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g 4 ( alte A me (attr) COPE ur) CA Tee eae Ce Conseino Eorroniat Isabel Cristina Gomes - Universidade de Séo Paulo | Jorge Luts Ferreira Abrao ~ UNESP-Assis | Lidia Levy - PUC-RJ | Luis Claudio Figueiredo ~ PUC-SP ‘Malra Bonafé Sei ~ Universidade Estadual de Londrina Copyright 2017 © by Organizadoras e autores Todos os direitos desta edigdo reservados a Zagodoni Editora Ltda. Nenhuma parte desta obra podera ser reproduzida ou transmitida, seja qual for o meio, sem a permissdo prévia da Zagodoni. eon ‘Adriano Zago DIAGRAMAGAOE CAPA Michelle Freitas pevisho Marta D. Claudino lP-BrasilCatalogacSo na Publicagio Sindicato Nacional dos Editores de Livos, RI 237 Para além da contratransferéncla :oanalistaimplicado / organizacéo Elsa Maria Uthoa Cintra, Gina Tamburrino , Marina FR. Ribeto.- 1. ed.~So Paulo: Zagodoni, 2017. 204 p.:23.m, Incluibibliografia ISBN 978-85-5524-044-7, 1.Psicandlise. 2. Psicologia clinica 3. Contratransferéncia. Cintra, Elisa Marla Uthoa, ITamburtino, Gina. Ribeiro, Marina FR, 1742915 COD: 150.195 cou: 159.9642 (2017) ‘Zacovom Eoirora Lrpa. Rua Capital Federal, 860 - Perdizes 01259-010 - Sao Paulo - SP Tel: (11) 2334-6327 contato@zagodoni.com.br www.zagodoni.com.br ] UCD Identificagao Projetiva e Réverie: Escutar o Inaudivel na eee OMe) ja de Ulhda Cintra preocupacio com as vivénclas traumaticas esta presente de diferentes formas desde o inicio da psicanilise. Neste capitulo, refiro-me especialmente a dois as- pectos necessirios a anilise de pacientes que viveram traumas nos primeiros tempos de vida: trata-se da empatia do analista e de sua capacidade de réverie, Tals pacientes costumam chegar ao consult6rlo do psicanalista de uma forma que foi claramente descrita por Masud Khan (1962a): Eles vem para 0 tratamento sem sintomas especificos que possam ser identificados @ sem um desejo bem organizado de curar-se. Ao invés de livre associar eles fica congelados: agarram-se regressivamente a diferentes elementos do setting ou da pessoa do analista e nao conseguem estabelecer nem uma alianga terapéutica nem uma neurose de transferéncia que possa ser trabalhada, Na experiéncia desses pa- lentes, acontece 0 tempo todo uma confusio regressiva e um apagamento dos limites entre 0 paciente, o analista e o setting. (KHAN, 1962, p. 39) Tals pacientes esto entre os casos borderline (GREENACRE, 1954; STONE ,1954; KERNBERG, 1975, 1976, 1984; GREEN, 2005, 2013), personalidades esquizoides (FAIR: BAIRN, 1940a, 1952; KHAN, 1963), neuroses narcisicas (REICH, 1950), desordens narci- sicas (KOHUT, 1971, 1977), casos de falha basica (BALINT, 1968), casos de severas per- turbacdes de personalidade (GIOVACCHINI, 1979, 1986, 1990b), casos de breakdown (WINNICOTT, 1968; BOLLAS, 2013) e perturbacdes narcisico-identitarias (ROUSSILLON, 1995, 1999, 2006). Esses autores nos permitem ver que sao muitas as formas de diag- nosticar e pensar o funcionamento psiquico eo tratamento analltico nesses casos; mas hd um traco em comum entte eles, que se refere ao traumatismo ter sido vivido nos primeiros anos de vida e & exigencla de uma atitude empatica por parte do analista. Todos os autores acima citados deram contribuicdes importantes a clinica do trauma e, inspirados pela contribulcao significativa de Winnicott sobre a regresséo no 1963, 1968), foram estabelecendo uma pratica analitica que ; ‘uma firme conexio entre essas formas de so. ticas. Antes desses autores, 0 primeiro setting (1949, 1954, 1958, levou em consideragéo, cada vez mals, anclas traum frimento e a precocidade das vivénclas analista que se preocupou