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OFENSIVA A CIFRA DOURADA DA CRIMINALIDADE: UM OLHARCRIMINOLOGICO ACERCA DA ATUAGAO DA POLiCIA FEDERAL NO INICIO DO SECULO XXI FAsro CaraM MEIRELES Poricta Frperat- MG ‘RESUMO Perpassa pela historia de formagio ¢ conformacio do Brasil a nogio criminolégica de que. a despeito de a cultura juridica nacional ser fundada em uma pr hi um impecuoso vis disctiminat6rio no que tange ao tratamento igual nos Ambitos crinvinal ¢ penal para a populacio como um todo. Pa vicissitudes sociais tém promovido uma aproximagio da igualdade formal com a material, entre as quais uma reformulacao seletiva da atuagao dos érgaos de persecugio cnsa igualdade, rio material latinamente, as criminal, com vistas egitimagio da atuagio repressiva estatal sob aégide do imperio da lei, Este artigo demonstra, coma contribuigio do kaso tedrico criminolégico, comoa Policia Federal (PE) tem alkerado o seu panorama técnico-investigativo, bem como as consequéncias desta novel atuagio na essitura social PALAVRAS-CHAVE: policia; dircito: criminologia; colarinho branco; criminalidade InTRODUG¢AO FE majoritaria no Brasil a concepgao positivista do Direito, assevera o professor emérito da Universidade de Sao Paulo-SP (USP) Dalmode Abreu Dallari (2000), perspectiva segundo aqual “6 é direito o que esté na lei e estando na lei é justo e legitimo, escamoteando-se 0 fato de que a lei tem sido feita pelos dominadores ¢ privilegiados ou por seus agentes, sempre dando preferéncia aos interesses ¢ 38 conve- niéncias desses grupos’ (DALLARI, 2000, p. 480). O jurista explicita 10s dias de hoje hé membros do Legislativo, do Executivo io que agem como protetores dos interesses dos que ocu- pam o topo da piramide social e buscam, sobretudo, a garantia dos pri- vilégios patrimoniais dos dominadores, além de sua impunidade nos Ambitos civil, fiscal e penal. me ES iucies Posiciats 193 Ofensiva si cfta dovrada da criminalidade: um olbar crimindligico. Assim, também ¢ histérica a enorme distincia entre o dircito que se encontra nas leis ¢ aquele que se aplica na priica. E as concepgées_juridicastradicionalmente _ predominantes nunca se preocuparam com esse aspecto, fixando-se quase que exclusivamente nas dousrinas ¢ nos textos legais, ignorando a realidade. [..] E 0 Poder Judiciério, muito preso a0 formalismo abstrato dos textos legais e submisso a sistemas processuais excessivamente minuciosos, propicios a discussio ¢ rediscussio de pormenores téenico-jurfdicos, age com grande lentidio ¢ se preocupa mais com a legalidade formal do que com ajustiga. Dai © distanciamento entre 0 diteito formal ¢ o real (DALLARI, 2000, p. 482) Outrossim, acerca de tratar desigualmente os desiguais, o livre docente do Departamento de Sociologia da USP Marcos César Alva- rez (2002) aponta que € necessirio estender a igualdade de tratamen- to para o conjunto da populagio ¢ repensar as priticas discriminatérias ainda presentes no campo juridico-criminal-penal do Pais, porquanto 0s operadores do Direito patrio tém atribuido “graus diferenciados de cidadania a setores distintos da populagio” (ALVAREZ, 2002, p. 699). No mesmo diapasio, 0 advogado, politico ¢ doutrinador Nilo Batista (1990) critica: Quando alguém fala que o Brasil é ‘o pais da impunidade, esta generalizando indevidamente a histérica imunidade das classes dominantes. Paraa grande maioria dos brasileitos ~ do escravismo colonial ao capitalismo selvagem contemporanco ~ a punigio é um fato cotidiano” (BATISTA, 1990, p. 38). Portanto, cristalizaram-se nas relacdes interpessoais e, por conseguinte, no imaginério coletivo priticas discriminatérias que de- sequilibram o principio da igualdade material, particularmente nas instituigGes de policiamento, “em que o pobre se torna sobremaneira 0 foco de atengao da policia, uma ‘policia de propriedade” (LEE apud YOUNG, 2010, p. 12). 2. POLICIA, ESTADO E SOCIEDADE Etimologicamente advindo do termo grego politeia, o qual de- signava, em sentido geral, a ciéncia dos fins e deveres do Estado, a par- 194 _Revisrs Brasusm ee Oe LL ll”tCO Fabio Caram Meireles tir do século XVIII estabelece-se na Europa a nogio de Policia como corporacio (forga de seguranga) encarregada pela ordem publica, conforme precisa o professor de Direito da Universidade do Porto- POR Anténio Francisco de Sousa (2009). Modernamente, a caracteristica fundamental do Estado mo- derno, segundo 0 socidlogo Max Weber (1997), é “[...] o monopélio do uso legitimo da forca fisica dentro de determinado territério” (WE- BER, 1997, p. 14). O professor de Justiga Criminal da Universidade de Nova Iorque-EUA David Bayley (2006), por sua vez, define policia a partir da uriade formada por forga fisica, uso interno autorizagao coletiva: “pessoas autorizadas por um grupo para regular as relagoes interpessoais dentro deste grupo através da aplicacio de orca fisica” (BAYLEY, 2006, p. 20). Ja Sousa aduz que: “A policia consiste na acgio [...] da Administragio Piblica de protecgao da comunidade contra os perigos que a ameacam, se necessirio através do recurso 4 coac¢ao, tendo em vista a ordem ¢ seguranga piblicas” (SOUSA, 2009, p. 14). Desse modo, policia ¢ a instituigio que carrega em si, de modo imanente, 0 monopélio executivo do uso da forga. Como se analisara mais detidamente em tépico préprio, sob 0 viés criminolégico, 0 professor de Direito Penal da Universidade Estadual de Santa Cruz-BA Eduardo Viana (2017) pontua que a atividade