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O PRINCIPIO DA FUNCAO SOCIAL DA PROPRIEDADE E SUA REPERCUSSAO SOBRE O SISTEMA DO CODIGO CIVIL Rochelle Jelinek Promotora de Justica/RS Especialista em Direito Ambiental pela UFRGS Mestranda em Direito pela PUCRS Porto Alegre 2006 SUMARIO JTRODUGAO wsessscssscsssnseennesnssensetnsenenesnsscnssensesnnesnsscnsennsesnnssnssenseesseennsenss 3 1. A CONSTRUCAO DE UM NOVO PARADIGMA NO DIREITO CIVIL 4 2. O SURGIMENTO DOS FUNDAMENTOS JURIDICOS DA FUNCAO SOCIAL DA PROPRIEDADE 10 3.0 PRINCIPIO DA FUNGAO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARAD wrenjennsnnsunantnennennennsunansnennenen 13 4. O PRINCIPIO DA FUNCAO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO wwsssennsnesnnantnennennennsnnansennnen LT 4.1, Nas Constituicdes anteriores a 198: 7 4.2. Na Constituigdo Federal de 1988. 19 5. FORMAS DA INCIDENCIA DA FUNCAO SOCIAL SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE vesnssnesnnnntnnsutannenennnnninennannenninnnennsnnannaneanens 23 5.1. Privago de determinadas faculdades .. 5.2. Obrigacao de exercitar determinadas faculdades 5.3. Complexo de condigées para o exercicio de faculdades atribuidas 6. A REPERCUSSAO DO PRINCIPIO CONSTITUCIONAL DA FUNCAO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO SISTEMA DO CODIGO CIVIL DE 2002, CONCLUSAO. FONTES CONSULTADAS.. INTRODUCAO © tema da fungio social da propriedade est intimamente ligado com a contemporinea inexisténcia da dicotomia rigida entre o direito piblico e 0 direito privado, a hermenéutica ¢ a interpretago conforme a Constituiggo, ¢ a concretizagio dos princfpios fundamentais, em especial da dignidade da pessoa humana ¢ da justiga social Neste trabalho, apés uma andlise da superagio da dicotomia direito piblico/direito privado, examinam-se o fendmeno da constitucionalizagio e da despatrimonializagao do dieito civil, as dimensdes do direito de propriedade no Estado Liberal — individualista e absolutista - e no Estado Social — com cardter de solidariedade, relatividade ¢ funcionalidade. Nesta contemporanea dimensio do direito de propriedade, em razao da sua fungdo social, esse instituto é mostrado como relago funcional entre sujeito e objeto, e nao como direito absoluto. No Ambito do Direito Constitucional comparado, verifica-se a previsio do principio em comento em Constituigdes de outros pafses e, no Ambito do Direito Constitucional brasileiro, a evolugéo da previsio da fungdo social da propriedade nas Constituigdes anteriores a 1988 ¢ a unido indissociavel entre a propriedade e a sua fungio social positivada em diversos dispositivos da Carta Magna vigente. Com essa nova dimensao da propriedade, cuja definigao ¢ inseparivel da sua fungao social, observam-se trés formas de incidéncia do prinefpio em comento: vedagio a0 proprictério do exercfcio de determinadas faculdades, obrigagao de o proprietétio exercer faculdades elementares do dominio ¢ a criagao de um complexo de condigdes para o exercicio das faculdades atribuidas pelo direito de propriedade. Por fim, baseando-se na premissa de rompimento paradigmético e metodolégico da antiga visio do direito de propriedade, faz-se uma breve anilise de algumas repercussdes do principio constitucional da fung%o social da propriedade no Cédigo Civil de 2002, de modo a apreender-se a acepgdo das regras codificadas com vistas & construgio de uma nova dimensio da relagio de propriedade, para concretizagao dos fundamentos ¢ objetivos do Estado Demoerdtico de Direito, em especial a dignidade da pessoa humana ¢ a justiga social. 1. A CONSTRUGAO DE UM NOVO PARADIGMA NO DIREITO CIVIL Por volta do século XVII, no chamado Estado Liberal, com a distingao entre a esfera das relagdes econdmicas ¢ a esfera das relacées politicas, entre sociedade civil ¢ Estado, havia nitida dicotomia entre o direito piiblico e o direito privado. Aquele era um direito eminentemente governativo, que, através de Constituigdes liberais que eram verdadeiros cédigos de direito piblico, disciplinava o Estado, sua estruturago e funcionamento, com confusdo entre interesses do Governo © interesse da Administragao, enquanto o direito privado, consubstanciado em cédigo de dircito privado redigido para regular a vida social como documento completo ¢ tnico, era 0 ramo do direito que disciplinava a sociedade civil, as relagdes juridicas entre os cidadios e 0 mundo econdmico, sob a concepgao do individualismo, do liberalismo econémico ¢ da propriedade privada absoluta, com exclusio de qualquer intervengao estatal.! Os c6digos civis desse perfodo, também chamados constituigdes de direito privado, caracterizavam-se por estarem centrados na propriedade, com énfase na propriedade imobiliéria, com caréter absoluto ¢ individualista, ¢ na igualdade meramente formal. As normas estatais protetoras do individuo buscavam apenas assegurar a liberdade econdmica, protegendo o cidadio contra 0 prdprio Estado. As limitagdes aos direitos subjetivos, quando existentes, eram somente aquelas necessarias para permitir a convivéncia social. A ideologia juridica predominante & época” "© direito privado, neste periodo, é estatal e burgués. Estatal, porque, neste primeira ciclo de codlficagées, 0 legislador insttui de forma sistemstica e abrangente o direito privado. Burgués, no sentido de que 0 direito privado passa a espelhar a ideologia, os anseios © a necessidade da classe sécio- econdmica que havia conquistado o poder em praticamente todos os estados ocidentais (a burguesia), pasando a regular toda a sociedade a partir das necessidades e ideologias de uma fragdo dessa sociedade, representadas pelo liberalismo econémico. pela propriedade privada absoluta c pela ampla liberdade contratual como instituto auxiliar para facilitar as tansferéncias e a eriagio de riqueza. FACCHINI NETO, Eugenio. Reflexdes histérico-evolutivas sobre a constitucionalizacao do direito privado, In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituiso, Diteitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 17-18. Facchini bem explicita a ideologia juridica da época: “[..] podemos denominar de “ideologia dos 3 es" pretende-se que a legislagao civil (lei-se, os cédigos) seja completa, clara ¢ coerente. A ideologia da completude significa que a Iegislacio é (supostamente) completa, no possuindo lacunas; a idéia de legislagdo caracterizada pela sua clareza significa que as regras juridicas s4o facilmente interpretaves. io contendo significados ambiguos ou poliseémicos. E a ideologia da coerénci8a afasta a possibilidade de antinomias. Tudo isso deriva do mito do legislador iluminista, inteligente, onisciente, prevident, capaz de tudo regular detalhadamente, antecipadamente, de forma clara e sem contradigdes. [..] aos juizes, reservar-se-ia 0 papel de bouche de la loi, [..] mada criatia, apenas aplicaria 0 direito (ja dispensava a interpretagio sistematica do direito, pois o direito civil ¢ o direito constitucional seguiam caminhos separados, cada um com seu proprio ambito de incidéncia. A. passagem do Estado Liberal para o Estado Social se deu com o reconhecimento da ocorréncia da ampliagdo das desigualdades sociais ¢ a necessidade de garantir os direitos individuais e os direitos sociais aos cidadaos. O Estado, antes voltado a conferir eficdcia a liberdade econdmica, teve de assumir fungdes de regular as relagdes subjetivas ¢ passou a intervir no processo econémico para estabelecer relagdes sociais mais justas, quer de forma direta, assumindo a gestio de determinados servigos sociais, quer de forma indireta, através da disciplina das relagGes privadas relacionadas a0 comércio € de outras relagdes intersubjetivas que antes eram deixadas & livre autonomia privada. Ao contrério da nao-intervengao reclamada pelos direitos individuais absolutos consagrados no Estado Liberal, ao Estado Social incumbe atuacao pr6-ativa no sentido de assegurar a fruigdo dos direitos individuais ¢ sociais pelos destinatarios, diante da qualificagao de direitos prestacionais, que exigem, mais que a abstengao necessdria ao respeito dos direitos-liberdade, também prestagdes estatais positivas para sua concretizagio.* Nas iltimas décadas, percebe-se a interagdo entre piblico e privado ea superagao da dicotomia, chamada por Tepedino* de “summa divisio do direito piiblico e do diteito privado”®: cada vez mais o Estado se utiliza de institutos juridicos do direito previamente elaborado pelo legislador) a0 caso concteto. O catélogo de todas as solugées possivels jé preexistiia ao caso ltigioso.” FACCHINI NETO, Eugenio, Reflexdes histérico-evolutvas..p. 20-21 Na nova concepgao de direitos fundamentais, diretamente vinculantes. a Administragao deve pautar suas aividades no sentido de nio s6 viola tas dieitos, como também de implementé-los praticamente, mediante a adogio de politics piblicas que permitam 0 efetivo gozo de tais direitos por parte dos cidadios. Quanto a0 legislador,o reconhecimento da eficdcia juridica dos direitos fundamentais impée 20 mesmo deveres positives, no sentido de editar legislagéo que regulamente as previsbes constitucionas, desenvolvendo os programas contidos na Carta, Nao basta abster-se do editar leis inconsttucionais, impoe-se o dever de agir postivamente. [.