo. Sabem por qué? Porque, ‘ha exatamente 209 anos, o Individuo tinha escrito em uma bandeira — por iniciativa de uma classe chamada “burguesia” ~ trés grandes palavras que foram como que as guias de todas as suas equivaléncias e obras com as pequenas (das. quais contamos sé algumas). Por esta bandeira, ficava assegurada a igualdade de direitos, o estatuto de cidadase cidadaos livres, a identidade com os outros ¢ o poder de firmar contratos, ndo mais como Griangas, essas conhecidas tio desconhecidas sdditos, mas como iguais entre si - desde que as pequenas ficassem grandes, isto 6, virassem Gente”, como se diz ainda, Contudo, a esta altura dos acontecimentes, as gentes novas jd sadiam o que, da bandeira do Individuo, tinha sobrado para elas: por trés da liberdade, a grande e as pequenas reclusées; por trés da igualdade, a sujeicao e a normalizagdo de seus corpos; e por trés da fraternidade, a dominagao ¢ 0 sofrimento e, um pouco mais tarde, 0 exterminio. Fim? Dai a gente se obriga a perguntar: com todas estas “sobras”, as gentes novas poderiam ter vivido felizes nara sempre? Até que um dia... Bom, muita coisa ainda est acontecendo e tantas outras coisas esto por suceder com as gentes bem pequenas e com as grandes, e também coma tal da Modernidade. Mas estas jd so outras hist6rias, para outras noites. Agora, durmam, Era uma vez um gato chinés, do melhor jaez, que era xadrez e tomava xerez... Quer que eu conte outra vez?

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