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oart12022 12:24 Correia APPOA Relendo Freud: fenémenos de massa 288 - junho de 2019 hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimirledicao=288 ane oart12022 12:24 Correia APPOA Editorial Editorial Tematica A psicologia das massas nos discursos da dominagiio - Cleuza Maria de Oliveira Bueno ‘Sobre o esprit daquele tempo - Luciana Portella Kohirausch A divisto do eu da psicologia de massas - Luts Fernando Lofrano de Olive! ‘Sobre identifieagao e mimesis: Freud com Benjamin - Manuela Sampaio de Mattos Noticias Notas sobre o Nucleo da Infancia - Ana Laura Giongo, hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimirledicao=288 Sumario 2n6 oart12022 12:24 Correia APPOA Editorial Editorial Entre os dias 24 e 26 de maio de 2019, reunimo-nos em Gramado para mais uma edigao do Relendo Freud Conversando sobre a APPOA, ocasio na qual retomamos um texto freudiano para pensar sua atualidade - ¢ também avancar nas questdes que nos Concernem. 0 texto escolhido para este ano foi Psicologia das massas € andlise do eu, de 1921, diante do momento sociale politico ‘em que vivemos, onde fendmenos de massa ressurgem com efeitos nada silenciosos. AAs fake nows © o que poderiamos chamar de massas viruais parecem revelar, sobretudo, o imperativo do ddio ao outro 6 & alteridade, E a dimensao da palavra enquanto instrumento de laco social estaria dando lugar a uma condigao de pathos da palavra lesvaziada de seus sentidos comparilhados e sendo ullizada, muitas vezes, para 0 aniquilamento do outro. Os trabalhos apresentados no evento @ reunidos nesta edi¢ao do Correio sao fruto do trabalho em cartel em tomo do texto freudiano e abordam essas e oulras questées. Eles interrogam as concepgées freudianas sobre a formagao e funcionamento das massas, mas também avancam em relagao a estas proposicdes em didlogo com Lacan e outros autores, bem como com a clinica, o que nos ajuda a pensar 0 que esta em causa na atualidade. Boa leitura! hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimirledicao=288 ane oart12022 12:24 Correia APPOA Tematica A psicologia das massas nos discursos da dominagao Cleuza Maria de Oliveira Bueno De inicio me proponho a interrogar uma parte do que Freud tratou em A Psicologia das Massas ¢ Anélise do Eu, a Psicologia das ‘Massas, Enquanto fenémeno, as massas contemporaneas se assemelham as do inicio do século passado? Estruturalmente, as rmassas contemporaneas correspondem ao que Freud analisa a partir das descrigSes de Le Bon? Como poderiamos a partir das contribuigSes teéricas de Lacan, na sua releitura de Freud, repensar uma psicologia das massas? Como a teorizacao dos Discursos ‘come formas de Lago Social padem langar alguma luz sobre essa questo? Uma tese central de Freud nesse texto é de que & 0 amor que faz a ligago nos grupos humanas, tanto dos membros entre si quanto com o lider, assegurando a solidariedade. Amor alimentado por idealizagdes que desencadeiam o processo de identificagao. Ou seja, ‘um grupo de individuos t&m em comum 0 mesmo objeto no lugar de seu ideal de Eu. Freud também disse no texto, relembrando Totem e Tabu, que o que primeiro aparece é 0 dio, Sdio 20 pai que culmina no seu assassinato quando a itmandade reforca seus lagos. Para Freud a massa seria uma revivescéncia da horda primitiva e o pai primevo um lider narcisista que no amava ninguém, um lider temido , mesmo assim, ideal da massa, Porge (2009, p. 190) lembra que Lacan procurou desfazer essa ligacao entre pai da horda ideal do eu, jd que 0 ideal do eu estaria referido ao trago undr, traco da diferenca, enquanto o pai primevo seria aquele Um (uniano) ue faz excegao a castragao. Isso implica conceber que a massa tem entéo, de um lado o cardter de um todo, de algo que funciona ‘como corpo, nesse caso fundada pela excecao do pal © de outro 0 ideal do eu, da ordem do nao todo. Parlindo da psicologia das massas de Freud, o que os individuos da massa comparilham é a ilusdo de serem amados/odiados pelo lider, justamente esse que nao ama ninguém. O pai mitico, como figura de excegao, no caso, ao-menos-um que pode gozar, & sulssttuldo com a divinizagao pelos Deuses, aplacando assim o anseio dos homens por protegao, diante de sua impoténcia e desamparo, Freud ao fundar um paina origem, um pai primitivo, a prépria figura de um gozo poss'vel, o qual, uma vez morto, subsiste enquanto fungao simbdlica na cultura, o faz numa perspectiva hist6rica do proceso de subjetivagao, numa construgao a posteriori O pai primitivo que ressurge nos deuses é um pai imaginado que volta a ser invocado sempre que ha fracasso dos pals da realidade ou do que mais pode sustentar valores félicos da cultura, Freud toma a religiéo na referéncia judaico-crista em que a lei se introduz em nome da promessa de amor e protegéo, mas também sob a ameaga do castigo e da maldigao de um Deus Pai criador de tudo. Os exemplos de massas artificiais buscadas por Fraud no exército @ na igreja dizem de universos com regras estabelecidas com lugar definido para lideres, chefes, guias, figuras de autoridade, ‘© que poderiamos pensar serem mais encamagses de Mestre. Psicologia das massas ¢ andlise do Eu (1921) 6 um texto no qual Freud no pe em causa o amor, como faz na Denegagao de 1925, quando fala de Eros como unificante @ da negagao como possibiidade de separagao. Ja tinha trazido a pulsdo de morte no Mais além do Principio do Prazer de 1920, antevendo a nogdo de gozo que Lacan desenvolve depois, mas ainda nao a leva em conta nesse texto. Podemos considerar que em Psicologia das Massas @ Andlise do Eu, Freud se vira como pode com as ferramentas tedricas forjadas por ele até entao para analisar fendmenos sociais de seu tempo. Come arriscar uma leitura da psicologia das massas a partir das contribuigdes de Lacan com a teoria dos discursos, mais precisamente dos discursos da dominago? Os discursos do Mestro, do Universitario © do Capitalista, par aquilo que confessam querer dominar, por sua estruturagdo, podem ser considerados “discursos da dominagao", So discursos dominantesou discursos da dominacao os discursos em que o comando do signficante mestre esté do lado do sujeito, seja como agente ou como verdade, e que ddomina como pader ou como saber. A dominagéo também tem a ver com o lugar que © sujeito ocupa e sua relagdo com o outro. So as diferentes posigdes desses elementos que podem nos ajudar na consideragao dos fendmenos sociais ao longo do tempo, ‘Areferéncia religiosa foi determinante nos modos de subjetivagao até a modemidade, quando a ciéncia deu ao mestre outro estatuto ea verdade do campo divino é substituida pelo campo humano do saber. Com a ciéncia moderna inaugurada por Descartes, o Mestre subsiste ja no s6 como figura imaginérla, que até poderia coincidit com algum pai ideal, mas enquanto Outro simbélico, como aquele que esté morto e corresponde & fungao do significante. Podemos fazer uma ficedo tedrica de que a modernidade com o avango do pensamento, da flosofia ¢ da ciéncia produziu o Discurso do Mestre, do Senhor, discurso que se impée como vontade de dominio, na ilusdo de consttuir um discurso unificante, totalizante, recalcando a verdade da castragao e a inevitavel perda resultante da rentincia ao gozo. Por um bom tempo o lago civilizador chamado Discurso do Mestre, caracterizado pela domindncia manifesta do mestre, do significante mestre, de uma palavra que da o norte organiza, foi dominante e estruturou 0 lago social de determinada maneira sgarantindo, com um conjunto de regras, de alguma forma, a coeséo social. No entanto, o mesmo lago que ordena é um lago social que no engano da totalidade, em grau extremo, pode permit totaltarismo. Isso se da nos momentos em que a sede de um pai primevo reedita imaginarizagées e engendra encamagées, donde Hiller, Stain e tantos outros. A ansia por um pai/mestre que d& respostas, que tenha certezas e indique o caminho é préprio do neurético. O problema é quando esse lugar 6 ocupado por alguém ue se confunde com o ideal que representa, que encarna o mestre, como & 0 caso do paranoico, arrastando consigo massas a comparilhar seus dellios de ciime e traigdo e a temer golpes e conspiragdes. hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimifedicao=288 ane oart12022 12:24 Correia APPOA Mas via de regra, pode-se pensar que no Discurso do Mestre ha espago para o lider, seja ele de qualquer natureza ou valor social. AS rmassas artfcials descritas por Freud parecem ser estruturadas segundo a légica do Discurso do Mestre, laco que em geral determina a relagées sociais e que era o lago social dominante, embora o saber ja viesse alternando o protagonismo no lugar de agente, O préprio Freud, ao mesmo tempo em que produz uma fissura nos ideais de saber totalizante com sua invengdo do inconsciente 2 ddesvelar um sujeito dividido, também busca reconhecimento na ciéncia, Mas, uma coisa 6 o que ia produzindo enquanto instrumental teérico para ler a realidade, outra sdo os efeitos de sua produgao. Na passagem da modemnidade para a pés-modernidade, o Discurso do Mestre comosa a dividir a dominaincia até ceder espago para o Discurso Universitario, lago social organizado pelo saber, mas desta vez um saber cientifico subdividido em inumeras especialidades e pela burocracia. Na letura politica dos discursos feita por Zizek (2008, p. 106), ele coloca que o préprio Estado dirigido pelo saber qualiicado da burocracia emerge como novo Mestre. Segundo ele, isso coincide com a passagem do antigo regime pré-revolucionario ‘a0 novo mestre pés-revolucionatio que nao se admite como senhor, mas como “servidor" do povo. ‘A domindincia do discurso universitario se acompanha entdo de uma crise de investidura simbélica e de uma diluigdo da responsabilidade. Zizek lembra Nietzsche que trata da passagem da ética do senhor a moralidade do escravo. Escravo é o termo nietzschiano para senhor fngido, numa critica aos novos senhores que no se assumem como tas. No discurso do Mestre ha a suposigao imagindria do falante ser o que diz, 0 que o leva a se comprometer no seu ato. J no discurso Universitario, ofalante nao assume o que enuncia, nao