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EST TIS TR ETE IT EA ARIE MARTIN HEIDEGGER SER E TEMPO Tradugao revisada de Marcia Sd Cavalcante Schuback ¢ ) 4 torrora unvesrkna Wy EDITORA SAO FRANCISCO. VOZES Braganga Paulista Petrépolis PRIMEIRO CAPITULO Exposicao da tarefa de uma andlise preparatéria da presenca § 9. O tema da analitica da presen¢a O ente que temos a tarefa de analisar somos nés mesmos. O ser deste ente é sempre e cada vez meu. Em seu ser, isto é, sendo, este ente se relaciona com 0 seu ser. Como um ente deste ser, a pre- senga se entrega a responsabilidade de assumir seu proprio ser. Ser é 0 que neste ente esta sempre em jogo. Desta caracterizagao da presenga resultam duas coisas: 1. A “esséncia” deste ente esta em ter de ser. A qilididade (essen- tia) deste ente, na medida em que dela se possa falar, ha de ser con- cebida a partir de seu ser (existéncia). Neste propdsito, é tarefa onto- légica mostrar que, se escolhemos a palavra existéncia para designar o ser deste ente, esta ndo tem e nem pode ter o significado ontoldgi- co do termo tradicional existentia. Para a ontologia tradicional, exis- tentia designa o mesmo que ser simplesmente dado, modo de ser que nao pertence a esséncia do ente dotado do cardter de presenga. Evita-se uma confusdo usando a expressdo interpretativa ser sim- plesmente dado (N8) para designar existentia e reservandose exis- téncia como determinacao ontoldgica exclusiva da presenga. A “esséncia” da presenga estd em sua existéncia. As caracte- rfsticas que se podem extrair deste ente nao sao, portanto, “proprie- dades” simplesmente dadas de um ente simplesmente dado que possui esta ou aquela “configuracao”. As caracteristicas constituti- vas da presenga sio sempre modos possiveis de ser e somente isso. 85 (43) ‘Toda modalidade de ser deste ente é primordialmente ser. Por isso, 0 termo “presenca”, reservado para designé-o, nao exprime a sua giiididade como mesa, casa, arvore, mas sim o ser. 2. 0 ser, que estd em jogo no ser deste ente, € sempre meu, Neste sentido, a presenca nunca poderd ser apreendida ontologica- mente como caso ou exemplar de um género de entes simplesmen- te dados. Pois, para os entes simplesmente dados, 0 seu “ser” ¢ in- diferente ou, mais precisamente, eles so de tal maneira que o seu ser ndo se Ihes pode tornar nem indiferente nem nao indiferente. Dizendo-se a presenca, deve-se também pronunciar sempre o pro- nome pessoal, devido a seu cardter de ser sempre minha: “eu sou”, “tu és A presenca se constitui pelo caréter de ser minha, segundo este ou aquele modo de ser. De alguma maneira, sempre jé se deci- diu de que modo a presenga é sempre minha. O ente, em cujo ser, isto é, sendo, esta em jogo 0 préprio ser, relacionase e comporta-se ‘com o seu ser, como a sua possibilidade mais prépria. A presenca é sempre sua possibilidade. Ela ndo “tem” a possibilidade apenas ‘como uma propriedade simplesmente dada. E porque a presenca sempre essencialmente sua possibilidade ela pode, em seu ser, isto 4, sendo, “escolher-se”, ganhar-se ou perder-se ou ainda nunca ga- nhar-se ou s6 ganhar-se “aparentemente”. A presenca s6 pode per- der-se ou ainda nao se ter ganho porque, segundo seu modo de ser, ela é uma possibilidade prépria, ou seja, é chamada a apropriar-se de si mesma, Os dois modos de ser propriedade e impropriedade ~ ambos os termos foram escolhidos em seu sentido rigorosamente literal - fundam-se em a presenga determinar-se pelo caréter de ser sempre minha. A impropriedade da presen¢a, porém, nao diz “ser” menos e nem tampouco um grau “inferior” de ser. Ao contrério, a impropriedade pode determinar toda a concrecao da presenca ern suas ocupagbes, estimulos, interesses e prazeres. Os dois caracteres esbocados da presenca, o primado da “exis- téncia” frente & “esséncia” e o ser sempre minha, jé indicam que uma andlise deste ente se acha diante de um Ambit fenomenal proprio. A presenga nao tem, nem nunca pode ter 0 modo de ser dos entes simplesmente dados dentro do mundo. E por isso € que no se pode dar tematicamente nos modos e métodos em que se 86 constatam os entes simplemente dados. 