-] 6 juz, no exercicio da sua atvidade jurisdicional, a0 imterpretar e aplicar 0 diteito privado, deva também evar em conta as regras © os principios consttucionais que tratam diretamente do tems objeto do litigo. ..] v.g. a fungio social da propriedade” FACCHINI NETO, Buginio. Reflexes histérico-evolutvas... p43 “ TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodolégicas para a consttucionalizacdo do direito civil. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Ed, Renovar, 2004, p.19. $0 fenémeno da inieragio entre diteito pablico e privado se dé sob a pressio de duas forgas: a dos inleresses ¢ a das ideologias. Os primeiros estimulam o diteito publico a assumir vestes privatstcas, a {im de aglizar a agio administrativa,obstaculizada pelos vinculos publicsticos. As segundas operam em favor da limitagio do dominio do direito especial « da subtragéo da administragio ao direito privado, mantido aquele mais conforme ao regime da liberdade. Nio ha, contudo. simples substituigéo do dicito piblico pelo direito privado. Este se tora prevalente como forma, ndo como substincia: a érea do dieito Péblico diminui em beneficio do diteto privado no sentido de que figuras juridica, stuagées juridicas, tos, tém a forma de diteito privado, mas séo dominados pelo sujeito pubilico e, por isso, pela vontade publica. A difusio de formas de colaborasao, cooperagio € consenso entre autoridades plblicas © privado (formas privatistas), estabelecendo relagdes negociais com os particulares, & conseqientemente abrindo mo de instrumentos mais autoritérios e impositivos — fendmeno da privatizagao do direito piiblico — e 0 diteito privado se destoca em direg0 ao piblico - fenémeno da publicizagdo do direito privado -, como na categoria dos interesses transindividuais, ¢ na funcionalizagao de intimeros institutos tipicos do dircito privado, como no reconhecimento da fungao social da propriedade.® A alteragdo dos confins entre o direito puiblico ¢ 0 diteito privado, se dé de modo que a distingao deixa de ser qualitativa e passa a ser meramente quantitativa, nem sempre se podendo definir qual exatamente € 0 territério do direito piiblico e qual 0 tertitério do direito privado, Pode-se determinar os campos do direito pablico ou do direito privado pela prevaléncia do interesse piblico ou do interesse privado, nao jé pela inexisténcia de intervengao publica nas atividades de direito privado ou pela exclusio da participagao do cidadao nas esferas da administragao publica.” Consoante explicita Maria Celina Bodin de Moraes*, ante as mudangas do Estado Liberal para o Estado Social, “direito privado e direito publico tiveram modificados seus significados origindtios: 0 direito privado deixou de ser o Ambito da vontade individual e o direito piblico ni mais se inspira na subordinagio do cidadao” Inobstante subsistam algumas diferengas quantitativas (carga preponderante de piblico ou de privado) ou funcionais (maior ou menor grau de transparéncia nas relagdes juridicas), h4 institutos onde prevalecem os interesses individuais, embora também estejam presentes interesses da coletividade, ¢ outros institutos onde predominam os interesses da sociedade, embora funcionalizados a realizagio dos interesses existenciais dos cidadios.” A regulagao do Estado sobre as relagdes sociais e econémicas passou a ter tal importancia que foi elevada a dignidade constitucional (fenémeno chamado de privadas nio toma, porém, mais simétrieas as posigdes dos sujeitos de direito piblica e de direito privado, ppelo que se reapresenta o problema, patente no diteito privado, da convivéncia de posigées diferenciadas em relagées formalmente paritirias. A confluéncia do diteito publico e do direito privado produz uma refragio dos insttutos, pela qual as nogées fundamentais do dircito public (por exemplo: servigo pablico ente piiblico) se dilatam, desnaturam e degradam, até se tomnarem indefiniveis, muliplicando estatutos, modelos e tipos por causa da sua hibridizagao. Esta atenuagio das diferengas néo redur 0 dualismo dos direitos, que permancce, ainda que por formas diversas. CASSESE, Sabino, As transformagées do dircito dministrauvo do século XIX a0 XXI. Revista Interesse Pablico, Sapucaia do Sul, 24, 2004, p20 i na Constituigio Federal de 1934 havia tragos da fungio social da propriedade, © depois na Constituigao de 1946, Mas @ expressio “fungio social da propriedade” somente apareceu na Constituigio de 1967, e, agora, consagrada na Constituigdo de 1988, conforme se aborda no capitulo 4. " TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodolégicas.... P20. * MORAES, Mara Colina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional, Revista de Diteito Civil, 165, 1993, p26. relevancia constitucional das relagdes privadas). Dai a constitucionalizagio de certos institutos fundamentais do direito civil, como a familia, a propriedade, o contrato e a atividade econdmica, que, antes somente previstos nas codificagdes, agora passam a ser disciplinados imperativamente na Consituigao."” Ao recepeionar-se, na Constituigao Federal, temas que compreendiam, na dicotomia tradicional, 0 estatuto privado, ocorreram transformagdes fundamentais nos pilares do sistema de direito civil cléssico: na propriedade (nfo mais vista como um direito individual, de caracteristica absoluta, mas pluralizada e vinculada A sua fungao social); na familia (que, antes hierarquizada e formal, passa a ser igualitéria no seu plano interno, e, ademais, deixa de ter o perfil artificial constante no texto codificado, que via como sua fonte tinica a constituigao do vinculo jurfdico do casamento, tornando-se plural quanto & sua origem, cedendo espago A verdade sécio-afetiva)'' ¢ nas relagdes contratuais (onde foram previstas intervengdes voltadas para o interesse de categorias especificas, como © consumidor, ¢ inseriu-se a preocupagdo com a justiga distributiva)."* Nas palavras de Gustavo Tepedino'®, tratam-se de “novos parimetros para a definigio da ordem piblica, relendo o direito civil & luz da Constituigao, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores nio patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais ¢ a justiga distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econdmica privada e as situagdes jurfdicas patrimoniais » Sobre a questio: Nesse sentido: FACCHINI NETO, Eugenio, Reflerdeshistrico-evoltivas.., p29 esse sentido: FACCHINI NETO, Eugénio. Reflevies histérico-evolutivas... p. 29. Essa mudanga paradigmética do desenho juridico da familia, antes fundada no vinculo juridico ¢ agora 1a verdade sécio-afetiva, 6 esclarecida por Silvana Maria Carbonera, em O papel juridica do afeto nas relugées de Jamia, in: FACHIN, Luiz Eéson (coord). Repeasando fundamentos do Diteito Civil Brasileiro Contemporineo. Rio de Taneto: Bd. Renovas, 2000, p.273-310. © RAMOS, Carmem Licia Silveira. A constiucionalizaedo do direito privade ¢ a sociedade sem Jromteiras. to: FACHIN, Luiz Euison (coord.). Repensando fundamentos do Diseito Civil Brasleito Contemporineo, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2000, p 10-11 P -TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodoldgicas.. p22 A propésito: ©O Diteto privado eo Direito publico ~ nada obsta persstrem diferengas fancionais (ex maior ou menor grau de transparéncia nas relagées juris), que nao podem ser esmaecidas por inteito, sob pena de se rceditarem lamentéveis equivocos “patrimonialistas” - precisam encontvar os seus fundamentos mais profundos no bojo da Consttuigao, uma ver que, a igor, impicta ou explicitamente, qualquer seara deve ser vista como campo nobre de incidéncia e de concretizagio das regras c principios constitucionais. Dito de outro modo, todo ¢ qualquer ramo do Diteito mostra-se, como sublinhado no capitulo anterior, um campo de incidéncia da Consttuigao e, bem por isso, restou afirmado que, em determinado aspecto, toda interpretagdo sistematica 6 também interpretagio constitucional”. FREITAS, Suarez. A interpretagdosistemdtica do direito.Sio Paulo: Malheiros, 2004, p27 A migrago de institutos e princfpios do direito privado para o texto constitucional acarreta uma mudanga de perspectiva, compelindo os operadores do direito a uma interpretagio sistemdtica de todo 0 ordenamento juridico”’ ¢ a levar em consideragao a prioridade hierdrquica das normas constitucionais'® sempre que se deva resolver um problema concreto, nao podendo mais a a solugo de cada controvérsia levar em conta simplesmente o artigo de lei que parece conté-la ¢ resolvé-la.'” Da constitucionalizagdo do direito civil decore a migragio, para o ambito privado, de valores" constitucionais, dentre os quais 0 principio da dignidade da pessoa humana. Disso deriva a chamada repersonalizagdo ou despatrimonializagao do direito civil.’ O ser humano (a dignidade da pessoa humana), ¢ nao mais o patriménio, recoloca-se no centro das preocupages do direito civil. Interesses ¢ direitos de natureza pessoal antepdem-se a direitos e interesses patrimoniais, o que supSe que na hierarquia de valores a pessoa humana prevalece sobre o interesse econémico.”” © fendmeno da constitucionalizagdo do direito civil esté ligado as aquisigoes culturais da hermenéutica contemporanea, tais como a forga normativa dos prinefpios constitucionais”’, a distingdo entre princfpios ¢ regras”, a interpretagio conforme a Constituigao”, etc., e implica analisar as conseqiiéncias, no Ambito do direito civil, de determinados principios fundamentais, individuais ¢ sociais. 