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i) Edmund Burke Reflexdes sobre a Revolucao em Franca eg a ae s CE See awh Oa oe Cees Pe] Editor Universidade de Brasilia Edmund Burke Reflex6es sobre a Revolucdo em Franca Pensamento Politico Traducao de Renato de Assumpcao Faria, Denis Fontes de Souza Pintoe Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura Minka Impahpével Bibhoteca NEI Editora Universidade de Brasilia Com oapoo FUNDAGHO ROBERTO MARINHO Este livro ou parte dele nao pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizagao escrita do Editor Impresso no Brasil Editora Universidade de Brasilia Campus Universitario - Asa Norte 70910 — Brasilia — Distrito Federal Titulo original: Reflections on the revolution in France de Edmund Burke Copyright © 1982 by Universidade de Brasilia Introduction and Notes copyright © Penguin Books, Ltd, 1969 Direitos exclusivos de edigao da Introdugao € das Notas em lingua portuguesa: Editora Universidade de Brasilia Capa: Arnaldo Machado Camargo Filho Equipe Técnica Editores: Licio Reiner, Manuel Montenegro da Cruz Maria Riza Baptista Dutra e Maria Rosa Magalhies Supervisor Grafico: Eimano Rodrigues Supervisor de Revisdo: José Reis Controladores de Texto: Antonio Carlos Aires Maranhio, Carla P. Frade Nogueira Lopes, Clarice Santos, Lafs Serra Bator, Maria del Puy Diez de Uré Helinger, Maria Helena Miranda, Monica Fernandes Guimaries, Patricia Maria Silva de Assis, Telma Rosane Pereira de Souza e Vilma G. Rosas Saltarelli. FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNIVERSIDADE DE BRASILIA Burke, Edmund, 1729-1797. B95% Reflexes sobre a revolucdo em Franga. Trad. de Renato de Assumpgao Faria, Denis Fontes de Souza Pinto ¢ Carmen Lidia i Editora Universidade de Brasilia, p. 239 (Colegio Pensamento Politico, 51) Titulo original: Reflections on the revolution in France. 944.04 32(420) t série Sumario APRESENTACAO . INTRODUGAO Notas REFLEXOES SOBRE A REVOLUCAO EM FRANCA. Sociedade Constitucional . ~Sociedade da Revolugao . . DA MONARQUIA NA CONSTITUICAO INGLESA . Sermio do Dr. Price. Discussdo do Primeiro Principio do Dr. Price: O direito de escolhermos nossos governantes. Discusséo do Segundo Principio do Dr. Price: 0 direito de depor os go- vernantes por indignidade Discusséo do Terceiro Principio do Dr. Price: O direito de estabelecer uum governo para n6s mesmos....... 2.02200 ee eevee eee ees ASSEMBLEIA NACIONAL E A REPRESENTACAO. OS PRIMEIROS ATOS REVOLUCIONARIOS ea Fi fez, weito que ela tirou de sua condut: ‘A Assembléia Nacional: sua composicao. ‘0 Terceiro Estado. . . NOClet0. eee cee ee ‘A Nobreza Caracteristica principal da Revolugao na Franga: fe Sobre a igualdade dos homens e sua admissdo em todos os empregos . Sobie a representacdo de um Estado: o lugar que se deve conceder ao ta- lente; o lugar que se deve dar a propriedade. A representacdo na Franca. 7 73 74 75 78 79 80 81 82 Sobre um ponto do sermo do Dr. Price: se € possivel aplicar-se a Ingla- terra os principios da Franga . O que o Dr. Price pensa da representacdo inglesa . Conseqiéncias dessa opinido. Psicologia dos revolucionérios: € preciso que destruam alguma coisa Sobre os verdadeiros direitos do homem ... . De como a Ciéncia da filosofia ¢ experimental e exige mais experiéncia do que aquela que o homem pode adquirir em vid: De como os direitos do homem sao incompativeis com ciedade . Do perigo de se manter no esp/rito idéias revolucionérias . - Entusiasmo do Dr. Price diante dos atentados de 5 e 6 de outubro de De comoa ‘Assembiéia delibera : A atitude da Assembléia depois das jorada de outubro. As jornadas de outubro perante a histéria. . . Uma das causas do entusiasmo do Dr. Price . . CO espirito de cavalheirismo . . . . nee eee Seu desaparecimento, conseqiéncias.......... . Perigos de se suprimir os antigos costumes e regras de vida. Sobre os sentimentos que é natural experimentar a respeito das jornadas de outubro. O que se pensa na Inglaterra das caltinias levantadas contra De como os franceses fazem uma falsa idéia da Inglaterra. De como os preconceitos so venerados nesse pais... 01.6... eee bee ee eee De como € falso pretender que a Franga se tenha inspirado nos princi- pios ingleses. 6... 0... ce eee cee eee De como a Inglaterra est4 decidida a nao seguir o exemplo da Franga . A RELIGIAO E A SOCIEDADE CIVIL. 0 CONFISCO DOS BENS ECLESIAS- TICOS E A DESTRUICAO DAS ORDENS RELIGIOSAS. ............... De como a religifo é a base de toda a sociedade. A religido na Inglaterra e a consagrago do Estado De como essa consagragdo exige um culto piiblico por parte da Nagao... De como o culto publico exige uma instituigdo religiosa estatal. Como a educagao inglesa leva 4 crenga nessa instituigao . . Necessidade da existéncia de propriedades eclesias independéncia da Igreja e sua dignidade. . . De como os bens da Igreja sfo considerados inviolaveis pelos ingleses. . Sentimentos existentes na Inglaterra em relagdo ao confisco dos bens da Igreja na Franca SN Pretextos usados para se realizar 0 confisco . 103 106 109 109 Wd 17 118 119 122 122 124 ~ A causa real do confisco . . . 125 A inconsisténcia do pretexto inventado para outorgar 0 confisco - 128 Precaugées tomadas por outros tiranos para realizar confiscos andlogos . 129 Se a situago financeira da Franca justificava um confisco . 131 ~ Se a atitude do Clero justificava 0 confisco 131 O perigo da confisco.............. sees 132 O curso forgado da moeda...........-.-44- 133 O confisco aplicado as compensagées a serem concedidas aos detentores de cargos judicidrios.. 0.2.0... e cece e eee eer eee cece ee 133 Sobre a democracia e se ela convém a um grande pais. Seus efeitos so- bre a liberdade dos cidados .... 21... eee e cece eee eee eee 135 0 antigo governo da Franga e seus efeitos sobre a prosperidade do p: segundo a populacdo e a riqueza. en bees 136 \A Populagao. sees 137 \A Riqueza . . 138 A atual situagdo da Franca 141 As caliinias dos revoluciondrios contra a Nobreza e 0 Clero . 142 \A Nobreza. Aquilo que ela foi 142 \O Clero. Aquilo que ele foi seeeee 145 0 que a Revolugao fez do Clero ceeee 150 O que os protestantes ingleses pensam do confisco religioso 1 na a Fraga. 152 Perigos em que outras nagSes incorrem por causa do exemplo francés .. 153 Legitimidade das agdes defensivas de outras nagdes. A propaganda revo- luciondria. . cece eee eee 154 O injusto confisco na Franca fez desaparecer muitas corporagdes que poderiam ser utilizadas para o bem puiblico.............. 00.005 156 Sobre a venda dos bens eclesidsticos considerada como uma transferén- cia de propriedade seeeeeees 159 \Os bens dos bispos, monges e abades . » 161 A NOVA CONSTITUICAO FRANCESA 163 NA Assembléia ...........- 163 164 O seu modo de obter e conservar o poder. ( desejo que os motivou: contornar a dificuldade . . As dificuldades que um reformador deve super: As precaugdes ¢ a lentidao que se fazem necessérias 166 Exame das instituigdes criadas pela Assembléia Nacional. 168 Constituigao do Poder Lepiatvo, . 169 A base territorial... ... : 169 A base populacional. 170 A base da contribuicao. . 7 Como o sistema eleitoral francés protege os ricos. 172 Se o sistema ¢ logico em si. 174 A Franga dividida como um pais conquistado......... 176 A necessidade da existéncia de diferentes classes sociais em uma nagdo . 177 Como a resolugdo de dividir 0 pais em repiblicas separadas levou os co istituintes 4 maioria de suas dificuldades e contradigdes ......... 179 Constituigao Francesa e Constituicdo Inglesa. Nao reelegibilidade dos deputados 180 Os meios adequados a manter unidas estas repiblicas separadas . 181 O confisco . pasenraagasiee 181 Supremacia de Paris... 185 ‘A Assembléia, Poder Soberano. A auséncia de Senado . 186 Poder Executivo. 187 Porque nés conservamos um Rei, 190 Os ministros . 191 0 poder Judiciério 192 Do Exército . 195 Ateceita Beg an oop ee 206 O crédito. Onus que gravam as propriedades confiscadas. 2u1 Se as medidas financeiras da Assembléia trouxeram algum alivio a ao, POVO. eee cece eee ee ene e tenes Se a Assembléia é capaz de dar a liberdade Se a Assembléia fez algo de bom. Conselhos aos ingleses .. . . a ceeaee Notas 2... ee eee Apresentacdo REFLEXOES SOBRE A REVOLUGAO EM FRANCA Edmund Burke nasceu em Dublin em 1729, filho de um advogado. Formou-se pelo “Trinity College”, Dublin, em 1748, indo depois para Londres, para ocupar a fun- do de leitor do Forum de Justica. Em 1756, publicou o seu primeiro trabalho literd- tio, A Vindication of Natural Society e On the Sublime and the Beautiful e na mesma época, também, se casou com Jane Nugent, Em 1765, Burke tornou-se secretario parti- cular de Rockingham, Primeiro Lorde do Tesouro, tendo sido eleito para o Parlamento pelo burgo de Wendover em 1766, acompanhado os Rockingham Whigs na oposi¢fo no ano seguinte. Em 1771, apés a publicagdo de dois panfletos, Observations on the Present State of the Nation e Thoughts on the Present Discontents, ele foi designado ‘Agente de Londres para o Estado de Nova Iorque e em 1773 visitou Paris. Um forte opositor da administrago de Lorde North, ele enfaticamente atacou a politica ameri- cana do Governo nos seus discursos On American Taxation (1774) e On Conciliaton With the Colonies (1775). Nas eleigdes de 1774 tornou-se deputado por Bristol, lugar por ele perdido seis anos depois em decorréncia de sua defesa dos direitos comerciais da Irlanda. Lorde Rockingham, entretanto, deu-lhe uma cadeira pelo seu burgo em Maltan. A popularidade de Burke em nada aumentou quando ele iniciou 0 processo de impeachment de Warren Hastings e em 1788 seu amigo Charles Fox, que deveria for- mar um Governo, nao 0 apoiou. A “Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca” foi escri- ta na primeira metade de 1790 e publicada em novembro do mesmo ano. Durante 0 resto de sua vida, suas preocupagGes estiveram em torno dos problemas na Franga e na Inlanda. Ele morreu em Beachonsfield em 1797. Conor Cruise O’Brien membro do Parlamento irlandés pelo distrito nordeste de Dublin e Pré-Reitor da Universidade de Dublin desde 1973. Nascido em 1917, ele rece- beu os graus da B.A e Ph.D pelo “Trinity College” de Dublin e entrou para o Ministé- tio das Relagdes Exteriores da Irlanda em 1944, Em 1955 ele era Conselheiro em Paris e de 1956 até 1960, Chefe da Divisio das Nagdes Unidas e membro da Delegaco irlan- desa junto 4 ONU. Em 1961 representou o Secretério-Geral da ONU em Katanga, mas 2 Edmund Burke a0 fim daquele ano renunciou a seu cargo. Foi Vice-Reitor da Universidade de Gana de 1962 até 1965 ¢ Professor de Humanidades de Albert Schweitzer na Universidade de Nova lorque de 1965 até 1969. Entre seus livros est4o incluidos: Parnell an His Party (1957), To Katanga and Back (1962), Writers and Politics (1965), The United Nations: Sacred Drama (com desenhos de Feliks Topolski, 1968) e States of Ireland (1972). Introdugdo “O MANIFESTO DE UMA CONTRA-REVOLUCAO” 1 O espectro que perseguiu a Europa no Manifesto Comunista (1848) e que conti- nua a perseguir atualmente o mundo, aparece pela primeira