0 modo de dar-se previa. mente, que lhe € adequado, é téo pouco evidente que sua determi nagio constitui uma parte essencial de sua andlise ontolégica. A possibilidade de se compreender o ser deste ente vai depender da seguranga com que se exerce um modo conveniente de acesso. Por mais proviséria que seja, a andlise exige que se assegure um ponto de partida conveniente. A presenga se determina como ente sempre a partir de uma possibilidade que ela é e, de algum modo, isso também significa que ela se compreende em seu ser. Este é 0 sentido formal da cons tituigdo existencial da presenca. Nele, porém, encontra-se a indica- 0 de que, para uma interpretagao ontolégica desse ente, a pro- blematica de seu ser deve ser desenvolvida a partir da existenciali- dade de sua existncia. Isso porém nao quer dizer construir a pre- senga.a partir de uma determinada idéia possivel de existencia. Ao contrério, no ponto de partida da andlise, nao se pode interpretar a presenga pela diferenca de um modo determinado de existir. De- vvese, a0 invés, descobrila pelo modo indeterminado em que, numa primeira aproximagao ena maior parte das vezes, ela se dé. Esta in- diferenca da cotidianidade da presenca nao é um nada negativo, mas.um cardter fenomenal positivo deste ente. E a partir deste modo de ser e com vistas a este modo de ser que todo e qualquer existir é assim como é. Denominamos esta indiferenca cotidiana da presenca de medianidade, Porque a cotidianidade mediana perfaz o que, em primeiro lu- gar, constitui o Gntico deste ente, sempre se saltou por cima dela e sempre se o fard nas explicagdes da presenga. O que, onticamente, € conhecido e constitui o mais préximo é, ontologicamente, o mais distante, o desconhecido, e o que constantemente se desconsidera em seu significado ontolégico. Quando Santo Agostinho pergunta: Quid autem propinquius meipso mihi? e precisa responder: ego certe laboro hic et laboro in meipso: factus sum mihi terra dificul- tatis et sudoris nimit®, isto nao vale apenas para a opacidade Onti- ‘32, Santo Agostinho, Confssdes, Il X cap. 16."EntSo, que hide mals présimo de mim do ‘que eu mesmo? Decerto,eu trabalho aq, trabalho em mim mesmo, tansformelme numa terra de diftculdades ede suor copioso*. 87 (44) (45) ae réontolégica da presenga. Num grau ainda maior, vale para a refa ontolégica de nao perder o modo de ser mais préximo deste ente e, assim, tornélo acessivel numa caracterizagio positiva. Nao se deve, porém, tomar a cotidianidade mediana da presen. {@ como um simples “aspecto”. Pois a estrutura da existencialidade esta incluida a priori na cotidianidade e até mesmo em seu modo impréprio. De certa forma, nele esta igualmente em jogo o ser da. Presenca, com o qual ela se comporta e relaciona no modo da co dianidade mediana, mesmo que seja apenas fugindo e se esquecen- do dele. A explicagdo da presenga em sua cotidianidade mediana nao fornece apenas estruturas medianas, no sentido de uma indetermi nado vaga. O que, do ponto.de vista éntico é, no modo da mediani- dade, pode ser apreendido, do ponto de vista ontoldgico, em estru- turas pregnantes que nao se distinguem, estruturalmente, das de- terminagées ontolégicas de um modo préprio de ser da presenga. Todas as explicagdes resultantes da analitica da presenga so conquistadas a partir de sua estrutura existencial. Denominamos os caracteres ontoldgicos da presenga de existenciais porque eles se determinam a partir da existencialidade. Estes devem ser nitidamen- te diferenciados das determinagSes ontolégicas dos entes que ndo tém o modo de ser da presenca, os quais chamamos de categorias (N9). Esta expresso é tomada aqui em seu significado ontolégico primério. A antiga ontologia retirava dos entes, que vém ao encon- tro dentro do mundo, a base exemplar de sua interpretacdo do ser. Considerava a via de acesso ao ser 0 voetv e 0 Abyos. No Adyos, 0 ente vem ao encontro. Mas o ser deste ente s6 pode ser apreendido num Aéyetv (deixar e fazer ver) privilegiado, de tal maneira que este ser se torne compreensivel antecipadamente como aquilo