'S Ver: FREITAS, Juarez, A interpretagao sistemética do direito, Sto Paulo: Malheiros, 2004, Também FREITAS, Juarez. O intérprete e o poder de dar vida d Constitwigdo: preceitos de exegese consttucional Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v.35, p-15-46, abr jun. 2000. " Sobre a iradiagao da supremacia das normas constitucionas sobre o ordenamento infraconsttacional: CANOTILHO, José Foaquim Gomes. Constituigéo dirigente ¢ vinculagdo do legislador. Coimbra Limitada, 1994, RAMOS, Carmea Lica Silveira. A constitucionalizagdo... p16 ¥ FACCHINI NETO, Eugenio, Reflexdes histérico-evolurivas...p. 30 ' Alexy diferencia princfpios e valores, apontando que estes se referem aguilo que & melhor, enquanto princfpios se referem quilo que € devido (sio ordens de otimizagio). ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fandamentales. Madtid: Centro de Estidios Poticos y Constitucionales, 2001, p.147 1 -tsta despatrimonializagdo do diteto civil ndo significa a exclusio do contesdo patrimonial no dteto, ras a funcionalizagio do préprio sistema econémico,diversificando sua valoracao qualitativa, no sentido de direcioné-lo para produzie respeitando a dignidade da pessoa humana (¢ 0 meio ambiente) e distbuir a riquezas com maior justiga ® FACCHININETO, Bugénio. Refledes histérico-evolutvas. p. 32-33, A Constituigio no & apenas um programa politico a ser desenvolvido pelo legislador e pela Administragéo, mas contém normatividade juridica reforgada, pois suas normas so qualitativamente distintas e superiores as outras normas do ordenamento juridica, uma vez que incorperam o sistema de valores essenciais A convivéncia social, devendo servir como parimetro de conironto para todo 0 ordenamento juridico, além de auxiiar a este como critério informative a interpretaivo”. FACCHINI NETO, Eugénio. Reflexies histérico-evolufvas...p.39. Ver também: GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo:estidios de teoria y metateorta del derecho. Barcelona: Gedisa Eaitorial, 1999, p 142-171 * ‘Sobre o tema: FREITAS, Juarez. A interpretagio sistemética.... pS6-61 © 228-231. Também GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo...p. 142-171 > (interpretagéo conforme a Constituicao diferencia-se da interpretagao tradicional porque esta, em suas vrias formas (gramatical, hstéria, logica,teleolégica, exegetica) define o conteido da lei a partir dla répia, o passo que na interpretagio conforme, a lei deve ser interpretada de acordo com a Constituigao, Destarte, o fato de a Constituigao contemplar princfpios e regras tipicamente de direito privado faz com que todo 0 direito civil, naquilo que € atingido potencialmente por tais principios, deva ser interpretado conforme a Constituigo. Conseqiiéncia desse proceso é a imperatividade da fora normativa constitucional sobre o direito civil, como constante critério de controle." Maria Celina Bodin de Moraes esclarece que “a norma constitucional assume, no direito civil, a fungao de, validando a norma ordindria aplicdvel ao caso concreto, modificar, & luz de seus valores ¢ princfpios, os institutos tradicionais’ Como bem refere Facchini, “o fendmeno da constitucionalizagio do direito privado, ao implicar a leitura do direito civil & luz da tabua axiolégica da Constituigio, apresenta um direcionamento bastante claro, pois implica um necessério compromisso do jurista com a eficécia jurfdica e com a efetividade social dos direitos fundamentais”.”* A interpretagao civil-constitucional “permite que sejam revigorados os institutos de direito civil, muitos deles defasados da realidade contemporanea ¢ por isso mesmo relegados ao esquecimento ¢ a ineficécia, repotencializando-os, de molde a torné-los compativeis com as demandas sociais e econdmicas da sociedade atual”.”” Nessa senda, nio ha como continuar a estudar, interpretar e aplicar o direito das coisas sem levar em consideragdo o principio constitucional da funga0 social da propriedade. O direito de propriedade (codificado) perde todos os seus contomos individualistas e seu pretenso absolutismo, porque deve ser interpretado a luz do filtro hermenéutico constitucional.”* com base na estrutura piramidal da ordem juridica, em que a Constituicdo se encontra no topo. Uma das conseqiiéncias é que a uma norma de nivel inferior néo pode ser interpretada de modo que contrarie @ norma de nivel superior. jé que a norma inferior, embora erie novo direito. necessariamente também € uma aplicago da norma superior. Para aprofundar o tema, ver: FREITAS, Juarez. A interpretagdo sistemética do direito, Sio Paulo: Malheiros, 2004, Tambéms: FREITAS, Juarez. O intérprete e o poder. p.l5-46. * AMARAL, Francisco. Racionalidade e sistema no direito civil brasileiro. Revista de Diteito Civil, Sa Paulo: Ed. RT, 1993, v.63, p.52. MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho de um direito civil... p29. FACCHINI NETO, Eugenio, Reflexdes histérico-evolutivas... p48, ® TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodolégicas... p20. FACCHINI NETO, Eugénio, Reflexdes histdrico-evolutivas.. p- 38. 2. O SURGIMENTO DOS FUNDAMENTOS JUR{DICOS DA FI DA PROPRIEDADE ‘CAO SOCIAL Constitui um marco histérico na evolugao do direito de propriedade a teoria de Leon Duguit, que, no inicio do século XX, traz 0 conceito juridico origindrio de fungao social da propriedade.”” Depois de tratar de questées como o desaparecimento do sistema de Direito Piblico fundado na nogao de poder puiblico, da conversio da nogio de servigo piblico em nog0 fundamental do Direito Piblico de sua época, da responsabilidade do Estado e dos agentes piblicos e de diversos outros tema caros a0 Direito Publico, sob uma perspectiva inédita, traz fundamentos jurédicos da teoria da fungao social, que pretende substituir a nogdo de dircito subjetivo de propriedade.*” A teoria de Duguit no é fundamentada em normas juridicas, mas numa anélise sociol6gica, que parte da concepao do Direito como resultado constante ¢ espontineo dos fatos e nio como mera obra do legislador. Assim, ainda que leis e cédigos permanegam intactos, as necessidades surgidas na vida em sociedade acabam por formar constantemente novas instituigdes jurfdicas. Nesse contexto, foi a necessidade de superar as concepgdes individualistas do direito privado, nas quais o homem é tomado isoladamente, que resultou na consagragao da nogio de fungao social da propriedade. Influenciado pela filosofia positivista de Augusto Comte’!, Leon Duguit chegou & conclusio de que a propriedade no tem mais um carter absoluto e que nem o homem nem a coletividade tém direitos, mas cada individuo tem uma fungao a cumprir na sociedade, Estes seriam os fundamentos da regra de Direito que impoe deveres a todos, inclusive ao Estado. 0 conceito jurfdico de fungao social revolucionou a exegese jurfdica de valores como liberdade e propriedade. Ao passo que no sistema individualista a liberdade é entendida como o direito de fazer tudo 0 que nao prejudicar a outrem ¢, portanto, ® Até entdo a funcao social da propriedade era estudada com base em fundamentos filoséticos, por {ilésof0s como Montesquieu, Hobbes, Rousseau, Bussuet, Mirabeau, Bentham, Locke. © DUGUTT, Leon. Las transformaciones del Derecho Publico y Privado. Buenos Aites: Baitorial Heliasta SRL, 1975. Sobre a doutrina filoséfica-positivista de Augusto Comte, que leva 0 ponto de vista social em oposi¢a0 & nogao de direitos individuals, ver: COMTE, Augusto, Discurso sobre o espirito positive, Sio Paulo: também o direito de nao fazer nada, de acordo com a teoria da fungao social todo individuo tem o dever de desempenhar determinada atividade, de desenvolver da melhor forma possivel sua individualidade fisica, intelectual ¢ moral, para com isso cumprir sua fungao social. Transportando essa teoria para o campo patrimonial, Duguit sustenta que a propriedade nao tem mais um cardter absoluto ¢ intangivel ¢ que o proprietério, pelo fato de possuir uma riqueza (propriedade), deve cumprir uma fungdo social. Seus direitos de proprietdrio s6 estaro protegidos se ele cultivar a terra ou se nao permitir a ruina de sua casa, caso contrério ser legitima a intervengao do Estado no sentido de obrigar o cumprimento de sua fungao social." ‘Ao sustentar a transformagio geral da concepgao juridica da propriedade, que deixa de ser um direito subjetive do proprietatio para converter-se em fungao social do possuidor da riqueza, Leon Duguit parte da premissa de que a propriedade € uma instituigéo jurfdica que, como qualquer outra, formou-se para responder a uma necessidade econdmica, ¢ estas necessidades, transformando-se em necessidades sociais, transformam a propriedade em fungao social, considerando a interdependéncia dos elementos sociais. Assim, a propriedade evolui de acordo com as modificagées das necessidades econémicas.