policial esta inserida no controle social formal - regulativo -, do qual fazem também parte outras instituicdes estatais de controle da criminalidade, como administragao penitencidria, Ministério Pablico c Jui “Entre as instituigdes da area da justiga e seguranga publica, a policia é uma espécie de ‘gata borralheira, jamais convidada para os bailes dos tedricos, mas sempre muito comentada por eles” (BATIS- TA, 1990, p. 170). De acordo com Nilo Batista, para se conceber uma policia instituida sob os auspicios do Estado Democritico de Direito, ha que se romper com uma perspectiva policial reducionista simplesmente analisada sob 0 binémio: violéncia-corrupgio, a qual engendra uma perniciosa espiral de isolamento ¢ abandono para as agéncias de seguranga publica, nee rr S iriss Possciats | 195. Ofensiva si cfta dovrada da criminalidade: um olbar crimindligico. Nao obstante, as organizagoes policiais e o ambiente estao em permanente transago, como cita 0 académico ¢ entio diretor da Po- licia de Seguranca Publica de Portugal Paulo Valente Gomes (2010): “Este conceito sistémico significa que a Policia afecta ¢ influencia o contexto externo ¢, ao mesmo tempo, é afectada ¢ influenciada pelo ambiente” (GOMES, 2010, p. 118). Por seu turno, o professor da Universidade de Frankfurt-ALE Hans-Gerd Jaschke (apud ALMEIDA, 2010) corrobora que a ativida- de policial tem por base o conhecimento ¢ a ciéncia. Nesse diapasio, © mestre em Direito das Relagdes Sociais pela Pontificia Universidade Catélica de Sao Paulo-SP Welder Oliveira de Almeida aduz que: “Os servidores policiais necessitam, cada vez mais, de uma formagio ¢ conhecimentos minuciosos a respeito dessa atividade e de seus desafios colocados por uma realidade cada vez. mais dinamica globalizada” (ALMEIDA, 2010, p. 141). A policia precisa ser integral, salienta Gomes, no sentido de se rornar “agregadora de miltiplas valéncias ¢ capacidades ¢ beneficiando das sinergias dai decorrentes, para que possa aspirar a uma melhor compreensio ¢ actua¢io sobre uma realidade também ela complexa ¢ multifactorial” (GOMES, 2010, p. 120). Retomando as ideias de Nilo Batista (1990), referido autor asse- vera que 0 servigo policial prestado sob 0 influxo do Estado de Direito deve contemplar cinco caractetisticas fundamentais: prevengio (plane- jamento prévio e articulagéo com demais planos administrativos), efi- cicia (foco na raiz dos problemas ¢ desburocratizagio), legalidade (ob- servincia estrita da lei), socialidade (acesso ¢ atendimento democritico) ¢ comunitariedade (estabelecimento de permanente e transparente di logo com a sociedade organizada, por meio da divulgacao periddica de estatisticas, a fim de permitir corregdes na forma de atuagio). 3. RELEVANCIA DO SABER CRIMINOLOGICO, Critico da atomizagio da ciéncia criminolégica em compartimentos estanques, com dispersio por especialidades, sem uma perspectiva do todo, o professor de Dircito Penal c Criminologia da 196 Revisrs Bresusm ee One LL llUlUlUlUlUllllCO Fabio Caram Meireles Universidade Nacional de Buenos Aires-ARG Carlos Alberto Elbert (2011) propoe a definigio da criminologia em um contexto de validez genérica, dentro do qual seja possivel obter coeréncia, continuidade ¢ logica discursiva. “Cada fragmento permanece ensimesmado em temiticas especificas, tais como drogas, menores, prises, seguranga, vitimas, genero etc., sem qualquer esforco para transcendé-las e inserta- las em uma visio teérica geral” (ELBERT, 201, p. 2). A despeito de nao possuir a ciéncia criminolégica um estatuto proprio monolitico, com especificidade metodolégica ¢ precisio objetiva, ha progressos adquiridos pela disciplina no plano epistemologico, os quais promovem a reflexio da prépria atuagio dos érgios de controle. Sob o olhar criminolégico delineado pela abordagem da rocu- lagio (labeling approach), 0 conceito de crime é consequiéncia da rea- Gao social do sistema penal ao fato, estando a explicagio do fendmeno criminal nas respostas formais do Estado para determinado compor- tamento. “O delito (a desviagio) néo é uma qualidade da conduta, mas sim uma etiqueta atribuida a partir de complexos processos de interagio social” (VIANA, 2017, p. 264). Desse modo, 0 que estaria em foco nao seria a conduta desviante por si s6, mas a forma como as agéncias formais de controle, policia inserida, filtram e reagem ao refe- rido comportamento, 3.1 GARANTISMO PENAL © professor da Universidade de Roma-ITA Luigi Ferrajo- li (2002), formulador da teoria geral do garantismo penal institui os principios fundantes do sistema garantista (SG), denominados axio- mas, que estariam harmonizados sistematicamente, entre os quais se destacam, sobremaneira na atuagio policial: os principios da lesivida- de (efetiva ofensa 20 bem juridicamente protegido), da materialidade (prova da existéncia do delito) ¢ da culpabilidade (devida e segura comprovagio da culpa do autor). © modelo garantista descrito em SG apresenta as dez.condigées, limites ou proibigSes que identificamos como garantias do cida- dio contra 0 arbitrio ou o erro penal. Segundo este modelo, nao nee ar iris Possciats | 197 Ofensiva si cfta dovrada da criminalidade: um olbar crimindligico. seadmite qualquer imposigao de pena sem que se produzam aco- missio de um delito, sua previsio legal como delito, a necessidade de sua proibigio e punigio, seus efeitos lesivos para terceitos, 0 cariter externo ou material da agio eriminosa, a impurabilidade © a