que ele é ¢ Jd se dé sempre em todos os entes. katnyopetoBat ¢ dizer previa- mente 0 ser em toda discussio (ASyos) sobre o ente. A palavra xornyopetaGat significa: acusar publicamente, dizer na cara de al- guém, diante de todos. Numa perspectiva ontol6gica, a palavra signi- fica: dizer na cara dos entes o que, como ente, cada um deles 6, ou seja, deixar e fazer todos verem o ente em seu ser. O que se vee se torna visfvel neste deixar ver so as xormnyoptat. Elas abarcam as determinagées a priori dos entes ditos e discutidos no Adyos de v4- 88 rias maneiras. Existenciais e categorias sio as duas possibilidades fundamentais de caracteres ontolégicos. O ente, que lhes correspon- de, impée, cada vez, um modo diferente de se interrogar primaria- mente: o ente é um quem (existéncia) ou um que (algo simplesmente dado no sentido mais amplo). Somente depois de se esclarecer 0 ho- rizonte da questao do ser é que se poderd tratar da conexdo entre es- ses dois modos de caracteres ontolégicos. Jé se indicou, na introdugdo, que a analitica existencial da pre- senga mobiliza igualmente uma tarefa, cuja urgéncia nao é menor que 2 da prépria questio do ser, a saber, a liberagio do a priori, que se deve fazer visivel, a fim de possibilitar a discussio filos: da questo “o que é 0 homem". A analitica existencial da presenga estd antes de toda psicologia, antropologia e, sobretudo, biologia. A delimitacao frente a essas possiveis investigagées da presenga pode tornar ainda mais preciso o tema da analitica. E a necessida- de da analitica deixa-se entio comprovar de maneira ainda mais pe- netrante e profunda, § 10. A delimitacao da analitica da presenga face & antropologia, psicologia e biologia Depois de se ter delineado positivamente o tema de uma investi- gacdo, é sempre importante caracterizar negativamente seu propési- to, embora discussdes sobre 0 que nao deve acontecer se tornem, muitas vezes, infrutiferas e estéreis. 0 que se deve mostrar é somen- te que os questionamentos e investigacdes até hoje desenvolvidos sobre a presenga no alcangam 0 problema propriamente Alosofico, apesar de todos os resultados objetivos alcancados. Enquanto apresenta- rem essa deficiéncia, nfo poderdo pretender alcangar 0 que, no fundo, visam. As delimitacdes da analitica existencial face & antropologia, psicologia e biologia referem-se somente A questio ontolégica de principio. “Do ponto de vista epistemolégico”, essas investigagSes sio necessariamente insuficientes simplesmente porque a estrutura de cigncia destas disciplinas - 0 que nada tema ver com a “cientifici dade” daqueles que trabalham para o seu desenvolvimento ~ tor- 89 [46] nou-se cada vez mais questionével. Por isso, so necessérios novos impulsos, oriundos de uma problematica ontol6; ___ Orientando'se historicamente;o propésito da analitica existen- cial pode ser esclarecido da seguinte maneira: Descartes, a quem se atribui a descoberta do cogito sum, como ponto de partida basi. co do questionamento filoséfico moderno, s6 investiga o cogitare do ego dentro de certos limites. Deixa totalmente indiscutido o sum, embora 0 sum seja proposto de maneira tio origindria quan- to 0 cogito. A analitica coloca a questo ontolégica a respeito do ser do sum. Pois somente depois de se determinar o seu ser é que se pode apreender o modo de ser das cogitationes. ‘Sem dtivida, para o propésito da analitica, essa exemplificacao histérica é também desviante. Uma das primeiras tarefas da analiti- ca serd, pois, mostrar que 0 prinefpio de um eu e sujeito, dados como ponto de partida, deturpa, de modo fundamental, o fendme- no da presenca. Toda idéia de “sujeito” - enquanto permanecer no esclarecida preliminarmente mediante uma determinagio on- tolégica de seu fundamento - reforga, do ponto de vista ontologi- co, 0 ponto de partida do subjectum (StoxKe(}evov), por mais que, do ponto de vista dntico, se possa vivamente polemizar contra a “substancia da alma” ou a “coisificagao da consciéncia’. Para que se possa perguntar o que deve ser entendido positivamente ao se falar de um ser nao coisificado do sujeito, da alma, da