vez nas paginas de Burke: “da sepultura da monarquia francesa assassinada brotou um espectro grande, tremendo e sem formas, numa roupagem muito mais assustadora de que qualquer ou- tra que j4 tenha tomado conta da imaginago do homem e vencido a felicidade huma- na: partindo diretamente para 0 seu objetivo, nao intimado pelo perigo, nao paralisado pelo remorso, desprezando todas as m4ximas comuns e todos os meios comuns, aquele odioso fantasma dominou a todos que ndo acreditavam ser possivel a sua exis- téncia. Convencidos mais pelo habito do que pela natureza, tais pessoas acreditavam em sua existéncia apenas baseada em principios necessdrios para o seu proprio bem- estar e para seus modos ordinérios de ago”. ‘A revolugdo que Burke tanto temeu nao € obviamente idéntica a revolucdo comunista de Marx, mas tem muito em comum com ela e, em alguns aspectos, muito mais em comum do que com a Revolugdo Francesa dos dias de Burke. Ele provavel- mente veria nos principios da revolu¢do comunista o surgimento de uma forma ainda mais pura daquilo que mais detestava na revolugdo contemporanea, cujo desenvolvi- mento na Franga ele via com horror e fascinago e que, na Inglaterra, ele procurou por em xeque com elogiiéncia ¢ inteligéncia, © espitito da renovacdo total e radical; a des* truigdo de todos os direitos consagrados pela tradico; 0 confisco da propriedade, a, destruigao da Igreja, da nobreza, da famflia, dos costumes, da venerago aos ances- trais, da nagdo — esse é 0 catélogo de tudo aquilo que Burke odiava nos seus momentos’ sombrios, ¢ todos esses elementos ele encontraria no marxismo. Na personalidade do proprio Marx ele veria encarnada aquela energia que, segundo ele, era malévola para a ordem social: a energia da habilidade sem propriedade? . Em Engels, ele veria um tipico Tepresentante de um grupo Cujas atividades via ndo somente como nocivas, mas tam- 4 Edmund Burke bém como incompreensiveis: 0 grupo de homens de bens que encorajava a difusdo de principios incompativeis com 0 direito de propriedade?. Da mesma forma que Burke, Marx e Engels, cuidadosa e apaixonadamente, investigaram a Revolugao Francesa, pro- curando no seu desenvolvimento o segredo do desenvolvimento futuro da politica européia e mundial*. Como a dele, a imaginago de Marx e Engels foi profundamente penetrada pelas energias que a Revolucdo descarregou, profundamente impressionada pelo constraste entre a dimensdo daqueles acontecimentos e a rotina da politica em um mundo que esperava que a Revolugio poderia ser ignorada, ou tratada como um evento excepcional e puramente local, isolada no tempo e no espago. Também como ele, esses tiltimos olharam por entre a fachada politica da Revolugdo, em busca da sua substancia econémica e social: Burke oferece, nas Reflexdes* e em outras obras, alguns dos melhores exemplos da critica aristocratica em relagdo 4 burguesia, da qual o Manifesto Comunista faz uma apreciagao sarcdstica. Burke e Marx procuraram compreender os princfpios revoluciondrios presentes na Franca ~ Burke com vista a impedir sua propagagao e a destruir 0 nticleo da infecgdo Marx para elogiar a vitoria de uma nova revolugdo, trazendo consigo o triunfo de tudo aquilo que Burke via de mais desprezivel — ¢ ndo daqueles aspectos mais benéficos — da velha ordem. As grandes revolugdes de nossa época, a russa e a chinesa, ocorreram, sob a lide- ranga comunista, em paises que nunca tiveram um equivalente da Revolugdo Francesa. A Franca e aqueles outros paises ocidentais mais expostos as idéias do Iluminismo e, como a Gr&-Bretanha e os Estados Unidos, menos resistentes aqueles principios de democracia politica que Burke renegava, ndo esto, hoje, entre aquelas nagdes mais revolucionérias do mundo. O pais que foi o centro da contra-revolugdo nos seus dias © pais cuja Imperatriz ele admirava®, se tornaria para a nossa época o nucleo da infec- ¢do revolucionaria que a Franca foi na época de Burke. Nés temos condigées de ver a Rissia, por meio de suas vit6rias revolucionarias, deixar de ser uma forga revolucion- ria para ser substituida por um poder que estava ligado, muito antes da Russia, as for- mas ancestrais, que forneceu o supremo exemplo no mundo, de grande adequagdo a0 contrato social na forma pela qual Burke o via ~“‘uma sociedade ndo somente entre os vivos mas também entre os vivos, os mortos € aqueles que haverdo de nascer.”"” Se, como Burke desejou e emocionadamente instigou, as monarquias européias tivessem sinceramente se unido para esmagar logo no inicio, e completamente, a Revolugao na Franga, enquanto suprimiam totalmente qualquer manifestagdo, mesmo incipiente, de potencial revoluciondrio nos sedis paises, poder-se-ia imaginar os sucessos que tal atitu- de poderia produzir a longo prazo. Nao seria possivel, entretanto, que as forcas revolu- cionarias, mais comprimidas do que suprimidas, tivessem explodido em um periodo posterior, com muito maior violéncia, sob uma lideranga mais disciplinada, consistente e determinada, e com efeitos muito mais radicais sobre a estrutura social? Perguntar é, penso eu, levantar dividas sobre o grau de esclarecimento dos interesses da alianca contra-revolucionaria internacional. Retornarei a esse ponto, ao considerar a importan- cia de Burke para o anticomunismo militante dos nossos dias. De inicio, entretanto, — na medida em que a atitude de Burke em relagdo 4 Revolugdo no foi, inicialmente, um comportamento de cruzada — é necessario discorrer sobre o desenvolvimento real Reflexées sobre a Revolugéo em Franga 5 das suas opinides, emogdes e apreensdes sobre a Revolugdo, pelo menos naqueles pontos que sao revelados por seus escrifos. Desde 0 inicio, logo apés a queda da Bastitha, os eventos, que para muitos signi- ficaram 0 advento de uma nova era de liberdade, provocaram um certo receio em Bur- ke, sem, entretanto, leva-lo a uma condenacao geral. “Para nés, aqui”, ele escreveu para Lord Charlemont em 9 de agosto de 1789°, “todas as reflexes sobre os nossos problemas internos ficaram suspensas pela nossa preocupagdo pelo maravilhoso espetaculo em um pais vizinho e rival — que especta- dores e que atores! A Inglaterra olhando com surpresa a luta, na Franga, por liberda- de e néo sabendo se deve recriminar ou aplaudir! Tudo isso, apesar de eu achar que algo parecido jé estava em curso hd muitos anos, tem algo de paradoxal e misterio- so. E impossivel ndo admirar o espirito, mas a velha ferocidade parisiense explodiu de uma forma assustadora. E verdade que isso pode ser meramente uma explosio subita... mas se isso tiver um cardter basico, ao invés de simples explosdo, entao esse povo ndo est preparado para a liberdade, devendo, assim, ser governado por uma mio forte como aquelas de seus antigos senhores. O homem deve ter uma certa dose de moderagdo para poder ter liberdade, para que ela ndo se tome nociva e prejudicial ao corpo so- cial”. = ‘A mesma atitude, a de um espectador apreensivo e desgostoso, aparece refletida em outros comentarios de Burke em 1789. A desaprovagao, entretanto, aumenta em 10 de outubro de 1789, depois da transferéncia revolucionaria do Rei de Versalhes para Paris, quando escreve para seu filho sobre “. . . O prodigioso Estado francés — onde os elementos que compdem a Sociedade Humana aparentam estar todos dis- , solvidos, foi substitufdo por um mundo de monstros — onde Mirabeau preside como © Grande Andrquico, e o antigo Grande Monarca se transforma em uma figura ridi- | cula e merecedora de pena. Espero vé-lo demitir o regimento que ele chamou para ajudé-lo, para beber a sua sade . . .e saber que ele escolheu um corpo de amazonas parisienses para a sua guarda pessoal (Corv. VI, pp. 29-30).” Em 4 de novembro, Chames Jean — Francois de Pont, “um jovem nobre de Paris” escreveu para Burke uma carta, para qual as Reflexdes so uma resposta. “Son Coeur”, ele disse, “battu pour la premiere fois au nom de Liberté en vous en entendant parler... Si vous daignez Vassurer que les francais sont dignes d’étre libres, qu’ils sauront distin- guer Ia liberté de la licence et un gouvernement légitime d'un pouvoir despotique; si vous daignez enfin Vassurer que la Révolution commencée réussira, fier de votre té- moignage il ne sera jamais abattu par le découragement qui suit souvent l’espérance.”" (Corv. VI, pp. 31-2). Desde 0 inicio da Revolugao até sua morte, Burke nunca pode dar a certeza pedida por seu jovem correspondente, mas a sua resposta original é muito mais branda do que a feroz polémica das Reflexdes. Ele enfatiza sua ignorancia sobre o estado atual da situagio e desconfia do seu préprio julgamento “Se eu parego” ...diz ele, “expressar-me em uma linguagem de desaprovacdo, seja gentil em olhé-la como uma 6 Edmund Burke mera expresso de duvida”. Ele explica qual a liberdade que ele admira: “a liberdade a qual me refiro € a liberdade social. E aquele estado de coisas no qual a liberdade é garantida pela igualdade na aplicagdo das sangGes, um estado de coisas no qual a liber- dade de nenhum homem, de nenhum grupo de homens e de nenhuma corporacdo de homens possa ter meios de se impor a liberdade de qualquer homem ou de qualquer grupo de homens na sociedade. Sem a existéncia disso, tornando-se inviavel o estabele- cimento de uma real liberdade pratica com um Governo capaz de proteger, incapaz de destrufla... teremos uma Monarquia subvertida, mas no uma liberdade recuperada... Passaremos a viver em um novo estado de coisas; sob um plano de Governo, no qual nenhum homem pode falar com base na experiéncia. Os franceses ainda passaréo por novas transformagGes”. Burke dé um conselho ao gosto dessa poca de luzes... ‘mas como o ultimo fruto maduro da experiéncia — Nunca separe idealmente os méritos de uma questo politica do homem que nela esté interessado... O poder de um homem mau néo é algo indiferente...” a carta termina com um elogio a prudéncia e 4 moderagdo: “Prudéncia (em todos os casos uma virtude, na politica a primeira das virtudes). Acredite-me, Senhor, em todas as modificagGes de Estado, a moderagdo é uma virtude, nao somente agradavel, como poderosa. E uma virtude despojada, conciliatéria, cons- trutiva... ousar ter duvidas quando tudo € to cheio de presungGes e audacias. Essas repreens6es inteligentes e memordveis nao so de forma alguma incompati- veis com as ReflexGes — que contém varias passagens no mesmo teor — mas a chama dessa grande época ainda nao foi acesa. Ainda ndo ha nenhuma nota de alarme. “Em relacdo 4 Franca”, como ele escreveu ao Conde Fitzwilliam na época em que ele devia estar escrevendo a réplica a de Pont, “‘se eu fosse dar asas as especulagdes que povoam a minha imaginagGo quanto ao presente estado de coisas e que agora comegam a ser desvendadas, eu acreditaria que fosse um pais desfeito... Eu certamente gostaria de ver a Franga cercada por lagos moderados. O interesse desse pais requer, talvez os interes- ses da humanidade também requeiram, que ela nao esteja em uma posicao despética capaz de impor leis 4 Europa: mas eu creio ver muitas inconveniéncias, néo somente para a Europa como um todo, mas para esse pais em particular, na total extingdo po- litica de uma grande Nagao civilizada situada no corago do nosso sistema ocidental”? . Antes de Burke e mesmo apés sua época, muitas pessoas foram surpreendidas por “inconveniéncias” de outras formas. Até o fim de 1789, entretanto, ele permanece desinteressado € pouco motivado. “Os problemas na Franga, na Inglaterra,” ele escreve para o seu amigo Philip Francis em dezembro, “nos so apresentados como uma ques- tao curiosa, com os quais 0 nosso sentimento de “dever” nio se interessa; ndo somos levados a nos intrometer com seus efeitos: e talvez as loucuras da Franca, pelas qu: ainda ndo fomos afetados, possam empregar a nossa curiosidade de uma forma mais agradavel, e mais util do que a corrupedo da Inglaterra, que é mais calculada para nos fazer sofrer”!”