se compromete, enuncia desde uma posi¢ao de saber neutro. Entéo, o mestre pés-modemo se justiica por seu saber, um saber adquirido, semblante do que domina esse discurso e ignora as relagdes de poder {ue esto por trés, ou por baixo, $1 no lugar da verdade. $1 como supereu de S2 no lugar de agente. Enquanto o Discurso do Mestre recalca a divisao do sujeito pela castragao, o Discurso do Universitario produz um sujet castrado ao se airigit ao outro como objeto. ‘A mestria deixa de estar associada ao reconhecimento, a autoridade de quem enuncia, em fungao do valor de verdade que gera Consenso & passa a se dar pela legiimidade dos enunclados sujeltos a crtérios de comprovacao. A clénola no mais fundada na vida divina ou no espitito, cada vez mais trata da informaedo numa concepeao operacional e pragmatica e gradativamente vai adquirindo valor de troca numa submissao ao Estado e ao Capital Lacan (1992) no seminario XVII nitidamente situa o discurso universitario como a nova forma de dominagao ¢ interpreta naquele momento a revolta da massa de estudantes que faziam a revolugao como uma demanda de mestre. Nao é a toa que o movimento de rmaio de 1968 tenha nascide dentro das universidades. Como pensar a lideranca nas massas quando da dominancia do discurso universitario? Seria representada numa figura Gnica? Ou seria 0 que Freud antecipou como um ideal coletivo em vez do lider? Freud ja havia antecipado formacGes coletivas diferentes das analisadas por ele ao falar daquelas em que o chefe é invisivel, substituido por uma abstragao, uma ideia, transformando-se em ideal do eu, Acho que nao é 0 caso do dlscurso universitéro, pois o ideal compartthado de que fala Freud poderia muito bem corresponder a0 Discurso do Mestre, quando o Mestre, S1 no lugar do agente, e uma causa, um ideal enquanto impossivel, no deixa de ser a verdade da castragao. A posicao do mestrellider no discurso universitario 6 mascarada, se apresenta disfargada, mesmo manifestamente ha a dispensa dos classicos atibutos de um lider. “Ndo sou senhor, estou to somente como representante de tal ou tal causa’ ou “estou apenas mostrando-Ihes o que sera melhor, por tais e tais motvos...” Nesse caso a massa parece ser animada por algo, alguém, individuo ou grupo, que se apresenta justiicado por um argumento de ordem teérica, ideolégica, moral ou religiosa, mas que nao reconhece o verdadeiro mestre que Ihe dirige, ou seja, as verdadeiras relagSes de poder por trés ou por baixo. A posigdo daquele que fala ou age a partir da posigao do agente no discurso universitario no difere muito da posi¢so perversa: nao se responsabiliza e, como diz ZiZek, assume uma posi¢&o ndo comprometida de observador ou executor de ordens. & a aparéncia de neutralidade daquele que cumpre ordens. Nao é essa a posicao do torturador? Quinet (2006) liga o discurso universitario ao ato perverso na medida em que toma o outro como objeto de goz0. O estudante no lugar do outro a quem o discurso se drige 6 tratado como objeto, como aquele que é dominado em nome de um saber © 0 produto, © resultado, 6 um sujeto castrado. Essa produpo também corresponde ao sujeito da crenga. E realmente temos assistido um incremento até assustador do fenémeno religioso.Se o totalitarismo é 0 risco de encamagées de mestre quando da dominancia do discurso do mesire, ao preponderar 0 discurso universitario 0 risco parece ser a emergénicia dos fundamentalismos, inclusive 08 religiosos, dos quais decorrem tantas ages terroristas e violéncias praticadas por grupos. Muitos movimentos de massa contempordneos s80 movidos por fundamentalismos fanaticos que resultam em violéncia, nos quais 0 mal & realizado em nome de uma crenga religiosa ou da devogao fanatica a certos ideais. € 0 que Zizek(2006) chama de Mal do ‘Supereu na classificagdo que faz a partir da triade freudiana. O tipo mais comum de mal 6 o Mal do Eu, que é o comportamento motivado pelo calculo egoista e pela ambicdo, numa negagao dos principios éticos universais, No entanto, na andlise de certas violéncias grupais nem sempre se detecta um célculo egotsta nem uma identificagao ideolégica ou religiosa precisa, © exame mais apurado do que diz um skinhead, exempliica Zizek, pode indicar que espancar os estrangeiros o faz sent-se bem, ja que a presenga dos estrangeiros o perturba. Trata-se do Mal do Isso, que resumindo o que ele diz, é 0 que poe em cena um curto Circuito entre 0 sujeito e 0 objeto perdido do seu desejo. “(..) 0 que nos “incomoda” no “outro” judeu, japonés, africano, turco...) 60 {alo de ele parecer manter uma relagao privlegiada com o abjeto; 0 outra ou possul o objeto tesouro, porque no-lo roubou (e par isso 'nés ndo o temos), cu representa uma ameaga para a nossa posse do objeto (2006, p. 199, 200)". A outra letura que podemos fazer a partir de Lacan & de que esse mal que Zizek chama Mal do Isso ¢ a maldade que nao reconhecemos em nés © mais facilmente atribuimos ao outro, ao estrangeiro, ao estranho, ao préximo. Se esse outro fosse visto como semelhante, seria possivel amé-to, ainda que fosse um amor narcisico e isto daria um limite a0 gozo, pois resistimos a atentar contra a imagem do outro, jé que se trata da imagem sobre a qual formamos nosso eu, ‘Temas que considerar, no entanto, a diferenca entre esses movimentos em que a massa parece ser tomada pela pulsfio de morte na busca de um gozo sem limites no ataque ao préximo, de movimentos de protesto desencadeados por algum tipo de indignagéo ou ‘movidos por algum ideal hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimifedicao=288 5116 oart12022 12:24 Correia APPOA AAinda sob a dominancia do Discurso Universitario, Lacan constata 0 surgimento de algo que néo gira redondo, um discurso Toucamente astuto, o mais astutojé feito como discurso. Por uma pequena inversdo no discurso do mestro se produz o que passa a reconhecer como o Discurso do Mestre Modemo, o Discurso do Capilalsta, Seria este um lago social estruturalmente transgressivo? A escrita do Discurso do Capitalista indica uma rejeigo da castrago, 0 que podemos conceber como a ilusso do sujelto eclipsado pelo Eu de se desfazer de sua divisdo estrutural e de tentar o apagamento de tragos identifcatérios. Isso faz, conforme Lacan(1}, com que desreconheca as coisas do amor e seja reduzido a um consumidor de objetos, inclusive dele préprio(2} esse laco social, hd uma tentativa de objetivagao nao s6 do sujeito, mas também do saber @ do préprio objeto a. O saber ou se transforma em mercadoria ou se pie a setvico de sua produgao. O objeto a, recusado enquanto vazio, e desvalorizado o que pode Ihe fazer semblante, passa a ser suposto como possivel de ser preenchido pelo objeto de consumo. A questao é que o real néo se objetiva e insiste. Enfim, essa configurago, em que hd recusa do inconsclente, do sexo, das colsas do amor, ea expectativa de uma satisfacao possivel © plena, tem efeitos. Como constata Lypovetsky (2007), a felicidade que resulta do consumo é uma felicidade ferida, nunca o individuo atingiu tamanho grau de desamparo ao ser considerado 0 Gnico responsavel por seu éxito ou seu fracasso, Do nesso ponto de vista desde a psicandlise o que constatamos é o que resulta como formas de inibigao, sintoma e angustia, Dizsse que 0 Discurso do Capitalista é um discurso louco, um discurso que nao faz lago. Nao faz lago, mas faz massal Certamente rmassas muito diferentes das descritas por Freud! Um dos efeitos, nao 0 Unico certamente, do desentace social capitalisa 6 a produgao de fendmenos de massa em que a ligacao se dé pela identificagao imagindria, a que se restringe ao nivel do eu ideal. Nada de amor compartlhado ou da relagao a um terceiro idealizado capaz de alteridade, mas sim da relagdo entre semelhantes e do compartilhamento de um gozo narcisico. Esse parece ser © caso de algumas comunidades virtuais como 0 facebook, em que a massa de “amigos” conectados virualmente, desde espagos, diferenciados e individuais, se comunicam de forma harizontalizada em trocas nas quais prepondera a “mastragao" sobre a Interlocugso, O acento no olhar ou no dar a ver @ 0 reconhecimento buscado com os likes parece passar longe do reconhecimento simbélico. Freud, mesmo contestando, refere Troter (1916) que fala de certo instinto gregério, que uniria as massas sem a necessidade de um lider. Gregario vem do latim gregarlus, de grex, gregis, rebanho. Estar junto aos iguais seria algo instintivo, primar, uma tentativa de superagao do sentimento de incompletude do individuo quando esta sé. Sem entrar no mérito dessa discussao, podemos considerar que ha hoje uma forma de agrupamento em que a liga se da em relagdes de reciprocidade, de troca entre iguais, independente de um lider reconhecido enquanto tal. Dufour (2008) chamou de formagao ego-gregéria um novo tipo de agregado social, em que hé uma praliferagao de egos vivendo em pequenos ‘rebanhos” alinhados ao grande rebanho de consumidores, de modo a serem conduzidos a fontes de abundancia de interesse do capitalism, Parece haver outros efeitos possiveis do desenlace capitalista, além do alinhamento de eus que aparece nas comunidades virtuais ou ‘nos consumidores massificados, siderados por objetinhos. Como pensar o que acontece em grupos que identificados entre si praticam violéncias, compartihando o édio na busca de um gozo sem limites? Parece uma reedigao do grupo de irmdos da horda primitiva[3], com a diferenca que o alvo do édio nao & um ancestral comum, no é ac-menos-um, lugar de excego, mas alguém, individuo ou grupo, diferente, ou que pensa diferente, estranho ou estrangeito e por isto algado & condigdo de inimigo, Poderiamos pensar que nessas massas se trata de relagdes simétricas, entre iguais, no reguladas por um terceiro simbalico que poderia limitar 0 ozo. Outro efeito ainda parece ser, nem amor, nem édio, mas indiferen¢a. Se tudo pode ser consumido, tudo pode ser substituldo ou simplesmente descartado, Indiferenca e negacao ou recusa da diferenca. Assistiratos de lerrorismo pela TV ou pela rede, por exemplo, pode contundir realidade e ficgao, mas uma ficgdo fria, neutra que nao desperta emagao e muito menos compaixao. Mas ‘do