consciéncia, do espirito, da pessoa, é preciso ja se ter verificado a proveniéncia ontolégica da coisificacdo. Todos estes termos designam regides de fendmenos, bem determinadas e passiveis de “ulterior forma. ‘¢40”, embora o seu uso ocorra sempre junto a uma curiosa indife- renga frente A necessidade de se questionar o ser dos entes assim denominados. Nao é, portanto, por capricho terminol6ico que evi- tamos 0 uso desses termos bem como das expressdes “vida” ¢ “ho- mem” para designar 0 ente que nés mesmos somos. Por outro lado, na tendéncia corretamente compreendida de toda “filosofia da vida” séria e cientifica - em que a palavra vida diz, algo como a botinica das plantas ~ subsiste implicitamente a ten- dencia para uma compreensao do ser da presenga. O que chama atengio, e nisso esta sua radical deficigncia, € no se questionar ‘ontologicamente a prépria “vida” como um modo de ser. As investigagdes de W. Dilthey sio animadas pela insistente questo da “vida”. Ele procura compreender as “vivéncias” dessa “vida”, em seus nexos de estrutura e desenvolvimento, a partir da totalidade da prépria vida. O que a sua “psicologia enquanto cién- cia do espfrito” possui de filosoficamente relevante nao se explica por se orientar pelos elementos e dtomos psiquicos e de nao mais pretender costurar os pedacos da vida psfquica, mas sim por visar & “totalidade da vida" e a suas “figuras” de conjunto. A sua impor- tancia filos6fica reside em estar, em tudo isso, sobre-tudo, a cami- nho da questo da “vida”. Decerto, também aqui se revelam, da ma- neira mais nitida, os limites da sua problemética e da conceituagao usada para exprimila. Junto com Dilthey e Bergson, participam dessas limitagdes todas as correntes do “personalismo” por eles de- terminadas, e todas as tendéncias para uma antropologia filos6fi- ca. Mesmo a interpretagdo fenomenolégica da personalidade, em principio mais radical e liicida, nao aleanga a dimensao da questo do ser da presenca. Malgrado todas as diferengas no questionamen- to, na condugao e orientacao da concepcao de mundo, as interpre- tagdes da personalidade elaboradas por Husserl™ e Scheler concor- dam e coincidem naquilo que ambos possuem de negativo. Tanto um quanto 0 outro j4 no colocam a questdo sobre o ser da pessoa em si mesmo. Como exemplo, tomamos a interpretacao de Scheler, nfo apenas por j se achar publicada™, mas sobretudo porque Sche- ler acentua explicitamente o ser da pessoa como tal, e busca deter- miné-lo mediante uma diferenciacao entre 0 ser especifico dos atos 2 Ae avestigndes dE Huse sobre a “perinatal nf foram publ. A ta ipod roigndica ise mostra no tratcoftlde Paiste as seers ropes 1 (110) p 39.4 investiga enconta aol pov Sone rc casldcensuetneefen Phanomenobogteund phinomenaegchen Palieepasdasserian emu nea pore ese fahrbuch va. (1913) Bre aan eda consathca prs comoofundaeslo apes soba co Sa Zen meidate &veuvn prt tars ealnes endobods da const, t2- ae ee scges 1 Da consagodanaurera ater? Da contigo dara san ee tats do mundo ep (ade personals da psson em com EaRUTEE | hogs natural) Huse ica su eponigo com a5 egies aoa {BRRH® 4 ils preebeu os probles ventaores as deces do trabalho sr de etre d fondo nasormlageddecasd probes ene 9 eRPentatguias do ponte de vata mtogolagic™Deste es prime elaborate, Hut {DUES sve ca rebiema de mod ainda ais pentane prof tendo mans {Ee fac eons dese tao em suas rls de riba. 34. fesse Jahrbuch, vo. 2 (1913) e vol. I (1916). Ct. especalmente p. 2425, sempentiado mas a0 a a7 i. bs (48) face rque é “psfquico”. Persea cto une o oes ese ae stancia. “A pessoa é, sobretu- do, a unidade da vivencia diretamente vivenciada com as vivéncias = © nao uma coisa somente pensada atras e fora do que se vivencia diretamente”®. A pessoa nao é um ser substancial, nos moldes de uma coisa. Além disso, o ser da pessoa nao pode exaurir-se em ser um sujeito de atos racionais, regidos por determinadas leis. ___A pessoa nao é uma coisa, uma substancia, um objeto. Com isso se ressalta e acentua a mesma coisa indicada por Husserl”, ao exigir para a unidade da pessoa uma constituicdo