culpabilidade do seu autor e, além disso, sua prova empirica produzida por uma acusagio perante um juiz imparcial, em um processo piiblico e contraditério em face da defesa © mediante procedimentos legalmente preestabelecidos. (FERRAJOLI, 2002, p. 83). Destarte, a teoria garantista, a fim de elidir o arbitrio estatal ¢ promover a dignidade da pessoa humana, se estabelece como limi- tagao e conformagao do direito penal e do direito processual penal a Constituigao. No preficio da obra Direito e Razio, o filésofo Nor- berto Bobbio chama a atengao para a construgio das vigas-mestras do Estado de Direito que possuem por base tutelar a liberdade do cidadio contra o abuso de poder advindo da aplicagio do jus puriendi estatal com irracionalidade ilegalidade. “Deslegitimar 0 exercicio absoluto da potestade punitiva” (FERRAJOLLI, 2002, p. 73) — esta seria a fun- 40 das garantias no direito criminal, uma faceta menos permissiva ou legitimadora ¢ mais condicionante ou vinculadora. Verifica-se uma negagio a0 abolicionismo penal ao se tomar por base o Direito Penal como tutela subsididria de bens juridicos valiosos, a partir da atuagio pujante da policia ¢ seu instrumental investigatério dos delitos econémico-financeitos cometidos por organizacOes criminosas que se imiscuem junto ao Estado e praticam condutas que atingem a coletividade como um todo. 3.2 COLARINHO BRANCO. Termo cunhado pelo socidlogo norteamericano Edwin Su- therland (1999), nos idos de 1939, o crime de colarinho branco sus- tentou o desenvolvimento da teoria da aprendizagem social, segundo a qual o comportamento delituoso seria 0 resultado de um proceso de aprendizado interacional entre individuos criminosos partilhadores de interesses ¢ valores comuns. Em virtude de se relacionar a métodos complexos ¢ transagées sofisticadas, 0 crime de colarinho branco ~ white collar crime ~, rece- 198 Revisrs Bresusm ee One LL llUlll”C*@ Fabio Caram Meireles beu essa designacéo por ser cometido a priori sem violencia ¢ usual- mente enyolver pessoas com expressiva influéncia sociocconémica, ocupantes de cargos ou fungées de clevado grau de respeitabilidade social, as quais trajam vestuatio com rigor aristocritico (SALGADO, 2010). professor da Universidade Complutense de Madri-ESP An- tonio Garcia-Pablos de Molina (1984) anunciou, em meados da dé- cada de 1980, que 0 que se pretendia denunciar com o conceito de delinquente de colarinho branco cra algo grave: “Es la particular tras- cendencia social de los crimenes de los poderosos, en comparecion con la criminalidad convencional, y la irvitante impunidad de que, sin embar- go, suelen disfrutar en nuestro tiempo” (MOLINA, 1984, p. 179). Porsua vez, 0 docente da Faculdade de Direito da Fundagao Ge- tilio Vargas Rodrigo de Grandis (2010) nota que a danosidade social dos delitos tradicionais é restrita, enquanto que o efeito deletério da de- linquéncia do colarinho branco é sensivelmente mais acentuado, uma vez que esta modalidade delituosa, além de comprometer a idoneidade da ordem econémica (eliminagao da concorréncia, desconfianga nas relagdes mercantis, deformagio do equilibrio do mercado etc.) ainda ocasiona consequéncias devastadoras a coletividade (vida ¢ satide da populagao como um todo) até mesmo a ordem juridica internacional. Crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei 7.492/86) ¢ de “lavagem” de recursos ilicitos (Lei 9.613/98) segundo de Grandis, se praticados na conjuntura de uma organizagao criminosa bem estru- turada ¢ influente, “possuem a aptidio de atingir, de modo indelével, toda a ordem ccondmica de um pais, a depender da conduta perpetra- da” (GRANDIS, 2010, p. 376). 3.3 CIFRA DOURADA Relacionada a criminalidade oculta de viés econdmico, nao registrada nas estatisticas oficiais, a cifra dourada representa a criminalidade do colarinho branco, “definida como praticas antis- 1 £ a particular transcendéncia social dos crimes dos poderosos, em comparagio com a criminalidade convencional, e @ irtante impunidade de que, no entanto, costumam desfrutar «em nosso tempo (tradugtio livre do autor) nm eee ar iris Posrciars | 199 Ofensiva si cfta dovrada da criminalidade: um olbar crimindligico. sociais impunes praticadas por aqueles que detém 0 poder politico ¢ econdmico (em nivel nacional ¢ internacional), em prejuizo da coleti- vidade ¢ dos cidadaos ¢ em proveito das oligarquias econémico-finan- ceiras” (VIANA, 2017, p. 162). Ademais, a desmaterializagio da vitima na sociedade con- temporiinea, em que o delito lesiona ou expée a perigo de lesio bens juridicos cuja titularidade nao ¢ de determinada pessoa, mas toda a coletividade, é denominada vitimizacio difusa, Segundo Viana, esse processo “[...] tem o inconveniente de nao transmitir & consciéncia coletiva a gravidade de tais delitos, Com efeito, a auséncia de uma vitima identificada — com a qual a sociedade se solidariza — maquia a relevdncia da conduta, a tal ponto de considerd-la desmerecedora da tutela penal” (VIANA, 2017, p. 161). Nessa linha, o professor da Escola Superior do MPU Daniel Salgado (2010) propugna que ha “resisténcia 4 adequacio de meios investigativos as. modernas formas de criminalidade, dentre clas a delinquéncia econémica” (SALGADO, 2010, p. 61), sendo tal relu- tincia alicergada por meio de criticas tendenciosas da instituigao, na persecucio criminal, de um pretenso Estado policialesco, Para 0 autor, 0 estabelecimento de restrigdes legais ao rol de legitimados a procede- rem a diligéncias investigatérias, bem como a manutengio de anacté- nicos instrumentos de investigacio, dissimulam 0 fendmeno da politi- ca de “interesses encobertos”, denominagio cunhada pelo docente da Universidade de Munique-ALE Bernd Schiinemann, Para Salgado, esta politica mantém o status quo de beneficiar a delinquéncia econdmica, garantindo privilégios as classes mais abastadas, porquanto “[...] 