. Foi por volta de janeiro de 1790 que a atitude de contemplacao de Burke come- gou a desaparecer dando vez a um comportamento mais ativo. Uma carta escrita a um desconhecido, datada da segunda quinzena daquele més, demonstra essa transicao. Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 7 Nessa carta ele é mais filos6fico ou teleoldgico sobre a situa¢Zo na Franca do que em qualquer outro de seus posteriores pronunciamentos: “O homem é um animal gregario. Ele suprird gradativamente suas necessidades naturais e essa coisa estranha terd, algum dia, uma forma mais civilizada. O peixe ird finalmente construir uma concha que o ser- viré”. Assim ap6s alguns comentarios sarcésticos sobre Voltaire e Rousseau, ele expoe um argumento que demonstra sua preocupacdo: “Eu vejo que certas pessoas aqui que- rem que nos tornemos seus professores e reformemos nosso Estado segundo o modelo francés. Eles j4 comecaram, e jd € tempo daqueles que querem preservar 0 morem ma- jorum de estarem vigilantes”. A primeira fase das atividades contra-revolucionrias de Burke — aquela das Reflexdes — foi a da luta contra a influéncia revolucionaria na Inglaterra. Nessa pri- meira fase ele nao via, basicamente o perigo proveniente da Franca, mas na forma de pensamento que levou aos conhecimentos na Franga e naqueles homens que querian) levar esse pensamento a Inglaterra. O perigo aparecen para elé mais evidente ao ler os serm6es do Dr..Price € na correspondéncia da Sociedade Revolucionéria com a Assem- bléia Nacional! Logo apés, no Parlamento, Charles James Fox elogiou com grande énfase a Revolugdo Francesa, dizendo que ele “‘a elogiava por seus sentimentos e seus principios”, Pitt também esperava uma Franga livre e reconstrufda “como uma das poténcias mais brilhantes na Europa”. Foi entdo que, pela primeira vez, Burke, em 9 de fevereiro de 1790, tomou uma posigdo publica contra os princfpios da Revolugdo. O cémputo final de seus discursos faz ver que sua' principal preocupagdo declarada era © perigo de infecedo proveniente da Franca, na Inglaterra: ‘a casa deve perceber, pela sua antecipagdo em entender dois de seus melhores amigos, como ele estava ansioso em evitar a menor tolerancia na Inglaterra em relagao a loucura na Franga, pois estava cer- to que pessoas fracas na Inglaterra estariam propensas a recomendar que se imitasse © espirito de reforma francés. Ele estava t4o contrario 4 menor tendéncia de introdu- zir esse tipo de democracia, assim como os fins a que ela visava, que ndo hesitaria, por maior que fosse 0 sofrimento, em abandonar seus melhores amigos (apesar de ndo crer que eles pudessem tentar isso) e se juntar a seus piores inimigos para se oporem, ndo somente aos meios como aos fins desse tipo de democracia; e para resistir a todas as manifestag6es violentas desse espirito de inovacdo, tao distante de todos os principios da reforma segura e verdadeira, um espfrit calculado para derrubar governos, mas completamente incapaz para aperfeigod-lo®!?.) As Reflexdes sobre a Revolugao em Franga desenvolvem, defendem e ilustram esse argumento. 3 O sucesso posterior, porém nao imediato, das Reflexdes junto as classes pro- prietérias — devido ao crescente panico causado pelo. progresso da Revolugdo — e seu -eféito de restaurar Burke A condi¢&o de favorito real}? e 4 concessfo de uma pensfo apés_a_sua-aposentadoria naturalmente levaram 0s opositores de Burke a afirmar que ele — como dirfamos hoje — tinha se “vendido”, abandonando suas crengas em troca de dinheiro e posigao. Tom Paine no seu “Direitos do Homem” acusou-o de suborno: 8 Edmund Burke desenhos da época repetem esse tema; Marx, posteriormente, reafirmava em seus escri- tos essa visio do posicionamento contra-revoluciondrio de Burke!*. Como poderia ser explicada a transformagdo, a defecgdo da causa da liberdade, daquele que tinha, como era acreditado, liderado a causa da Revolugdo Americana? A acusa¢do se tomou plausivel em decorréncia da situagdo financeira complicada de Burke, sua vida cara em Beaconsfield — sobre a qual Dr. Johnson comentou: “Non equidem invideo; miror magis” — e da reputagdo que a familia Burke tinha, em virtude de transagées financei- ras passadas!. Por mais plausivel que possa ter parecido para seus opositores da época, e 0 debate sobre as Reflexdes continua tdo vivo que seus opositores sempre tiveram uma tendéncia de aparentar contemporaneidade, a acusago de que Burke se opés 4 Revolu- ¢do em troca de favores ndo pode ser aceita. No inicio de sua carreira — e como condi- do para ter uma carreira — Burke entrou em contato com uma grande quantidade de pessoas da nobreza e de propriedade. Ele mesmo era um dos melhores exemplos de uma conjuntura que ele achava temivel para uma sociedade madura: habilidade sem pro- priedade. Tivesse ele nascido em circunstancias sociais similares em Arras em 1750 ou em Dublin ou Belfast em 1760, ele provavelmente teria sido um revoluciondrio perigo- so, j4 que era inteligente. Mary Wollstonecraft pensou dessa forma: “Lendo as suas “Reflexdes” demoradamente, cheguei 4 conclusio de que, se vocé tivesse sido francés ¢ apesar de seu respeito pela hierarquia e autoridade, vocé teria sido um revolucionario violento. Sua imaginagdo teria se incendiado..."#6 Mas em decorréncia da vida que le- vou, nascido em Dublin em 1729, ele colocou sua habilidade, desde 0 inicio, a servico dos homens nobres e de posse. Ele permaneceu fiel, sem subserviéncia, ao lado que escolheu. Seus escritos sobre os problemas americanos ndo eram revolucionarios, eles eram longe disso, uma tentativa de impedir o desenvolvimento e a exarcerbacdo de uma situagdo revolucionéria. E verdade que ele nunca condenou a Revolugao america- na, como fez com a francesa, uma secess4o, entretanto , de um grupo de colonias ndo € um evento similar 4 derrubada de uma ordem estabelecida em uma grande poténcia, apesar de a palavra Revolugdo ter sido usada para ambas. As cartas de Burke da segunda metade de 1789 — referidas acima — mostram que sua atitude em relagdo 4 Revolugdo Francesa era de desaprovagdo desde o inicio, mesmo antes de ter que assumir um posi- cionamento publico. Mesmo acreditando nos influentes pendores de Burke para previ- sOes politicas, seu ataque 4 Revolugdo na Franca ndo parecia, na primeira metade de 1790, um caminho seguro para uma pensio futura. Em 1790, a Revolugdo na Franca nao parecia perigosa para a maioria dos ingleses. A Franga parecia até que estava se “acomodando”. Burke mesmo foi informado, por volta dos fins de 1789, que “o calor estava diminuindo”.!7 O perfodo desde a transferéncia do Rei para Paris (outubro de 1789) até a sua tentativa de fuga (junho de 1791) foi um dos mais calmos da Revolu- ¢do: “os primeiros tumultos” tinham terminado; a elaboragao da constituigao estava em curso, com muita especulacdo sobre o exemplo inglés; os principais eventos que passariam a ser conhecidos como os “horrores da Revolugao”, os massacres de setem- bro, a execugdo do Rei e da Rainha, 0 reino do Terror — séo todos acontecimentos futuros. Nesse contexto, a veeméncia dos ataques de Burke, apesar de, certamente, afastarem muitas das suas amizades politicas, nao atrairam muito apoio e, de fato, seu Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 9 efeito imediatO\foi de aumentar sua impopularidade. Um escritor atual resumiu a situa- ¢40 logo aps a publicagdo das Reflexdes: “Burke ndo teve nenhum sucesso imedia- to nem com o Governo, nem com a Oposigao. A impressao geral nos circulos politicos foi de que Burke, apesar de eloquiente e genial, foi muito longe nas suas opini6es; muito longe na sua oposigdo sistemdtica e total 4 Revolucdo Francesa; muito longe nos seus ataques aos reformistas; muito longe nas suas preocupagdes com o perigo que sofria a Constituigao inglesa; muito longe ao chegar a fazer reunides ptiblicas e a quebrar ami- zades, em relagdo a um assunto que nunca deveria ter sido debatido”"*. O que salvou sua reputagdo foi o progresso da Revolugao em diregdo aquilo que ele previu. Em um debate que Burke participou — em fevereiro de 1790 —, Pitt falou sobre a Revolugo de uma forma conciliatéria. Mesmo depois, quando os acontecimen- tos comegaram a confirmar as previsdes de Burke e que ele e o Governo se aproxima- ram, Burke nunca seguiu a linha governamental, ao contrario, sempre recriminou 0 Governo por sua politica pragmatica e falta de ardor contra-revoluciondrio. 4 ~O que eu mais invejo em Burke”, disse Dr. Johnson “foi o fato de ele ter sido sempre o mesmo.”!° Johnson parece referir-se, principalmente, ao temperamento uniforme do escritor na sua maturidade, mas 0 leitor de Burke provavelmente achard o comentdrio mais aplicdvel a sua obra, incluindo as Reflexdes. Quanto mais a obra de Burke é lida, mais se fica impressionado, eu penso, com a profunda coeréncia interior, nao sempre com a linguagem ou a opinido, mas com o sentimento: uma coeréncia cujos principios basicos ¢ uma grande capacidade de afei¢do e um grande desprezo por todo raciocinio que nao seja inspirado pela afeigdo por aquilo que nos é proximo e caro “Eu ndo tenho uma boa opiniao por aquele sentimento de humanidade abstrato, me: fisico e contingente, que friamente sujeita o presente e aqueles que vemos e falamos as calamidades presentes em favor de um beneficio futuro e incerto de pessoas que sO gxistem idealmente.”? volume de énfase, incomum em Burke, é, penso eu, propor: cional a forga de seus sentimentos sobre o tema. (Vide ReflexGes, a passagem que termina por “‘t&o poucas pequenas imagens de um grande pais no qual o coragdo en- contra algo que pode ser preenchido”). A coeréncia ndo exclui de forma alguma a complexidade e as contradigdes; antes disso, é a coeréncia de uma personalidade com- plexa e poderosa, suportando com sucesso uma pressdo incomum. Os sentimentos familiares de Burke foram aos olhos de contempordneos ingleses — excessivos, na medida em que eles ndo visavam apenas a sua familia ~ sua mulher Jane, seu filho idolatrado Ricardo e seu irmAo Ricardo — mas também aquilo que um antropologista moderno chamaria de “familia extensa”."