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«fa primeira vez que faz chorar wma mulher. O corpo dela quebra com os s¢ silo cortadas ao meio, Ele pensa que talvez um beijo, uma derradeira tarde de s aanestesiar a afligdo feminina. Nunca sentiu este desconforto, esta malda Sn tae ear ee a Uma cidade sem mutheres, decadent ia além da violencia e carnalidade, de que matéria podem ser feitos os homens? ee en Perr Sn : area) zados até do nome proprio, os protagonistas deste romance deixam 0 k 4 mereé do combate das palavras: Ele, Mau e Grande sio homens a solta, lt impiedosos e remerarios,ligados por esse fio tao mal compreendido que é a lead See UR ee tr ees ees een Caras SUSWOY Sop OedSeI0D O ) i Vp 0 quit ( PH l, Maw ina, aolriad paoame UA, « 5 a , jpalrdler jew ° i ; : “ wd - 4 Wied ; Gme fra AAG F } pur 4, “ (ae 7 Caw am ; pe JA ae 17 z he ca La ae jl J “ “ ow: (r% / O CORACAO +h Wan, DOS HOMENS— HUGO GoNcALvEs “*/ a Men? oe Penguin | Random House | Grupowaivortal ‘OcORACAO DOS HOMENS Comyrig © Hig Goncalves, 2006 test re alsin ern Portage naar ‘Compa ds Letras de Penguin andor Howse Grupo oral ‘dab 245,79, 1250-148 ios oSpengunrandonbousecom engin Rando se Gro Era Uspsson apoio doar “foc arbieao errco e grvao ne eriroaio puma ds itor de guna oa coi prs sm pai cu prin len dos ep ¥ «Ler levantando a cabegay: O coragiio dos homens, de Hugo Gongalves, 15 anos depois. Jorge Vicente Valentim! Abriro texto, proporo sistema de sua leitura, nao éape- nas pedir e mostrar que podemos interpreté-lo livremente; é principalmente, e muito mais radicalmente,levar a reconhecer que nao hé verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas, verdade lidica;e ainda mais, ojogo nio deve ser entendido como ‘uma distragio, mas como um trabalho — do qual, entretanto, se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler é trabalhar ‘nosso corpo (sabe-se d esde a psicanslise que o corpo excede ‘em muito nossa meméria e nossa consciéncia) para o apelo dos. signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que formam como que a profundeza achamalotada das frases. [Roland Barthes. O rumor da lingua, 1988, ‘Sao Paulo: Brasiliense, p.42.] Em 1970, numa das colunas do Le Figaro Litteraire, 0 critico francés Roland Barthes assinava um texto intitulado «Escrever aleitura» («Eicrire la lecture»), em que utiliza exatamente a expresso «ler levantando a cabega» para defender um tipo de leitura que, 20 contrério das realizadas de forma mais imediata e répida, consiste ‘numa pritica «ao mesmo tempo irrespeitosa, pois que corta o texto, e apaixonada, pois que a cle volta e dele se nutre». Segundo ele, ""Dowtorem Letras Vernfeulas Literatura Portugues) pola Faculdade de Letras da UFR Professor Asoiado de Literatras de Lingua Portuguesa (Literatura Portuguesa Litertaras ‘Aianas de Lingua Portugues) do Departamento de Letras erofessor Permanente do Po ‘rama Ps-Graduago em Estos de Lteratra da UFSCar.Bosista de Produtividade em Pesquisa/CNPé, Presidente da AssociagtoBraileea de Profesores de Literatura Portuguesa (ABRAPLIP) — Gesto 2022-2023, esse movimento de interrupgiio nao se dé por causa de um possivel desinteresse diante da matéria lida, antes ocorre diante do «afluxo de ideias, excitagdes, associagées” despertas ao longo do exercicio de ler. Ora, parece-me muito pertinente recordar esse breve ensaio do autor de O rumor da lingua para tecer algumas consideragdes sobre o romance O coragio dos homens, do escritor portugués Hugo Gongalves, reeditado em boa hora pela Companhia das Letras. O que dizer desta obra, publicada em 2006, ou seja, hd mais de 15 anos? O que ela, depois de mais de uma década, ainda pode nos inspirare nos mover para uma reflexao detida? Antes de qualquer ponto, em primeiro lugar, é preciso sublinhar que o texto nada perdeu em termos de impacto, atualidade e contextualizagio com onosso presente, A trama acompanha as trajetorias de trés personagens centrais — Ele (0 protagonista), Mau e Grande (seus amigos) — ¢,a partir delas, o narrador poe-se a tecer uma série de situagdes dentro de um cenario insolito e permeado de situagdes que beiram oabjeto, onde todas as diferengas que ousam desafiar os c6digos ‘masculinistas impostos pela Cidade, local onde se passa uma parte significativa da agio, caracterizado como uma espécie de Estado- -Nagio auténomo ¢ extremamente violento da condugio das suas normas, sao sumariamente violentadas, eliminadas e extirpadas. Por isso, jé na abertura, o(a) leitor(a) é colocado(a) nesse rin- gue, impactado(a) pelas circunstdncias demarcadoras das persona- gens, dos espagos por onde circulam e do conjunto de regras daquela localidade, Como bem esclarece o narrador: «f um lugar sem mulhe- res, Foram expulsas desta Cidade. Os alunos nunca conheceram as mies. Nenhuma mulher os preparou para o primeiro dia de escola. Estio sozinhos. Esperam nos corredores. Empurram-se contra as paredes. Cresceram entre os pais, entre os irmios. Recebem apenas 2 Barthes R (1988), O ror da igus, radio: Mio Laraneira, Sto Paulo: Bresilienss, p40, ensinamentos masculinos. Nunca poderio assumir 0 