0 Tegislador continua a utilizar a criagio normativa penal como apandgio de uma desigualdade substancial histérica” (SALGADO, 2010, p. 62). Prope Salgado nao apenas uma mudanga na culeura legislativa, mas um giro hermenéutico para a superagio de um discurso penal libe- ral exorbitante por meio de uma concepgio de direito calcada em um Estado de Justica Social. No ambito da delinquéncia econdémica, tan- to quanto nas condutas de sonegagio fiscal, evasio de divisas, gestoes temerétias ¢ fraudulentas, 0s mecanismos processuais ainda seriam interpretados sob o influxo liberal das implicagdes pessoais que o cri- minoso sofreria, mitigando o enfrentamento da macrocriminalidade ¢ atenuando sobremaneita a persecugao criminal 3 elite do crime. 200 revisrs Brasiie oe Oe LL llUlUlUlUlUllllCO Fabio Caram Meireles [..] novos métodos de investigagao, necessérios ao cabal acesso a elementos que formariam © quadro probatério de infragées penais identificadas com a delinguéncia econdmica [..], sio taxados de invasivos, excessivos ou imorais ¢, consequentemente, objetos de restricio, especialmente pelos Tribunais Superiores” (SALGADO, 2010, p. 63-64). Nos tempos hodiernos, portanto, a repercussio da criminalidade econémica gestada na complexidade da sociedade moderna rompeu com 0 paradigma das relagdes juridicas meramente interindividuais para afligir objetividades juridicas difusas, como na ocorréncia de corrupgio corrosiva, lavagem vultosa de dinheiro ¢ grandes escindalos financeiros, O autor infere que se faz necessiria a adapracéo do direito, sob o prisma da defesa social, as mudancas da realidade fatica, promovendo-se uma releitura do sistema penal sem, entretanto, olvidar das garantias penais do Estado de Dircito: “As ga- rantias nao sé permanecem intactas, mas, por enxerté-las de conteil- do de justica material, sio superiores &s conferidas no Estado Liberal” (SALGADO, 2010, p. 68). No estado social de Direito, as garantias s6 podem ser derivadas ¢ compreendidas a partir de prineipios normativos, mas de base necessariamente ontolégica, cheios de contetidos materiais de igualdade ¢ justiga social, ¢ em absoluto sio meras formas libe- rais que, até agora, funcionatam materialmente s6 ¢ exclusiva mente a servigo da definigio, classificagao, disciplina e repressio do comportamento desviado de classes sociais economicamente despossuidas e, por isso, politicamente dominadas e subjugadas, € a servigo, a0 mesmo tempo, da exclusio do discurso. da criminalidade de quase totalidade da criminalidade material das lasses sociais poderosas[..J” (MARTIN, 2006, p. 145). Destarte, para o professor de Dircito Penal da Universidade de Zaragoza-ESP Luis Gracia Martin (2006), os delitos econdmicos perpetrados pela elite, portadores de “danosidade social exponencial ¢ de magnitude césmicas’, devem ser debelados pelo fortalecimento de mecanismos aptos ao seu enfrentamento, jd que os crimes tradicionais, comparativamente, assumem a conotagio de bagatela. nn eee a iris Possciats | 201 Ofensiva si cfta dovrada da criminalidade: um olbar crimindligico. 4. OFENSIVA A CRIMINALIDADE ECONOMICA “E lugar comum, em criminologia, referir-se 4 distancia estraregicamente mantida, no campo da criminalidade econdmica ¢ financeira, entre condutas desviantes ¢ condutas delituosas.(..] Tal distancia, no terreno da ‘delinquéncia dourada’ € estavel € permanente demais para ser também inocente; ¢ ainda quando rompida no plano legislativo, nao se encurca na pritica do sistema penal” (BATISTA, 1990, p. 44), Segundo Nilo Batista, a incorporagdo da distincia entre o desviante ¢ 0 delituoso nos crimes do colarinho branco costuma levar & dessensibilizagao do sistema penal, fazendo com que ninguém se mexa e nada acontega. Ainda na década de 1990, Batista assinalou ser dbvio que a le- gislagio criminal deveria ser reformulada para reduzir a distancia entre a forte reprovacdo comunitiria ¢ seus dispositivos, atenuando a crise de funcionalidade gerada, assim como também seria claro que todos 0s niveis do sistema penal e de suas conexdes administrativas, teriam que “recondicionar seus sensores para os crimes dos poderosos, que sio cometidos & sua frente sem que nada acontega; ¢ a crise, aqui, nao é funcional ¢ sim politica ¢ moral” (BATISTA, 1990, p. 46). Observa Shiinemann (apd VIANA, 2017) que nas tiltimas décadas a Alemanha tem altcrado 0 paradigma do dircito penal da classe baixa para o da classe alta em razio de uma exigéncia moral, tendendo & construgio de tipos penais criminalizadores de condutas praticadas por pessoas ocupantes de elevado status social-econémico. Mas para o professor da Escola Superior do Ministério Pabli- co da Uniio-DF, Douglas Fischer (2001), “nio se tem difundido no Brasil que Ferrajoli reconhece expressamente 0 desenvolvimento de uma nova criminalidade, de Ja cual provenien las ofensas mas graves a los derechos fundamentales: la criminalidad del poder”® (FISCHER, 2001, p. 31). No que concerne as consequéncias dos delitos econdmicos (¢ os custos sociais deles decorrentes), temos