“Ele sempre andava”, disse o Professor Copeland, 4 frente de um cla”! Primos da Irlanda e parentes desafortuna- dos eram bem-vindos em Beaconsfield. Em sociedade, o séquito de Burke era to gran- de a ponto de impressionar até os seus admiradores.2? Se Burke tivesse sido aquele aventureiro com interesses puramente egoistas, como dizem alguns dos seus opositores, ele teria agido de forma diferente em relagdo a seus parentes. Esses seus sentimentos, 10 Edmund Burke também, se estendiam além — mas ndo indefinidamente além — de sua familia. Eles abrangiam a sua terra natal, os seguidores da religido de sua mae, ja que ele nunca deixou de lutar por maiores concessdes 4 Irlanda e maior liberdade para o catolicismo. Assim sendo, novas atitudes comprometedoras: um aventureiro irlandés ambicioso na Inglaterra do século XVII teria, se guiado tdo-somente pela razdo, ¢ evitado esses assuntos. Burke foi, em decorréncia desses sentimentos, caricaturado, vestido em um habito de jesuita ou, como disse Wilkis sobre ele, “seu oratorio fedia a Whiskey e batatas”. A afeicgo de Burke também se dirigia a seu velho professor Schackleton, da seita Quaker, a seu filho, a seu patrdo, 0 marqués de Rockingham, e, em geral. sob uma forma mais atenuada de lealdade, aquela classe social inglesa — a oligar- /quia Whig — a cujos interesses ele serviu e sob cuja protegdo ele e seu cld viveram. E na mesma proporcdo em que ele amava ou respeitava essa classe social e o meio em que ela vivia, ele odiava tudo aquilo que, de acordo com sua inteligéncia sensivel, pudesse ameagé-la,?? A distancia, entretanto, é grande: entre os catélicos irlandeses arruinados ¢ os detentores do poder e riqueza na Inglaterra existia um grande abismo a ser ultrapassado pelo sentimentalismo de Burke. Acredito, baseado nas alegacdes que serdo apresenta- das, que haja uma conexdo entre as tenses dessa dicotomia e a carga emocional. a compaixdo e a firia das Reflexdes. E evidentemente natural, dessa forma, que tenham sido as palavras do Dr. Pri- ce?*, que deslancharam a avalanche da eloqiiéncia de Burke contra a Revolugio. Os sentimentos de Burke em relagdo ao Dr. Price ¢ seus seguidores eram fortes e pouco claros, entretanto, durante algum tempo sua atitude hostil foi predominante. Na pri- mavera de 1789, muito antes dos problemas franceses passarem a preocupar os ingle- ses, Richard Bright escreveu a Burke para pedir-lhe ajuda para esses dissidentes. A sua resposta é reveladora: “Nao hé ninguém a que eu tenha estado tao ligado por estima e afeigdo do que a alguns desses dissidentes. Desde hd muito minhas conexées foram muito intimas. Eu me orgulho de ainda ter amigos entre eles. Eles j4 foram muito in- dulgentes para comigo ao pensar que (em decorréncia do meu pequeno poder de o- brigar) eles tivessem qualquer obrigacdo para comigo”. Em 1784, uma grande mudan- ga ocorreu*®, “todos eles, que pareciam agir como uma corporagdo, expuseram-me a0 6dio ptiblico, como se eu fizesse parte de um grupo de rebeldes e regicidas, que conspirava para subverter a monarquia, aniquilar, sem razdo, todos os privilégios do Reino e destruir a Constituigéo. Nao é culpa deles que eu esteja em uma posicao, cujo voto possa ser, por eles ou por outros pedido”?® , Pouco depois, Burke teve a oportunidade de acusar os seguidores da escola do Dr. Price de todas aquelas acusagdes que ele achava que essa corporagao tinha usado contra os Whigs — rebelido, regicidio, subversio e reptdio a Constituigdo. Em 13 de fevereiro de 1790, Bright novamente escreveu a Burke buscando apoio para sua resolu- 40.7 Nessa época, ele ja tinha lido os escritos de Price, e ao fazer um discurso sobre 0 orgamento do Exército demonstrou que as Reflexes estavam nascendo. Aparece, entdo. uma nova atitude hostil: Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga uN “Nos tltimos anos muitas coisas aconteceram ou chegaram ao meu conhecimen- to que néo ajudaram a modificar minha atitude passiva (i. e. em relagdo 4s petigdes dis- sidentes). Coisas extraordindrias se passaram na Franca; coisas extraordindrias tem sido ditas e tém ocorrido aqui e publicadas com grande ostentago, a fim de levar-nos a acei- tar os principios que nortearam os acontecimentos na Franga e a imité-los. Acredito que tais atitudes sejam muito perigosas 4 nossa Constituigdo e 4 nossa prosperidade. Tomei conhecimento recentemente de duas publicagdes**, que nado me deixaram divi- das de que um partido considerdvel foi formado e esté atuando sistematicamente para destruir a Constituig&éo nas suas partes essenciais. Fico surpreso em ver assembléias religiosas transformarem-se em lugares de exercicio de politica e crescimento de um partido que parece ter muito mais discérdia e poder do que piedade para com o seu objetivo”? Dessa forma, acredito que, se a influéncia desses dissidentes tivesse sido usada em favor dos Whigs, a0 invés de contra eles, a reago de Burke em 1784 a linguagem de Price, Palmer, Robenson e outros teria sido provavelmente mais moderada” Burke foi um homem emotivo, ardente nos seus ressentimentos e nas suas predilegdes e a ele agradava devolver aos dissidentes aquilo que ele considerava ter sido obra deles — 0 ataque e suas posigdes, seis anos antes. Os ressentimentos politicos de Burke em rela- Go aos dissidentes aliado a frustrago de seus Ultimos anos no Parlamento tiveram o efeito de liberar seus potenciais mais intimos. Se Rockingham estivesse vivo, se ele € seus amigos estivessem no poder, se tivesse obtido o apoio dos dissidentes, seria muito dificil que Burke tivesse escrito cont tanta elogiiéncia sobre a Revolugao na Franga. Frustrado, entretanto, ele estava livré?! } A importancia da discussdo de Burke com os dissidentes nos seus escritos sobre a Revoluco*? vai muito mais além do que um mero debate especifico sobre politica par- tidéria. Era natural que os dissidentes — ¢ em geral os protestantesvingleses — vissem os primeiros estdgios da Revolugao Francesa com bons olhos, na medida em que ela se apresentava corho uma forma de destruiggo do poder do Papado. A primeira vitoria revolucionéria que mais agradou ao Dr. Price foi a “difusio do conhecimento, que diminuiu 0 poder da superstigdo e do erro”. Para a maioria dos ingleses da época, dissidentes ou ndo, essas palavras soavam bem, na medida em que elas foram utilizadas em um contexto no qual “superstigao e erro” implicavam necessariamente nas suas ‘origens romanas. Mas Burke nao era inglés, apesar dele escrever e falar como um inglés. Ele era irlandés de uma velha familia tradicional, como bem afirmou um bidgrafo moderno: “Edmund Burke foi um puro irlandés”.™ Essa distingdo é, de uma certa for- ma, mais importante do que a baseada em uma mera crenga religiosa formal. As fami- lias mais recentes na Irlanda eram, em geral, militantes protestantes, cuja crenga eles associavam A sua posse da terrae sua posicdo dominante na sociedade. Sobre as familias mais antigas que tinham tornado-se protestantes recafa a suspeita de terem abjurado a religido meramente para escapar a lei penal — para manter suas terras, se as tivesse, para ter acesso a certas carreiras. Burke pessoalmente sofreu essa acusagdo, como vi- mos, € mesmo no inicio de sua carreira ele foi denunciado a Rockingham como um cripto-cat6lico.*5 Nao hé nenhuma razéo para descrer da sinceridade de sua negativa, a perspectiva geral de seus escritos torna claro que ele ndo era o tipo de pessoa que iria 12 Edmund Burke aparentar acreditar em certos dogmas ou abstrag6es, enquanto acreditava em outros. Seus sentimentos sao de outro tipo. A um correspondente desconhecido que — no auge da contravérsia revoluciondria — perguntou-lhe sobre suas crengas religiosas, ele respon- deu que tendo sido batizado e educado na Igreja da Inglaterra, ndo via nenhuma razdo para abandonar aquela comunhio. “Quando eu ajo, eu procuro agir segundo minhas convicgdes ou meus erros. Acredito que essa Igreja harmoniza-se com a nossa Consti- tuigdo civil... Eu estou ligado ao cristianismo como um toda, muito por convicgdo, mais por afeigio,"* fart)) 16 ‘As referéncias de Burke @ Igreja da Inglaterra slo frias, politicas, pragmaticas e contingenciais. Nao era & Igreja da Inglaterra — muito menos ao Protestantismo — que ele estava ligado, “muito por convicefio, mais por af isti um todo”. Isso é estranho. Nada é mais incompativel com o padrdo habitual de Burke pensar, escrever e sentir do que estar atraido por algo “de modo geral”, ao invés das subdivis6es que ele fazia disso. Na medida em que ele ndo demonstra um grande entu- siasmo pelo seu “pequeno pelotio”?” e aprova 0 exército como “um todo”, acredito ser correto inferir que ele ndo se sentia bem na posi¢do por ele ocupada, e isso nao é, de forma alguma, surpreendente. A mie de Burke era catdlica, assim como 0 seu sogro amigo, Dr. Nugent; seu pai, Richard Burke “parece”, segundo o Professor Thomas Copeland, “ter adotado a Igreja da Inglaterra em 13 de margo de 1722 na época em que comecou a advogar em Dublin”®*, pois para poder exercer a advocacia naquela época era preciso adotar a fé anglicana. A mulher de Edmund, Jane, como ele, era fruto de um “casamento misto. Nao se sabe onde eles se casaram, mas se cré que tenha sido um casamefito catélico realizado em Paris. O “cla” encabecado por Burke sempre foi acusado de catolicismo, em uma época e lugar nos quais deviase aparentar ser protestante, e que ser catdlico, além de econdmica e socialmente prejudicial, signi- ficava uma forte convigdo religiosa. Burke pode ndo ter visto “nenhuma razio para abandonar” a Igreja da Inglaterra, mas as suas tradigdes familiares eram to fortes — € seus sentimentos também — que ndo Ihe era possivel encarar os ataques feitos a Igreja de Roma com a tipica atitude inglesa, ou seja, com indiferenga, complacéncia e uma certa aprovacio.? Esses sentimentos religiosos explicam, de uma certa forma, 0 contetdo e a rapi- dez de suas respostas aos acontecimentos na Franga. = A origem itlandesa de Burke e suas conseqiiéncias influenciaram sua reago con- tra a Revolugao de outros modos além do religioso. A alta sociedade inglesa dos fins do século XVIII —.antes de 1793 ~ nfo poderia imaginar uma revolug%o social como uma realidade possivel. A familia Burke, proxima dos ressentimentos sociais e politicos da Irlanda, estava muito mais consciente da es- trutura social vigente e do perigo dela decorrente. Richard Burke Jr. que freqiente- mente expressava as opinides do pai com uma veeméncia por vezes indiscreta — escre- veu, na época da composigao das Reflexdes, uma adverténcia a Lord Fitzwilliam, seu patrio: Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 13 “Jmagine que ao andar pelas ruas de Peterboroughs, eles surjam de sob as pedras que ao se levantarem de sob os paralelepipedos sujos que o Senhor comprou do Sr. Parker, dominem o Governador daquelas ruas. O que acontecerd entdo com a elogién- cia persuasiva, as concessdes moderadas ¢ os expedientes contemporizadores do Sr. Fox?! Q tom tranqiiilo da resposta de Lord Fitzwilliam demonstra que o jovem Burke nao conseguiu transmitir as suas apreensdes. Como era comum naquela época, as preocupagées de Burke, angustiadas pelo fantasma da Revolugdo,“? ficaram esquecidas “por aqueles que ndo acreditavam ser possivel que ela pudesse existir...” Um irlandés nao podia ser tao discrente, tao tranqiilo. A revolta era iminente na Irlanda e efetivamente ocorreu em 1798, um ano apés a morte de Burke Ninguém na Inglaterra estava mais angustiado com seu espectro do que Burke. “Acreditamos que seja o grande deménio da nossa época”, ele escreveu ao Dr. Hassey em dezembro de 1796, “o crescimento do jacobinismo, e estamos certos de que, por uma série de ra z®es, que nenhuma regio é mais favordvel ao crescimento desse mal do que 0 nosso infeliz pafs."