esté sé no virtual toda a indiferenga que se produz. No dispositivo capitalista ha um apagamento de valores, eventualmente tudo pode se tornar um valor mercanti ou nao ter valor algum, inclusive a vida. Todos esses efeitos do Discurso do Capitaista vém junto ‘com a tendéncia a um uso instrumental da palavra e a tentativa de desprestigio ou mesmo do assassinato da metéfora o da dimensao postica. O limite para essa tendéncia, no entanto, se encontra no préprio fato de que ainda ha linguagem, € o que permite que 2 alteridade soja restabelecida e que se possa mudar de discurso. E 0 lider? Seré que no lago social capitalista pode ser localizado algum lider? Na escrita desse discurso, o significante mestre no lugar da verdade passa a ser Capital, ou ainda, o Mercado. Ora, Mestre Capital nao é encamado por ninguém, é transsocial, atravessa todo o tecido social, efetivamente comanda. Assim como 0 sujeito no lugar do agente & iludido quanto a ter acesso ao objeto ¢ a sua verdade, alguém que se propée ou é tomado como lider quando do dominio desse lago social $6 pode ser um lider de fachada, habilmente manipulado pelo verdadeiro mestre. Um pouco de agua nesse deserto é a consideragao de que, apesar da dominancia de um ou outro discurso nos varios tempos lugares, nao ha um s6, eles circulam. A contemporaneidade abriga um mundo complexo, culturalmente diverso, heterogéneo, apesar de tudo. Ainda que a dominancia do discurso do capitaista tenda a se impor globalmente, os agrupamentos humanos se estruturam € uncionam simultaneamente segundo as diferentes légicas e os demais discursos continuam circulando. Além do mais, se a castragao pode ser recalcada, recusada ou forcluida nos varios lagos sociais 6 porque apesar da forca das ondas, a rocha continua intransponivel. Referéncias bibliograficas: DUFOUR, Dany Robert. 0 Divino Mercado: A Revolugao Cultural Liberal. Tradugdo Procépio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia das Letras. 2008, FREUD, Sigmund. Psicologia de fas Masas y Analisis del Yo. 1920-1921] In: Obras Completas de Sigmund Freud. Trad. Luis Lopez Ballesteros. 3°. Ed,, Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1973, Vol. Il, pp.2563-2610, LACAN, Jaques. © Seminario, livro 17: 0 Avesso da Psicandlise. Tradugo Ari Roitman, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. ,1992. LACAN, J. Le Savoir du psychanalyste, aula de 06/0172. Publicagao intema da Association Freudienne Internationale. hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimirledicao=288 ane oart12022 12:24 Correia APPOA LIPOVETSKY, Gilles. A Felicidade Paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradugao Maria Liicia Machado. SP: Cia das Letras, 2007. MELMAN, Charles. Novas Formas Clinicas no inicio do terceiro milénio. Porto Alegre: CMC Editora, 2003, QUINET, Antonio. Psicose e Lago Social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, ZIZEK, Slavoj. As Metastases do Gozo: Seis Ensaios sobre a Mulher © Causalidade. Trad, De Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relégio D’Agua Editores, 2006. P. 183-200. W. Trotter. Instincts ofthe herd in peace and war.Londres. 1916. PORGE, Erk. Tansmitr a Clinica Psicanaltica. TradugSo Viviane Veras e Paulo de Souza. Campinas, SP: Editora Unicamp. 2008. P 190 ZIZEK, Slavo). Violéncia en acto: Conferencias em Buenos Aires. Buenos Aires: Paidés, 2005, [1] Le Savoir du psychanalyste, aula de 06/1972. Publicagdo intarra da Association Freudienne Intemationale. [21ga se consomme{Consommery.os objetos so consumidos, usados; Ga se consume (consumer) : os objetos se consomem, 50 destruldos, viram dejeto. [3] Melman lembra que Lacan jé havia anunclado que surgiia a “socledade de irmdos’, MELMAN, Charles, Novas Formas Clinicas no inicio do terceiro milénio. Porto Alegre: CMC Editora, 2003. ‘Autor: Cleuza Maria de Oliveira Bueno [1] Le Savoir du psychanalyste, aula de 06/1972. Publicagao intema da Association Freudienne Internationale. [2I¢a se consomme{Consommery.os objetos so consumidos, usados; Ga se consume (consumer) : os objetos se consomem, S40 destruidos, viram dejeto. [3] Meiman lembra que Lacan jé havia anunciado que surgiia a "sociedade de irmaos". MELMAN, Charles. Novas Formas Clinicas no inicio do terceiro milénio, Porto Alegre: CMC Editora, 2003. * Cleuza Maria de Oliveira Bueno é psicanalista APPOA Hipnose e pulsao de morte na psicologia das massas Fernando Hartmann Areferéncia de um discurso ¢ aquilo que ele confessa querer dominar, querer amestrar (...) a intrusdo (da psicanalise) na politica s6 pode ser feita reconhecendo-se que nao ha discurso - e ndo apenas o analltica - que nao seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade,(LACAN, O avesso da psicandlise) No capitulo inttulado “Sugestdo @ Libido" do texto "Psicologia das massas ¢ anzlise do eu’, Freud retoma seu encontro com Bernheim fem 1889, no tempo em que ainda trabalhava com a hipnose. Freud (1921/1987a, p.114) diz neste momento ja sentir uma hostiidade surda contra atirania da sugestic: ‘Quando um paciente que nao se mostrava décil, enfrentava o grito: "Mas o que esta fazendo? Vous vous contre-suggestionnez!", eu dizia a mim mesmo que isso era uma injustiga evidente e um ato de violéncia, porque o homem certamente tinha direito a contra-sugestées, se estavam tentando domind-lo com sugestées. Mais tarde, minha resistancia tomou o sentido de protestar contra a opinido de que a prépria sugestéo, que explicava tudo, era isenta de explicago. Pensando nisso eu repetia a velha adivinhagdo: “Crist6vao carregava Cristo; Cristo carregava o mundo inter; onde, entao, Cristévao apoiava o pé?” Nés encontramas neste escrito uma definigao do porque Freud se afastou da hipnose, buscando posteriormente uma explicagao para a sugesto até a criagdo do que ele chamaria de psicanzlise, Certamente, como bom filologista que era, sabia bem que Cristovao significa °o transportador do Cristo’, * o que conduz 0 Cristo". Tem origem no grego Christophéros, formado pelos elementos Christos, {que quer dizer “Cristo” e phorés, que significa “portador’. A histéria de Cristévdo, obviamente, néo é sem fundamento para falarmos de sugestao. Conta que Crist6vao era um gigante muito forte, um grande querreiro que queria servir ao maior de todos os reis, entao faz uma peregrinagao de reinado em reinado e vai rocando de mestre de acordo com a pot8ncia deste, acontece que nas batalhas um rei perdia para outro e assim seguia Cristévao até servir aquele que ele achou ser o rel mais poderoso de todos. Mas no melo de uma grande batalha ele viu este rei, todo poderoso, tremer de medo diante da morte. Cristovao entao pensa que este que ele achava sser 0 mais poderoso de todos também no era assim to forte, ¢, desiludido, decide abandonar este rei, Como era grande, forte & Precisava ocupar seu tempo, passou a conduzir as pessoas, nas suas costas, de uma margem a outra em um rio. Um certo dia, em que ele havia transportado muitas pessoas nas suas costas, J cansado, ele vai transportar o menino Jesus Cristo de uma margem a utra, ele entao diz ao menino que estava tdo cansado que parecia estar carregando o mundo nas costas, e o menino diz, no é 0 ‘mundo, mas 0 senhor do mundo ; entéo a citagao de Freud: "Cristévao cartegava Cristo; Cristo carregava © mundo inteiro: onde, entdo, Cristévao apoiava 0 p67" hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimifedicao=288 m6 oart12022 12:24 Correia APPOA Interessante Freud langar mao de um certo paradoxo légico como este, se carrego o mundo nas costas onde vou colocar 0s pés, para falar das suas dficuldades ao longo de mais de trinta anos de trabalho envatto com o toma da sugestéo. Em “Além do principio do prazer’, texto publicado um ano antes de “Psicologia das massas e andlise do eu”, ele retoma 0 caminho trilhado desde a hipnose, passando pela técnica interpretativa e & comunicagao ao paciente do material inconsciente descoberto, depois passa para a analise das resisténcias, quando o paciente resist, e o analista, pela influéncia - “sugestdo funcionando como transferéncia’, nos diz Freud (1920/1987, p.31) -, obrigava este a abandonar suas resisténcias. Mas diz logo que isso nao funcionava, que “o paciente continuava Tepetindo experiéncias do passado como se fossem presentes @ que isso acontecia invariavelmente na esfera da transferéncia" (1920/1987, p.32). Segundo Freud, quando as coisas alingem esta etapa, pode-se dizer que a neurose foi entao substituida pela neurose de transferéncia, Freud, na continuidade deste texto, perguntando-se sobre a compulsao a repetigao, vai dizer que os pacientes repetem na transferéncia todas as situagGes indesejadas e emogdes penosas, revivendo-as com a maior engenhosidade. O que ole refere neste texto 6 que a psicanalise revela, nos fendmenos da transferéncia, o que acontece na vida de todos, nas mais, Variadas formas de repeticdes - por exemplo, onde o benfeitor prova seguidamente o amargor da ingratiddo, ou aquele que repetidas vezes coloca outro na posigao de autoridade e depois subverte esta autoridade por outra nova, ou o amante cujos casos amorosos alravessam as mesmas fases e chegam a mesma conclusdo. Podemos tragar uma linha temporal na obra freudiana que vai da hipnose, passando pela sugestao, até chegar & transferéncia. Porém, em “Psicologia das massas e andlise do eu, Freud relaciona a hipnose a formagao de grupos e ao estado de enamoramento, buscando pontos de convergéncia. Poderiamos supor em um primeiro momento que se tratam de categorias muito diversas e dificels de relacionar, mas Freud o faz de uma forma surpreendente. Ele vai centrar a sua andlise na aproximagao do objeto ao ideal do Eu, até sua substituigdo: "um grupo 6 um certo numero de individuos que colocaram um $6 e mesmo objeto no lugar do ideal do Eu e, ‘consequentemente, se identficaram uns com 08 outros em seu eu” (Freud, 1921/1987a, p.147), Um dos pontos de convergéncia & a idealizagao, seja do objeto amado, do hipnatizador, do lider do grupo ou da ideia que unfica o grupo. Neste mesmo texto, Freud ‘escreve que a hipnose é uma formagao de grupo de dois membros; assim, segundo ele, “a hipnose