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ALEXANDRE KOYRE INTRODUCGAO A LEITURA DE PLATAO 2+ edigao or (288 1 © DIALOGO Ler Platdéo um grande prazer. B mesmo uma grande alegria. Os seus textos admirdveis, em que uma perfeico tinica da forma se alia a uma profundidade tinica do pensamento, iram 2 usura do tempo. N&o envelheceram. Continuam vivos. Vivos como nos dias longinquos em que foram escritos. As questdes indiscretas e perturbantes—o que é a virtude? a coragem? a piedade? que querem estes terms dizer? — ques- t6es com as quais Sécrates aborrecia e exasperava os seus conci- dadios, so tio actuais—e, de resto, tio embaracantes ¢ perturbantes— como outrora. B por isso, provavelmente, que o leitor de Platdo sente por vezes um certo malestar, um certo embarago. O mesmo, sem diivida, que sentiam outrora os contemporaneos de Socrates, © leitor gostaria de receber respostas aos problemas pos- tos por Sécrates. Ora, Sdcrates, na maior parte dos casos, recu- sacthe essas respostas. Os dilogos— pelo menos os dilogos ditos «socréticos», os vinicos de que nos ocuparemos aqui !—nao chegam a nenhuma conclusfo, A discussfo termina inconclust 3 Chamamse socréiicos> og didlogos da juventude ¢ de. matu- ridade de Platio. Nesses dlélogos, Séerates desempenha o papel cen- ‘tral, o problema discutido ¢ habitualmente um problema moral ¢, geralmente, esses aiflogos nio 9 eresolvem» numa conclusto positive. 9 vamente por uma confissio de ignordncia, Pelas suas perguntas liosas © precisas, pela sua dialéctica impiedosa e subtil, ‘Socrates depressa nos demonstra a fraqueza dos argumentos do seu interlocutor, o infundado das suas opinides, a inanidade das suas crencas... mas logo que, sem fOlego, este se volta contra Sécrates e Ihe pergunta por sua vez: «E tu, Sécrates, que pensas?», Sécrates foge a resposta. O seu papel nio é, diz-nos, emitir opinides e formular teorias. © seu papel é exa- minar os outros. Quanto a si préprio, a unica coisa que sabe & que nada sabe. Compreende-se facilmente que o leitor no se sinta satis- feito, que se sinta invadido por um vago sentiment de descon- fianga, que tenha a impressio, obscura mas muito forte, de que fazem pouco dele. Os historiadores ¢ os criticos de Plaitio’ quase sempre ja, por reproduzirem, mais ou menos © préprio ensino de Sécrates, as suas conversas -escolares nas ruas € nas palestras* de Atenas. O didlogo socré- tico, quer seja composto por Platéo, Xenofonte ou Bsquines de Esfeto, nio tem por finalidade inculcar-nos uma doutrina que Sécrates, como toda a gente sabe e como, muitas e repe das vezes, ele proprio nolo diz, nunca poss sentarmos uma imagem, a imagem radiosa do filésofo assassi- nado, defender e perpetuar a sua meméria e, dessa maneira, trazer-nos a sua mensagem. Essa.mensagem, dizem-nos, &, sem duivida, uma mensa- gem filos6fica. E os didlogos contém um ensinamento. Mas esse ® Para aligeirar o texto, suprimimos as notas erudites ¢ as referéncias: so initels para o grande piblico, © os especialistas ‘térlo-4o por si. Quanto as tradugbes dos textos de Platéo, usamos as das Raitions Guillaume Bude. * Lugares piblicos para a prética de exercicios fisicos (, do 7). 