*° Ele abominava o movimento dos Irlandeses Unidos, que procurava reu- nit dissidentes e catélicos em um mesmo movimento nacional, democratico e revolu- cionério sob a inspiragao francesa e.com a ajuda francesa ~ “aquelesque, sem nenhuma preocupagdo para com a religifo, retinem toda sorte de dissidentes, buscando produzir toda forma de desordens”®*. Em telagdo, entretanto, aos catélicos irlandeses, ele faz uma tnica concessdo, se nfo por uma forma legitima de Jacobinismo, pelo menos por uma forma inerente a natureza humana. As duas formas, entretanto, estdo, na concep- g4o de Burke, muito proximas. “Esse jacobinismo”, disse ele ao escrever a Hussey, “que é especulativo nas suas origens, que provém da libertinagem deve ser controlado com firmeza e prudéncia... mas 0 jacobinismo que decorre da pentiria e da revolta, da lealdade escarnecida e da obediéncia recusada tem raizes muito mais profundas. O seu alimento vem do fundo da naturez: ana... e nfo do humor ou caprichos ou opinides sobre privilégios ou liberdades’” oy As referéncias de Burke sobre o perigo de uma revolugdo na Irlanda sdo natural- mente mais freqiientes nos tltimos anos de sua vida, em uma época mais proxima da eclosdo da revolta. A Irlanda, entretanto, nunca ficou distante de seus pensamentos. Como escreveu um moderno estudioso de Burke: “‘... como todos os irlandeses respon- sdveis e inteligentes, com forte carga emocional, Burke tinha sempre consigo a Irlanda como o seu “velho homem do mar”.** Burke afirmou em 1780, que quando pela primeira vez foi eleito para o Parlamento, catorze anos antes, o que estava “primordial- ‘Mente nas suas atengdes, era a esperanga de, sem prejudicar esse pais, ser de alguma forma util 4 minha terra natal onde fui educado”...*7 Conhecemos, em decorréncia de suas notas contra as leis sobre o Papado (Popery Laws), escritas logo antes de sua elei- ¢4o para o Parlamento, a extensdo de suas ilusdes, e a forma pela qual elas sdo apresen- tadas € perfeitamente consistente com aquilo que ele posteriormente escreveu sobre a condigao da Irlanda.*® Chega-se a concluso, dessa forma, que a opinido de Burke sobre a Irlanda — um pais oprimido e perigoso — fez parte integrante de seu ambiente intelectual. O seu rela- cionamento para com a Irlanda fez com que fosse impossivel para ele dar, como outros 14 Edmund Burke ingleses, uas respostas tipicas aos acontecimentos iniciais da Revolugad: a de aprova- 40 a algo que parecia uma feforma anticatélica e a de que “isso ndo pode Ocorrer aqui.” “Aqui”, para Burke significava ndo somente a Inglaterra, mas também a Irlanda, dessa forma, para ele, a revolucdo era algo totalmente possivel. Isso explica a rapidez da resposta de Burke, j4 que ele foi o primeiro homem de importancia na Inglaterra a denunciar 0 perigo que dentro de pouco tempo seria a grande preocupacao dos senho- tes proprietarios. Isso explica a sensibilidade de Burke, sua intuicdo para detectar o perigo; mas ndo explica, entretanto, a intensidade de sua paixdo contra-revolucipnéria, Ele nao foi, pelos padroes da época, um sénhor proprietério, apesar de ele ter procura- do manter um certo padrao. As acusagGes de que suas atitudes e escritos foram preme- ditados, buscando suborno e uma pensdo futura nZo podem ser aceitas.*? Seu relacio- mento com a oligarquia Whig era real, mas ndo emocional. Burke, na época da compo- sigdo das Reflexes, jé estava idoso, desapontado, sobrecarregado de trabalho e estafado com as enormes complexidades dos trabalhos com o impeachment de Warren Hastings. De um homem nessa situagdo, consciente do perigo na Franga, pode-se esperar ta0-so- mente, a prudéncia da adverténcia, nada mais. Apesar disso, de onde surge a tremenda forga emocional que animou néo somente aquela obra de nome enganoso ~ As Refle- x6es ~ mas também todos os seus escritos sobre a Revolugao, incluida a quarta “Carta sobre uma Paz Regicida”, deixada incompleta em virtude de sua morte? Uma pergunta dessa natureza, em relagdo tanto a um vivo como a um morto, nao pode ser respondida com certeza. Gostaria de oferecer, entretanto, uma resposta con- juntural que me parece estar de acordo com o que sabemos da vida e dos escritos de Burke. Nos seus escritos contra-revoluciondrios, o escritor estava liberando parcialmen- te, e de uma forma permissivel, a parte revolucionsria sublimada de sua propria perso- nalidade. Os seus escritos, que parecem ser superficialmente uma defesa total da ordem estabelecida, constituem em um de seus aspectos — e isso para Burke nfo era de peque- na importancia — um forte ataque contra a ordem estabelecida na sua terra natural e contra o sistema de idéias dominante na propria Inglaterra. A ordem estabelecida na Irlanda era a supremacia protestante, a supremacia lega- lizada da minoria protestante sobre a maioria catdlica. Essa supremacia continuou nas ordens revoluciondrias de 1688 ¢ dinda hoje € comemorada em Belfast como a origem gloriosa da subordinagia permanente dos catdlicos romanos: Burke, como-um Whig, necessasiamente-aderiu aos princ{pios da Revotuyao Gloriosa, tendo ou nio razoes de interesse particular levado esse aventureiro irlandés a aderir 4 causa Whig. E claro que lealdades pessoais, habitos e interesses intelectuais — assuntos que Burke nunca separou radicalmente — logo levaram-no a aderir aos Whigs como uma corpora¢éo. Mas se Burke como Whig admirava, pelo menos na teoria, a Revolucdo Gloriosa, o mesmo Burke, j4 como irlandés com lagos emocionais estreitos com 0 povo conquistado, de- testava aquela supremacia protestante, que aquela Revolucdo tinha imposto ao povo Jo seu pais. Esse 6dio aparece escondido, nos seus primeiros escritos, por uma “veia politica bem clara”, entretanto, ele se torna evidente, e mesmo violento, nos escritos nais livres dos seus tltimos anos. “Acredito que dificilmente pudesse exagerar o male- Reflexdes sobre a Revoluggo em Franca 15 ficio dos principios da supremacia protestante naquilo que ela se refere a Irlanda...”° “A_palavra protestante é 0 charme que aprisiona nos calabougos da servidao trés mi- Ihdes do nosso povo””.. A visdo de Burke em relacdo a historia irlandesa, e seus sentimentos para com ela, se tornam evidentes em uma memoravel carta, que ndo foi terminada, escrita a seu filho, Richard, em 1792. “Se as classes dominantes na Irlanda fossem mais inteligen- tes”, ele escreve, “no enfatizariam a origem de suas propriedades confiscadas”. “Elas no despertariam de um sono trangiiilo nenhum Samuel para perguntar-lhe por qual ato de um monarca arbitrério, por qual argiigdo de um tribunal corrupto € testemunhas torturadas, por qual meio ficticio foram destitusdas inteiras tribos despro- tegidas e seus chefes (sic). Elas ndo chamariam os fantasmas das ruinas dos castelos e igrejas para dizer-lhes que as propriedades da velha nobreza irlandesa seriam confisca- das se tentassem incentivar o estabelecimento de uma legislatura irlandesa, se ten- tassem formar um exército de voluntdrios sem permissdo especial da Coroa em fa- vor dessa independéncia. Eles ndo chamariam esses fantasmas para dizer-lhes qual © ato do Parlamento inglés que, imposto a dois reis relutantes, fez com que as terras de seu pais fossem postas 4 venda em qualquer loja de Londres de uma forma vergonhosa, divididas em pedagos para pagar os soldados mercendrios de um usurpador regicida. Eles no teriam tanto orgulho dos titulos adquiridos sob Cromwell, pessoa que, a0 mesmo tempo que massacrava uma rebelido irlandesa contra a autoridade soberana do Parla- mento inglés, tinha, ele proprio, se rebelado contra esse mesmo Parlamento, cuja sobe- rania ele, assim como a nacdo irlandesa, acreditavam plena. A nagao irlandesa poderia rebelar-se contra esse Parlamento ou poderia rebelar-se contra o Rei que foi vitima tanto do Parlamento como de Cromwell, enviado para sub- julgar e confiscar a nagdo irlandesa, a quem ambos serviam(S? Um irlandés, se realmente tivesse cometido o crime de rebeliao, teria ndo somen- te se arruinado como seus filhos e netos até a quinta e sexta geracdo.” _O contraste entre essa explosdo apaixonada e as referéncias anteriores, discursos pUblicos sobre a harmonia serena da relagdo entre a Irlanda e a Gra-Bretanha € prova da tensdo que sempre existiu entre o perfil publico de Burke — parte téo importante Nos seus sentimentos — e seu relacionamento em relagdo a seu povo e a seu pais.°* Essa tensdo foi relaxada pela Revolugdo Francesa e especificamente pela reagao do Dr. Price € seus amigos, que, a0 colocarem a Revolugdo Francesa na mesma linha da inglesa, relembravam a Burke qudo revolucionaria, qudo anticat6lica e, para elé, qua atienada tinha sido a Revolugao Inglesa.™ Essa visdo desconcertante tinha de ser exorcizadae a maioria dos argumentos — e a parte mais forcada da argumenta¢io — tanto das Re- flexdes como do “Appeal from the New to the old Whigs” consiste em uma tentativa de mostrar que a Revolugfo Inglesa, diferentemente da francesa, nao tinha sido realmente uma revolucdo — uma tentativa que podemos achar bem sucedida se esquecermos as contribuig6es dos contemporaneos de Henrique VIII e Oliver Cromwell. Mas o drama de Burke em relago 4 Revolugdo e ao seu poder advém da participagdo de duas perso- nagens. E como se as palavras e as agdes de Price e seus amigos tivessem acordado, naquele idoso e racional Whig, um jacobita escondido:*> — 16 Edmund Burke Em relagdo a Inglaterra e a Europa essa posi¢ao “Jacobita” é obviamente contra: revoluciondria. Mas, em relagdo a Irlanda, a aspiracdo jacobita € objetivamente revolu- ciondria, na medida em que é uma expresso da vontade do povo conquistado dé-que- brar a serviddo. Assim. no momento em que ele foi mais contra-revolucionario. em relacdo 4 Franga e a Europa, foi inconscientemente subversivo em relagdo a ordem esta- belecida no seu pais de origem. E seus argumentos, dirigidos 4 nobreza e 4 burguesia inglesas. procuraram persuadir essas classes. afirmando que seus interesses estavam liga- dos ao catolicismo na Europa, que o Catolicismo era o bastido da ordem, enquanto que o Protestantismo nas suas formas militantemente anticatdlicas — 0 Protestantismo dos dissidentes e seus simpatizantes — era a fonte do jacobinismo." Esse argumento. se aceito, era em ultima instancia, ruinoso para o sistema de castas vigente na Irlanda, para o qual a doutrina de que a lealdade necessitava um antipapismo latente era funda- mental. O argumento foi aceito. no seu aspecto pré-catdlico, apesar de bem mais tarde do que Burke desejava, E certo que as palavras de Burke tinham um peso especifico naquelas classes as quais elas se dirigiam e que tiveram uma parte importante na evolu- go da politica britinica na diregdo por ele desejada.