** O conceito juridico de propriedade dado por Leon Duguit reconhece a necessidade da evolugao dos conceitos das instituigdes juridicas de acordo com a evolugao da propria realidade econdmica, Ao referir-se socializagio do conceito de propriedade, Duguit na verdade estava adequando o Direito & realidade do infcio do século XX e reconhecendo que todas as propriedades mobiliérias ou imobilidrias — exceto dos objetos de consumo — evoluem num sentido social. De acordo com Duguit, um dos grandes defeitos da concepgdo individualista e civilista da propriedade residiria na auséncia de preocupagio com o exame da legitimidade das apropriagdes existentes de fato e com a determinagio de seu fundamento. As situagdes existentes foram colhidas sem nenhum questionamento, sendo declaradas intangiveis.' Os cédigos fundados no principio individualista limitaram-se a fixar a afetagio da riqueza a um fim individual, estabelecendo um relagao entre liberdade e propriedade: concedendo ao possuidor um direito subjetivo absoluto sobre o bem, poder-se-ia garantir a plenitude de sua autonomia individual. Esta Abril Cultural, 1978. Também: COMTE, Augusto, Catecismo positivista, S20 Paulo: Abril Cultural 1978. © DUGUIT, Leon. Las rransformaciones del Derecho Publico y Privado, Buenos Aires: Editorial Heliasta S.RL., 1975, p.178-179. * DUGUIT, Leon. Las transformaciones... p.1T8. concepsio de propriedade-direito trazia insito os direito absoluto de estabelecer uma destinago ao bem, o direito absoluto com relago a0 Poder Piiblico, ¢ 0 direito absoluto em relagao ao tempo, justificando a sucesso de bens, Assim, podia o proprietétio usar, gozar e dispor do bem da melhor forma que lhe aprouvesse, inclusive deixando as terras sem cultivo, iméveis urbanos desocupados ou nao construfdos. Contra esta posi¢ao do proprietério, o Poder Puibblico nada poderia fazer sendo estabelecer algumas restrigdes fundadas no pode de policia ou, excepcionalmente, expropriar 0 bem mediante indenizagao. As conseqiiéncias da adogao de teorias individualistas, porém, j4 ao tempo de Duguit vinham sendo rechagadas, indicando a decadéncia desse sistema, O sistema civilista entrava em declinio por privilegiar exclusivamente a afetagdo individual da riqueza numa época em que a sociedade j4 tomava consciéncia da interdependéncia social que liga todos ¢ de que o homem, em sociedade, nao é um fim em si, mas um meio.”* Duguit rejeitou essa concepgao de propriedade como direito subjetivo absoluto, substituindo-a pela concepgao de propriedade-funcdo, nao com a finalidade de negar a existéncia da propriedade privada, mas para centrar-se em sua natureza de direito- fungdo; nfo como poder incondicionado, mas como poder juridico que tem uma razio de ser especifica, da qual nao pode esquivar-se, de satisfazer necessidades individuais ¢ coletivas. A teoria de Duguit assemelha-se & doutrina que se fundamenta no abuso de direito, mas sua originalidade est na adogdo de uma concepeo solidarista do Direito, em que 0 exercicio dos direitos deve dirigir-se ao cumprimento de fungdes impostas pela solidariedade social. Muitas criticas foram opostas 4 concepgao de Duguit acerca da propriedade- fungio ¢ da negagao do direito subjetivo’, j4 que isto implicava a nogao de dever, mas esses questionamentos nao foram suficientes para evitar a positivagao nos ordenamentos juridicos, progressivamente, da fungao social da propriedade que limita e obriga. * DUGUIT, Leon. Las transformaciones... p237. 88 DUGUTT, Leon. Las transformaciones.., 239, % A respeito das eriticas & doutrina de Leon Duguit: COSTA, Moacir Lobo da. A propriedade na doutrina de Duguit. RF 153, ano 51. Rio de Janeiro: Forense, 1954 3.0 PRINCIPIO DA FUNCAO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO. No direito comparado observa-se a previséo constitucional do principio da fungao social da propriedade, cumprindo trazer & baila apenas algumas breves referéncias, a titulo ilustrativo. principio da fungao social foi introduzido na Constituiggo mexicana em 1917°", Embora seu texto basico seja de 31 de janeiro de 1917, foi em fevereiro de 1983, com a reforma do artigo 25, que trata da atividade econdmica, e com a adigio do art, 27, que trata da propriedade, que a fungao social veio tratada mais claramente: Art, 25 - Ao desenvolvimento econdmico nacional concorrerdo, com responsabilidade social, 0 setor piblico, 9 setor social ¢ setor privado, sem embargo de outras formas de atividade econdmica que contribuam a0 desenvolvimento da nagao. Através dos critérios de eqiiidade social ¢ produtividade se apoiard ¢ impulsionara as empresas dos setores social ¢ privado da economia, sujeitando-os as modalidades que item o interesse priblico ¢ 0 uso, em beneficio geral, dos recursos produtivos, cuidando sua conservag3o € 0 meio ambiente Art. 27 — A propriedade das terras ¢ éguas compreendidas dentro dos limites do territétio nacional correspond originariamente & nagdo, a qual tem tido ¢ tem o dircito de transmitir 0 dominio delas aos particulares, constituindo a propriedade privada.As expropriagses s6 poderdo dar-se em caso de utilidade piblica ¢ mediante indenizagdo.A. nagdo teré a todo tempo direito de impor & propriedade privada as modalidades que ditem o interesse piiblico, assim como de regular, em beneficio social, 0 aproveitamento dos elementos naturais suscetiveis de apropriagio, com objetivo de fazer uma distribuigio eqiiitativa da riqueza publica, cuidar de sua conservagao, lograr 0 desenvolvimento equilibrado do pais e 0 melhoramento das condicSes de vida da populagao rural ¢ urbana. Em conseqiiéncia, ditar-se~io as medidas necessétias para ordenar os assentamentos humanos ¢ estabelecer adequadas provisdes, usos, reservas e destinos das terras, Aguas e bosques, para o efeito de executar obras ptblicas © planejar e regular a fundagao, conservacio, melhoramento ¢ crescimento dos centros populacionais, para o fracionamento dos latifiindios, para dispor, nos termos da lei regulamentar, a organizacao © a » BRASIL. Senado Federal. Constituigio do Brasil e Constituigdes Estrangeiras. Brasilia: Subsecretaria de Edigbes Técnicas, 1987, v. I, p570 e 580. Traduedo livre. exploragao coletiva. das comunidades, para o desenvolvimento da pequena propriedade agricola em exploragio, para a criagio de novos centros de populagio agricola com terras e guas que Ihes sejam indispenséveis, para o fomento da agricultura ¢ para evitar a destruigao dos elementos naturais ¢ dos danos que a propriedade possa softer em prejuizo da sociedade, Os micleos de populagio que caregam de terras ¢ Aguas ou nio as enham em quantidade suficiente para as necessidades de sua populagdo, terdo direito a que se Ihes dote delas, tomando-as das ptopriedades imediatas, respeitando sempre a pequena propriedade agricola em exploragao. Nesta Carta, muito mais do que em fungao social da propriedade, pode-se falar até em socializagio da prépria propriedade, visto que ela sofre uma intervengdo em beneficio do interesse ptiblico ¢ social, podendo até especificar-se 0 dominio eminente ¢ © dominio itil e afastar o atributo da exclusividade do direito de propriedade em relagao ao Estado.** A Constituigao republicana alema de 1919 (Constituigao de Weimar)” trazia 0 prinejpio da fungao social, que depois foi incorporado ipsis verbis pela Constituigao alema de 1949, estando hoje com a seguinte redagao: Art, 14, Propriedade, direito de sucessdo e expropriagio, ‘A propriedade © 0 direito de sucesso hereditéria so garantidos, A sua natureza e os seus limites so regulados por lei. A propriedade obriga. O seu uso deve ao mesmo tempo servir ao bem-estar geral A inclusdo de um novo elemento (uma obrigagao) no conceito de direito de propriedade inaugurou, no direito positivo, a idéia de fungdo social. Mas tal preceito constitucional encontrou pouca aplicabilidade prdtica na jurisprudéncia germanica.“” A Constituigio da Repiblica Italiana“', em vigor desde 1948, em varias passagens se refere A fungdo social, numa dimensio maior que a consignada na Constituigao alema, dispondo: * MORABS, José Diniz de. A funedo social... p36 » BRASIL. Senado Federal. Constituigao do Brasil ¢ Constituigées Estrangeiras. Brasilia: Subsecretaria de Edigées Técnicas, 1987, vA. p.123, “© A doutrina aponta ser inécua a mera referéncia & fungio social da propriedade sem 0 oferecimento de mecenismos juridicos para apropriagao ¢ a utilizagio dos bens que nao cumprem tal fungao, Nessa senda, Fabio Comparato aduz que a afirmaedo desse principio, sem especificagdes ou desdobramentos, € falha, constituindo instrumento de manutencdo da exploragao empresarial capitalista. COMPARATO, Art. 41 ~ A iniciativa econémica privada é livre. Nao pode desenvolver-se se contrapondo a utilidade social ou de uma forma que possa acarretar dano a seguranga, 3 liberdade e & dignidade humana A lei determina os programas ¢ os meios de controle, a fim de que a atividade econdmica publica e a privada possam ser dirigidas e coordenadas para objetivos sociais. Art, 42 — A propriedade ¢ publica ou privada. Os bens econdmicos pertencem ao Estado, as entidades privadas ow as pessoas. A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina as formas de aquisigio, de sua posse ¢ os limites que asseguram sua fungio social © torna-la acessivel a todos, Art, 44 — A fim de conseguir uma racional exploragio do solo ¢ de estabelecer