essencialmente diferente das coisas da natureza. O que Scheler diz da pessoa, Hus- serl também formula para os atos: “Nunca, porém, um ato é um ob- Jeto; pois pertence a esséncia do ser de um ato que este s6 pode ser vivenciado no préprio exercicio e s6 pode ser dado na reflexdo””. Atos so sempre algo nao psiquico. Pertence a esséncia da pessoa apenas existir no exercicio de atos intencionais e, portanto, a pes- soa em sua esséncia nao é objeto algum. Toda objetivacdo psiquica ¢ por conseguinte toda apreensao de um ato como algo psiquico ‘equivale'a uma despersonalizacao. Em todo caso, uma pessoa s6 €, na medida em que executa atos intencionais ligados pela unidade de um sentido. Ser psfquico nada tem a ver, pois, com ser pessoa. Os atos so executados e a pessoa é executora de atos. Mas qual 0 sentido ontolégico de “executar"? Como se deve determinar, de modo ontologicamente positive, o modo de ser da pessoa? A ques- tio critica, contudo, ndo pode parar por aqui. Estd em questio todo o ser do homem, que se costuma aprender como unidade de corpo, alma e espirito. Corpo, alma, espirito podem designar, por sua vez, regides de fendmenos que se poderdo distinguir tematica- mente entre si, com vistas a investigagoes determinadas. Dentro de certos limites, a sua indeterminagao ontolégica pode ser desconsi- derada. Quando, porém, se coloca a questo do ser do homem, nio 6 possivel calculé-o como soma dos momentos de ser, como alma, corpo e espirito que, por sua vez, ainda devem ser determinados 38. Idem, vol. Il, p. 243. 36. Ct. Logos I idem. 37. Idem, p. 246. 92 em seu ser. E mesmo para uma tentativa ontolégica que procedes- se desta maneira, dever-se-ia pressupor uma idéia do ser da total dade. O que, no entanto, constitui um obstdculo e desvia a questo fundamental do ser da presenca a orientaco corrente pela antro- pologia crista da Antigilidade. A insuficigncia de fundamentos on- tolégicos desta antropologia escapou ao personalismo ea filosofia da vida. A antropologia tradicional traz consigo: 1. A definigo do homem: Gov Adyov Exov, na interpretagdo de animal rationale, ser vivo dotado de razdo. O modo de ser do GGov € aqui compreendido no sentido de coisa simplesmente dada ede uma ocorréncia. O Adyog é entendido como distingao superi- or, cujo modo de ser € tao obscuro quanto o modo de ser deste ente assim. constitufdo. 2. O fio condutor, para se determinar o ser e a esséncia do homem, é de ordem teolégica: xal etnev 6 Beds ToLoupiev GvOpwrov Kar? elxdva ferépav Kal Ka Spoiwory, faciamus hominem ad imaginem nostram et similitudinem nostram™. A antropologia teolégico-crista retira daqui e da aceitago da defini- io antiga uma interpretagao deste ente chamado homem. Como 0 ser de Deus, interpretase ontologicamente o ser do ens finitum também com os meios da ontologia antiga. Ao longo do pensamen- to moderno, desteologizou-se a definicao crista. Mas a idéia de “transcendéncia”, segundo’ a qual o homem é algo langado para ‘além de si mesmo, tem suas raizes na dogmatica crista, da qual nao, se pode querer dizer que tenha chegado sequer uma tinica vez a questionar ontologicamente o ser do homem. Esta idéia de trans- cendéncia, pela qual o homem é algo mais do que um ser dotado de entendimento, exerceu influéncia sob formas diversas. Sua prove: nigncia pode ser ilustrada pelas seguintes citagdes: “His praeclaris dotibus excelluit prima hominis conditio, ut ratio, intelligentia, prudentia, iudicium, non modo ad terrenae vitae gubernationem ‘suppeterent, sed quibus transcenderet usque ad Deum et aeter- nam felicitatem”™. “Pois que o homem fenha seu olhar para cima, 38, Conests 1,26. 