*” A “Lei de abrandamento em relagdo aos catolicos” de 1793 — concedendo a franquia— e €m 1795 a fundacao de Maynooth — um semindrio catélico com apoio oficial — foram importantes etapas (nessa direcdo. $8 Em relagdo 4 Unido, a supremacia protestante foi progressivamente Wiminuida, exceto em uma regido. o Ulster Oriental. onde tinha uma forte base popu- lar. Do ponto de vista de um membro tipico da classe dominante na Irlanda dos dias de Burke, esses eram desenvolvimentos revolucionarios, inicialmente contrapostos & disseminagao de uma atitude ostensivamente contra-fevoluciondria. Ainda nesse mesmo ponto de vista. 0 espectro do jacobinismo foi inteligentemente usado para reabilitar 0 Papado e os papistas.? Nao ha divida de que a reabilitacao do catolicismo fazia parte das intengdes de Burke, ja que ele explicitamente argumenta nesse sentido, procurando disseminar a preferéncia da “supersti¢do” em detrimento do ateismo. E evidente que isso foi téo-somente parte de suas motivagdes, pois 0 seu ddio pelo jacobismo era real € mesmo obsessivo, no havendo hipétese de que ele teria sido produzido por uma razdo posterior. O seu antijacobinismo. entretanto, ndo pode ser separado do seu senti- mento de indentificagao com os catdlicos, ou seja com suas origens irlandesas. Em uma carta de 1795, ele afirma que o seu “centro politico € o antijacobinis- ino”; que o “primeiro, ultimo e dnico objetivo da Hostilidade jacobina ¢ a religido”; jue a pratica do catolicismo, “como ela se apresenta ¢ a barreira mais eficiente, se ndo a Unica, contra o jacobinismo”; e “que particularmente na Irlanda a religido catélica romana deveria ser olhada com muito respeito e veneragio”.® Aquele Burke que estava revoltado com a perseguigdo jacobina contra os padres e freiras “recalcitrantes” era 0 mesmo Burke que ficara revoltado pelo enforcamento ¢ esquartejamento do “re- belde” Irmao Shechy em 1766.*! Ele nao péde fazer um protesto piiblico, sua resposta foi explicar calmamente a seus amigos irlandeses 0 porqué dele ndo ter podido publi- camente defender um papista irlandés acusado.** Foi possivel, entretanto, para ele defender publicamente a causa dos catélicos franceses, entre 1790 — 1797 e ao apoid-los, indiretamente estava procurando presti- giar sua familia e seus conterraneos. Sera, por acaso, irreal acreditar que 0 extraordind- Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 17 rio fluir de uma elogiiéncia controlada mas passional que comeca com as Reflexdes seja a liberacdo de uma indigna¢do intima longamente contida por uma atitude politica de prudéncia? ‘A importancia da nacionalidade de Burke-em. relago a seus escritos sobre a Revolugdo na Franga tem sido, acredito, freqientemente subestimado ou amente compreendido. Essa tendéncia foi incentivada pela necessidade de classificagao: “Burke falando sobre a Irlanda” é encarado de forma diferente do que “Burke falan- do sobre a Franga”, ou “Burke falando sobre a América”. Apesar de como Yeats mos- trou, ser sempre 0 mesmo Burke. Burke nao foi um homem que fizesse separagGes ri- gidas das coisas, e podemos estar certos de que os sentimentos e idéias — que também no foram compartimentos separados — do homem que escreveu para Sir Hercules Langrishe sobre a Irlanda so idénticos aos daquele que escreveu para M. de Pont sobre a Franga, A tendéncia ao esquecimento da importancia da nacionalidade de Burke é tam- bém encorajada por outros fatores. Entres eles se incluem a impressdo geral de que Burke é anglo-irlandés e que pertence a tradicdo protestante®. De fato, ndo hd, nada “inglés” naquilo que sabemos sobre ele ou seus lagos familiares — pelo menos nos seus iltimos escritos que sio aqueles que nos interessam — muito menos na designaco “protestante”. Finalmente, algumas pessoas que ficaram impressionadas com os escritos de Burke sobre a Revolucdo Francesa ignoraram o fator irlandés, provavelmente em de- corréncia da convicgdo de que, em compara¢ao com os importante temas tratados nas “Reflexdes”, suas preocupagdes com a Irlanda foram triviais e provincianas. Como uma argumentagdo genérica ela é defensavel, apesar de, em relacdo a Burke, ser incon- gruente. A situaco irlandesa é de pequena importancia se comparada com a grande Revolugdo, mas foi a situacdo irlandesa que gerou Edmund Burke e a Irlanda e 0 jaco- binismo constituiram-se em preocupagdes freqientes nos seus tiltimos sofridos anos. O autor das “Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca” escreveu numa roupagem. de. inglés — 0 que provocou tanta confuso — mas a sua esséncia, a sua concepeo era a de um irlandés. 7 A interpretagdo a tada tenta dar uma explicagdo para uma questo intrigante: a do estilo of estilos de Burky. Burke nos seus escritos sobre a Revolugao em Franga apresenta/tréspstilos basicos, que podem ser combinados em varias propor- ges. De inicio, aquele que se poderia chamar de estilo Whig: racional, perspicaz, comercial. Esse foi o estilo basico de seus discursos e escritos sobre a América e na primeira parte das Reflexdes, embora no seja aquele da maioria das passagens fre- quentemente citadas. Era um discurso perfeitamente adaptado as suas finalidades, ow seja, a de convencer pessoas que tinham muito a perder, que algumas politicas, nto outras, estavam de acordo com os seus interesses. Foi com essa énfase que ele advertiu os Lordes Whigs que © confisco das propriedades da Igreja na Franca — um desejo que muitos ndo escondiam em decorréncia de principios de “Reforma” ou “Iluminismo” constitufa uma ameaga clara a sobrevivéncia econémica da sua classe social: 18 Edmund Burke “A minha maior preocupagdo é que se chegue na Inglaterra a considerar 0 confisco como um direito do Estado em prover-se de recursos ou que certas categorias de cidadaos sejam levadas a tomar outras como objeto de pilhagem... As revolugGes sio favordveis ao confisco, e é impossfvel saber sob que nomes odiosos os préximos confis- cos serfo autorizados. Estou certo de que os princfpios vigentes na Franga sdo des- tinados aplicagZo em todo o pafs, a um grande namero de individuos e a clas- ses inteiras, que imaginam que sua calma indoléncia é a garantia de sua seguranga. Nada mais fécil que tomar a indoléncia dos proprietérios como inutilidade, e, depois disso, transformar tal inutilidade em incapacidade de possuir seus bens”. (Refle- x@es). E muito improvavel que, ao ler essa passagem, qualquer proprietério Whig nfo tenha diminufdo seu apoio as causas antipapistas. O seu Segundo estilo poderd ser chamado de, “jacobita’7: gongérico e politico. O mais notdvel exemplo-désse estilo nas Reflexdes é 0 famoso trecho sobre a Rainha, que muitos foram levados a acreditar como sendo um exemplo tfpico do estilo de Burke. Apesar de ser uma das suas formas de estilo, ele s6 a utiliza raramente.* Aqueles que lem essa passagem isoladamente, perdem grande parte de sua forca, que provém da mudanc¢a de tom, uma quebra emocional dentro de um quadro racional. Na medida em que se estd ciente dessa carga emocional subentendida, até a parte mais prosaica da argumentagdo adquire uma sonoridade formidavel. Qcterceiro estilo, de Burke é uma forma peculiar de feroz ironig. A Ironia é uma marca caracterfstica da literatura irlandesa, j4 esclareci em outro estudo® que o caré- ter irlandés, com seus contrastes marcantes entre ilusdo e realidade, é muito favordvel a0 desenvolvimento dessa forma de expresso. Para a nossa interpretagdo de Burke, é preciso tdo-somente ter em mente que 0 atrito entre o “outer ego Whi jacobita” era em si mesmo irdnico e fértil naquela agressividade que é a forga motriz da ironia. A ironia de Burke, nos seus escritos sobre a Revolug4o Francesa,é mais agres- siva do que evasiva, j4 que ele se encontrava em uma posigdo de ataque. A sua ironia, entretanto, é mais evasiva do que se poderia imaginar, na medida em que seu sarcasmo feroz, dirigido abertamente aos apologistas da Revolugdo Francesa, se apresenta como uma critica disfarcada contra a cultura protestante dominante na qual ele estava apa- rentemente assimilado. ——>o Nas Reflexdes, a ironia de Burke é subentendida, aprarecendo ocasionalmente em certas passagens: “‘aquele argumento servir4, como um porto para sustenté-lo...” “O Rei foi levado a declarar que o Delfim deveria ser educado de conformidade com a sua situagdo. Se ele deve se ajustar a sua condig4o, ele nfo deverd ter nenhuma educagao”. Nos seus escritos posteriores sobre a Revolugdo — escritos nfo resguardados, mas amar- gos, indignados, triunfantes ~ sua ironia aparece em explosdes conscientes. A sua fa- mosa Carta a um Lorde Nobre (1796) — contra o Duque de Bedford, que se ops a soncesséo de uma penso a Burke — é um exercicio em ironia que impressionou Karl Marx, com muita razo. A ironia de Burke nunca é discreta, as vezes chega a se aproxi- nar do humor da “Camara dos Comuns”, que, por sua vez, € parecido com o humor de am colegial\ inas a sua rudeza ¢ freqiientemente transfigurada em uma combinagdo Je prazer, fantasia e hipérboles irlandesas, bem ao gosto de Burke. Duas passagens Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 9 sobre os gatos valem a pena serem citadas: a primeira é extraida da Carta a@ um Lorde Nobre e se refere a forma pela qual os revoluciondrios parisienses olham seus simpati- zantes aristocréticos ingleses, como o Duque de Bedford: “Pouco importa o que Sua Graga pensa de si mesmo, pois eles o olham ¢ a tudo aquilo que Ihe pertence com a mesma atengdo que tém para com os bigodes daquele pequeno animal de rabo com- prido que por muito tempo tem sido um jogo para filésofos sisudos, reservados, pér- fidos, narigudos, com patas macias e olhos vivos, que caminham com duas ou quatro A segunda passagem extraida da primeira das Cartas sobre uma Paz Regicida se refere a um argumento, utilizado pelos defensores de uma paz com a Franca ( em 1796), que um acordo tinha sido concluido com autoridades afamadas, os senhores ile- gais de Argel. “Sera que os Senhores, que defendem esse argumento, nao tém idéia do comportamento diverso que se deve ter face a um mesmo mal quando estd em situa- des diferentes? Eu posso ver, sem medo, um tigre nacional ou real em volta de Pegu. Posso olhd-lo, com uma leve curiosidade, como um prisioneiro na torre. Mas se, por meio de um habeas-corpus ou qualquer outro instrumento, ele aparecesse na entrada da Casa dos Comuns e se sua porta estivesse aberta, seria prudente que procurasse uma saida pela janela dos fundos. Eu certamente teria mais receio de um gato selvagem no meu quarto do que de todos os ledes que rosnam nos desertos da Argélia. Mas, no nosso caso, € 0 gato que estd a distincia, e os ledes e os tigres que esto na nossa ante-sala. Argel ndo esta perto; Argel ndo € poderosa; Argel ndo € nossa vizinha; Argel ndo esta doente. Argel, independentemente do que seja, é uma velha criagdo e temos muito bons dados para calcular todos os males que dela provém. Quando eu vir Argel trans- ferida para Calais, ai, entdo, eu direi o que penso sobre isso” $# Dos trés estilos que foram por nés distingiiidos — 0 Whig, 0 “jacobita” e o irénico — s6 0 primeiro é encontrado, com relativa freqiiéncia, no seu estado puro, que forma a matéria-prima das Reflexées. O estilo “‘jacobita” na sua forma pura aparece muito raramente: a passagem sobre a “Rainha” nas Reflexdes e, nas “Cartas sobre uma Paz Regicida”, a passagem sobre “‘o tumulo da monarquia assassinada” — citada no inicio dessa introdugao — sfo os dois exemplos tipicos desse estilo. Quando o tom jé ficou claro, entretanto, Burke pode evocé-lo de novo com a parciménia de uma ressal- va. “E uma pena que Cloots no tenha tido uma suspensfo temporaria de sua sen- tenga de ser guilhotinado até que ele pudesse completar sua obra! Mas aquela maquina funcionou antes da cortina se fechar sobre a dignidade da terra.” Na maioria dos mais importantes trechos das Reflexdes, Burke utiliza um esti- lo intermediério entre 0 Whig e 0 “jacobita” — mais elevado que o primeiro e menos teatral que o segundo — um estilo sério e grandioso, comum a um clérigo Tory. Esse © tom da famosa argumentagdo que faz a apologia do principio da heranca ao assimilé- lo & ordem natural, da defesa da desigualdade na propriedade, da teoria da continui- dade e da parceria — “uma parceria, uma sociedade néo somente entre vivos, mas tam- bém entre .0s vivos, os mortos ¢ aqueles que haverdo de nascer”. E nesse meio-campo que Burke esté mais seguro; essa 6 a forma que harmoniza o Whig e o “jacobita” 20 Edmund Burke dentro dele; esse é, também, o tom no qual, com a maior autoridade, ele alcanga a pla- téia por ele visada — a8 proprietérios fundidrios da Inglaterra, e a’classe abastada de um modo geral. Essas palavras dao uma grandiosidade, uma gravidade, uma mistica 4 defe- sa dos seus interesses. Elas preparam o animo ¢ 0 comportamento do conservadorismo e do liberal-conservadorismo ingleses para o século XIX. Na medida €m que a8 bases do “status quo” foram téo bem definidas e defendidas, a insinuagdo do defensor jacobita deve ter sido mais agradével do que odiosa. Ela escondia, de uma certa forma, o pathos € 0 encantamento de uma causa perdida, causa essa que era ardorosamente defendida por aqueles a quem Burke se dirigia. Ao mesmo tempo, a aceitagao desse pathos e en- cantamento de uma certa forma reabilitou a mais irremediavelmente perdida das causas britanicas. O catolicismo romano desenvolve o apelo do romantico, em uma época na qual essa forma de apelo est4 comegando a tornar-se socialmente relevante. Burke tem um outro estilo com caracteristicas situadas entre 0 irdnico ¢ 0 Whig, da mesma forma pela qual seu estilo sério e grandioso se situa entre o Whig e o “jacobita”. Essa segunda caracteristica é aquela dos seus aforismos e epigramas. O senhor do estilo retumbante também o é do conciso. Os escritos sobre a Revolugao sao ricos naquelas generalidades incisivas e memordveis com as quais o século XVIII enri- queceu nossa cultura. O epigrama de Burke, entretanto, tem uma caragteristica parti- cular, j4 que nas suas maos essa forma de raciocinio ¢ dirigida contra a presungao inte- lectual: “a sabedoria ndo € 0 corredor mais eficiente da loucura”, “nenhuma relagdo fria € um cidaddo ardoroso”, “. ..enquanto uma pessoa irrita a natureza contra si, ela estd imprudentemente confiando no dever”™. Essas nfo so epifanias isoladas, elas tém um significado social. A presungao intelectual — ou autoconfianga — é a moral do revolucionério, que o torna apto a por em questdo a ordem estabelecida na sociedade, no Estado, na Igreja, na Famflia. Essa é a forma pela qual a habilidade se aproxima da propriedade. Ao utilizar seu génio intelectual para por em questo os apelos do intelectual, Burke esté exercendo uma dupla funao-Ele serve aos interesses da classe proprietaria e adqui- Te, a sua gratidfo. E, a0 mesmo tempo, ele reabilita a religido e especificamente — “por meios indiretos e de uma forma discreta — aquele tipo de religifo que durante o século XVIII esteve mais exposto aos ataques diretos da Razdo. E a forma pela qual ele 0 faz, nos mostra que possui a qualidade que ele procura questionar. Um racionalista radical, procurando interpretar a opinigo de Edmund Burke sobre a importancia da inteligéncia j4 percebe de antem‘o, pelo tom do estilo de Burke, que sua interpretagdo sera por si s6 ridicula. E importante distinguir, na prosa de Burke, essas varias maneiras e combinagdes de estilo.”" Mas a sua graga-e forca esto melhor apresentadas na flutuagdo lirica na qual ele se move de uma forma a outra e de um nivel de intensidade a outro. Ele pode variar da injuria e da irdnia até ao mais alto grau da ternura romantica — como na pas- sagem sobre a Rainha. E por um outro lado ele mistura em uma mesma frase a ternura campestre com a ironia radical: “Todos aqueles riachos trangiiilos que irrigam uma campina silvestre, compacta, mas nfo infértil se perdem na amplidao sem limites, ocea- no improdutivo da filantropia homicida da Franga.””” Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga a Transigdes abruptas de estilo estéo entre as formas de recursos tradicionais da oratoria e da advocacia: Burke conhecia Cicero.”? Desse modo, ele utilizou a0 maximo os recursos da oratéria tradicional — um repertério de malicias apesar de seiis €féitos terem sido tnicos e sem precedentes. Nenhum outro orador ou escritor politico, antes ou depois dele, teve essa combinagao de qualidades: seu poder de articular as emogées, sua percepcdo instrutiva das forgas sociais, sua capacidade de argumentacdo analitica, sua ternura, fantasia, sabedoria e poder de combind-las, por meio de um controle total sobre os recursos da lingua, buscando atingir fins claramente escolhidos e apaixonada- mente desejados, A riqueza e a variedade de estilo das Reflexdes encantaram, logo de inicio, alguns e inquietaram outros. As Reflexdes so dificeis de serem classificadas e para alguns isso é um escandalo, O titulo do trabalho nao se harmoniza com o seu tom, que € apaixonado e, por vezes, brutal. O trabalho come¢a como uma carta, mas termina como uma mistura de tratado, panfleto e discurso. Muito antes de sua publicacdo, criticas ji tinham sido feitas 4 sua forma. Philip Francis, que trabalhou com Burke no processo de impeachment de Warren Hastings, achou a primeira parte das Reflexdes que Ihe tinha sido encaminhada, “muito sem coordenagao.”"* Na medida em que Burke buscava “corrigir, instruir outra NacZo” e apelava para “toda a Europa” ele deveria escrever “com especial ponderagdo”; “distante de pilhérias, zombarias e sarcas- mo, sobretudo sendo grave, direto e,sério””*. Burke ficou ferido — ao tomar conhecimento da carta de Francis, ele disse “eu nao dormi desde entdo” — mas nfo abalado. “O trabalho que vocé acha sem coordena- ¢80, eu acredito que também o seja. Eu nunca pretendi que fosse de outra forma...” ‘Ao receber a recém-editada Reflexdes, Francis foi ainda mais severo, de uma manei- ra ambigua que Burke deve ter achado ainda mais ofensiva do que uma condenagdo clara: “Eu gostaria que vocé me deixasse ensinarhe inglés. ...Por que vocé ndo deixa ser persuadido de que a polidez pode ser um instrumento da preservagao? Eu ainda nao consegui ler mais do que um tergo do seu livro. Eu devo apreciélo devagar, o seu saber é extremo, o vinho é muito rico, eu ndo consigo tomar um gole dele.””” Como muitos criticos estilisticos, Francis nao gostava da forma nem do con- tetido. Alguns outros, a quem, também, a substancia ndo era do agrado, tiveram maior percepgao. Um critico da época, Sir James Mackintosh viu imediatamente que aquela forma, desordenada na aparéncia, de fato multiplicava a forga do argumento de Burke. “Ble pode encobrir a mais infame retirada com uma brilhante alusdo. Ele pode apresentar seus argumentos com incrivel dominio quando necessério. Ele consegue escapar de uma posicdo insustentavel com uma declamagdo espléndida. Ele consegue impregnar a comunicagdo mais reticente com ternura e fazer desaparecer um grupo de silogismos com uma zombaria. Abstraido de todas as leis do método vulgar, ele conse- gue fazer com que um grupo de horrores magnificos fagam uma Tenida Hos nossos cora- 22 Edmund Burke s6es, através da qual a mais indisciplinada turba de argumentos pode entrar em tri- unfo,”” Francis com a sua “Certeza” ¢ ““Educagdo”, nfo conseguiu ver o lado apontado por Mackintosh, que, sendo o mais perspicaz critico de Burke, foi o primeiro a definir —~ logo em 1791 -- a real caracteristica das Reflexes. “E um manifesto da contra-revolugao...” / As observagées de Mackintosh sobre o método de Burke, e sua definigao sobre 0 caréter da obra, mostram Burke como sendo, antes de tudo, um propagandista. Apesar da ressalva “antes de tudo” — que comentaremos adiante — nfo ha duvida de que Burke tenha sido um propagandista consciente. Ele apresenta certas caracteristicas de ter sido, realmente, o primeiro propagandista moderno, ou seja, o primeiro a ter cons- ciéncia da necessidade de um esforgo organizado, adequadamente financiado e refor- ado pela “agdo estatal’*”* com vistas a moldar a opinido publica em questées ideolé- gicas e de politica internacional. Ele foi o primeiro, também, a procurar organizar um tal esforgo.” A sua originalidade, entretanto, ndo deve ser exagerada, pois desde a Reforma e a Contra-Reforma que a Europa Ocidental esteve inundada de propaganda, tendo sido o século XVIII o apogeu dos panfletérios. A originalidade de Burke nao foi a de se engajar na propaganda, mas em pensar seriamente sobre sua natureza, seu poder a melhor forma de utilizé-la. Ele estava bem consciente do papel desempenhado pelas propagandas, inclusive a anti-religiosa, de Voltaire e seus amigos na derrubada do ancien régime e sobre a necessidade de um contra-ataque organizado, O tratamento que Burke dispensa a esse assunto nas Reflexes: comecando com “junto com os inte- esses, desenvolve-se um novo tipo de homem...” “O homem politico das cartas”® tem um desenvolvimento maior na segunda “Carta sobre uma Paz Regicida”. “A cor- respondéncia do mundo mercantil, o interc4mbio literdrio entre as academias e, acima de tudo, a empresa controlada pelas classes médias se tornaram efervescentes por toda a parte.®? A imprensa tornou cada governo, na sua esséncia, democratico. Sem ela os primeiros momentos da Revolugdo nao teriam, talvez, existido”. Burke ficou aborrecido com a falta de interesse entre os aristocratas franceses refugiados em relagdo a propaganda, Em janeiro de 1791, ele escreveu para um dos refugiados, buscando algumas informagoes — detalhes sobre o sistema francés de pro- priedade fundidria que “poderiam ser uteis para o meu procedimento sistematico de convencimento ptiblico em seu favor, que gostaria que os nobres franceses colaboras- sem sob a diregdo de ingleses justos”.