justas relagdes sociais, a lei impée obrigagdes ¢ vinculos propriedade rural privada, fixa limites & sta extensio segundo as regides © as zonas agrarias, promove ¢ impée beneficios as terras insalubres, a transformago do latifiindio e a reconstituigdo das tunidades produtivas; ajuda a pequena e a média propriedade. A lei adota providéncias em favor das zonas, montanhosas. A Constituigao italiana, além de ter alargado a potencialidade do principio da fungao social, também deslocou as disposigdes telativas A propriedade do nticleo dos direitos fundamentais, deixando de traté-la como atributo do direito da personalidade, para traté-la como fato econdmico. Nao vindo mais tratada como um diteito inviolével, mas apenas na parte que trata das relagdes econémicas, e enderegada ao escopo de assegurar a fungdo social, restou superada a concepgdo estritamente individualista. Essa Constituigo remete para a lei a regulamentagao dos direitos do proprietario.” A Constituigio espanhola® de 1978 dispde sobre a fungao social na segao que trata dos direitos e deveres dos cidadaos (art. 33), também entre os prinefpios reitores da Fabio Konder. A finde social da propriedade dos bens de produsdo. Anais do XML Congreso Nacional de Procuradores do Estado, Salvador: PGE-BA, 1986, p 81-82. “BRASIL. Senado Federal Consttuigao do Brasil e Constitugées Estrangeitas. Braslia: Subsecretaria de Eaigées Técnicas, 1987, vA. p.51S. © MORAES, José Diniz de. A fimpdo social da propriedade ¢ a Constituigdo Federal de 1988. Sto alo: Malheiros Editores, 1999, p34 BRASIL. Senado Federal. Constituicdo do Brasil ¢ Constituig6es Estrangeiras. Brasilia: Subsecretaria de Edigdes Téenicas, 1987, v.I, p.385. Tradugdo livre politica social e econdmica (art.47), assim como no titulo que trata da economia (att. 128) Art, 33 — Se reconhece o direito & propriedade © & heranga. A fundo social destes direitos delimitaré seu contetido, de acordo com as leis, Art, 47 — Todos os espanhéis tém dircito a desfrutar de uma vida digna e adequada. Os poderes ptiblicos promoverio as condigdes necessérias ¢ estabelecerio as, ormas pertinentes para fazer efetivo esse dieito, regulando a utilizagdo do solo de acordo com o interesse geral para impedir a especulasio. ‘A conmmidade participars das mais-valias que gerarem a ago urbanistica dos entes piblicos. Art, 128 - Toda a riqueza do pais em suas distintas formas e seja qual sua titularidade est subordinada a0 interesse geral. Embora esteja a propriedade privada reconhecida entre os direitos fundamentais e as liberdades puiblicas, o principio da fungao social delimita 0 contetido deste direito por expressa previsio constitucional, A Constituigao chilena de 1981“, por seu tuo, prevé, entre os direitos ¢ deveres constitucionais: A Constituigdo assegura a todas as pessoas 24° - O direito de propriedade em suas diversas espécies sobre toda classe de bens corpéreos ¢ incorpéreos S6 a lei pode estabelecer 0 modo de adquirir a propriedade, de usar, gozar, ¢ dispor dela e as limitagées € obrigagdes que derivem de sua fungio social. Esta compreende quanto exijam os intetesses gerais da nagao, a seguranga nacional, a utilidade e salubridade piblicas ¢ a conservagao do patriménio ambiental Na Franca nao € contemplada a fungao social na Constituigao de 1958. O seu reconhecimento, por via indireta, € alcangado nas construgées da jurisprudéncia a partir da nogio de abuso de direito, extraida da aplicagao do art. 4° da Declaragio dos Direitos do Homem.** “ BRASIL. Senado Federal. Constituigao do Brasil e Constitug. de Edigées Técnicas, 1987, v. I, p.215, Tradugdo livre, © GRAU, Eros Roberto. Funedo social da propriedade (Direito Econdmico). Enciclopédia Saraiva do Diteito, v.39. Sao Paulo: Saraiva, 1979, ‘rangeiras. Brasilia: Subsecretaria Em outros paises, como nos Estados Unidos, a falta de previsao constitucional e legal do principio da fungao social da propriedade nao impediu limitagdes ao direito de propriedade, construidas nas decisdes judiciais na forma do sistema da common law. 4. O PRINCIPIO DA FUNGAO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO 4.1. Nas Constituigdes anteriores a 1988 prinefpio da fungao social da propriedade nem sempre esteve presente nas ConstituigGes anteriores a 1988. As Constituigdes de 1824, em seu art. 179, e de 1891, no art. 72, limitaram-se a declarar garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude, ressalvada a hipétese de desapropriagao por necessidade ou utilidade social, silenciando acerca de qualquer limite a0 direito de propriedade em geral, tal como preconizava o individualismo liberal e burgués. Com a Constituigdo de 1934 surge pela primeira vez, de forma expressa, referéncia & atividade do proprietitio. No art. 113, estatuiu a garantia do direito de propriedade, mas que no poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo. Era apenas um limite negativo. Previa, além da desapropriagao por necessidade ou utilidade piblica, do usucapiao pro labore e da ocupagao tempordria da propriedade particular, também o ditigismo econdmico. A Constituigao de 1937, no art, 122, garantiu o direito de propriedade, relegando a lei ordinéria a incumbéncia de definir o seu contetido e seus limites. Quanto a0 intervencionismo estatal no dominio econdmico, s6 0 admitia excepcionalmente, isto 6, para suprir as deficiéncias da iniciativa individual e coordenar os fatores de produgio, no interesse da nagio. Admitia 0 usucapifo pro labore, reproduzindo disposigao da Carta de 1934. A Constituigdo de 1946, embora tenha reproduzido varias disposigdes anteriores, inova em alguns aspectos. Com relagdo & propriedade, o art. 141, §16, dispos que era garantido 0 direito de propriedade, salvo 0 caso de desapropriagao por necessidade ou utilidade publica, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenizacdo em dinheiro. Foi, assim, introduzida a desapropriacao por interesse social, inspirada no conceito de propriedade como fungao social. J4 no capitulo referente a ordem econdmica e social, no art. 147, restou consignado que o uso da propriedade € condicionado a bem-estar so al ¢ que a lei poderia promover a justa distribuigao da propriedade com igual oportunidade para todos. O condicionamento do uso da propriedade ao bem-estar social era 0 reconhecimento do prinefpio da fungdo social da propriedade. Inobstante o cardter programético dos dispositivos, restava autorizada a intervengo no dominio privado em beneficio de toda a sociedade ¢ a condicionar 0 exercicio do direito de propriedade a um fim social.“* A partir de entio alguns diplomas passaram a disciplinar mecanismos juridicos de instrumentalizagao do principio da fungao social da propriedade, a exemplo da Lei n° 4.132/62, que regulamentou as hipdteses de desapropriagao por interesse social como forma de promover a justa distribuigao da propriedade ou condicionar seu uso a0 bem-estar social. Em abril de 1964, a Emenda Constitucional n.° 10 possibilitou a desapropriagao de terras rurais para fins de reforma agréria mediante indenizagao com titulos da divida publica. Em novembro de 1964, sobreveio a Lei n.° 4.504/64 (Estatuto da Terra), que estabeleceu regras para cumprimento da fungdo social da propriedade rural e metas para a reforma agraria e o desenvolvimento da agricultura *”, ‘A Constituiggo de 1967-1969, com referéncia & garantia do direito de propriedade, no art. 153, §22, reproduziu quase literalmente o texto constitucional de 1946. No titulo reservado & ordem econdmica ¢ social, houve avango acerca do reconhecimento da fungao social da propriedade, Diz o art. 160: “ MORAES, José Diniz de. A fngdo social da propriedade a Constituigdo Federal de 1988. Séo Paulo: Malheiros Editores, 1999, p.39. * Vale anotar que o Estatuto da Terra foi criado pela lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, sendo, pportanto, uma obra do regime militar que acabava de ser instalado no pafs através do golpe militar de 31 de marco de 1964. Sua cria¢ao estaré intimamente ligada ao clima de insatisfagao reinante no meio rural brasileito e a0 temor do governo e da elite conservadora pela eclosio de uma revolugio dos agricultores. Com os espectros da implantagio de reformas agrérias em varios paises da América Latina, os agricultores no Brasil comegaram a se organizar desde a década de 1950, com o surgimento de sindicatos rurais © com atuagdo da ala progressista da Igreja Catélica e do Partido Comunista Brasileiro. O movimento em prol de maior justica social no campo ¢ da reforma agréria generalizou-se no meio rural do pais ¢ assumiu grandes pioporsdes no inicio da década de 1960. No entanto, esse movimento foi praticamente aniquilado pelo regime militar instalado em 1964. A criagio do Estatuto da Terra ¢ a promessa de uma reforma agréria foi a estratégia utilizada pelos governantes para apaziguar os agricultores ¢ tranquilizar os grandes proprietitios de terra. As metas estabelecidas pelo Estatuto da Terra cram basicamente duas: a execugio de uma reforma agréria ¢ 0 desenvolvimento da agricultura, Décadas depois, pode-se constatar que a primeira meta ficou apenas no papel. enquanto a segunda recebeu grande atengdo, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento capitalista ou empresarial da agricultura Art. 160 — A ordem econémica e social tem por fim, realizar 0 desenvolvimento nacional e a justiga social, com base nos seguintes principios: 1-liberdade de iniciativa; II - valorizagao do trabalho como condigao da dignidade ‘humana; III — funedo social da propriedade; IV ~ harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produgio; V = tepressio ao abuso do poder econdmico, caracterizado pelo dominio dos metcados, a eliminagao da concorréncia ¢ o aumento atbitrario dos lucros; VI- expansio das oportunidades de emprego produtivo, Eram previstos, ainda, a intervengéo no dominio econémico, 0 monopélio de determinada indiistria ou atividade e a desapropriagao de terras rurais com pagamento de titulos especiais da divida publica 4.2. Na Constituicao Federal de 1988 © texto constitucional de 1988 positivou a unido indissociével entre a propriedade ¢ a sua fungao social. Ao arrolar o diteito de propriedade dentre os direitos ¢ garantias individuais fundamentais, logo em seguida agrega a fungao social (art. 5°, inc. XXII e XXII) AM 5° -(..) XXII- é garantido o direito de propriedade; XXII —a propriedade atenders a sua fungi social ‘Também quando trata da ordem econdmica e elege seus principios, destaca a propriedade privada e, sucessivamente, a fungdo social da propriedade e a defesa do meio ambiente como prinefpios da ordem econdmica (art. 170, ine. II, Ile VI): Art. 170 ~ A ordem econdmica, fundada na valorizagio do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existéncia digna, conforme os ditames da justiga social, observados os seguintes princfpios I—a propriedade privada; Ill — fungdo social da propriedade; VI-—a defesa do meio ambiente; 20 A Constituigao traz outras situagdes em que o prinefpio da fungao social da propriedade deve ser levado em conta. Quando trata dos impostos cuja instituigdo compete aos Municipios, refere: Art.156 — Compete aos Municfpios instituir impostos sobre: 1 propriedade predial e territorial urbana; §1° = O imposto previsto no inciso I poderé ser progressive, nos termos da lei municipal, de forma a assegurar 0 cumprimento da fungao social da propriedade, No Capitulo If do Titulo VII, relative & ordem econémica ¢ financeira, ao tratar da politica urbana, diz: Art, 182 — A politica de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Péblico municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar 0 pleno desenvolvimento das funcées sociais da cidade ¢ garantir 0 bem-estar de seus habitantes 42° - A propriedade urbana cumpre a sua fungdo social quando és exigéncias fundamentais de ordenagio da cidade expressas no plano dietor. §4° - E facultado a0 Poder Publico municipal, mediante lei especifica para érea inclufda no plano director, exigir, nos termos da lei federal, do proprietério do solo urbano nao edificado, subutilizado ou nao utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: 1— parcelamento ou edificagées compulsorios; II — imposto sobre a propriedade predial ¢ territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriagao com pagamento mediante titulos da ivida publica de emissio previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até de7. anos, em. parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenizagao e os juros legais. No Capftulo If, relativo a politica agricola ¢ fundidria e da reforma agréria, trata da fungao social da propriedade rural: Art, 184 — Compete & Unido desapropriar por interesse social, para fins de reforma agréria, o imével rural que nio esteja cumprindo sua fungdo social, mediante prévia ¢ justa indenizagao em titulos da dfvida agratia [..] a Art, 185 — Sao insuscetiveis de desapropriagao para fins de reforma agraia: I —a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietério nao possua outa; Ta propriedade produtiva. Pardgtafo tinico — A lei garantiré tratamento especial & propriedade produtiva © fixaré normas para 0. cumprimento dos requisitos relativos & sua fungao social. Art, 186 — A fungio social € cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critétios € graus de exigéncia estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos I— aproveitamento racional e adequado; I1— utilizagao adequada dos recursos naturais disponiveis ¢ preservacao do meio ambiente: Il — observancia das disposigdes que regulam as relagoes de trabalho; IV — exploragio que favorega o bemrestar dos proprietarios ¢ dos trabalhadores. Dos dispositivos supra transcritos, extrai-se que se agregou ao direito de propriedade — antes delineado sob um prisma privatista — 0 dever juridico de agir em vista do interesse coletivo, ou seja, o direito subjetivo do proprietario privado foi submetido ao interesse comum, imprimindo-lhe o exercicio de uma fungao social, voltada ao interesse coletivo. Na atual ordem juridico-constitucional, a fungao social & parte integrante do conteido da propriedade privada. A propriedade tende a traduzir uma relacio“ entre sujeito e bem cujo exercicio em prol da sociedade apresenta interesse piiblico relevante, traduzindo um direito-meio, e nio um direito-fim, nfo sendo garantia em si mesma, s6 se justificando como instrumento de viabilizago de valores fundamentais, dentre os quais sobressai 0 da dignidade da pessoa humana.” A propricdade compreende, em seu contetido ¢ alcance, além do tradicional direito de uso, goz0 e disposigao por parte de seu titular (diteito-garantia), a “ expressio “relacio” juriica da propriedade também & cunhada por Gustavo Tepedino, em Contornos constiucionais da propriedade privada, in: Temas de Dieito Civil, p323. © Sobre a questio, ver: DERANT, Cristiane. A propriedade na Constituigdo de 1988 e o comteido da “funedo_ social”. tn: Revista de Dieito Ambiental. Sio Paulo: RT. jul-set 2002, v.27. Também COMPARATO, Fabio Konder. Diretos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Disponivel cm: hitp:www.cjf gov.brirevsta/numeroS/artigol L-htm. Acesso em: 27 de novembro de 2005. Ainds FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin. A propriedade no Direito Ambiental. Rio de Yaneiro: ADCOAS, 2004, p. 82-85 obrigatoriedade do atendimento de sua fungao social, cuja definigao é inseparével do requisito obrigat6rio do uso racional da propriedade e dos recursos ambientais que the so integrantes. O proprietdrio (pessoa fisica ou juridica, esta de direito piblico ou privado), como membro integrante da comunidade, se sujeita a obrigagdes crescentes gue, ultrapassando os limites do direito de vizinhanga, no Ambito do direito privado, abrange o campo dos direitos da coletividade, visando ao bem-estar geral, no ambito do direito puiblico™. ‘A expressio fungao social passa por uma idéia operacional, impondo ao proprietario nao somente condutas negativas (abstengo, como nio causar contaminagio do solo), mas também positivas (obrigagées de fazer, como de parcelar gleba de sua propriedade).*! Ant6nio Hermann Benjamin” esclarece que, num primeiro momento, ainda sob forte influéncia da concep¢ao individualista ultrapassada, defendeu-se que a fungao social da propriedade operava somente através de imposigdes negativas (nio fazer), Posteriormente, percebeu-se que o instituto atua principalmente pela via de prestagdes positivas a cargo do proprietitio. A fungio social mais que aceita, requer a promulgagio de regras impositivas, que estabelegam para o proprietério obrigagdes de agir, na forma de comportamentos ativos na diregao do proveito social, * CUSTODIO, Helita Barreira. Questdo constitucional: propriedade, ordem econimica © dano ambiental. Competéncia legislaiva concorrente. In: BENJAMIN, Antonio Herman (coord). Dano ambiental: prevensio, reparagao e repressfo, Sio Paulo: RT, 1993, p.118, José Marcelo Ferreira Costa acduz que, diante do novo contesdo da propriedade, o dreito de propriedade esta no campo do Diteito Pblico, pois o regime que le é aplicada esta tragado na Constituigao Federal. Ao Dircito Civil cabe tao- omente 0 disciplinamento das rlagSes intersubjeuvas entre particulars a respeito da propriedade. In COSTA, José Marcelo Ferreira. Licensas urbanisticas, Belo Horizonte: Forum, 2004, p. 55-56. No mesmo sentido: MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Novos aspectos da funedo social da propriedade tno Direito Pablico. Revista de Diteito Pablico. Sio Paulo: 1984, n° 84, 39-45. Também: DALLARI, Adilson Abreu. Emancipagdo do Direito Pitlico no Brasil. x: ROCHA, Carmem Licia Antunes (coord, Perspectivas do Diteto Pablico ~ Estudos em homenagem a Miguel Seabra Fagundes. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p.101 °" Alinhado com esta idéia, Alvaro Luiz Valery Misra efere que a fungio sécic-ambiental nio constitu um simples limite ao exerecio do dveito de propriedade, pelo qual o propietrio pode fazer tudo aquilo aque nio prejudique a coletividade e o meio ambiente, A fungio sécio-ambiental vai mais além e autoriza gue se imponka a0 propritério comportamentos positives, no exercicio do seu dircito, para que a sua propriedade concretamente se adeque 4 sua fungio. MIRRA, Alvato Valery. Pricipiosfundamentais do Direito Ambiental. In: Revista de Direito Ambiental, Sio Paulo: RT, abr-jun 1996, vol. Cristiane Derani arma que “a0 preceto juridico que garanteo exercicio da relago de propriedade (ar. 5°, XX, da CF) 6 acrescida a doterminagdo jurfdica de obrigagio de fazer”. DERANI, Cristiane. A propriedade na Constiuisdo de 1988 e 0 conteido da “funedo social”. In: Revista de Diteito Ambiental, Sto Paulo: RT, jul-set 2002, vol. 27, . 