plena tranquilidade em 2 dagqual provém as mais graves ofensas aos ditetos fundamentais: a criminalidade do poder (tradugio livre do autor) 202 —arevrsrs Brasiia oe Ce LL ll”tCO Fabio Caram Meireles assentar que, regta geral (sob a dtica dos resultados econdmicos), possuem os efeitos mais lesivos se comparados com aqueles da delinquéncia tradicional. (FISCHER, 2001, p.35) Viana também afianga tal entendimento: enquanto hé uma visivel preferéncia de classe social para criminalizagao priméria, legislador e jurisprudéncia insistem em afastar a classe alta do Direito Penal” (VIANA, 2017, p. 347). Entretanto, é perceptivel a existéncia de uma ruptura com o embate & criminalidade clissica, de etiquetamento somente direciona- do asclasses sociais despojadas. O fendmeno de alteragio do paradigma procedimental também ¢ notivel quando sc verifica a agio da Policia Federal do Brasil. 4.1 TRABALHO REPRESSIVO DA PoLicia FEDERAL Da ténica de repressio ao descaminho e contrabando nos anos 1980, passando pelo combate ao trafico ilicito de drogas na década de 19903, a partir do ano 2000 nota-se uma predominancia da atuagao da PF no enfrentamento de crimes enyolvendo organizagdes criminosas que atuam imiscuidas ao Poder. O Estado figura como ator estratégico paraa dinamica da criminalidade organizada, vez.que grupos crimino- sos utilizam-no para maximizagao de seus objetivos: “Os atores estatais sao, portanto, utilizados como ferramenta para facilitar as atividades criminais” (FELSON apud OLIVEIRA, 2012, p. 423). Segundo o professor do Departamento de Ciéncia Politica da USP Rogério Bastos Arantes (2011) 0 processo de reconstrugio institucional da PF ¢ tributario de deslocamentos de natureza diiplice, institucional e organizacional: [..] de um lado, tais mudangas podem ser explicadas pelo dese- nnho institucional capaz. de propiciar resultados mais efetivos nas esferas criminal e federal; de outro, a maior efetividade depende também da motivagio endégena c do empenho das organizagdes no aumento da cficicia de suas ages ¢ no adensamento de suas relagdes reciprocas, na web of accountability, com vista a superar 3 Deflagragio da Operagio Alpha em 04/06/1994, considerada a primeira “Grande Operagio da PP’ qual apreendeu 75 toneladas de cocaina em uma fazenda no municipio de Guarai-TO. Fonte: hepi//wwwipf gorbe/imprensa/grandes-operacocs nm eee a ries Possciars | 203. Ofensiva si cfta dovrada da criminalidade: won olbar crimindligic. © isolamento ¢ a imprimir maior consequéncia is atividades de combate i corrupgio (ARANTES, 2011, p. 99-100). Outrossim, 0 professor da Escola Superior da Academia Na- cional de Policia-ANP/PF Cilio Jacinto dos Santos (2017) aduz que a PF desenvolveu critérios operativos com o fito de delimitar 0 que se convencionou denominar “grandes operagses de policia judicidria’, a partir da criacio, em 2002, da Coordenacao-Geral de Repressio ao Cri- me Organizado de Inquéritos Especiais. Desse modo, a premissa ope- racional contempla os seguintes elementos: emprego de técnicas apura- das de investigacio, com cooperacio interinstitucional ¢ internacional, contra acdes criminosas de grande poderio econémico, social e politico. Figura I - Estatistica de operagoes* Operacdes Fonte: sitio eletrdnico da Policia Federal (..] a repressio da criminalidade organizada ~ como as mafias € a corrupgio cleptocrata ~ deve contar com meios necessirios € proporcionais, que possibilitem o debelamento da ambicio dos criminosos poderosos incrustados no aparelho estatal, ¢ de organizagdes criminosas que causam danos & organizagio social (SANTOS, 2017, p. 17). Como analisado anteriormente, as consequéncias provenien- tes dos mais variados tipos de corrupgao envolvendo organizagées cri- minosas, em especial nos crimes de desvio de verbas publicas ¢ lavagem de dinhciro, sio uma faceta perversa da impunidade, que exigem maior capacidade investigativa dos érgios de controle. 4 Quantitativo anual das operagdes deflagradas pela PF entre os anos 2003 ¢ 2016, 204 Revises Brasuaina ok Cbncias Pouca) Nunn aan Fabio Caram Meireles Segundo 0 professor do curso de Direito da Universidade Fe- deral do Parana Sérgio Fernando Moro (2004), haveria ainda uma mentalidade da pritica judicial condescendente com a corrupgio, “pritica que permite tratar com maior rigor processual um pequeno traficante de entorpecente [...] do que qualquer acusado por crime de ‘colarinho branco, mesmo aquele responsavel por danos milionérios & sociedade” (MORO, 2004, p. 61). Nio obstante, a partir do progressivo aprimoramento das instituig6es responsaveis pela persecugao criminal, em consonancia com a repercussio social advinda da indignagéo publica para com 4 corrupgio, observa-se no Brasil o fenémeno do fim da plena impunidade no que atine aos crimes de colarinho branco. Além de uma hermenéutica de Direito Penal equilibrado das Cortes Superiores (vide mutagio constitucional do STF, admitindo prisao a partir da decisio em segunda instincia’) e de inovagées legisla- tivas (interceptacio telefonica e telemética, agao controlada, infiltragio policial, lei de “lavagem” de ativos ¢ lei de combate 4s organizagées cri- minosas ¢ colaboragio premiada‘), a alteragio paradigmatica da atuagio da PF é triburaria também do aperfeigoamento institucional do érgio. As priticas desviantes realizadas por setores hegeménicos da so- ciedade que acarretam prejuizo A coletividade em beneficio de oligarquias que convalidam seu poder e status social tém sido, hoje em dia, objeto sistemtico de indignacao publica, em razao da magnitude que tomaram, da alta reprovabilidade da conduta ¢ dos graves impactos sociais que promovem (obras piiblicas paralisadas, investimento deficitirio em satide ¢ educagio, vias sem condigées de trafegabilidade ctc.). A PE cumpre relevante fungio no combate a este tipo de mo- dalidade criminosa, uma vez que possui competéncia constitucional para apurar infragdes penais contra a ordem politica e social, além da- 5 Processo n® 8620448-89.2015.1.00.0000, reference ao julgamento do HC 126292 em 17/02/2016. 