comas situacdes traumaticas vividas nos primeiros tempos de Vida foi Ferenczi (1927, 1927, 1928, 1929, 1929 a, 1931, 1932, 1933, 1934). Podemos afirmar, entio, que hd certa convergéncia nessas teorias, no sentido de se considerar que as situacdes traumaticas vividas nos primeiros anos de vida fica. ram congeladas sob a forma de tragos mnémicos, anteriores ao campo da linguagem verbal. Considera-se, também, que no primeiro ano de vida predomina um estado de passividade radical; isto &, um estado em que o neonato precisa que um adulto venha socorré-lo na satisfacao de suas necessidades e na sustentacao de seus desejos e de. mandas, em um momento em que sua capacidade sensorio-motora esté subdesen. volvida e ele ainda nao se tornou capaz de trabalhar simbolicamente o vivido. O bebe encontra-se em uma situacao em que é obrigado a viver, passivamente, tanto o que o ambiente pode como o que nao pode Ihe oferecer. : Nesta perspectiva, para Balint e Winnicott o trauma decorre entao daquilo que o ambiente nao péde oferecer ao bebé, sobretudo a empatia materna. Essa falha suscita ‘as agonias impensaveis que produzem um colapso na integra¢ao do Eu; a0 passo que, quando a empatia e a continéncia voltam a ser oferecidas, 0 silencioso processo de desenvolvimento psiquico volta a se por em movimento. Vamos, entéo, pensar a empatia dentro da tradigio psicanalitica, para melhor compreender qual é a importancia dela na clinica do trauma. Entretanto, por ser 9 tema muito amplo, faco aqui breves consideragées a respeito da empatia em Freud e em Ferenczi, atendo-me, ainda, a contribuicao kleiniana e pés-kleiniana, através dos desdobramentos da identificacao projetiva. Empatia e a nogdo de Einfiillung Na tradicao filoséfica e literdria que antecede a obra de Freud, ha muitas referén- ias a experiéncia da empatia, Trata-se da experiéncia de “sentir com o outro’, entrar em contato intimo com a experiéncia do outro, tornando-se “um" com ele. Sentir em- Patia refere-se ora a habilidade de “projetar-se para dentro” do mundo de sofrimen- tos, paixdes e sensacdes do outro, ora & possibilidade de “trazer para dentro de si" 0 ue 0 outro esta vivendo, colocando-se em seu lugar. Essa série de alusdes a fendme- os projetivos e introjetivos presente na empatia revela que a demanda de um intimo Contato entre a vida psiquica de duas pessoas é algo que leva a uma dificuldade de precisar os limites entre 0 eu € 0 outro, Estamos diante, pois, de um fendmeno de fronteiras méveis, ou da aspiracdo a diminuir 0 estado de separacao e de isolamento entre duas pessoas, ches eth ane ae ®t a condlugéo de uma andlise © para a crc en G2 empatia algo decsvo pap “Sobre oinicio do tratamentee fi al ce da situacéo ‘de transferéncia, no texto paren Teee mora seja impossivel dissocié-la de um com " ue a empatia tinha, para Freud, quase o valor de um Elisa Maria de Uthéa Cintra método de acesso & experiéncia do outro e, portanto, prevalecia a importincia cog- nitiva do movimento empatico. A atitude empitica era usada para conhecer o mun do interno do outro, para aproximar-se de suas formas invisiveis, através do que era visivel ou perceptivel em si mesmo. Por outro lado, Freud estava sempre receoso de que o aspecto mistico do “sentir em unfssono com o outro” levasse a dupla analista e paciente a mergulhar em um estado de indiferenciacdo narcisica e de apaixonamento {que prejudicariao trabalho do pensamento; este precisaria se manter vivo, escapando do deslumbramento afetivo, para tornar viavel aquela andlise. O paradoxo é que, por um lado, a formagio do campo transferencial e da alianca terapéutica exige