61. Na mesma linha: GRAU, Eros Roberto, A ordem econdmica na Consttigdo de 1988. Sio Paulo: RT, 1990, p. 11 5. FORMAS DA INCIDENCIA DA FUNCAO SOCIAL SOBRE 0 DIREITO DE PROPRIEDADE ‘A propriedade € direito individual que assegura ao seu titular uma série de poderes e faculdades: usar, gozar, dispor e reivindicar, ou, resumidamente, jus vindicandi ¢ jus abutendi, compreendido neste © jus disponendi. Ao lado dessas faculdades, os doutrinadores clissicos costumavam falar que 0 direito de propriedade tinha caracteristica de plenitude, que permitiria toda espécie de poder licito de utilizagao, Com permissdo para o pleonasmo, o atributo da plenitude ‘deixa de ser pleno’ ante o principio da funcao social, sendo necesséria uma interpretagdo sistemética do ordenamento jurfdico para compreensao da sua extensio. As faculdades decorrentes do direito de propriedade nao podem ser exercidas ilimitadamente, porque coexistem com direitos alheios e porque existem interesses piiblicos maiores no Estado Social. A propriedade, hoje inserida tanto no direito privado como no direito piblico, tem reduzidas as suas faculdades porque deve observar a utilidade publica e o interesse social. Hodiernamente, a propriedade compreende, em seu contetido, além da tradicional faculdade de uso, g0z0 e disposigao por parte de seu titular (direito-garantia), a obrigatoriedade do atendimento de sua fungao social, cuja definigao € inseparével do requisito obrigat6rio do uso racional da propriedade ¢ dos recursos ambientais que Ihe integrantes, impondo ao proprietério uma série de ages e abstengdes. De acordo com Orlando Gomes”, por fungao social da propriedade deve-se entender uma complexa situagao juridica subjetiva, ativa ¢ passiva, que transforma o direito subjetivo de propriedade. Reconhecendo o ordenamento jurfdico que o exercicio dos direitos inerentes A propriedade no podia ser protegido exclusivamente para a finalidade de satisfagao dos interesses do proprietério, a fungao da propriedade torna-se social, trazendo com isto as seguintes conseqiiéncias: a) legitima-se a vedagio a0 Anténio Hermann. Reflexdes sobre a hipertrofia do direito de propriedade na tutela da reserva legal ¢ das dreas de preservagido permanente. In: Anais do 2° Congresso Internacional de Direito Ambiental. $0 Paulo: Imprensa Oficial, 1997, p. 14 ® GOMES, Orlando. Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.107. proprietirio do exercicio de determinadas faculdades; b) 0 proprietdrio passa a ser obrigado a exercer determinados direitos elementares do dominio; ¢ ¢) cria-se um complexo de condigdes para que o proprietario possa exercer seus poderes. Sobre a mesma questao, José Diniz de Moraes™ diz que o principio da fungio social da propriedade pode ser resumido em trés formas distintas de incidéncia sobre 0 direito de propriedade: a) privagao de determinadas faculdades; b) obrigagao de exercitar determinadas faculdades, ¢ c) complexo de condigdes para o exercicio de faculdades atribuidas. 5.1. Privacao de determinadas faculdades ‘A fungao social impae ao proprietério condutas negativas (abstengdes), que subtraem faculdades atribufdas ao direito de propriedade. Essa privago nao nega 0 direito de propriedade, e sim traga os contomos do préprio direito de propriedade, dentro de uma perspectiva que busca, axiologicamente, um ponto de equilibrio entre 0 convivio social e a gestéo da propriedade. A fungio social comprime, de modos diferentes e com intensidade diversa, a atividade normal do proprietétio, A titulo de exemplo, no pode o proprietério causar contaminagao do solo, construir em reas de reserva legal ou em reas de preservacao permanente’. Em relagdo a estas tiltimas, a limitag4o consiste na imodificabilidade, existindo restrigo a0 direito de construir™’, nao meramente por interesse urbanistico, mas por razdes ambientais e de equilibrio ecolégico. A intangibilidade das dreas de preservagio permanente nao é absoluta”’, porquanto 0 Cédigo Florestal, com a redagao dada pela MORABS, José Diniz de. A fungdo social... p 128-138, ‘S Areas de preservagao permanente (APP) so aquelas protegidas nos termos dos arts. 2° ¢ 3° do Cédigo Florestal (Lei n° 4.77/65), situadas ao Iongo ou ao redor dos corpos hidricos: no topo dos morros, montes, montanhas e serras; nas encostas com declividade superior a 45%; nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; nas bordas dos tabuleiros ou chapadas: em altitude superior a 1800metros; cobertas ou ndo por vegetasdo nativa, que tém a fungo ambiental de preservar os recursos |dricos, a paisagem, a estabilidade ecol6gica, a biodiversidade, o fluxo génico da fauna e da flora, protegoro solo e assegurar o bem-estar das populages hummanas 0 art. 1° do Cédigo Florestal dispée que todas as formas de vegetagio, reconhecidas de utilidade as terras que revestem, sio bens de interesse comum a todos os habitantes do pais, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitagdes que a legislacdo estabelece. Assim, o direito de usar ¢ fruir a ‘propriedade piblica ou particular - que difere do dircito de construir ~ deve observar as restrigées legais quanto & supressio de vegetacto © as edificagdes. estando o dircito limitado pela fungao sécio-ambiental dda propriedade e pelo bem estar da coletividade. 5"'No Ambito do Rio Grande do Sul, o Cédigo Estadual de Meio Ambiente (Lei n.° 11,520/2000), no art. 14, inc, IX, considera as APPs privadas de qualquer regime de exploragao direta ou indireta dos recursos nalurais, sendo apenas admitida com prévia autorizagio do érgio ambiental competente quando for 25 Medida Proviséria n.° 2.166-67/2001*, prevé a excepcional possibilidade de supressio de vegetagio em 4reas de preservagio permanente, quando necessiria & execugio de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade publica ow interesse social (assim definidos no art. 1°, §2°, inc. IV e V™), quando inexistir alternativa técnica ¢ locacional. Fica patente, pois, a fungao social Tomando-se os exemplos mencionados, nota-se que, como medida racionalizadora do ordenamento urbanistico e da preservacZo ambiental, 0 jus aedificandi ndo € mais contetido do dominus soli Gize-se que essa fungio social de privagio de determinadas faculdades insitas a0 direito de propriedade nfo se confunde com a limitagio do uso da propriedade privada como forma de intervengao da Administragio Pablica no dominio privado (ex: servidao administrativa), como esclarece Cristiane Derani®: Nao se trata de limitar o desfrute na relagdo de propriedade, mas conformar seus elementos e seus fins necesstia & execugao de obras, planos, atividades, ow projetos de utilidade pablica ou interesse social, apés a prévia realizagio de estudo prévio de impacto ambiental (BIA) e relatério de impacto ambiental (RIMA). Presente a hipétese de utilidade pablica ou interesse social, o érgio ambiental competente poderé autorizar a supressao de vegetardo, eventual e de baixo impacto ambiental, em APP, e deveré indicar as medidas mitigadoras e compensalérias que deverio ser adotadas pelo empreendedor piblico ot. patticuar * Hsta medida proviséria est4 em vigor por forga da Emenda Constitucional n° 32/2001, que dispds que as MPs editadas cm data anterior & da publicagéo da emenda continuam em vigor até que medida rovisria ulterior as revogueexplicitamente ou até deliberagiodefinitiva do Congresso Nacional PAR I= (.) §2° - Para os efeitos deste Cédigo, entende-se por IV - Vilidade publica a) as alividades de seguranga nacional e protegio sanitéria; b) as obras essenciais de infra-estrutura destinadas aos servigos publicos de tansporte, saneamento © energia: ©) demais obras, planos, atividades ou projetos em resolugio do CONAMA. V = Interesse social: a) as atividades imprescindiveis & proterdo da integralidade da vegetagdo nativa, tais como: prevenedo, combate ¢ controle do fogo, controle da erosao. erradicagio de invasoras e protes4o de plantio com espécies nativas, conforme resolugao de CONAMA:; 'b) as atividades de manejo agro-florestal sustentivel praticadas na pequena propriedade ou posse rural familiar, que nao descaracterizem a cobertura vegetal e nfo prejudiquem a fun¢o ambiental da area: ) demais obras, planos, atividades ou projetos definidos em resoluga0 do CONAMA. © Nao hi livre poder discricionério - baseado em juizo de conveniéncia © oportunidade - da Administrago Pablica para reconhecer as hip6teses de utilidade publica ou interesse social que autorizem a allerago de area de preservaco permanente. Hi, in casu, 0 que a doutrina chama de ‘discricionariedade técnica imprépria’, em que a lei usa termos que dependem da manifestagio dos érgios técnicos, cabendo ao administrador, face a0s critério técnicos, a adogio de uma tnica solugdo jusidicamente vélida para 0 caso concreto, A discricionariedade da interpretagio da adequagio do caso concrete a0s conccitos indeterminados esta limitada pelos estudos técnicos ¢ pelo principio da legalidade, que vincula 0 administrador aos dispositivos legais. Assim, ato administrative que declara a utilidade publica ou 0 teresse social do empreendimento fica sujeito ao controle judicial ® DERANI, Cristiane. A propriedade na Constituigdo de 1988 ¢ 0 contetido da “funedo social”. In: Revista de Direito Ambiental. S40 Paulo: RT, jul-set 2002, vol. 27, p63. 