139, Calvino, Znstitutio I, 15,§ 8. ‘A primera condigSo do homem distinguluse pelos dons preclaros como razto,inteligencla, prudéncia, julzo, nSo apenas para prover 0 governo da ‘ida terrena, mas também para transcender até Deus ea felcidade eterna”, 93 (49) [50] Lae pete esua pela, demonstra claramente que por sua natu- sceu vizinho a Deus, que se lhe ; aencia pane vant 1 . assemelha e tem uma ten- , tudo isso decorre sem diivida i i imagem de Deus”, de ter sido criado 4 go A rigens relevantes para a antropologia tradicional, a defini. So Brega e o paradigma teol6gico atestam que, ao se determinar a esséncia deste ente “homem”, a questdo de seu ser foi esquecida, Ae invés de questionéo, concebeuse o ser do homem como “eviden. Cia”, no sentido de ser simplesmente dado junto As demais coisas crix. das. Essas duas vertentes se entrelacam na antropologia moderna com 0 ponto de partida metodoldgico da res cogitans, a consciéncia (Bewusstsein), o conjunto das vivencias, Como, no entanto, as cogi- fationes permanecem ontologicamente indeterminadas, sendo to- madas implicitamente como algo “evidente” e “dado”, cujo “ser” nio suscita nenhuma questéo, a problematica antropolégica fica indeter- minada quanto a seus fundamentos ontoldgicos decisivos. A mesma coisa vale para a “psicologia”, cujas tendéncias an- tropolégicas nao se podem mais desconsiderar hoje em dia. A falta de fundamentos ontolégicos, entretanto, nio pode ser compensa- da inscrevendo-se a antropologia e a psicologia numa biologia ge- ral. Na ordem de uma possivel apreensio e interpretacio, a biolo- gia como “ciéncia da vida” funda-se, embora nao exclusivamente, na ontologia da presenca. A vida é um modo préprio de ser mas que, em sua esséncia, s6 se torna acessivel na presenca. A-ontolo- gia da vida se exerce seguindo o caminho de uma interpretacao pri- vativa; ela determina o que deve ser, de modo que uma coisa possa ser apenas vida. A vida no é nem coisa simplesmente dada nem presenca. A presenca, por sua vez, no poderd ser determinada on- tologicamente, tomando-a como vida - (indeterminada do ponto de vista ontolégico) & qual ainda se acrescenta uma outra coisa. Indicando-se na psicologia, antropologia e biologia a falta de uma resposta precisa e suficientemente fundada, do ponto de vista ontolégico, para a questo do modo de ser deste ente que nés mes- mos somos, nao se pretende emitir um julgamento sobre o traba- ‘40. Zwinglio, Von Klarheit und gewGsse des worts Gottes (Deutsche Schriften I, 58) Iho positivo destas ciéncias. Por outro lado, deve-se, ter sempre em mente que estes fundamentos ontolégicos ndo podem ser obtidos posteriormente a partir de hipéteses sobre um material empirico, Pois quando o material empirico est sendo simplesmente coleta. do, os fundamentos ja estao sempre “presentes”. Se as pesquisas positivas ndo véem esses fundamentos, considerando-os evidentes, isso ndo prova que eles nao se achem a base € que ndo sejam pro- blematicos, num sentido mais radical do que poderé ser uma tese das ciéncias positivas". § 11. A analitica existencial e a interpretacdo da presenga primitiva. As dificuldades para se obter um “conceito natural de mundo” A interpretagio da presenca em sua cotidianidade nio deve, porém, ser identificada com descrigdo de uma fase primitiva da presenca, cujo conhecimento pudesse ser transmitido empiricamen- te pela antropologia. Cotidianidade nao coincide com primit dade. Cotidianidade é antes, um modo de ser da presenga, justa- mente e sobretudo quando a presenca se move numa cultura alta- mente desenvolvida e diferenciada. Além disso, também a presenca primitiva possui suas possibilidades nao cotidianas de ser ea sua cotidianidade especifica. Orientar a anélise da presenga pela “vida dos povos primitivos” pode apresentar um significado metodolé; co positivo na medida em que, muitas vezes, os “fenomenos primi tivos” sdo menos complexos e menos encobertos por uma interpre- tagio prépria, j4 muito abrangente, da respectiva presenca. Com freqiiéncia, a presenca primitiva fala mais diretamente a partir de uma imersio originéria nos préprios “fenémenos” (tomados em sentido pré-fenomenolégico). A conceituagao que, do nosso ponto Aiea ot eee a Me oe teria ener ote gs ae ice ee rer hecierat ome eace speeuinere renee eo nea 151) [52] fae © vista, talvez. possa parecer grosseira e acanhada, pode contribuir Positivamente para uma el: a if c laboracdo genuina das estruturas ontols Bicas dos fendmenos. a ___Até agora, porém, o conhecimento dos primitivos nos foi propor- cionado pela