a atitude afetiva; por outro, o analista é sempre convocado a manter um ponto de vista exterior a0 que se desenrola no campo dos amores e das outras paixdes transferenciais. Ferenczi foi um dos primeiros colaboradores de Freud que se colocou de ma- neira préxima a dele e, a0 mesmo tempo, diferente, afirmando com maior énfase a importancia da atitude empatica no trabalho analitico. Se Freud ressaltava a fungao cognitiva da empatia, Ferenczi chamava a atencdo para a dimensao afetiva desta. Em “Elasticidade da técnica psicanalitica” (1928), Ferenczi escreveu a respeito do tato psicolégico, como a capacidade de “sentir com” (Einfllung). Na verdade, ele concor- da com Freud que o movimento de empatia precisa conviver com uma atividade de auto-observacao por parte do analista, que nao obscurea a sua capacidade de julzo critico; assim, em 1919, chega a dizer, em unissono com Freud, que o analista precisa “dominar a sua contratransferéncia". Entretanto, foi um dos mais ativos defensores de que o analista precisa desvencilhar-se de sua hipocrisia profissional, que 0 colocaria em uma posicdo de superior neutralidade, e sair de sua frieza intelectual, para poder identificar-se viva e verdadeiramente com 0 sofrimento e com as paixdes do paciente. Ferenczi enfatizava a situacao analitica como um campo de miituas influéncias e afe- tos; oi ele o primeiro a chamar uma atengo maior para os aspectos intersubjetivos de miitua influéncia entre o paciente e 0 analista, Se o compararmos com Freud e Klein, torna-se nitida nestes tiltimos a énfase sobre os aspectos intrapsiquicos, tanto na cons- trucdo do aparelho psiquico quanto no processo analitico. ‘A empatia na tradigao kleiniana Se nos voltarmos para a tradi¢ao kleiniana, podemos apreciar a importancia da atitude empatica nos Semindrios Clinicos sobre Técnica de Melanie Klein, publicados e comentados por John Steiner no inicio deste ano de 2017. Desde o principio da ati- Vidade clinica de Klein, e de modo insistente nos seus seminérios clinicos, a questdo da empatia liga-se a uma preocupacao sempre presente: a de captar @ ponto de ma- ‘xima ansiedade do paciente: (..) a ansiedade é um material explosivo que precisa ser administrado em pequenas quantidades e com muito cuidado” (KLEIN, 1936/2017, p. 16) Afirma, ainda, nesses seminérios clinicos transcorridos em 1936, na Sociedade Psicanalitica de Londres: [.] Entretanto, a arte da interpretacdo ¢ apenas uma parte de nosso trabalho. Pre- cisamos ter em mente que uma outra parte muito essencial é dar plena atencao as Bara Ald da Comtratranaferduclar O Aualiata tmplicada awvoclagdes do paclente, para pornillr que ole expresse seus sentimentos ¢ pen. ‘amentos do forma plena; prestar completa atengio a sto, a compreendler plen. mente as lofesas,efcarmosInteressacos em seu ego da mesma forma que em seq Nconsclonte, (4) Proctsamos manter um equilrlo entre a necessidade do paciente dle produ seu materia, de expressar seus sentimentos ¢ dar corda plena a esty ecesstdacde (..) (KLEIN, 1936/2017, p. 15) Temos neste trecho uma dese righo multo viva da atitude empatica do analista, ecessitla para Iidar com o *materlal explosivo" da ansledade, que precisa ser admi, nistrado em pequenas quantidades e com muito culdado. € a propria ansiedade em Sua apari¢do maxima, em sua qualidade mals arcalca que demanda a empatia, Por outro lado, lescle muito cedo, Klein percebeu a necessidade que as crian. Gas tnham de projetar impulsos agressivos de voracidade e expressavam um intenso desejo de controlar as préptlas emogbes ¢ as emogdes temidas que podiam surgir de repente, das outras