nao constitul um bom objeto para ‘a comparagao com uma formagao de grupo, porque & mais verdadeiro dizer que ela ¢ idéntica a essa ima’ (p. 145). Mas, mesmo levando em consideragao a constituigao libidinal dos grupos, ele nao chega a uma conclusao defintiva pela via da libido © da identificagao e acrescenta que “a hipnose contém um elemento adicional de paralisia derivado da relagao entre alguém com poderes superiores e alguém que esta som poder e desamparado” (Froud, 1921/1987a, p.147). ‘Ao ratomarmos ao texto publicado anteriarmente, “Além do principio do prazer’, nés encontramas o concaito de pulsao de morte ‘como além do principio do prazer, sendo o que jaga 0 sujelto na repetigéo, o que Lacan vai posteriormente relacionar ao conceito de gozo. Em “Psicologia das massas e andlise do eu”, Freud afima que é a libido, o amor que une as massas; mas, no texto anterior, 0 que comandaria o sujelto para além do prazer seria a pulsdo de morte e sua possivel derivagdo para as relagbes de poder. Temos enntdo se delineando na obra freudiana duas grandes forgas que trabalham na formagao das massas: de um lado, 0 amor, a pulso de Vida, e, de outro, Thanatos, a pulsdo de morte. Freud chega mesmo a concluséo de que o édio também pode ser uma forga Uunificadora. Estas duas forgas, pulsdo de vida e pulso de morte, estariam ativas também na transferéncia? Uma das possibiidades de entramos nesta questao & pelo conceito de repeticao, Quando Freud traz 0 exemplo do Ford-da, em "Além do principio do prazer’, que ele mostra é seu netinho lidando com a angustia de separagao da mae alravés de uma compulsao a repetigao. Ele se pergunta qual o prazer que o menino tem ali. O prazer de dominacao? Passar da passividade para a atividade com relagdo ao abjeto? Repete algumas vezes que seria um outro tipo de prazer, ‘mas no chega a uma conclusdo defintiva e se encaminha para a ideia da pulséo de morte, A repetigao neste caso é uma forma de alivio da angistia. Esta conclusdo podemos trar do Ford-da, mas vejamos que para repetir precisamos da linguagem, ela é a propria Condi¢o da repetigao: a crianga diz: 6, 6, 6, 6, 6,6, depois, a, a, a, a, a. De fato no falamos sem repetir sons, letras, palavras. Isso quer dizer que através da linguagem construimos realidades, retirando, recortando da realidade a angiistia, proporcionando assim um dominio sobre a realidade. Nao é por acaso que esta realidade montada a partr deste recorte tem a aparéncia homogénea, onde as coisas funcionam, onde tudo parece ter uma certa organizagao que podemos chamar de religiosa, cientifica e até mesmo artistica - para seguir Freud no "Mal-estar na civilzacao". A realidade nao nos parece um caos. Quando isso acontece, de a realidade parecer lum caos, algo sem sentido, sem le, ver a angiistia. Entao, o que fazemos para que a realidade nao nos parega um caos, quer dizer, algo que nao controlamos, quando parece que estamos completamente sujeitos ao acaso? Nés recortamos da realidade a angistia Mas como néso fazemos? Podemos voltar aqui ao nelinho de Freud, ao modo como ele lida com a angiistia de separacao da mae, criando um jogo, via inguagem, de presenca ¢ auséncia com o carretel que representa a mae, quando joga o carretel, 6, 6, 6, 6, quando puxa o carretel de volta, a, a, a, a. Através da inguagem ele consegue criar um sistema de repetigdo onde passa a controlar a sua realidade e obtém uma satisfagao com este jogo, com esta repetigao. Entéo, para nos livrarmos do acaso, do caos, das forcas da nnatureza, da finitude e das relagbes adversas com outros humanos (ara nos mantermos na referéncia ao texto “Mal-estar da civilizagao"), nés construimos sistemas de repeticao, criamos o calendario, os dias da semana, os meses, os anos, contamos as coisas. Ninguém sabe se vai estar vivo daqui a uma hora, mas sabe que vai haver um meio-dia, que no final da semana havera Domingo, que houve a sexta-feira. Assim nés criamos a repetigdo para nos defender do acaso. Pois 0 acaso é isso, a gente nao sabe quando as coisas vo acontecer, quando vamos morrer, nao temas controle do acaso, a rapetigéo sugere um controle, Através do discurso nés consttuimos sistemas de dominio e poder sobre a natureza, sobre a realidade, enim, sobre os outros humanos, Porém, a angustia, o real, nao cessa de nao se escrever, @ este ratomo acontece de varias formas. HA pessoas que quando ficam angustiadas comem, mas nao comem qualquer coisa, ou vao ao shopping e compram, consomem, ou bebem, se dragam, ou fazem qualquer coisa automatica, repetiiva, Enfim, fazem sintomas que carragam repetigées e, é claro, os apetites ransformades pela linguagem mudam muito 0s limites, e assim comemos até estourar, ou ndo comemos nada, ou dizemos que comemos quando fazemos sexo. Freud apontava para a diffcltarefa de restringir as pulses e o quanto isso provocava o mal-estar na civiliza¢ao, mas ele também chama a atengao para algo ainda mais ameacador, “o perigo de um estado de coisas que paderia ser chamado de rmiséria psicol6gica dos grupos” (Freud, 1930/1987c, p.138),juntamente com toda complexidade das demandas de identificagao e reconhecimento presente nas comunidades humanas. hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimirledicao=288 ane oart12022 12:24 Correia APPOA Serd que atualmente ainda poderiamos seguir 0s passos de Freud relativos a formagao de massas psicolégicas? Bernard Stiegler, em sou livro La t6lécratie contre la démocratie, diz. que hoje nés temos outros tipos de massas artificiais, diferentes daquelas abordadas or Freud em “Psicologia das massas e andlise do eu", como o Exército e a lgreja, Hoje temos massas organizadas através de dispositivos como a televisdo, smartphones, redes socials. Estamos vivenciando isso mais claramente desde a votagao da salda da Inglaterra da comunidade Europeia, da eleigao de Trump nos Estados Unidos, da eleigdo de Bolsonaro no Brasil, Segundo Bernard Mandeville (2010/1774), toda sabedoria dos politicos é fazer jogar as paixGes de uns contra os outros, 6 0 seu tinico material. E como Isso se faz possivel tao facimente hoje? Segundo Stiegler (2008, p.174) {As inddstrias de programas @ as marcas que os financiam produzem uma dissociagao porque elas organizam a perda do saber fazer, a perda do saber viver e a perda do saber tedrico: elas organizam a forma de toda perda de saber pela dissociagao, elas fazem 0 contrario da organizagao das escolas, elas desfazem a filagao, os objetos s4o apresentados sem fiiagdo.(1) Apés essa dissociagao, 0 terreno psiquico fica livre para receber qualquer tipo de sugestéo. Este é 0 mesmo mecanismo da hipnose, onde 0 sujeito abre mao de decidir e passa a funcionar quase que mecanicamente sugestionado, Se a pulsdo de morte - ou 0 goz0, para Lacan - pode ser entendido como uma forma de alivio da angiistia, assim como o sintoma, poderiamos dizer que a formagao de rmassas psicoligicas como forma de dominio e poder se constituem a partir da disponibilizagao de formas de gozo facilmente comparilhhadas? Ou seja, seria a pulsdo de morte uma forma de alivio da angiistia que implica a formagao de massas psicologicas facimente manipulaveis? A crise, o caos, 6 uma étima forma de faclitar a dominagao, o governo. Referéncias bibliogréficas, FREUD, Sigmund (1921). Psicologia de grupo e analise do eu." In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987a. Vol. XVI (1920). "Além do prinolpio do prazer.” In: Obras Completas. Rio de Janeito, Imago, 19876. Vol. XVI (1930). "0 maLostarna civlizagéo." In: Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago, 19876. Vol. XXI. LACAN, Jacques (1969/1970). Seminario XVI: O avosso da psicandlise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1982 MANDEVILLE, Semard (1714), La fable des abeilios. Pars, Libraie J.Vrin, 2010 STIEGLER, Berard (2008). La télécratio contre la démocratio. Paris, Flamarion, 2008. ‘Autor: Fernando Hartmann * Fernando Hartmann é psicanalista - APPOA. (1) Tradugao nossa do texto publicado em francés. Sobre o espirito daquele tempo Luciana Portella Kohlrausch Na onda de um olhar sobre 0 espirito do nosso tempo - que 6 0 centro de nossos estudos dese ano na APPOA - proponho que nos debrucemos, para abritmos os trabaihos dese final de semana, sobre o espifito daquele tempo, daquele tempo em que foi produzido fo texto em discussao: “Psicologia das massas e analise do eu’. De um tempo que esta centenariando — com a licenga do neolagismo = mas nos provoca estranhamentos bem familiares. Para trabalhar 0 contexto no qual Freud o pensou eo escreveu, eu escolhi tés frentes de ocorréncias que fazem relagao com ele & que podem ajudar nas discussdes ao longo do nosso evento. Primeiro, um texto do Adomo e sua relagao com o terma civiizacao. ‘Segundo, uma utllizagao das ideias freudianas para o mundo da propaganda, feta por seu sobrinho Edward Bernays. E, por iitimo, uma obra de arteperformance de Flavio de Carvalho chamada Experiéncia n° 2 Na organizago do cartel para o presente evento, eu me encarreguei de retomar algo da histéria da construgdo desse texto para tenriquecer as discussdes. Eu me propus a essa tarefa de contextualizar’Psicologia das massas ¢ analise do eu nao por acaso — por Sbvio. Quando da minha (reeitura e das discussdes do cartel, me ocorreram associagées diversas e, entre elas, aparecia com requéncia, na minha meméria, um texto do Adorno. Esse texto se chama "Sobre a pergunta: o que é alemao?”