medo. Porque silo homens» (p. 11). Com uma linguagem crua, na sua grande maioria com ora- ‘goes assindéticas, sem a utilizacdo de conectivos que poderiam ligar uma frase a outra, ou concatenar ideias sucessivas, o narrador procura captar as nuances de dureza, agressividade ¢ hostilidade caracteristicas da Cidade e como elas forjam os corpos, 0s espiritos eos caracteres dos seus habitantes, num discurso, apesar de seco, extremamente denso e tenso. Sem contato algum com as mulheres, proibidos de desen- volver qualquer tipo de sensibilidade ou afetividade, porque estas seriam sinais de fraqueza e de feminilidade nos comportamentos, os habitantes masculinos da Cidade s6 podem se conviver com algumas delas em «Bdificios da periferia da Cidade. Lugares que albergam a solugao para os impulsos sextiais» (p. 47). Sao espagos destinados, portanto, para encontros de teor puramente sexual, isentos de toques, trocas de caricias ou comunicagiio de afetos. Os corpos femininos estio ali dispostos com uma tinica finalidade: suprir as necessidades e os desejos dos homens que as procuram, ‘numa concretizagio fisica (quase sempre) marcada pela violéncia ¢ pelo desprezo. Desenhada, portanto, a partir de uma situagao (p. 21 Nada nesse romance é gratuito. A disposigio diametralmente ‘licos meus). posta dos dois espacos efabulados (a agressividade eo autorita- rismo na Cidade xa liberdade e a democracia no Estrangeiro), as mudangas graduais na vida de Mau e Grande, a relutancia de Ele em largaras lutas, 0 uso de drogas ¢ os dispositivos de violencia, a exposicdo de masculinidades hegemdnicas e t6xicas, a heteros- sexualidade compulséria das personagens, e, por fim, a percepcao de uma vor consciente de si propria, seguida de uma tentativa de assumpgio de sua autonomia (de Ele para Eu), constituem elemen- tos-chave para compreender O coragio dos homens como um romance «avant la lettre, ao mesmo tempo conectado com as principais discus- sdes sobre o assunto no contexto portugués e adiantado em relagio as inquietagdes que viriam abalar e explodir nos tiltimos anos. Desde as epigrafes, inteligentemente escolhidas, diga-se de passagem, o(a) leitor(a) é seduzido(a) a entrar numa espécie tam- bém de ringue. Seja porque a primeira escritora citada, Joyce Carol Oates, assina um livro primoroso sobre o esporte (On boxing, 1987), de onde Hugo Goncalves retira um breve trecho; seja porque a segunda epigrafe constitui a fala de um dos principais boxea- dores do século xx, Sugar Ray Seales, medalhista de ouro na: Olimpiadas de 1972. Ao que tudo indica temas acima mencionados que O eoracao dos homens se debruga, é sobre todos aqueles mas é também sobre as complexidades das relagdes humanas e afetivas, sobre as subjetividades sexuais mais emergentes e, por fim, sobre a capacidade de o ser humano se autoanalisar, se sensibi lizar e promoveralgum tipo de mudanga, ainda que pequena, lenta ce gradual. Assim sendo, fico a me interrogar se ser possivel ler o romance de Hugo Gongalves de cabeca baixa? Ou melhor, como niio ler um romance tao atual como este que a Companhia das Letras traz.A cena numa reedigao fundamental para o nosso presente? Nao hi outro caminho, portanto, a nao ser «ler levantando a cabega» varias vezes, com 0 movimento introspectivo de sair da zona de conforto e se defrontar com uma salutar zona de confronto. ‘Tal como nos ensina Barthes, citado em epigrafe, este tam- ‘bém é um gesto feito com 0 corpo, e, no caso da obra em mios, no coincidentemente para ler um romance sobre corpos. Mas, a0 contririo dos embates encenados na trama de Hugo Goncalves, ‘o nosso encontro com o livro dé-se realmente de forma lidica, mas nao irresponsével; de forma irrespeitosa, mas nao inocente; de forma apaixonada, sim, porque 0 romance nos convoca a pensar 0 nosso tempo, os nossos comportamentos ea nossa maneira de ver e estar no mundo. Como leitor do autor de O coracio dos homens desde o seu primeiro titulo, nao tenho diividas de que estamos diante de uma obra impactante e necesséria para os dias atuais. Sem modismos, sem panfletarismos e sem intuigdes ou superficialidades narrati- vas, acredito que o romance de Hugo Goncalves pode ser incluido naquela galeria singular de que nos fala Orhan Pamuk: «Quanto mais poderoso e persuasivo é 0 romance que estamos lendo, tanto mais doloroso é o sentimento de insuficiencia» Ou seja, éum livro ‘maduro, resultado das mios de um jovem escritor na época, que j4 nasce assim. Talvez, por isso, a sensagao de reflexaio continua diante de uma insuficiéncia, nao s6 das personage! ‘também, afinal, «seu mundo nos parece muito mais substanci quea vida real’. Inquietante, incémodo, instigante, reflexivo. Tudo isso e algo ‘mais. Mas nao é dessa e com essa matéria que so feitas as grandes Fiegdes? Uma étima leitura para todo(@)s. Sao Carlos/SP, 22 de janeiro de 2022. ° Pamuk, 0. 2011), O romans ingémuo eo sentimental tradugio de Hildegard Fe Paulo: Companhia das Lets, p00. Obras de Hugo Gongalves na Companhia das Letras Filho da mae Deus Patria Familia coragao dos homens

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