pessoas, Um exemplo disso aparece no caso de Gerard, “que Propds que mancldssemos um tigre de brinquedo para o quarto ao lado, para executar os desejos agressivos cele para como pal (..) Esta parte primitiva de sua Personalidade estava, neste caso, representacla pelo tigre” (KLEIN, 1927, p. 172). A parte primitiva da Personalldade que se manifesta através de pulsbes orais, anals, uetrais e falicas esta ligada a fantasias de apoderar-se do que é bom e satisfatério e de eliminar que é mau e frustrante em um clinamismo que reflete os processos mais elementares de se alimentar e evacuar. E também ‘abrange o desejo de atravessar as fronteiras entre © eu @ 0 outro ¢ 0 desejo de conhecer o Interior do corpo e da mente alhela, fantasia inconsciente subjacente a identificagéo projetiva corresponde, Justamente, a crenga de que é possivel atravessar essas frontelraselivrar-se da propria agressividade através da projecéo, Ao mesmo tempo, esses movimento: existéncla dessa dimensdo assustadora & analista e pedir que ela faca alguma coisa com aquilo que é da ordem do insuportavel: é um grito de socorro. O caso Gerard foi atendido ainda na década de 1920, antecipando o que veio depois, Mals tarde, no texto de 1946 sobre os mecanismos esquizoides, Klein introduziu © termo “identificagdo projetiva” para a tendéncia alivrar-se de tudo que é agressivo ¢ assustador. Desde cedo, percebeu entio que os pacientes mais graves emprega- vam a defesa de forma “excessiva" ou “macica, ao passo que em outros pacientes a 'dentificagio projetiva parecia ndo corresponder a uma crenca tio onipotente de que Poderiam se livrar de sua agressividade, controlando a realidade Psiquica,a prépriaea alhela, Também a atitude de acolhimento do ambiente permitia que algumas crencas desse tipo fossem transformadas, levando os pacientes a teadmitir em si os aspectos Projetados e cindidos, Bion (1962a, p. 114) assinala que a expressio “identificacao projetiva excessi- va, frequente nos textos de Klein, deve ser entendida menos como descrigao da fre- quéncla com que é empregada e mals com relacio a qualidade onipotente e delirante da crenga que est subjacente a ela, Se © paclente acredita ter o poder magico de controlar a sua realidade ps{quica, esté mais aprisionado a uma ilusao ¢ pode usar 0 mecanismo de Identificagio Projetiva de maneira excessiva, para recusar tudo que 0 desestabliza:a stuacdo de estar separado de suas fontes de nutricao, por exemplo, ou Ora,a 's Servem para comunicar a Elisa Maria de UIhda Cintra para ndo admitir suas necessidades e suas dependéncias e para negar a prépria inveja € 0 ressentimento; é, enfim, um mecanismo de defesa primitivo, que tenta aniquilar toda e qualquer situagao de desamparo e a propria realidade psiquica no que tem de mais violento e assustador. As identificacdes projetivas mais patoldgicas séo aquelas em que hé um nivel mais forte de recusa dessas realidades, porque sao sentidas como inaceitaveis. € isto que torna dificil sair da crenca onipotente de ter se livrado “desta abomindvel realida- de psiquica’ e é isto que leva a uma maior distorgéo da percep¢éo do mundo externa e interno, mas acreditar nisto traz muito alivio. Por outro lado, nos casos mais leves, © paciente pode passar pela identificacao projetiva como se esta fosse um fenémeno transicional, que serve de ponte para um momento seguinte, no qual, depois de ne- gados, os impulsos podem ser readmitidos, recuperando uma parte significativa da pulsionalidade e das identificacdes perdidas, Pode chegar perto de um jogo de faz de conta, como se dissesse: "Toma Id este meu pedaco e faz de conta que é