. Um paragrafo, mais especificamente, se fazia presente na lemibranca e quero dividir com vocés. © paragrato diz - sobre o povo aleméo: ‘Se, de fato, longos periodos que se prolongaram para além da época burguesa, as malhas da rede civilizatéria - do ~aburguesamento ~ nao estiveram to firmemente tecidas quanto nos paises ocidentais, entéo, manteve-se intocada uma reserva de forgas em estado natural. Com isso, gerou-se tanto 0 firme radicalisme do espirito quanto a permanente possibilidade de recaida. Por isso, nem Hiller pode ser considerado como destino do cardter nacional alemao, nem foi por ‘acaso que ele se impos na Alemanha. Sé6 que, sem a seriedade alema, emanada do patos do Absoluto © sem a qual o melhor no existiria, sem ela jd teria sido impossivel que Hitler medrasse. Nos paises ocidentais, onde as regras da sociedade de massas esto mais profundamente inculcadas, ele teria caido em ridiculo. (ADORNO, 1995, p. 129). hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimirledicao=288 ane oart12022 12:24 Correia APPOA Esse texto foi escrito apés @ segunda guerra, no momento em que Adorno volta para a Alemanha e esté discutindo sobre o ser alemao e suas producGes, tanto artisticas como produgdes de barbarie - bem como o holocausto -,inferindo uma similaridade entre grandes produgées alemas relativas a misica ou flosofia, por exemplo, e a0 que Hiller faz na segunda guerra mundial. Em um ponto do texto, ele termina por reduzir a pergunta sobre o alemao, para uma pergunta sobre si mesmo — por que ele teria voltado & ‘Alemanha depois desses anos e depois de tudo de terrivel que tinha acontecido em sua terra? Para formular algo nesse sentido ele conta sobre um editor, também imigrado europeu, que queria publicar em inglés um texto seu € pediu-Ihe um esbogo de traducao. Quando o leu, no entanto, 0 editor o achou “badly organized’. Juntamente com esse episodio, ele ressalta outro em que ocorre algo parecido: uma conferéncia sua que seria publicada, chegou até suas maos quase irreconhecivel 6, quando perguntou a editorago sobre isso, obteve como resposta a explicagao de que a revista devia sua reputagao aquele editing, pelo qual passavam todos 0s textos, que eles iam no caminho de uma unifermizagao e que ainda era tempo de ele desist da publicagao, Ao que conclui dizendo que na Alemanha, apesar de todo mal, esses enquadramentos nao ocorrem. ‘Adorno, nesse texto, esté defendendo um mercantiismo nao to desenvolvido do povo alemao, Ele inclusive se refere a uma maxima ‘wagneriana: "ser alemao significa fazer uma coisa por causa dela mesma’. Ou seja, apontando um contraste entre o que é guiado pelo mercado, @ de outro lado uma liberdade de criagdo sem padronizagées. Tal comparaedo, evidentemente, me faz questo sobre essa padronizacdo e sobre essa massa que Adomo aponta nas produgdes. cientifcas. Mas, mais que isso, no contexto da releitura de Freud a maxima wagneriana sob a ética de Adomo me instiga a pensar na tlizagao do concelto de civilizatério, Especificamente tratando-se de uma referéncia a um afrouxamento das malhas da rede civilizatéria Civilizatétio, no texto de Adorno, esté relacionado a aburguesamento, sendo que & sabido que séo decorrentes dai os conceitos de burgo e cidade. O terme civilizatério aparece, entao, como uma referéncia as rgras de uma sociedade de massas. Civilizar seria ‘como educar, aculturar? O conceito de clvllzago 6 um conceito mals amplo e complexo e néo cabe aqui entrar nessa questo, Assim, 0 que me interessa acentuar tem a ver com o que o autor propde como contraste a esse enlacamento civilizatério, ou seja, as forgas em estado natural. E me interessa pela similaridade com questées da psicandlise. Me parece uma ideia bem freudiana Inclusive, posso me reportar aos anos precedentes ao "Psicologia das massas e andlise do eu, anos em que ocorreu a primeira guerra mundial. Seis meses apés eclodir essa Grande Guerra, Freud escreve "Consideracées aluais sobre a guerra e a morte” (1918), texto que fala da desilusao deixada pela guerra. E essa desilusao tem a ver com ele ter acreditado no poder do cardter civilizatério contra o terror da guerra. O psicanalista acreditava que os povos europeus, dotados da graca civilizatéria, poderiam até produzir uma guerra, porém nao com um poder de destruigao tao grande e com to baixos valores éticos. No texto citado, também apresenta a ideia de coergo extema como o que faria contengéo aos impulsos pulsionais — que relaciono aqui com as forgas em estado natural. Essa coergéo extema seria a pressao feta por veiculos, tais como a educagao e a cultura, que teriam o poder de transformages na vida pulsional do sujeto. Esses veiculos seriam aquilo que garante um proceso civilizatério adequado? Por falar na primeira guerra, 6 na sequéncia desta que Freud escreve o texto sobre as massas, o 6 de suma Importancia entender que ela traz ao psicanalista efeitos muito significativos. Bem sabemos o quanto a vida e o “espirito" de Freud foram atingidos por ela, j& que seus filhos e genro foram para o front, assim como muitos pacientes e colegas. Freud viveu, durante esse periodo, um tempo de menos trabalho clinico, e consequentemente, menos dinheiro. Roudinesco (2016) lembra que foi nessa época que Freud vivenciou uma reforma no seu sistema de pensamento. Ele ndo tinha como {ugir de ser atingido pela guerra, seus sonhos e fantasias se transformavam: ele sonhava com a morta dos filhos © dos discipuls, ‘com o fim do movimento psicanalitco, com ferimentos, com campo de batalha e cadéveres. Vivia entéo obcecado com a ideia de que a poténcia mortfera das pulses inconscientes ameacava as formas mais elevadas da civilizagao humana” (ROUDINESCO, 2016.p. 206). Obviamente que, além de Freud, toda a Europa vivenciou momentos difcels, pois as perdas deixadas pela guerra abrangeram diversos Ambitos. Contudo, apesar das dificuldades sofridas pela Europa e por Freud, em sua vida, a psicandlise é colocada em outro patamar frente & medicina apés a guerra. Em 1919, no texto “Introdugdo a psicanalise das neuroses de guerra’, Fraud esta falando que 0 episédio da guerra influiu na difusao da psicandlise, pois a psicandlise era uma exigéncia do servigo militar, entéo muitos médicos acabaram se aproximando dela por isso. Em relagdo ao texto "Psicologia das massas e andlise do eu , Roudinesco aponta: Fazia muito tompo que Freud pretendia amplar sua andliso das sociedados humanas, ndo como fizera om Totem e Tabu, mas om o designio mais poltico de descrever 0 caminho que leva da coletividade ao individuo, Face aos defensores da psiologia Social em plena expanséo, queria construir uma metapsicologia das relagdes ene o ue as massas, (ROUDINESCO, 2016, ». 262) Entio, se o cenério em que Freud esoreveu esse texto faz referancia a esses “anos mortiferos”, também devemos considerar 0 que se segue na Europa e no mundo, ainda como influéncia no texto, mas também para pensarmos as repercussées desse livro freudiano no mundo, (0s anos 20 foram anos marcados pela recuperagao econémica e varias formas de revolugao, como nos diz Roudinesco (2016), revolugéo artista, literéia, sexual e musical. Qs anos loucos jé soavam como um respiro, um gto de euforia, de celebragdo a vida, traziam mulheres menos vastidas, mais lives. & interessante acompanhar com a biégrafa, um pés guerra em que as mulheres, erlutadas, precisaram sair de casa para ger as fabricas em fungdo da grande morte de homens. A isso se seguiu uma libertagao do lado das mulheres, onde elas passaram a votar, fur, etc Roudinesco (2016) lembra que o cinema procurava levar as massas uma representagao inédita da realidade. Aponta ainda que, com ‘o.avango do socialismo, do feminismo e da psicandlise, era possivel crer que a hierarquia entre classes e sexos estava fadada a um {fim préximo, poisa familia se transformava, os divércios eram mais frequentes e a taxa de natalidade diminula, hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimirledicao=288 s0n6. oart12022 12:24 Correia APPOA Além dessa narrativa dos anos loucos, um fato que me pareceu bem interessante de compartlhar é a relagao desse livro de Freud ‘com o lagado de seu sobrinho na América, Edward Bemays, sobrinho americano de Freud - que detinha o direito das suas obras nos, EUA - utlizou-se das teorias do to, inclusive a das massas, para desenvolver uma série de propagandas de cigarro volladas para as mulheres, Froud decerto no esperava pela improvavel utlizagéio que seu sobrinho americano Edward Bemays, vriaa fazer néo sé de ‘sua psicologia das massas, como também de seu tabagismo. Criador de um novo método na formacao da opinido das massas, este, com efeito, em 1920, baseou-se na conceitualidade freudiana para desenvolver uma bombéstica campanha publicitria a favor da industria do fumo, em especial dos cigarros Lucky Strike, destinada as mulheres. Antenado com a politica de emancipagao dos movimentos feministas, realizou filmes publicitérios destinados a provar que, da mesma forma {que os homens, as mulheres tinham o direito de fumar e que para elas o cigarro consumido em piblico era o equivalente, qual um archote da liberdade, a um alegre pénis que elas podiam ostentar sem qualquer repressao a fim de se libertar da dominagao masculina. (Roudinesco, 2016, p. 265) A teoria de que 0s membros de uma massa so ligados por contagio foi utilizada por ele, que levou em conta o conceito de sugestao fem relago a um lider e de contagio em relagao aos membros de uma massa. Ele considera o pilblico consumidor como uma massa az, a partir disso, produzirem-se identificagSes, por exemplo, fazendo da imagem da mulher que fuma um icone de liberdade e forca. Para isso, ele produziu cenas. Durante um desfile de comemoraeao da Pascoa em Nova lorque ele forjou mulheres fumando em ppablico e fotégrafos para registrar a cena. Lembrando que, até entéo, as mulheres ndo podiam ou nao deviam fumar em public. importante ressaltar a importancia que Bornays teve na érea da propaganda. Ele é considerado 0 pai das Relagdes Publicas © 6 conhecido porter inserido a nogéo de desejo para além da necessidade. Para mim, fica a quesiao relativa ao uso da sugestio para a produgéo de identicagdes em massa, bem como a associagao da ideia civilzatria de Adorno em suas diferentes concepgdes, seja do povo estadunidense, seja do pov alemao, aos reflexos que isso causa na nossa atual concepgao de massa e civilzagao no contexto brasileiro. Questo essa que deixo em aberto, sendo apenas parte das elaboragdes que fago a partir dos estudos desse Cartel Por fm, minha iitima indagagao, dz respeito & repercussao dessa obra de Freud aqui no Brasil aquele tempo. Tirado do texto do colega Edson Sousa, no prefaco da edicao da L8&pm do Psicologia das Massas, relemiro a obra do arquiteto(@ artista @ antrop6logo etc.) Flavio de Carvalno.O arquiteto, ap6s ler o texto de Freud sobre a psicologia das massa, no ana de 1931 atravessa no Contrauxo uma procissao de Corpus Christi em S40 Paulo, vestindo um chapéu, um boné verde de faltro. Ele relata essa experiéncia num lvro que foi publicado aproximadamente dois meses depois, © que chama de “Experiéncia nimero 2” © esctto comega ameno ¢ postco: Era dia de Corpus Christi; um sol agradavel banhava a cidade, havia um ar festivo por toda parte; mulheres, homens e eriangas moviam cores berrantes..”e termina no fom que s6 o medo consegue obter com a sua presenca, AApresenga do atista no contrafluxo causa alvorago @ desordem, pois ao caminhar, em sentindo contrrio ao da procissdo, usando chapéu verde de felto, & hosilizado, A idela de enfrentar uma massa, de sentir de perto 0 calor de sua raiva, &levada bem longe pelo artista, pois 0s gritos de “tra o chapéu’, "lincha, linha" s2o gritos que ecoam na massa e fazem o arista sair em fuga. Seria, assim, 0 contrafluxo de Flavio de Carvalho o que nos dé indicios de uma maneira de lidar com as totalidades que uma massa representa? Referéncias bibliograficas Adorno, T. Porque 0 alemao? (In: Palavras e sinais: modelos tedricos 2. Petrépolis, RJ: Vozes, 1995. Carvalho, Flavio. Experiéncia n® 2: realizada sobre uma procissdo de Corpus Christ: uma possivel teoria e uma experiéncia (1931). Rio de Janeiro: Nau, 2001 Freud, S. Consideracdes atuais sobre a guerra e a morte (1915). In: Inrodugdo ao narcisismo: ensalos de metapsicologia e outros textos. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2070 Freud, S.Introdugdo a psicanalise das neuroses de querra(1919). In: Histéria de uma neurose infantil: Além do principio do prazer e ‘outros textos. S40 Paulo: Companhia das letras, 2010, Freud, S Psicologia das massas e andlise doeu(1921). In: Psicologia das massas @ anlise do eu e outros textos, Sao Paulo: Companhia das Letras, 2011 Roudinesco, E. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2016. ‘Autor: Luciana Portella Kohlrausch Luciana Portella Kohlrausch é psicanalista - APPOA. Adi isdo do eu da psicologia de massas Luis Fernando Lofrano de Oliveira hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimifedicao=288 116 oart12022 12:24 Correia APPOA © eu esta presente desde cedo nos escrites de Freud. Por certo, como aconteceu com tantos outros, esse termo tera sido tomado de ‘empréstimo da observagao acurada dos psiquiatras de sua época. Constiuu-se, até 1921, numa referéncia um tanto informal 6 recorrente em sua obra. A partir desse ano, diremos nés, 0 eu ganha estatuto de conceito na obra do criador da psicandlise. A essas alturas, este conceito nasceu velho, Velho desconhecido, apesar do seu uso recorrente em psicanalise, Seu potencial de ‘operador folsnos apresentado em 1921, com a concepgao de uma psicologia decorrente da estrutura libidinal de massa, Sua formatacao conceitual como instancia psiquica apareceu dois anos mais tarde, em O eu @ 0 isso (1923), arelada a do isso @ do sobre-eul. O entéo chamado eu insta 05 outros afetados pela restricao comum das possiblidades de representacdo da pulsao na ‘© nome de batismo escolhido para essa instancia psiquica oriunda das massas nomeia, também e tao bem, o pronome da primeira pessoa na conjugagao dos verbos. Denomina o componente de massas, que reage ao surgimento da pulsao através de uma modalizagao pessoal do exercicio da lingua adotada na interagao de cada um (Einzeine) com 0s outros. Ao refert-se ao eu como um na massa, Freud distancie-se da nogdo sociolégica de individuo, Um eu de toda lingua, com 0 qual se tratara, em caso de identificagao, de concordar em género e niimero. Esse eu que marca em Freud a entrada de um na lingua ja nasce dividide. Embora tenha recebido o mesmo nome do pronome da primeira pessoa, ele sera referido em terceira. Ele sera chamado de “o eu”, por mais estranho que apareca. O eu em terceira pessoa constrange a lingua. Vide o corretor automato do Word, que nao o deixa passar desapercebido; com toda razo, pois qualquer automatismo sera estrangeiro a esse eu da psicologia de massas. [sto nao deixa de estar contemplado na observagao feita por Freud, de que os americanos nunca iriam entendé-lo. De fato, a massa das Iinguas que no tém a mesma particula no pronome da primeira pessoa verbal e na tradugdo de das /ch ndo tem acesso material & concepgao do eu de Freud © eu nasce, em psicologia de massas, dividido. Apenas em 1920, o conceito de pulsdo ganhara seus alicerces defintvos. Trata-se da excitacdo psiquica de alleridade, a caro custo tramitével. A pulsdo que causa o eu permanecerd nele sob estado de afeto caso ele do a tramite, ou seja, ndo encontre para ela um destino de Vorstellung (termo normalmente traduzido por representagdo). O eu tomas 8, com isso, uma espécie de central de reagao ao surgimento da pulsdo no psiquismo. Se 0 processo de Vorstellung da pulsdo for considerado agao de order psiquica, o agente em questao terd sido 0 eu. ‘A.agao de ordem psiquica prépria do eu - de vorstellen a pulséo - consiste no investimento libidinal de tragos que, uma vez investidos, terdo sido da percepeao. Chama-se libido a energia sexual do eu suposta a partir da dessexuagao caracteristica da erotizagao constituinte das formagSes de imagem no psiquismo. Da natureza de eros vem o carter unitério do eu e a sua aptidéo a constitu, através da Vorstellung, unidades articulaveis de representagao da pulso, Geram-se assim as possibiidades da formagao de sentido légico no psiquismo, as quais precisamos chamar de psicoldgicas, Pensamos seguir Freud no que ele chama de psicologia, A criago de uma légica no psiquismo teré que ser resultante da implementagao de uma erdtica, ou seja, de uma dessexuagao operada pelo eu. As unidades assim constituidas pelo eu podem articular-se de modo sistematico, Reservamos, por isso, a denominaco de psicologia para a sistematizagao da articulagao dos elementos de ordem psiquica chamados de representagées. A unidade desses elementos de contengao da pulsao constitul-se por dessexuagao - eras - e destitu-se por sexuagdo - thanatos, Nesse sentido, a dita pulsdo de vida refere-se a possibiidade de representar a pulsdo e a famosa pulsdo de morte seria o nome da pulso ndo-representada. A ndo-representada é a que vai constranger 0 eu a dar lugar 4 repetigao, ou seja, relangar 0 processo de representagao destinado, até entao, a fracassar no seu propésito, O lugar da repetigdo serd o estdgio de divisio no eu, como nas diz Freud no capitulo XI de Psicologia de massas e andlise do eu. ‘Além do caréter untario do eu, lembramos aqui também sua vocagao narcisica. Sua aptidao a sistematizagses légicas resulta de uma colocagao da libido chamada por Freud de narcisismo. Essa colocagao da libido do eu favorece a constituigao das formages de imagem unitérias préprias para se destacarem, como figura, de um fundo perdido na percepgaio. Como sabemos desde Freud, para ‘igurar 0 narcisismo 6 preciso acrescentar ao autoerotismo, uma acao psiquica nova. Em outros termas, a vocagao narcisica do eu reserva-he, além da formacao de unidade, também o destino de atrelar erdticas heterogéneas; ou sele, atrelar modalidades Separadas de sistematizagao lagica designaveis com 0 sufxo “ismo” na tramitagdo da excitagao psiquica de alteridade. A sistematizagao do autoerotismo leva satisfacao - suspenso do estimulo interno - mediante a dispensa dos outros. Ela cria assim (8 outros, no entanto excluidos dessa modalidade de tramitagao da pulsao. Tal obtengao de satisfagao corresponderia & contracéo de uma espécie de ponto morto carpéreo de gozo com potancial de estatuir 0 Zero, ou seja, uma possibilidade de substituigao para cada um, Se 2 aparigao de uma ideia fosse um componente essencial dessa vivéncia de salisfago, a imagem de recordacao dessa ideia ficaria, dat em diante, associada ao rastro de meméria da excitago do estimulo intemo; como uma ideia origindria, ela daria lugar ao ideal de eu, sou estatuto de substituto ¢ seu potencial de constitur-se como pré-imagem ( Vorbild,termo normalmente traduzido por *modelo’) A sistematizagao l6gica do eu separada desta mencionada acima ver com a aco psiquica nova que pode, acrescentada a ela, ‘igurar 0 narcisismo. Desta modalidade de sistematizagao, o8 outros fazem parte como condigdo do estar ai (como Darstellbarkeit, termo caro a Freud desde a psicologia dos processos de sonho). Trata-se de uma psicologia de massas, ou seja, de uma logica do psiquico que s6 pode ter lugar a partir da entrada do ou numa lingua. O ou se enconirard, entao, constrangido a adogao da sintaxe que rege as possibilidades de formulacdo discursiva nessa lingua comum a cada um de uma massa, Essa sistematizagao com os outros de uma comunidade da lingua favorece a satisfagdo através da intuigdo - imagem refletida no espelho - de figuras em pontos de encontro ideal entre investimentos e erdticas heterogéneos. Trata-se de pontos tao virtuais como os de orientagao que podem ser situados em quaisquer coordenadas cartesianas. Nisso, 0 advento do eu na concepgao da psicologia de massas segue-se a Descartes. hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimifedicao=288 sane oart12022 12:24 Correia APPOA © eu da lingua nasce dividido, Ele tem, desde o inicio, um pé na terceira pessoa da conjugago verbal e outro na primeira. Nem em sonho ele conseguiria unficar-se, jé que estara uma vez concebido em terceira pessoa e outra vez a conceber de primeira. Entre as linhas de erotizagao heterogéneas ou entre as suas préprias peas, o eu porta 0 novo palco da repetigao num suposto estagio a0 qual se reconduz a estrutura libidinal de massa. Esta estrutura de conjunto aberto dos afetados pela ndo-representacao em comum da pulsdio supée a diferenciagdo do eu do ideal de eu, decorrente de sistemas separados na tramitacdo da pulso, Em vo, o eu dividido da repeticao vera novamente relancados, nesse estagio, propésitos diversos de representacao da pulsdo. Autor: Lu's Femando Lofrane de Oliveira * Luls Femando Lofrano de Oliveira ~ Psicanalista APPOA Sobre identificagao e mimesis: Freud com Benjai Manuela Sampaio de Mattos Esta escrita se situa em um lugar de abertura, onde o que esté sendo buscado diz