10 ensinamento, digamo-lo mais uma vez, nfo é um ensinamento | doutrinal: € uma licdo de método. Sécrates ensinanos 0 uso e 0 valor das definigGes precisas dos conceitos empregues na dis- ceder, previamente, a uma revisio critica das nogées tradicio- nais, das concepgdes «vulgares», recebidas e incorporadas na linguagem. Por isso; 0 resultado, aparentemente neg: tante saber que ndo se sabe; que 0 senso ¢ a lingua comuns, embora formem o ponto de partida da reflexdo apenas 0 seu ponto de partida; e que a discussaio justamente por finalidade ul 4 Tudo isto ¢ verdadeiro, sem dtivida, Muito mais verdadeiro mesmo do que habitualmente se admite. Parecenos certo, com feito, que as preocupacées metédicas dominem—e determinem — toda a estrutura dos didlogos, que ficaram, por isso mesmo, como modelos inigualados do ensino que a «catharsis» destruidora a que procedem con digdo indispensdvel da reflexdo pessoal, dessa verdadeira con- versio, libertadora, da nossa alma a si prépria, mergulhada no erro € no esquecimento de si, a que nos convida a mensagem de Sécrates. Parece-nos também evidente que é por essa men- sagem ser uma mensagem de vida e nio somente de dou —e € por isso que, habitualmente, ela nos atinge no meio das preocupagdes quotidianas da vida—que a imagem, que 0 exem- s Num certo sentido, o didlogo ¢ a forma propria para a inves: loséfiea porque, pelo menos p: exterior, Uberta-se igualmente das suas 1 terse a0 controle de um-outropensamento, © diélogo eresolvese> ‘quando os interlocutores-investigadores se poem de aeordo, quer dlzer, ‘quando Socrates consegue fazer partilhar ao seu inlerlocuior a evi, déncia da verdade que possul. O didlogo no se resolve quando 0 Interlocutor se recusa a ease esforge, como 10 Gérgias, ou se confesse Imeapaz, como no Ménon. plo, que a existéncia de Sécrates ocupam um lugar central no didlogo. Contudo, o malestar subsiste. Porque, apesar das explica- Ges que Ihe fornecem, o leitor moderno—tal como 0 contem- poraneo de Sécrates—ndo pode admitir que esses protestos de ignorancia sejam mais que ironia pura e simples. Com razo ou sem ela, ele continua a achar que, as questdes que poe, Sdcrates deveria—e poderia— dar respostas positivas. E, nao the perdoa que o no faca, Pensa sempre que trogam d Nés julgamos, pelo nosso lado, que o julgar que Sécrates possui uma doutrina‘; tem razio, enfim, em ver que Sécrates troca. Mas enganase ao julgar que é dele que se troga, O leitor moderno no deve esquecer que € 0 leitor do didlogo e nao o interlocutor de Sécrates. Porque se Socrates troca frequentemente dos seus interlocutores, Platéo nio troga nunca dos seus leitores. 0 leitor moderno (0 nosso) dir provavelmente que comega a nfo perceber. Bem... isso ndo € culpa sua: os didlogos per- fencem’a um género li muito especial e desde ha muito tempo que ja ndo sabemos A perfeicdo formal da obra platénica ¢ um lugar-comum. Toda a gente sabe que Plato foi ndo so um grande, um muito grande fil6sofo, como também (ha mesmo quem diga: sobre. tudo) um grande, um muito grande escritor. Todos os~seus , todos os seus res, nos louvam unanimemente © seu incompardvel jueza e a variedade da sua lingua, a beleza das suas descricdes, a capacidade do seu génio inventivo, Toda a gente reconhece que os didlogos de Plato sio composicies draméticas admiraveis onde, diante de nds, as ideias e os homens que as trazem se chocam e confron- tam. Toda a gente, ao ler um didlogo de Plato, sente que ele 4 Um Sécrates puramente critico parsemnos inverosimil. A Iinfluéncia que exerceu sobre um espirito como Plato seria, nesse caso, ikexplicdvel, 2 poderia ser dramatizado, levado a cena‘. No entanto, rara- mente so dai tiradas as conclusoes que se impdem, ¢ que nos parecem ter uma importancia segura para a inteligéncia da obra de Platiio. Tentemos entdo formulé-las, tio breve e téo simples- mente quanto possivel. Os didlogos, acabamos