6 Lei 9.296/1996 (que regulamentao inciso XI, parte final, do art. 5° da Consttuigio Federal, 0 dlsporsobre aineereeptagio de comunicagdes como meio de provacm investigngo ceiminale insteugio processual peal) Lei9.613/1998 com sgnfiativas lteragOes da Lei 12.683/2012 (que dispdesobre os crimes de“avagem” ou ocutagto de bens, direitos e valores: a prevengio da usilzagéo do sistema Fnanceiro para os icitosprevsts nesta Le ciao Conselho de Controle de Atividades Financeiras~ COAF) Let 12.850/2013 (que define organieagio eximinosa edie sobre a investiga criminal, co mcios de abtensio da prova, infra pena correlatas co pracedimento criminal. nm eee a brie Possciats | 205 Ofensiva si cfta dovrada da criminalidade: um olbar crimindligico. quelas cuja pratica tenha repercussio interestadual ou internacional ¢ exija repressdo uniforme’. Desse modo, ao saber que a investigagio de qualquer crime de agio ptiblica deva se proceder de oficio de modo obrigatério, confor- me determinagio legal’, mas reconhecer que nao ha capital humano € estrutura para tal, observa-se uma aplicagio da abordagem da reagio social sui generis, focalizando a criminalizagio de condutas desviantes praticadas pela clite, uma vez que possuem consequéncias delerérias para toda a colctividade, promovendo uma ofensiva contra a, até cntio, inatingivel cifra dourada. Nesse sentido, “na busca de maior legitimi- dade, eficiéncia, eficacia, economia e ética (os 4 Es), o trabalho policial aposta cada vez mais numa abordagem holistica, cientifica ¢ flexivel dos problemas” (GOMES, 2010, p. 111). E considerando que “arranjos ins- titucionais distribuem poder diferenciadamente entre os atores politi- cos envolvidos no jogo” (NORTH apud OLIVEIRA, p. 423), aplica-se © principio da seletividade no ambito da investigacéo criminal, como catalisador da igualdade material a que se refere o introito. 4.2 LEGITIMAGAO SOCIAL DO MODUS OPERANDI DA PF No moderno Estado de Direito, conforme leciona Sousa, nao se pode conceber uma legalidade dissociada da legitimidade, ou seja, gue seja totalmente independente. “Nesta medida, a legalidade tam- bém depende daquilo que a generalidade da populagao (a maioria da populacao — subjectividade social) considera ser correcto € justo” (SOUSA, 2009, p. 21). Legitimidade seriam os fundamentos mate- riais internos em que prevalece a correcio ¢ a justiga. Para 0 fildsofo associado 4 Escola de Frankfurt-ALE Jiirgen Habermas (1997), a legitimidade da ordem juridica nao deve ir de encontroaos principios morais: “o principio do direito limitao principio da moral e vice-versa. A legislagao reflete-se na moral, a legalidade na moralidade, os deveres juridicos nos deveres éticos” (HABERMAS, 1997, p. 139). Portanto, o autor raciocina que nao ha subordinagao do dircito positive 4 moral, mas uma relagao de complementaricdade, 7 Ant 144 da CESS 8B An. S*doCPP, 206 Revisrs Brasisa oe LL lUlUlUlUlll”C*@S Fabio Caram Meireles constituindo-se o direito como um meio legitimo para assegurar auto- nomia dos cidadaos. Outrossim, segundo Sousa, a atuagio policial tem como prin- cipio fundamental a juridicidade, uma vez que os poderes da policia sio adjudicados por lei e visam & finalidade pela legislacio estabelecida: “Nio hé policia sem lei ou a margem da lei edo Direito” (SOUSA, 2009, p-47). Assim, para o estudioso em aprego, quanto ao dominio da perse- cugéo criminal, “sem fechar os olhos a realidade e sem retirar a eficécia da actuagio policial, ¢ indispensivel que esta actuagio, pelos perigos que representa para os direitos e liberdades dos cidadaos, seja uma actuagio gue exclua o arbierio da autoridade” (SOUSA, 2009, p. 51). Conforme jé examinado, a utilizagéo da ciéncia como fonte de conhecimento para o estudo do fendmeno criminal ¢ para a atuagio ¢ gestio policial perante uma sociedade cada vez mais exigente é fator de legitimagao social. Bayley leciona que a atividade policial representa o uso de forca da sociedade contra ela mesma: “Coergao, controle e opressao sao sem duvida necessdrios na sociedade, mas nio sao agradaveis” (BAYLEY, 2006, p. 18). E a partir desse aparente paradoxo que conforma a ativi- dade da policia, com vies dual entre necessidade ¢ nao-agradabilidade, delineia-se 0 modo pelo qual a sujeigio as regras da lei é fator crucial na legitimagao da autoridade da policia. Por sua vez, o professor da Universidade de Londres-ING Ro- bert Reiner (2004), analisando a sociedade inglesa, aduziu que, paula- tinamente, a nova policia ¢ o sistema de justiga criminal inseriram-se no cotidiano das classes menos favorecidas, nao apenas sob a forma de controle de carter repressivo, mas também como ferramenta com po- tencialidade restaurativa. Reiner propugna a adesio estrita da conduta policial a0 ordenamento juridico: “A forma pela qual a policia manti- nha a ordem e aplicava a lei