seu, por algum tempo; depois me devolve’. Quanto maior for a aspiracao a controlar de forma onipotente a realidade psi- quica e permanecer em um estado de fusdo com 0 objeto, maior serd a angustia e 0 medo e mais aprisionante seré o mecanismo. Quanto mais a projecdo de aspectos da realidade psiquica do paciente no analista (ou na mae, nos primeiros tempos) puder ser acolhida e contida pelo ambiente, maior sera a sua entrada no campo do simbdlico @ 0 seu poder de tornar-se um jogo e uma comunicacao. A identificagao projetiva como comunicagio Em 1959, Klein afirmou em "Nosso mundo adulto e suas raizes na infancia", que a empatia seria uma forma benigna de identificagao projetiva, que envolve o *colo- cat-se no lugar do outro", diferindo-se das formas patolagicas da identificacdo pro- jetiva, nas quais acontece uma perturbacao maior nas fronteiras entre eu e 0 outro e maior confusdo das identidades. Ao postular os mecanismos de projecao e introjeco e especialmente o mecanismo de identificacao projetiva, Melanie Klein nao ignorava a presenca de diferentes estados de indiferenciacao entre sujeito e objeto na consti- tuigao psiquica e no processo analitico. Uma das conquistas do amadurecimento é, justamente, atingir niveis cada vez mais sofisticados de separacao entre eu e 0 outro, embora se reconheca que isso convive com momentos ¢ estados de relativa indiferen- ciagao em ciclos sucessivos. Creio que momentos de indiferenciagao podem ser vividos como fenémenos transicionais, quando encontram acolhimento do ambiente, e podem entrar no cam- po da metéfora através do brincar, do senso de humor, da brincadeira de faz de conta e das infinitas formas de continéncia e simbolizagao que a cultura oferece. Seguindo a inspiragdo de Winnicott (1971), podemos pensar nos momentos de indiferenciacao e de identificacdo projetiva benigna, que séo acolhidos com empatia, como ondas que formam ciclos alternativos com momentos de maior diferenciacao. Em 1959, Bion publica sua teoria sobre os “ataques aos vinculos” baseando-se no trabalho com um paciente que parecia nunca ter tido, antes do encontro analitico, a Aldm da Contratransferdneta: O Ana Oportunidade de enderecar suas Identificagdes projetivas a um ambiente suficiente- mente acolhedor. {J houve sessdes que me levaram a supor que opaclente sentia haver algum objeto que Ihe negava o uso da identificagdo projetiva.(.) 0 paciente sentia que partes de Sua personalidade que desejava repousar em mim tinham seu ingresso por mim recusado.(..) Quando o paciente se esforgou por livrar-se dos temores de morte que cram sentidos como poderosos demals para que a sua personalidad os contivesse, cle cindiu seus medos eos colocou em mim, coma ideia,aparentemente sendo, que se Ihes fosse permitido repousar af por tempo suficiente, eles experimentariam mo. dlficagéo por parte de minha psique e poderiam ser eintrojetados com seguranca, (BION, 1959, p. 103-104) Bion levanta entdo a hipétese de que a mae deste paciente devia sentir uma grande impaciéncia diante das angiistias do bebé - 0 que seré que essa crianca tem? ~ @ndo conseguia oferecer-Ihe continéncia: Do ponte de vista do bebe, ela deveria ter recebido em si, e, assim, experienciado © medo de que a crianca estivesse morrendo. Era este medo que a ctianca no con. Seguia conter, (..) Uma mae compreensiva é capaz de experienciar 0 sentimento de pavor com que este bebe estava se esforcando para lidar através da identifies. Si0 projetiva e, ainda assim, manter uma aparéncia equilibrada, Este pacientetivera de lidar com uma mae que nao podia tolerar a experiéncia de tais sentimentos « feagla quer negando-thes ingresso, quer, altermativamente, tornando-se presa da ansiedade que resultava da introjecio dos sentimentos maus do bebé, (BION, 1959, p. 103-104) A reverie é a fungao materna e também analitica que designa um estado de aber- turaa receber as emocées e as projecées que surgem do bebé. Bion considera que éne- Cessario receber, conter e elaborar as identificacbes projetivas do paciente através de um trabalho de transformagao que capta as impress6es sensoriais e todas as comunica. $6es pré-verbais - os chamados elementos-beta - convertendo-as em elementos-alfa, ue s2o aptos a entrar em um processo de simbolizacao e podem chegar a ser verbali- zados. O exercicio da réverie oferece um grande alivio ao paciente e revela a capacidade empatica do analista de sintonizar-se com seus aspectos protopsiquicos. Essa forma de empatia cria no paciente a sua prépria empatia ao que é enigmstico e incomodo e con- tribui para a constituigao de sua funcdo-alfa e do aparelho Psiquico, Para Bion, o medo que o analista sente dos préprios sentimentos é um grande obstaculo 4 compreensio das comunicacées do paciente, impedindo que se esta beleca a empatia, Nesta perspectiva, o aspecto central da empatia analitica seria a existéncia de tim analista destemido, capaz da réverie, que se constrdl através de identificacées pro- Jetivas entre ele e o paciente, de forma a que ambos possam compreender 0 que se Passa com 0 outro no campo da experiéncia emocional, A empatia seria uma forma benigna da identificacao projetiva, um “colocar-se no lugar do outro”, ou ainda, usar a capacidade de perceber-sea si mesmo, implantando-a ro outro, para intuir, de forma metaforica, o que se passa com ele, Elna Marta de UthOa Cintes Um discipulo de Bion, Grotstein (1985), considera que através das interpretagoes oanalista convida o paciente a experimentar empatia por sua prépria condicio de de- samparo e de seus aspectos cindidos e recusados. Ressalta, de forma muito apaixona- da, a necessidade de todas as pessoas, especialmente dos pacientes, de compartilhar suas experigncias mais arcaicas, utilizando para isso a identificagio projetiva de forma comunicativa e empatica: De que outro modo um paciente angustiado pode saber que o analista o compre- ende, a ndo ser fazendo-o softer aquelas vivéncias que ele proprio néo tem palavras para expressar?(..) Todos nés projetamos e no fundo desejamos que o outro conhe- ‘gaa experincia que ndo conseguimos comunicare da qual no podemos nos aliviar até estarmos convencidos de que 0 outro nos compreende, E nao podemos nos convencer que 0 outro nos compreende até nao estarmos convencidos que o outro contém agora concretamente nossa experiéncia, (GROTSTEIN, 1985, p. 578-592) Inspirados em Grotstein, podemos afirmar que 0 uso empatico da identificacao projetiva depende, no fundo, de quem recebe e de sua capacidade de reverie. Quan- to maior a empatia e a capacidade metaférica do analista, assim como também a sua capacidade de se separar de seus afetos para conhecé-los, maior seré a sua capacidade de transformar as identificacdes projetivas do paciente em comunicacdes que pode- ro enriquecer a ambos. Em Bion e outros de seus seguidores, como Grotstein, Bollas, Ogden e Ferro, esse mecanismo de defesa foi entendido em sua dimensao intersub- jetiva, abrindo-se 8 possibilidade de se tornar meio de comunicagao. A maior parte dos kleinianos da atualidade considera que as identificagdes projetivas dos pacientes devem ser contidas e elaboradas pelo analista para que possam ser devolvidas a eles de uma forma que os convide a entrar no processo de