respeito a um prosseguimento de trabalho de algumas questées levantadas nos encontros do Relendo Freud, na APPOA. Considerando a atual conjuntura poltico-social brasileira, a releitura de Psicologia das massas e andiise do eu nos convocou, durante os encontros, a perfazermos uma série de tentativas de apreciagdes analticas e interpretativas do momento em que nos encontramos. Para langar a questo que quero trabalhar nesta escrita, tomo como pressuposto a proposi¢ao de acordo com a qual a massa no Brasil ndo elegeu um Ider, mas uma espécie de personagem de uma pantomima. Lembremos que a pantomima se trata de uma pega teatral que se concentra nos gestos, na mimica, nas alitudes © expressdes faciais, fazendo o menor uso possivel da palavra. Diante disso, lembremos também 0 que fora dito repetidamente nos encontros, por Ana Costa: vivemos um pathos da palavra. Esta 6 uma constatago que vem sendo reiteradamente repetida também nos mais variados circulos académicos. Quero seguir neste caminho que questiona o adoecimento da palavra. Para tanto, eu gostaria de propor que foquemos na abertura de uma questéo apresentada por Freud em Psicologia das massas andiise do eu, par ocasiao de uma nota de rodapé feita no texto, logo ao final do capitulo sobre a identficagao, De sua questdo, fago também a nossa neste momento de releitura, Nesta nota de ‘ndmero 33, que aparece como algo que decanta do texto principal e de sua detalhada explanagao sobre as identificagdes, Freud (2011 [1924}) diz 0 seguinte: Bem sabemos que com tais exemplos retirados da patologia no esgotamos a natureza da identificagao, @ assim deixamos intocada, uma parte do enigma da formago das massas. Uma analise psicolégica bem mais profunda e abrangente se faria necesséria neste pponto. Ha um caminho que da identifcacdo, através da imitagdo, leva a empatia, isto 6, & compreenso do mecanismo pelo qual se torna passivel, para nés, tomar uma posi¢o ante uma outra vida psiquica, Também hé muito a ser explicado quanto as rmanifestagdes de uma identificagao existente. Uma consequéncia desta, entre outras, esta em que o individuo limita a agressividade frente & pessoa com a qual se identificou, poupa esta e Ine dé ajuda. O estudo de identificagées assim, como as que alicergam a comunidade do cla, por exemplo, lovou Robertson Smith @ surpreendente descoberta de que [ossas identificagdes] se basciam no reconhecimento de uma substdncia comum (Kinshipandmarriage, 1885), e por isso podem ser criadas também por uma refeigéo realizada em comum. Este elemento permite ligar tal identificagao & histéria primeva da familia humana, como eu a construi em Totem @ tabu (p. 68-68). ‘Vamos, onto, que Freud deixa em aberto 0 terreno da identifcagdo, assumindo que uma parte do enigma em relagao a formagao das massa fica intocada, Ele aponta para a necessidade de aprofundamento deste tema, ¢ em seguida assinala que ha um carinho desde a identiicagdo que, por meio da imitagao, leva a empatia. Este caminho que pressupde a imitapdo, levaria a compreensao do rmecanismo operante na tomada de posigao de um sujet perante uma outra vida psiquica Haveria, também, muito a ser analisado quanto &s manifestagdes de uma identificagao deste tipo. Como consequéncia possivel desta identificagao, cita 0 exemplo da limitagao da agressividade pelo incividuo diante de quem ele se identifcou, transformando-a em ajuda, Esta seria como que uma expresséo, ou manifestagao, de uma forma de identficagdo que compée um comum que alicerga 0 la. Tal forma de identificacao std inicalmente bascada na pesquisa de Robertson Smith, e leva Froud ao ponto de subscrever que este modo de identificagao pode ser criado, por exemplo, por uma refeigSo realizada em comum, E a parti daf que Freud se remete 0 seu Totem e Tabu, sustentando que tal forma de identiicagao pode ser igada histéria primeva da familia humana, conforme construiu nesta obra, Sabemos que o mito freudiano narra que fei no banquet totémico, isto &, em uma refeigao, que o pai da horda primeva fora devorado por seus filhos e, ao devoré-o, estes se identficam com ele para adquirirem a sua forca. A partir disso, @ diante do compartihado sentimento de culpa (0 amor que retorna apés o édio ter tomado a cena), se instala um proceso que institul a proibicdo do assassinato e do incesto, Este seria, portanto, um tipo de identiicagao criada por um sentimento em comum (culpa), ue alicerca a horda primeva ao constituir uma ordem simbélica. hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimifedicao=288 136 oart12022 12:24 Correia APPOA Em Psicologia das massas e andlise do eu, Freud (2011 [1921 sustenta que as irésfontes identiicatsrias ali expostas levarn aos seguintes entendimentos: a identiicagao 6 “a mais primordial forma de ligagao afetiva a um objeto” (p. 64); ola pode se tomar, por via regressiva (regressivemWege), 0 substitulo para uma ligagao objtallibidinosa através da introjecao objetal no Eu e, ainda, pode ocorrer a partir de qualquer nova percepedo de algo em comum com alguém que nao seja de fato o objeto dos instintos sexuais.A respeito dessa itima fonte de identificagéo, destaca que “quanto mais signficativo este algo em comum, mais bem-sucedida deveré ser essa identificagdo parcial, correspondendo assim ao inicio de uma nova ligagao" (p. 65). Tal constatagao 6 muito importante, pois 6 a pari desta ditima fonte que Freud vai conjecturando que aqullo que faz ligagao entre os individuos na massa é da ordem de ‘algo afetvo importante em comum”, e acrescenta que possivelmente “esse algo em comum esteja no tipo de ligago com o lider” (p. 65). Entretanto, como ele mesmo admite, isso nao 6 suficiente para o entendimento das identiicagBes que originam a ligagao entre os individuos na massa. Na sequéncia dessas primeiras suposigées, Freud suspeita (e antes da nota 33) que, naquele momento, estaria muito longe de ter esgotado as questdes que envolvem a identiicagao, pois quando tocamos neste toma estariamos diante do proceso que a psicologia nomela como “empatia’ fendmeno crucial para a “compreenséo daquiloaue em outras pessoas é alhelo ao ‘nosso Eu"(p. 68), € isso nao constituiu objeto de scu estudo naquele momento, Diante desse comentario de Freud, podemos afirmar ue, para a construgo de uma resposta para sua interrogagao, no que diz respeito aquilo que faz conexao entre os individuos da massa, a investigagao psicanallica deveria, em algum momento, passar pelo fendmeno da empatia. Conforme ele acrescenta na nota 3, a empalia ocorreria através da jmitacdo, processo também chamado na biologia e na filosofia como mimesis. Ela 6 também uma das formas privilegiadas da pantomima Em Totem e Tabu, a0 falar sobre animismo, magia e onipoténcia dos pensamentos, Freud (2012 {1913]}sustenta que os pensamentos ‘magicos que permeiam 0 animismo funcionam pelos principios de semelhanca (Imitagao) e contiguidade, e que "sao a parte mais primitiva @ importante da técnica animista’(p.126), pois a magia serve aos propésites mais diversos, come por exemplo ao de ‘submeter os eventos naturals a vontade do homem, defender a pessoa dos perigos e dos inimigas e dar-he o poder de prejudicar ‘seus inimigos” (p.126), seguindo o principio de “tomar erradamente um vinculo ideal por um real” (p. 126). E assim que, baseado em Frazer, Freud aponta que, pela via da imitago, se fazem atos magicos como a danga da chuva para que venna a chuva, ou a oferenda de um espetdculo contendo a consumagao do ato sexual para assegurar a ferilidade do sol. Em taisatos mégicos, “a distancia ndo tem nenhum efeto, a telepatia 6 tida como dbvia” (FREUD, 2012 p. 130), 0 ue permite assumir que aquilo que é considerado eficaz nesses atos diz respeito& "semelhanga entre o alo realizado e o evento esperado"(p. 130), Decorronte destes atos magicas imitativos, s20 os atos magioos que so do por contiguidade ou por contagio. E 0 caso, par exemplo, do canibalismo dos primitvos, que tem como crenga 0 fato de que, ao se consumir partes do corpo de outra pessoa, se adquire também suas caracteristcas; ou, também, o caso de se guardar um objeto que causou um ferimenio da forma mais higienizada possivel, para que nao ocorra a infeccao e a irflamagao. E também 0 caso de se nul uma erenca no sentindo de que, para que um inimigo se prejudique, uiize-se um objeto seu (como uma roupa, um fio de cabelo) para que nele, no objeto, possa ser Fealzado um ato hostl ue reperoutia de forma prejudicial para a prépria pessoa. Na magia contagiosa, o que é eficaz 6a relagao de nexo com o espago. Esses alos magicos permitem Freud a explanar o predominio da associacao de ideias nos alos magicos, que culminam em pensamentos onipotentes. A partir dal, Freud conclul que o principio que rege a magia, esta técnica do pensar animista, 6.0 da onipoténcia dos pensamentos, Colocado isso, quero retomar & nota de rodapé que fala da imitagao como um dos caminhos tomados pela identificago que ocorre na massa. A imitagao poderia levar a empatia, a uma tomada de posi¢ao diante de uma outra vida psiquica. Uma tomada de posigao, ‘aqui, parece nao sugerir que se trate de uma posigao de lago com o discurso. Esta pode ser uma posigao que inclusive remonta a ma fase pré-discursiva, onde o que mais importa diz respeito as imitagdes possiveis de negacao da castracéo, as capacidades rmiméticas que ao cabo levam & aniquilagao do lago social, Para seguir neste tema da imitagao, gostaria de levar em conta algumas proposi¢des de Walter Benjamin sobre a capacidade mimética De acordo com Benjamin (1970), 0 que hoje observamos @ partir de uma relagio de semelhanga sensivel, representa um resto, um fraco residuo da violenta compulsdo a mimesis a que estava sujeita a humanidade, isto 6, a uma capacidade mimética extrassensivel, ligada a um significado flogenético que instiga 0 agir conforme a lei da identidade. As possibildades de agir conforme @ capacidade rmimética restam comprometidas a partir do desenvolvimento da técnica e da experiéncia cientfca modema ou, so quisermos ira fundo na proposigao benjaminiana, devido ao curso do mito do progresso que 6, na verdade, 0 curso e a propagagao da catastofe Segundo ele, na