supostamente deveria ser governada, cla mesma, por procedimentos legalistas ¢ por restrigoes” (REINER, 2004, p. 88). Desse modo, infere-se que a legitimidade da atuagio da polic se da, também, pelo consentimento social. “[...] nessa legitimagio, 0 crescimento de um senso de eficicia da policia foi, provavelmente, pelo menos tao significativo como os aspectos de construgao de imagem” (REINER, 2004, p. 96). nee nar iris Possciars | 207 Ofensiva si cfta dovrada da criminalidade: um olbar crimindligico. JA para Moro, a corrupgio disseminada colocaria em xeque a legitimidade do proprio regime democratico: A corrupgio tende aespalhar-se enquanto nao encontrar barreiras, cficazes. O politico corrupto, por exemplo, tem vantagens competitivas no mercado politico em relagio a0 honesto, por poder contar com recursos que este nao tem. Da mesma forma, um, ambiente viciado tende a reduzir os custos morais da corrupgao, ‘uma vez que 0 corrupto costuma enxergar o sett comportamento como um padrio € nao a excecio (MORO, 2004, p. 61). O proceso construtivo da imagem da PF na ofensiva contra a cifra dourada da criminalidade, disruptivo da abordagem da reagio social clissica, e prospectivo da constituigio do Estado Democratic de Diteito, engendra-se por meio da legitimagao da atividade policial como propulsor do controle social informal. Explica-se: a policia, nio obstante tradicionalmente enquadrada como uma agéncia instituida no controle formal da criminalidade, ao introjetar, de forma legitima, seu papel na comunidade pela assungio do novo modus operandi, vem proporcionado a transcendéncia na forma de controlar o crime. Pro- pée-se o raciocinio de que tal fendmeno ocorreria por meio do pro- cesso de socializacéo de valores morais ¢ éticos, consubstanciados em normas ¢ sangdes sociais advindas do interacionismo simbdlico. “Este controle social informal pode constituir excelente barreira 4 preven- gio do comportamento desviante, seja porque atua, em regra, de modo preventivo, seja porque ¢ capaz de impactar sobre a estruturagao do controle interno do individuo” (VIANA, 2017, p. 171). De acordo com Moro, a agao contra a corrupgao sé se mostra eficaz com o apoio da democracia ¢ somente investigagdes ¢ agdes exitosas podem angariar a opiniao publica. A atuacao da PF, quando percebida como legitima pela sociedade, conquistaria credibilidade popular, promove a justaposigio dos controles formal ¢ informal, ¢ tendea estimular o declinio de comportamentos desviantes. 208 Rsvrsrs Brassed oe Ge LL llUlll”C*@ Fabio Caram Meireles Figura 2 - Indice de Confianga Social ICS — Institui¢ées 2002 2010 201120122013 20182015 2016 20172018 Fonte: indice de Confianga Social de 2018 do Ibope. Finalmente, como propugna o professor da PUC-SP Edson Luis Baldan (2018), em uma democracia, a iantitui sera algo fécil ou incontroverso: Policia nunca [..] a comegar porque a lei — e mesmo a ordem - cuja implementagio cabe is policias nio € uma pauta de regeas imutaveis, mas, a0 revés, tanto as normas quanto a sua maneira de aplicagio reflerem compromissos em opinides ¢ valores da sociedade, que os criae anula” (BALDAN, 2018, p. 7). Nao obstante, a policia deve apresentar valores ¢ normas comprometidos com 0 Estado Democratic de Direito (BALDAN apud DAS; MARENIN, 2018, p. 8), contribuindo para a cocsio so- cial por meio do estabelecimento da confianga na atuagao, posto que “numa democracia, 0 policiamento reflete ¢ refrata 0 Estado ¢ seus interesses, embora tais interesses sejam balanceados tanto em relagio aos dos policiais quanto aos dos cidadaos” (BALDAN, 2018, p. 9). Portanto, a investigacao criminal entabulada pela policia deve resguar- dar as liberdades individuais e primar pela defesa pujante de um Es- tado em que eficiéncia ¢ garantismo nio se excluam, mas se limitem mutuamente, “materializando o principio democratico como forma de legitimagao do poder, para que se torne o impulso dirigente de uma sociedade” (BALDAN, 2018, p. 9). 9 ADE & considerada, desde 2016, a teceia instituigio mais confidvel do Brasil. frente de Forgas Armadas, Meios de Comunicagio, Organizagdes das Sociedade Civil, Ministério Publica ¢ Poder Judiciaro, eee ar iris Possciars 4209 (Ofensiva si cfta doverada da criminalidade: won obhar criminal 5. CONSIDERACOES FINAIS Com atuacao em ambito nacional ¢ sujeita a menor interferén- cia!” do que as Unidades da Federagio na sua relagao com o Executivo, a PF priorizou o investimento em inteligéncia e andlise policial em seu “Plano Estratégico 2010/2022”", promovendo um recrudescimen- to na investigagao de organizacées criminosas que atuam dentro do Estado!? *, solapando-o. Soma-se a isso 0 ingresso de quadros com formagio multidisciplinar dos mais diversos ramos académicos, via disputado concurso publico"’, ea promogao de capacitacao permanen- te nas areas de crimes financeiros e lavagem de dinheiro'*. 10 Ao verificar que a impunidade nao est4 institucionalizada para os detentores de poder, a partir da ofensiva a cifra dourada empreen- dida pela PE, o comportamento humano, inseparavel dos intrincados processos sociais de interacio ¢ aprendizado, ¢ influenciado pela atri buigéo de significados de valor ou desvalor de condutas por meio do construtivismo social. Contudo, a partir do momento em que o sistema penal passou a atingir quem antes jamais fora atingido (a denominada criminalida- de do colarinho branco), 0 professor da Escola Superior do MPU Bru- 10, Deereros 6944/2009 ¢ 8326/2014. 