elaboracao. Na verdade, a descricdo da identificagao projetiva em Klein seguia a sua tendén- ciaa compreender o psiquismo e seus mecanismos com énfase na dimensdo intrap- siquica. Da mesma forma que Freud, ela sempre se manteve cética quanto ao uso da contratransferéncia para a compreensao do paciente. Foi Paula Heimann, nos anos 1950, que se propés a fazer um uso mais amplo da contratransferéncia. Em seu livro A Sombra do Objeto, Bollas (1987/1992) nos lembra que, até aquele momento, 1950, pressupunha-se que quem falavaem andlise erao pa~ ciente, do ponto de vista de seu discurso consciente ou inconsciente. Ora, sem deixar de escutar as associacées livres do paciente, Paula Heimann decidiu abrir a sua escuta a uma infinidade de vozes subjetivas, provenientes de diferentes estratos psiquicos: “Quem esta falando, ai neste momento, através desse paciente?"; “a quem ele esta dirigindo a sua palavra?” {..] Heimann percebeu que em determinado momento o analisando estava falando com a mae, antecipando o pai, censurando, estimulando ou consolando uma crian- «20 self infantil da crianga em plena divisdo aos dois anos, na fase edipiana ou na ‘adolescéncia(.) Anarrativa do paciente nao era escutada apenas ao se ouvir os sons dissonantes de pontuacio inconsciente (..) 0 analista da British Schoo! iia analisar também os sujeitos que se alternavam e 0s outros sujeltos, implicitos na vida da ‘transferéncia. (BOLLAS, 1987/1992, p. 13) 0 Analiata Implicade Para Aldm da Cantratranafertne! A presenca simultanea de uma Infinidade de sujeltos em uma tinica pessoa con. vidou 0 analista a implicar-se mais profundamente em seu trabalho de escuta, dando, inicio, entao, ao que hoje chamamos de um analista implicado, Esta implicagao - sem negara necessarla reserva (FIGUEIREDO, 2009) e abstingn. cia do analista - leva-o a ampliar a sua porosidade e a sua possibilidade de ser aletadg fisica e emocionalmente pelo que diz o paciente, ao mesmo tempo em que convoca as suas memérias corporals mais arcaicas e a sua propria histéria de vida e de anilise Pessoal, Trata-se do objetivo de “ouvir com o corpo inteiro” (CINTRA, 1998), de se dispor 3 Ser usado pelo paciente como um ambiente suficientemente actistico para dar resso. nancia e reconhecimento ao que Ihe chega. A capacidade de empatiaea qualidade da Presenca do analista tornaram-se, gradativamente, mais importantes e merecem que Se Possa pensar cada vez melhor o que significa essa qualidade de presenca, Estar verdadeiramente Presente ao outro exige uma capacidade de réverie - de sonharo outro a partir da experiéncia de ter sido sonhado por alguém; decorre de uma real capacidade de ver, escutare sentir o outro, ao mesmo tempo em que exige uma Capacidade negativa (CINTRA, 2016); isto é, 0 analista precisa retirar-se de seu imagi- nario e da captura de seus desejos narcisicos, ao mesmo tempo em que os habits, Sera Possivel isto? ‘Talvez seja um pouco ideal demais pensar um analista que consiga ouvir a po- lifonia de vozes e sujeitos dentro de um tinico sujeito; mas o que se pode fazer sao simples movimentos nesta direcio. Para comecar, um movimento de desprender-se de suas certezas técnicas e teéricas, e permitir que a participacao do Paciente corrija as interpretacdes e construcées do analista. Talvez o mais importante seja apenas 0 desejo de néo mais julgar, de nao compreender tudo. E isto que pode favorecer a ati- tude analitica, aliado a um treino em escuta polifénica. So os insights conquistados da contratransferéncia, Os pacientes descobriram que os analistas tinham uma capacidade de receber, acolher, decodificar e nomear as