etnologia. J4 na primeira coleta do material, em sua avaliagado e elaboragdo, a etnologia se move dentro de determinadas Concepgoes prévias e interpretacdes da presenca humana em geral. S6 que com isso ainda nao fica estabelecido que a psicologia do coti- diano ou até a psicologia cientifica ea sociologia, de que faz'uso a et. nologia, propiciem a garantia cientifica para uma possibilidade ade- quada de acesso, interpretacao e transmissao dos fendmenos a se- rem investigados. Também aqui nos deparamos com a mesma situa- 40 das disciplinas anteriormente mencionadas. A etnologia jé pres- supée em si mesma uma analitica suficiente da presenga que lhe ser- ve de guia nas pesquisas. Mas como as ciéncias positivas nao “po- dem” nem devem esperar pelo trabalho ontolégico da filosofia, o de- senvolvimento das pesquisas nao ha de assumir a forma de um “pro- gresso”, mas sim de uma refomada e purificacao ontolégica mais transparente do que tudo que se descobriu onticamente”. Por mais facil que seja a delimitagao formal da problematica ontolégica face as pesquisas Snticas, a execugio e, sobretudo, o ponto de partida de uma analitica existencial da presenca nao esta desprovida de dificuldades. Em sua tarefa, inclui-se uma exigéncia, que de h4 muito inquieta a filosofia, embora as tentativas de'satis- fazé-la sempre tenham fracassado: a saber, elaborar a idéia de um “conceito natural de mundo”. A abundancia de conhecimentos 42. Recentemente, E. Cassirersubmeteu a presenca mitica a uma interpretagio filossfica, Ct. Philosophie der symbolischen Formen, segunda parte: O pensamento mitico, 1925. Essa investigacso propicia perspectivas mais abrangentes &s pesquisas etnolégicas. Do ponto de vista da problemiticaflos6fica, ainda permanece de pé a questio se os fundamentos da interpretacio sio suficientemente transparentes e, sobretudo, sea arquitetonica da Crit cada razdo pura de Kante seu conteddo sistemstico podem oferecer um arcabouso poss Nel de acolhimento para uma tal tarefa, ou se aqui ndo seria necessério um novo ponto d partida mais origindrio. O proprio Cassirer vé a possibilidade de uma tarefa dessa natut 2a fo que mostra a nota da pagina 16 onde ele aponta para os horizontes abertos pela f- omenologia de Husserl, Numa conversa que o autor teve com Cassirer, por ocasiio de ma conferéncia sobre “Tarefas e caminhos da pesquisa fenomenolégica”, na secio de Hamburgo da Sociedade Kantiana, em dezembro de 1923, mostrouse jé um acordo quan- tod exigéncia de uma analtica existencial, esbogada na mencionada conferéncla, disponiveis das culturas e formas de presenga mais diversas e mais distantes parece favorecer o desenvolvimento frutifero dessa tare- fa. No entanto, isto € apenas uma aparéncia. No fundo, tal acumulo de conhecimento leva apenas a se desconhecer 0 problema propria- mente dito. A comparagao sincrética de tudo com tudo e a reducao de tudo a tipos ainda nao garante de per si um conhecimento au- tentico da esséncia. A possibilidade de se dominar a multiplicidade variada dos fenémenos num quadro de conjunto nao assegura uma compreensio real do que é assim ordenado. O principio auténtico de ordenamento tem seu préprio contetido que nunca podera ser encontrado pelo ordenamento, ja que este jd 0 pressupoe. Assim, para o ordenamento das concepgdes de mundo, fazse necessdria uma idéia explicita de mundo em geral. E, no caso de “mundo” j& ser em si mesmo um constitutivo da presenga, a elaboracao concei- tual do fendmeno do mundo requer uma visdo penetrante das es- truturas bdsicas da presenca. As caracterizacdes positivas e as consideracdes negativas des- te capitulo tinham por finalidade encaminhar, de modo adequado, a compreensdo da tendéncia e da atitude interrogativa da interpre- tagdo que vai se seguir. A ontologia s6 pode contribuir indireta- mente para fomentar as disciplinas positivas existentes. Ela possui por si mesma uma finalidade auténoma, caso a questao do ser constitua o estimulo de toda busca cientifica, além e acima de uma simples tomada de conhecimento dos entes.

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