de o dizer, so obras dramaticas que poderiam—e que deveriam” mesmo—ser representadas. fa, uma obra dramética nfo se representa no abstracto, diante de platcias vazias. Ela pressupde, necessariamente, um pit a que se dirige. Noutros termos, ‘0 drama, ou a comédia, implicam o espectador ou, mais exactamente, 0 ouvinte*, E isso no € tudo: esse espectador-ouvinte tem, no conjunto da represeniagio dramatica, um papel, ¢ um papel muito impor: tante, a desempenhar. O drama nao é um «espectculo», e 0 piiblico que assiste ao drama ndo se comporta, ou pelo menos niio se deve comportar, como puro «espectador». Deve colaborar com 0 autor, compreender as suas intencdes, tirar as conse- quéncias da acgdo que se desenrola diante de si; deve com- preenderihe o sentido ¢ imbuir-se dele, E esta colaboracéo do ouvinte, do ptiblico, com a obra dramdtica é tanto mais impor- tante ¢ maior quanto a obra for mais perfeita ¢ mais verda- deiramente «dramdtica». Bem triste, na verdade, seria a obra teatral em que 0 autor se pusesse, de algum modo, a si préprio em cena, se comentasse e se explicasse ele proprio”. Ou, inver- bem triste seria 0 pablico para o qual uma determi- nada explicagio, um determinado comentario autorizado, fosse necessario, 5 O-que, de resto, foi feito: no tempo de Cicero, os intelectuais romanos faziam represéntar os dislogos. © Wuma certa medida, o seu papel, mo drama e na comeédia antiga, 6 desempenhado pelo coro, Mas, no diélogo, allo hé coro. 1 Por isso, € ridioalo, numa obra dramatica de grande enver- gadura, como por exemplo a obra de Shakespeare, procurar o porta- -vou 40 autor. 8 np ¢ pelo conjunto da obra que o autor se exprime. 13 Mas, digamo-lo mais uma vez, 0 didlogo verdadeiro, como logos socréticos de Platdo®*, 0 se segue que, em qualquer dilogo, ha ao lado das duas perso- nagens patentes—os dois interlocutores que discutem—uma terceira, invisivel mas presente ¢ de igual importincia: o leitor -ouvinte. Ora, 0 leitor-ouvinte de Plato, o publico para o qual a sua obra foi escrita, era uma personagem singularmente avi- sada, avisada de muitas coisas que, infelizmente, nés ignora- mos, € que, sem duivida, ignoraremos sempre, ¢ singularmente inteligente ¢ penetrante. Por isso, compreendia muito melhor do que nds 0 podemos fazer as alusOes disseminadas nos didlogos, e no se enganava acerca do valor de elementos que a nds nos parecem muitas vezes acessérios. Assim, sabia a im- portincia das dramatis personae, dos actores protagonistas da obra dialogada. Sabia também, por si proprio, descobrir a solu- go socrética—ou platéaica—dos probl aparentemente, deixava irresolvidos. Aparentemente... porque das consideragSes muito simples no fim de contas, banais, sobre a estrutura 0 sentido do idlogo, que expusémos, resulta, parece-nos, que qualquer didlogo comporta uma concluso. Conclusio nao formulada, sem diivida, por Sdcrates, mas que o leitor-ouvinte tem o dever ea capacidade de formular. Receamos que 0 leitor moderno nao esteja inteiramente satisfeito. Porqué, diré talvez, todas estas complicagoes? Se 5 Meamo em Platio, os A evintude antigay ( doen virtua) &, eabemo-lo bem, qualquer colsa de muito diferente da virtude cristé, qualquer colsa de muito ais viril e de nenhum. modo humilde, Poderiamos perguntarnos se nfo valeria mais adoptar, para traduzir esta nocio, um termo dife- rente de evirtudes, por exemplo, evalors, ao sentide em que se diz: valor e Aigeiplina>, um homem (ou um soldado) «valoroso», * : a7

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