vivéncias da época anterior a conquista da lingua- gem verbal e do mundo da crianca, através da contratransferéncia,£ isto fol bastante revolucionario, Em outra tradicao, Francoise Dolto fala do ‘mutismo magico que existe quando uma crianga viveu algo da ordem do impactante, do enigmatico e do inquietante, ficando Presa na perplexidade, sem conseguir dar sentido ao vivido, O estado de emudecimen- to mergulha a crianga em uma aura de Magia, pois o que nao pode ser dito nao entra €m circulagao, no pode ser pensado e produz um estado de paralisacéo magica. © préprio Bollas conta que ao trabalhar com criangas autistas deu-se conta de que elas nao podiam dizer como se Sentiam, mas podiam mostrar muito bem 0 que Sentiam, se o analista se abrisse a ser usado como um objeto. {ul e ser quiado, via seu préprio mundo interior através da sua propria meméria & de suas relacdes de objeto. Uma Ctianga autista pode nao proferir nenhuma palavia, Elisa Maria de Ulhda Cintra ras se expressa pela linguagem dos gritos, do siléncio denso e preocupadoe do uso rimético das pessoas. la se instala dentro do outro, obrigando-o a experienciar colapso da linguagem (e portanto o colapso da esperanca e do desejo). (BOLLAS, 1987/1992, p. 15) A.guisa de conclusdo, podemos afirmar que para escutar 0 inaudivel do trauma é preciso viver as formas benignas da identificacio projetiva que conduzem a empatia. Com Klein, aprendemos que as angistias em seu ponto de maxima intensidade s40 material explosivo; elas exigem a empatia. E com Bion, aprendemos que quanto mais primitiva e intensa for a emocao, maior seré a necessidade de duas mentes para lidar com o acontecimento. Exige-se para tanto a presenca de um analista destemido, que tenha percorrido as veredas de seu Infanti e tenha sido escutado através de réverie e empatia, Para que possa ele também se oferecer a seu paciente como alguém capaz de transitar entre as fronteiras méveis deste espaco que separa e pode manter isola- das as pessoas. O que pude desenvolver de original enquanto escrevia este texto foi a ideia de que nos casos mais leves 0 paciente pode usar a identificagdo projetiva como se fosse um fendmeno transicional, uma brincadeira de repassar ao outro a sua realidade psf- quica naquilo que tem de mais assustador, em um "toma lsd ca" que pode ser uma forma visceral de comunicagao e de enriquecimento miituo, desde que os impulsos @ as identificacoes possam ser reintegrados. Foi Winnicott quem melhor teorizou 0 paradoxo de que o objeto transicional é e ndo é" ao mesmo tempo o bebé ea mae, odentro eo fora. Permanece, enfim, o sentimento de que algo ainda esta faltando, que ha uma tarefa por fazer. Serétalvez 0 desejo de entender melhor que qualidade é esta de pre- senca ao outro que torna verdadeira a empatia. Que qualidade esta de atengio € presenca ao outro que ainda nao conhecemos bem, que ainda esté por ser descrta? Referéncias BALINT, M, (1968) A falha bdsica - aspectos terapéuticos da regressdo, Porto Alegre: Ar- tes Médicas, 1993. (1968) A falha bdsica - aspectos terapéuticos da regressdo. 2.ed. Séo Paulo: Zagodoni, 2014. BION, W. R. (1959) Attacks on linking, International Journal ‘of Psycho-Analysis, n. 40, p. 308-315, republicado em Bion, W.R. (1967) Second Thoughts. New York: Aronson. (1967) Second thoughts. New York: Aronson. BOLLAS, C. (1987/1992) A sombra do objeto. Rio de Janeiro: Imago. (2009) A questdo infinita, Porto Alegre: Artmed. (2015) When the sun bursts - the enigma of schizophrenia, New Haven & Lon- don: Yale University Press. BOLLAS, C. & BOLLAS, S. 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