® Burke continuou a incentivar a idéia, mas foi desencorajado pela aparente inércia da nobreza francesa, comparando com a atividade de seus oponentes... “Os emissarios da usurpagdo esto aqui muito ativos em difundir histérias que levam a alienago publica desse pais em relagfo aos sofredores. Nenhum refugiado francés tem inteligéncia ou espirito suficiente para contradizé-las”.** Ele procura mostrar a necessidade dos refugiados franceses levantarem fundos para essa causa: “Se a avareza deles ou sua dissipagdo valem mais do que a honra e a seguranga deles, entdo sua causa é totalmente deplordvel.”® Dessa forma, Burke estava adiantado 4 época que defendia. Ficou, entretanto, t8o-somente na condugfo da propaganda efetiva da contra-revoluggo. Nos seus pré- Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 23 prios escritos ele foi, entre outras coisas, um propagandista consciente. Ele utilizou uma linguagem emotiva, como uma politica deliberada. Isso, entretanto, ndo representa- va para ele nada de novo, pois como politico ele tinha consciéncia do valor da violéncia verbal. Antes da ecloséo da Revolugo Francesa, quando seus interesses estavam volta- dos para outros assuntos, ele escreveu para um colega da oposi¢fo, sugerindo que se a oposi¢do realmente tinha a intencdo de defender seus principios “deveria mudar seu tom calmo de argumentagdo que efetivamente nao se coadunava com interesses tio grandes e importantes... estilo tao diferente daquele perseguido por Lord North.”87 Dois anos apés, enquanto do processo de impeachment de Warren Hastings, ele desenvolveu a sua teoria da violéncia verbal, ao rebater a sugestao do Ministro Thurlow de que “o método pacifico de inquérito” é a melhor forma de aproximagao: “o méto- do pacifico de inquérito é uma forma muito calma de perdermos 0 nosso objeto, € uma forma bem certa de encontrar muito pouca calma por parte de nossos adversérios. Sermos violentos é a unica forma deles serem razoaveis”. Ele se tornou incrivelmente “violento” quando “os grandes e importantes inte- resses” da reaco 4 Revolugfo Francesa apareceram: as Reflexdes comparadas com a tltima Carta sobre uma Paz Regicida aparenta ser um modelo da “forma pacifica de inquérito”. Em relagdo ao “Apelo dos Novos aos Velhos Whigs (1791)” ele se apresen- ta profundamente devotado aquele método tdtico de enfatizar a8 argumentagdes que distingue 0 verdadeiro propagandista do mero crente de uma causa. Ao escrever a seu filho Ricardo e ao mencionar que mesmo 10% do Partido Whig apoiava os princ{pios revoluciondrios franceses, ele comentou: “E de se perguntar por que eurepresento todo um partido como tolerante, e ao tolerar, aprovar esses procedimentos. Deve-se utilizar ao m4ximo sua inatividade e estimuld-los a fazer uma declaracdo piiblica...”** O fato de que Burke escreve como um propagandista consciente e politico prati- co, consciente das provaveis conseqiiéncias imediatas de suas palavras, nfo é freqiiente- mente considerado por seus admiradores, que gostam de olhé-lo como sendo essencial- mente um filésofo politico. A importancia do elemento — propaganda — também nao deve ser exagerada, Ndo ha razo para se descrer da sinceridade da indignagao de Burke, levantada pela descoberta da existéncia de uma certa simpatia inglesa para com a Revolugdo Francesa. Essa indignago aparece claramente, nfo s6 na sua correspon- déncia privada como nos seus escritos publicados. A opinifo, defendida por Marx e por outros, de que isso era tudo farsa, de que ele esfava-simptesmente “pasando por roméntico”® assim como ele ja tinha “passado por liberal”, ndo pode ser seriamente considerada. A premeditagdo aparece nfo ao se disfargar uma emogo que néo existe, mas ao se decidir até que ponto deve-se mostrar ao publico uma emogdo genuinamente sentida. Em certas circunstancias — se os Whigs estivessem no poder, por exemplo, e Burke com eles — dificilmente Burke “teria mostrado-se”. Mas ao decidir expor-se em piiblico, ele inevitavelmente libera forgas que nenhuma premeditacao poderia fazé-lo. Ele entrou na controvérsia como um Whig e termina como 0 {dolo dos Tories. Ele coloca seu amigo Charles James Fox em uma situagdo dificil, como anteriormente tinha feito com Lord North. E praticamente improvavel que esses resultados tenham sido preme- ditados. E mais provavel que Burke nunca tenha imaginado — até que os acontecimen- tos na Franga forneceram o teste critico — qudo profundamente ele estava em desacor- 24 Edmund Burke do com o que era fundamental na filosofia dos ingleses com quem ele tinha se aliado: ingleses, que acreditaram nos principios da Revolugdo Gloriosa e no Iluminismo, e que achavam que esses principios fossem essencialmente os mesmos ou que, pelo menos, tivessem uma origem comum™, uma rejeicdo racional 4 supersticao. ‘Nem mesmo os tories —apesar de admiré-los — pareciam melhores na sua opi- nifo. Eles eram frios e pragméticos, que defendiam uma guerra limitada com a Franca, nao empenhados com a defesa dos princfpios contra-revolucionarios. Os ultimos dias de Burke representam o fim daquele politico pratico: As Cartas sobre uma Paz Regici- da so certamente propaganda, mas uma forma estranha, pessoal e apaixonada de pro- paganda, o extravasamento profético, e até mesmo, da loucura — de um homem isola- do, inconsoladamente abandonado, fraco, mas ainda rejuvenecido pelo seu poder incomparavel de expressar sua fuiria em palavras cuja exuberdncia é até hoje impres- sionante. As Cartas sio uma propaganda viva de um homem 4 beira da morte em favor de uma “longa guerra”,>" uma guerra que, aliés, s6 terminou quase vinte anos depois de sua morte. 9 N&o é surpreendente que no nosso tempo a propaganda contra-revolucionéria contida nos ultimos escritos de Burke tenha sido usada para fins da Guerra Fria. O primeiro a perceber o potencial de Burke para o anticomunismoWo século XX parece ter sido A. V. Dicy, que, em um artigo publicado em 1918, tdo-somente substituiu “Franca” pela “Russia” em algumas das mais ardentes frases de Burke. Foi sé, entre- tanto, com o inicio da Guerra Fria na década de 40 que os trabalhos de Burke passa- ram a ser sistematicamente utilizados para fins anticomunistas e que ele passou a ser encarado e elogiado como um pensador politico. Esse processo teve inicio com a publicagfo em 1949 da “Politica de Burke”, uma antologia que continha uma introdu- ¢40 escrita por Ross Hoffman e Paul Levack. Um grupo de professores ¢ escritores americanos, incluindo um forte elemento catdlico, comegou a exaltar Burke como um grande filésofo polftico e expoente da Lei Nacional, assim como da Ordem estdvel, antevendo a Comunidade do Atlantico.” Os membros dessa escola passaram a desco- nhecer ou mesmo a minimizar o dado propagandista, polémico e pratico de Burke e supervalorizar a importancia e a consisténcia de sua “filosofia”. Eles passaram a atri- buir enorme importancia a duas frases de Hoffman e Levack: “A politica de Burke... estava baseada no reconhecimento da lei universal da razo e da justica provinda de Deus como o fundamento de uma boa sociedade. Ao fazer esse reconhecimento poe fim ao esquema maquiavélico de separagao entre Polftica e Moral...”°°. Peter J. Stan- lis, um dos mais férteis escritores desse grupo, vé o ano de 1949 como o ano da epifa- nia de Burke — como 0 infcio de uma “contra-revolucdo em bases tradicionais”, basea- da na obra de Burke. _ Um artigo de Peter J. Stanlis na Burke Newsletter — da qual Peter J. Stanlis era co-editor — afirmou que ele “nao poderia achar na teoria moderna uma frase que tivesse um efeito maior do que aquela frase de aspecto to simples escrita por Hoffman e Levack”™. Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 25 Apresentar Burke como uma espécie de porta-voz semi-oficial da lei da natu- reza tem 0 efeito de dar a seus escritos uma-autoridade sobre-humana. Duvidar dos argumentos de Burke é um insulto 4 natureza, como Burke, em uma situagdo comple- tamente diferente, afirmou: “A natureza das coisas é, eu admito, um adversério resolu- to”.°5 Um aliado resoluto também. Burke assim como o “aliado resoluto” passaram a ser usados para fins politicos especificos. A Burke Newsletter, que passou a registrar 0 progresso da “contra-revo- lugdo baseada na escola de Burke”, foi, de inicio, publicada como parte da Moderna- ge, um periodo americano de direita.®) “Os escritos de Burke”, segundo o bidgrafo americano de Burke, Carl B. Cone, “é uma parte fundamental do renascimento conser- vador contemporaneo”®”. A utilidade especifica de Burke para os restauradores do conservadorismo ficou bem esclarecida por um dos seus lideres intelectuais, Russell Kirk: “A concepgao de Burke sobre a comunidade das nagdes e sobre a lei natural da necessidade de combinar esforgos contra o fanatismo revoluciondrio se aplica total- mente as circunstancias atuais desse pafs... Burke no esté ultrapassado...”” A América desempenha hoje o papel que a Inglaterra teve nos fins do século XVII, € como os ingleses na época, nds, os americanos, nos tornamos sem 0 querer, defensores da civilizagdo contra os inimigos da justica, da ordem, da liberdade e das tradigdes da civilizagdo. As nossas so obrigagSes imperiais que requerem grandes inte- lectos para sua execugao.* Os escritos de Burke, assim, se tornaram fontes para “grandes intelectos”, prepa- rando-os para as “obrigacdes imperiais”, a eles impostas pela necessidade de combater © “fanatismo revoluciondrio”. Eles fabricaram uma linguagem espléndida e anteceden- tes respeitaveis — nas sombras vulnerdveis da “lei natural” da “ordem, justiga e liberda- de” — para legitimar o imperialismo contra-revolucionério americano e para treinar pessoal para servir a essa politica,® Conservadores mais astutos do que Kirk logo perceberam que Burke nao é um aliado totalmente confidvel. Algumas dessas raz6es esto na Parte II dessa introdugao. E evidente, entretanto, que claramente expostos, os tltimos escritos de Burke, come- gando com as Reflexdes, podem fornecer um grande material para a pregac¢do con- tra-revolucionéria, adaptada aos fins imperiais, Ao fazermos a igualdade jacobino = co- munista — afirmagdo que pode ser feita sem nos afastarmos dos principios de hostilida- de de Burke ao jacobinismo —, poderemos deduzir dos ultimos escritos de Burke um repert6rio de méximas e apoio 4 politica externa — e também a outros setores — que ficou associada a John Foster Dulles e que até hoje exerce uma forte influéncia na acdo dos Estados Unidos. Para Burke, assim como para Dulles, a doutrina revoluciondria é a expresso do mal encarnado: “Aqueles que fizeram o 14 de julho so capazes de fazer qualquer mal. Eles no cometem crimes para obter seus fins, mas fabricam fins para cometerem cri- mes. Nao é a necessidade, mas a sua natureza que os leva a isso”.!°° Esse mal tem uma posi¢do central e estratégica que deve ser deslocada: “Esse mal no coragdo da Europa deve ser extirpado desse centro ou nenhum lugar em torno dele estar livre dos erros

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