11 Portaria n° 4453/2014-DG/DPF. 12. Levantamento da Policia Federal, feito a pedido do Jomal Correio Braziliense aponta que as ages da PF contra cormupgdo cresceram 411% em cinco anos, periodo em que o total de prisdes chega a 1.946 e a de operacdes, a 621. “Centenas de pessoas foram presas por cometer crimes como corupgio, formacio de quadrilha, lavagem de dinheiro, fraude, obstrucio da Justica e recebimento de vantage indevida, entre outros. 13, Segundo dados levantados pelo jomal © Globo junto Coordenagao-Geral de Repressio & Corrupedo e & Lavagem de Dinheiro da Policia Federal, 0 érgio promoveu, de janeiro até 0 final de novembro de 2018, 295 operacdes contra desvios de dinheiro piblico, Foram 253 agdes do tipo em 2017, 152 em 2016, 73 em 2015, 54 em 2014, 56 em 2013 e 48 em 2012. Destaca-se que a propria reportagem pontua que nas gestées passadas, a policia classificava ‘como operago apenas investigagdes de longa duracfo, consideradas complexas e, em geral, de impacto nacional. © conceito mudou durante a administragio do ex-diretor Leandro Daiello, que passou a considerar operagao toda acao da policia que envolve pelo menos uma das seguintes medidas consideras invasivas: busca e apreensio, conduao coercitiva¢ prisdes, 14 Demanda de 514,84 eandidatos por vaga no concurso de Agente de Policia Federal de 2018, Fonte: Cebraspe. 15 Curso Basico de Investigagdo de Desvios de Recursos Piiblicos - 2017.02; Curso de Alinhamento Conceitual do PNLD (lavagem de dinheiro) - 2017.02; ATLAS SRDP - 2017.01 Fonte: ANPnet 210 —_aRevrsrs Bassi oe lO Fabio Caram Meireles no Freire de Carvalho Calabrich (2010) aponta que supostos direitos fundamentais passaram a ser invocados com 0 tinico ¢ exclusivo obje- tivo de ctiar novos ébices & aplicagio da sangéo penal. Para o referido estudioso, fala-se em supostos, devido a que estes dircitos alegados se transmudam a um hipotético direito 4 impunidade, ao qual nenhum ordenamento posto racionalmente iia considerar. Nao obstante, a atividade policial na PF, ainda que pautada no enfrentamento vigoroso aos crimes de colarinho branco e fandamen- tada no principio da scletividade, tem que respcitar os dircitos funda- mentais dos individuos para a consolidagao do Estado de Direito, em que vige o império da lei. Na atual conjuncura, em que a dinamica da criminalidade assu- me uma feigio cada vez mais complexa, intensa ¢ marcada pela nao li- nearidade, 0 desafio que se vislumbra para a atividade da policia, em s- pecial da PF, ¢a nao compactuagio, ainda que tacita, coma ilegalidade ea inconstitucionalidade sob o pretexto de um vokivel clamor popular ou uma pretensa eficiéncia, Desse modo, a policia deve refletir suas atribuigdes perante © prisma da igualdade material, fundada no cixo axiomitico da dig- nidade da pessoa humana, a fim de contribuir para a legitimidade da consolidagio do regime democratico ¢ para a consecugio do objetivo insculpido na Constituigéo Federal do Brasil de construcio de uma sociedade livre, justa e solidéria. Faro CaRAM MEIRELES AGEwv® pe PoLicta FeDenat Pos GRADUADO BM CoMUNICAGAO SoctaL (UFMG) 6s-GRADUADO FM CIENCIAS POLICIAS PFLA ESCOLA SuPeRioK De Pouicia a AND/PF. Grapvano EM DIREETO PELA FACECA & EM JORNALISMO INEBH, bneps//lates.enpgbr/1931196454267026 nm eee a iris Possciats 2.11 Ofensiva si cfta dovrada da criminalidade: um olbar crimindligico. OFFENSIVE TO THE GOLDEN FIGURE OF CRIMINALITY: 4 CRIMINOLOGICAL LOOK AT THE BRAZILIAN FEDERAL POLICE IN THE EARLY 21ST CENTURY ABSTRACT Through thc history of formation and conformation of Brazil the criminological notion that, despite the fact thar the national legal culture is based on a pretended equality, there is an impetuous discriminatory bias regarding the equal treatment of criminals for the population asa whole. Gradually social vicissitudes have promoted an approximation of quality with ontological equality, among them a selective reformulation of te performance of criminal prosecution organs, with a view to legitimizing the stares P P 8 sitimizing opportuni repressive activity under the aegis of the rule of law. This paper demonstrates how che Brazilian Federal Police (PF) has altered its technieal-investigative panorama, as well as the consequences ofthis novel performance in the social weavi Keyworps: police; lav; criminology: white collar, economic crime OFENSIVA A LA CIFRA DORADA CRIMINALIDAD: UNAMIRADACRIMINOLOGICA AL DESEMPENO DE LA PoLiciA FEDERAL BRASILENA A PRINCIPIOS DEL SIGLO XXI ‘RESUMEN Hace parte de la historia de formacidn y conformacion brasilefa. la nocién criminols- gicade que. aunguc la cultura juridica nacional se fandamente en una supuestaigualdad, los imbitos criminal y penal para la poblacién como un codo, Paulatinament as vis tudes sociales han propiciado una aproximacién de la igualdad formal y material, inclui- dana teformulacidn selectiva del papel de los érganos de persecucién penal, con miras a legiimar la accisn represiva esttal bajo la égida del Estado de derecho, Este articulo demuestra. con elaporte del soporte tedrico criminologico, cémola Policia Federal bar silefa (PE) ha cambiado su panorama desta nueva actuacion en el eeido social PALABRAS CLAVE: policia; derecho: criminologia; cuelo blanca: delito econémico. rato de ivo, asi como las cansecuencias écnico-investig 212 ~—saRevisrs Brass ee LL lUlUlUlUlll”C*@S Fabio Caram Meireles 6. 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