contemporaneidade podemos perceber a compulsao & mimesis apenas a partir de uma fantasmagorialinguistica Conforme explica Jeanne Marie Gagnebin (2006), a tese principal de Benjamin “6 que a capacidade mimética humana nao desapareceu em proveito de uma maneira de pensar abstrata e racional, mas Se refugiou e se cancentrou na linguagem e na escrta’ {p- 96) E claro quo a concepcao de linguagem de Benjamin édistinta da psicanalitca,principalmente depots de Lacan. Eniretanto, ha ‘muitos pontos convergentes entre as teorias. Para Benjamin, este refigio da mimesis na linguagem se abre para uma compreenséo dialética do fenémeno. O que ele busca, com 08 sous textos sobre a capacidade mimética, é a letura do que nunca fora escrito, isto 6, uma leitura das visceras, das estrelas, das ddangas; e depois das runas, dos hieréglifos ¢ assim por diante, Pois nessas tases, a capacidade mimética humana efetuou sua tentrada oculta na linuagem. A linguagem, portanto, configura “a etapa suproma do comportamento mimético © o mais perfeito arquivo de similtudes imateriais: um ambiente ao qual emigraram, sem residuos, as mais antigas forcas de produgdo e recep¢o rmiméticas, até liquidar as forgas magicas” (BENJAMIN, 1970 p. 51). Vemos, entéo, que na tese benjaminiana da linguagem, 8 mimesis esta presente como uma espécie de caminho por onde a linguagem se configura, ¢ 0 ato de leitura deste fendmeno, da leitura disso que ndo esta totalmente aparente na linguagem, liquidaria as focas magicas da mimesis, forcas que reforcam as foreas miticas e arcafstas. Este 6 um dos polos dialéticos de seu pensamento, ou seja, o polo em que a linuagem se liberta das forcas magicas e miticas. hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimirledicao=288 sane. oart12022 12:24 Correia APPOA Para compreendermos 0 outro polo, este que néo estaria live das forgas mAgicas do pensamento, podemos nos remeter ao que ‘Adorno e Horkheimer trabalharam na Dialética do Esclarecimento: a perda da capacidade mimética da humanidade teria sido um produto do recalque deste tipo de pensamento mitico-magico. Pois, conforme explica Gagnebin (2005), o comportamento mimético ‘ameaca profundamente o sujeito que, 20 querer se resguardar, arisca 0 seu desaparecimento, a sua morte na assimilagao a0 outro’ (p. 86), A partir do exemplo de Ulisses, de Homero, Adomo e Horkheimer referem que o prego a ser pago por este ato de recalcamento é muito alto, @ poderia ser entendido a parti da ideia de uma “transformacao da mimesis originéria, prazerosa © ameagadora ao mesmo tempo, numa mimesis perversa que reproduz, na insensibilidade e no enrijecimento do sujelto, a dureza do processo pelo qual teve que passar para se adaptar ao mundo” (p. 87), sendo esta como que uma segunda mimesis. Ainda de acordo ‘com Gagnebin, a articulagao perversa da segunda mimesis com uma mimesis primeira ¢ polimorfa ‘volta com toda sua violencia Secreta nos fendmenos de identificagao e de repulsao de massa (p. 88)" e “o medo individual da regressdo ao amorfo engendraria uma regressao coletiva totalitaria, cuja expressao mais totalitaria 6 0 fascismo” (p. 91) Feitas tais consideragSes, eu gostaria de retomar 0 nasso contexto sécio-politico para ir um pouco adiante pensando sobre as Identificagées que perfazem a unido dessa massa que temos diante de nds. A massa que “rebanhou" os Colsos ao poder parece ‘ansiosa para participar do banquete que esta se montando, desesperada para tomar parte no lugar da excegdo: lugar de negagao da ccastragao e da lei simbdlica, lugar da Verleugnung, sem perceber que 6 o prato principal a ser devorado.O que parece dar unido a esta massa é algo da ordem do édia a le, 6dio ao que forma lago com 0 todo social ~ 0 que a massa busca, pois, é a identificardo Ultima aos lugares imaginarios de excegao. A familia que agora se encontra no poder faz pantomima deste sentimento de édio, suspende as proibigSes do assassinato e do incesto, levando-nos a participar disso muitas vezes como mefos espectadores incrédulas da autorizagao da barbario, Mas eles creem: podem matar! Temas uma famila incestuosa no poder! Eno, quem mandou assassinar Marielle Franco? — E certo que, quando Benjamin diz que o estado de excegao & a regra, na oitava tese sobre o conceito de historia, é por perceber que, na verdade, a excegao tomnou-se 0 fundamento mistico da autoridade, da prépra lei, 0 centro vazio a respeito do qual a decisio soberana 6 tomada. Pader de vida e de morte sobre outrem. Mas a excec8o nao fol inventada no Brasil ‘apés 0 golpe de 2016 ou nas presentes denegagées da democracia, ¢ sim se constituiu como a regra histérica que regeu abstratamente a suspensdo das leis aparentemente vigentes, tomando-se ela mesma a regra na ponta da baioneta e, agora, do alto dos helicépteros. Com Freud e com Benjamin, autorizo-me a dizer que estamos revivendo um momento arcaico da linuagem, onde (08 atos miméticas-magicos se langam como restos, tensionando, desafiando a capacidade simbélica da linguagem. Em movimentos. histéricos da magnitude que estamos vivemos, sabemos que o primeiro ataque & contra a palavra em seu sentido simbdlico, pelo seu ‘esvaziamento. Vemos agora o investimento massive na comunicago por gestos que mimet'zam armas, por balbucios que gritam mito, por memes que reificam imagens capazes de reduzir a experiéncia linguistica ao signo, ao imediatismo, ou seja, & auséncia de mediagdo. Trata-se de um movimento que transita da identificagao pela mimetizagaio a memetizagao da experiéncia, Como psicanalistas, precisaremos ficar atentos aos restos desta fantasmagoria linguistica que esta se produzindo. Algo préprio do ‘movimento identificatério humano esta figurado nesta linguagem mimética, memética e imediata, e que no momento se reproduz pela via incessante da repeti¢go. O continuum desta engrenagem precisa ser quebrado, interrompido, entrecortado. Nao podemos ficar paralisados diante desta imagem e da magia dos pensamentos enipotentes elevados ao poder. Portanto, trata-se agora de provocar 0 deslizamento do sentido do pathos da palavra como doenga, para a o pathos como paixéo a palavra, Referéncias bibliograficas: ‘ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido de Almeida, Rio de Janeiro: Zahar, 2006. BENJAMIN, Waller. A capacidade mimética, In: Humanismo e comunicago de massa, Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1970, pp, 48- 51 FREUD, Sigmund. Psicologia das massas ¢ andlise do eu e outros textos (1920-1923). Trad. Paulo César de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2011 Totem e taby, contribuigao a histéria do movimento psicanalltico @ outros textos (1912-1914). Trad. Paulo César de Souza, Ted. Séo Paulo: Companhia das Letras, 2012 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Do Conceito de Mimesis no Pensamento de Adorno e Benjamin. Sete aulas sobre linquagem, meméria € histéria. 2 ed. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 79-104. SMITH, W. R. Kinship and marriage in early Arabia. London: Cambridge University Press, 1885, ‘Autor: Manuela Sampaio de Mattos * Manuela Sampaio de Mattos é psicanalista - APPOA, hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimirledicao=288 156 oart12022 12:24 Correia APPOA Noticias Notas sobre o Nucleo da Infan: ‘Ana Laura Giongo © trabatho do Niicleo de Psicandlise da Infancia e Adolescéncia vem se caracterizando como um espaco aberto ao publico, conduzido pela comissio do Nicleo e que se ocupa de tomar da clinica e da cultura questées sobre a infancia e adolesedncia na contemporaneidade. Desde 2018 temos nos dedicado a um tema que vem nos interrogando, pondo-nos a estudar, pesquisar e tentar avangar em nossas discussGes: 0 modo como os processos de consiituicao de uma posi¢do sexuada vem ocorrendo na contemporaneidade. s psicanalistas t8m sido questionados e chamados a se posicionar sobre quest6es que ndo estavam em vigor no tempo de Freud Lacan, tais como as cirurgias de mudanca de sexo, a diversidade de género na infancia e adolescéncia, a tendéncia de algumas familias deixarem "em suspenso" definices como 0 nome do filho, em respeito a uma possivel abertura para a diversidade de escolha do sujeito. Assim, temos nos debrucado sobre textos de psicanalistas - de classicos a atuais - que nos ajudem a abrir questdes. Podemos destacar desta trajetsria dois elementos que vem se colocando como norteadores nesta reflexao: ‘A nogao de temporalidade,trazida om varios textos de psicanalistas que se ocupam da infancia e da adolescéncia, em especial na Ieitura de Alba Fresier, nos lembra da importancia de se considerar os tempos da constituigdo do sujeito e do quanto é imprescindivel, na clinica, 0 trabalho na diragao da suspenséo do imediatismo de respostas, que possa permitiro transcurso dos tempos légicos. necessérios as escolhas. Outro movimento importante em nossa caminhada fi a possibidade de interlocugéo com a teoria Queer através de uma nova visada epistemoldgica,trazida por um texto de Maria Cristina Poli e Ana Carolina Martins em que as autorasfalam de um destocamento da I6gicafalica, binéia, para a l6gica da pura diferenca, onde a partir das formulas da sexuado (Lacan, Seminario XX) se pode pensar ‘num gozo para além do falo. Ir além da logica bindra -organizada em torno da nogdo de falo e castragao - permite uma abertura para pensar que a relago com o sexo e a ideniicacdo podem se dar de formas diversas e compreendidas como singulares, para além do marco do Edipo. A partir desta interlocugao com os textos, Maria Cristina Poli esteve debatendo maio, quando também tomamos para letra o texto "O feminino, além do Edip. psicanalise Sigmund Froud Assaciagao Psicanalitica, vol. 4 te tema conosco, em um encontro no dia 11 de dda propria autora, publicado na revista de Da trajetéria que temos percorrido, segue 0 desejo de seguirmos nossas inquletarbes, pesquisas e trocas, e a busca de avangar na leitura desta tematica que tanto tem nos convocado, como psicanalistas. Autor: Ana Laura Giongo * Ana Laura Giongo 6 psicanalista - APPOA. hitps:fappoa.org.brcorreiofimprimifedicao=288 16n6.

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