26 dirigindo-a ao atendimento de determinagées de polticas pliblicas de bem-estar coletivo, Esse comportamento decorre do entendimento de que propriedade € uma relagio com resultados individuais€ —_sociais, simultaneamente. Os meios empregados ¢ os resultados alcangados devem estar condizentes com os objetivos Jjuridicos. A fungao social da propriedade corresponde a um poder-dever e compreende a imposigao de comportamentos negativos ¢ positivos ao proptietario, razio por que nao hé como entendé-la mera extensao do poder de policia. Com a fungao social, visa-se & promosao do exercicio do direito de propriedade de modo mais compativel com a utilidade social, ou, em outras palavras, ndo pode a propriedade ser usada de modo nocivo ou contrério & utilidade social.* 5.2. Obrigacdo de exercitar determinadas faculdades A expressio fungo social passa por uma idéia operacional, impondo ao proprietario nio somente condutas negativas (abstengdes), mas também positivas (obrigagées de fazer, como de parcelar gleba de sua propriedade).** A funeao social atua principalmente pela via de prestagGes positivas a cargo do proprietério. A fungdo social reclama regras impositivas, que estabelegam para 0 proprietirio obrigagGes de agir, na forma de comportamentos ativos na diregio do proveito social. O art, 182, §4°, da CF, é exemplo tipico que impée aos proprietérios a obrigagao de construir ou aproveitar adequadamente a propriedade urbana, sob pena de patcelamento compulsério, imposto progressivo ou desapropriagao. Nesse sentido: GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano. Sa0 Paulo: RT, 1983, p.65. © Alinhado com esta idéia, Alvaro Luiz Valery Mirra refere que a fungao s6cio-ambiental nao constitui um simples limite a0 exercicio do diteito de propriedade, pelo qual o proprietario pode fazer tudo aquilo gue nao prejudique a coletividade e o meio ambiente, A funcio sécio-ambiental vai mais além e autoriza que se imponba ao proprietério comportamentos positives, no exercicio do seu direito, para que a sua propriedade concretamente se adeqle & sua fungio. MIRRA, Alvaro Valery. Principios fundamentais do Direito Ambiental. In: Revista de Direito Ambiental. Sio Paulo: RT, abr-jun 1996, vol.2. Cristiane Derani afirma que “ao preceito juridico que garante o exercicio da lag de propriedade (art. 5°, XI, da CF) é acrescida a determinagio juridica de obrigacio de fazer”. DERANT, Cristiane. A propriedade na Constituigdo.., p. 61. Na mesma linha: GRAU, Eros Roberto. A ordem econdmica... p. U1 © an. 182 - §4° - E facultado a0 Poder Pablico municipal, mediante lei especifica para érea incluida no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietario do solo urbano néo edificado, subutilizado ou nao utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: 1 parcelamento ou edificagdes compulsérios; oo 5.3. Complexo de condigSes para o exercicio de faculdades atribufdas A criagio de um complexo de condigdes para que 0 titular do direito de propriedade possa exercer seus poderes € também forma tipica do prinefpio da fungao social. Aqui, fala-se de conformagao da atividade do titular da propriedade como forma de satisfagao de interesse social, isto &, a eficdcia dos atos praticados pelo proprietario € subordinada & observincia de determinados pressupostos, que variam conforme 0 estatuto sob o qual se encontram disciplinados. O no atendimento desses pressupostos pode justificar até a perda do bem, com ou sem indenizagao, conforme o caso. proprietario tem dever de dar & propriedade uma destinagao que atenda aos fins sociais (cultivo da terra, parcelamento do solo para fins de moradia, etc.), mas a destinagao deve ser Iicita, Relativamente a propriedade agréria encontra-se nos arts. 184 e 186 da CF® o exemplo mais caracteristico dessa forma de incidéncia, em que sio estabelecidas uma série de condigdes para que ela possa cumprir sua fung3o social, sob pena de desapropriagao-sangio. Quanto & propriedade urbana, segundo o art. 182, §2°, da CF, cumpre sua fungio social quando atende as exigéncias fundamentais de ordenagio da cidade expressas no plano diretor. Este, como instrumento bisico da politica de desenvolvimento e de expansio urbana, tem por objetivo ordenar 0 pleno desenvolvimento das fungdes sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Assim, pode o Poder Piblico municipal conformar ou condicionar as propriedades urbanas, de modo que elas cumpram sua fungao social, por exemplo, Il imposto sobre a propriedade prediale teritorial urbana progressivo no tempo: I~ desapropriagao com pagamento mediante ttulos da divida publica de emissio previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais ¢ sucessivas, assegurados 0 valor real da indenizagao e 0s juros legais * Ant 184 ~ Compete & Unido desapropriar por ineresse social, para fins de reforma agra, o imével rural que nfo esteja cumprindo sua funglo social, mediante prévise justa indenizagio em titulos da divida agritia |] [Ant 186 ~ A funglo social é cumprida quando a propriedade rural atende, simullaneamente, segundo critéros ¢ graus de exigéncia estabelecidos em le, aos segues requisitos 1 aproveitamento racional e adequado Il utilizagao adequada dos recursos naturais disponiveis e preservacio do meio ambiente; I~ observancia das disposigdes que regulam as relagdes de trabalho: TV ~exploragio que favoresa o bem-estar dos proprietéris e dos tabalbadores 28 dando destinagéo especifica a determinadas zonas ou éreas do Municipio ou estabelecendo diretrizes para as construgbes. HA outras medidas, ainda, que podem ser impostas como condigao para 0 exercicio, por exemplo, da faculdade de construir, como a necessidade de adotar medidas de seguranga contra incéndio ou de realizagao de compensagdes ambientais ou sociais, 6. A REPERCUS ‘AO DO PRINCIPIO CONSTITUCIONAL DA FUNCAO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO SISTEMA DO CODIGO CIVIL DE 2002 O exame dos dispositives do Cédigo Civil relativos & propriedade exige um rompimento paradigmético ¢ metodolgico. Hé necessidade de buscar-se 0 cotejo da nova legislagdo com 0s prinefpios insculpidos na Constituigao Federal, para apreender- se a acepcdo das regras codificadas com vistas A concretizagao dos fundamentos objetivos do Estado Democratico™. O exame isolado do Cédigo Civil ocasionaria a perda de uma visio globalizada do fendmeno jurfdico. Nao se pode interpretar a propriedade com 0 conteido absoluto com o qual foi concebido 0 Cédigo Civil de 1916. A modema concepgio de direito exige que os valores constitucionais, em especial os relativizadores, sejam aplicados na concretizagao da extensdo do direito de propriedade. A titularidade ainda constitui um dos pilares informativos da legislagao civil, mas nao mais se mostra possivel que a propriedade seja concebida meramente com caréter individualista. A estrutura da propriedade privada no Cédigo Civil de 2002, em que pese nao apresentar caréter revolucionério, apresenta algumas inovacdes, no sentido de incorporar os prineipios informadores da matéria, nfo se tratando de meras reformas formais. Consagra-se a relativizagao do direito de propriedade, afastando a tradigao © art. I” — A Replica Federativa do Brasil, formada pela unido indissolivel dos Estados ¢ Municipios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democratico de Dircito ¢ tem como fundamentos: 1a soberania: Ti acidadania; I~ a dignidade da pessoa humana: IV ~ 0s valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;, V -o pluralismo politico, Art, 3° ~ Constituem objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil: 1 construir uma sociedade livre, justa e solidaria; IL garantir 0 desenvolvimento nacional: UL exradicar a pobreza c a marginalizagio e reduzir as desigualdade sociais e xegionais 29 patrimonialista, individualista ¢ absolutista insculpida no Cédigo Civil de 1916", & incorporando a concepgao social e funcional da propriedade.®* A regra do att. 1228 do Cédigo Civil no perfeita nem ideal, todavia, a utilizagao de recursos hermenéuticos, especialmente a interpretag3o conforme a Constituigao, permite uma adequada utilizagao, acarretando a possibilidade de estabelecer freios ¢ eventuais abusos na wtilizagao da propriedade dominial. Como refere Eduardo Kraemer, € certa a referéncia que “os dispositivos teferidos nao se apresentariam necessérios, caso o intérprete realizasse adequada ¢ pertinente aplicagio das mormas e principios constitucionais”. Contudo, “a concretizagio em normas infraconstitucionais permite uma melhor aplicagao, especialmente para aqueles ainda resistentes a eficdcia dos principios constitucionais”.”” © disposto no art. 1228 e seus pardgrafos do Cédigo Civil consagra definitivamente a funcionalizagdo da propriedade, criando fungoes negativas, imposicao de limites, mas igualmente deveres positivos. Para exame da concepgo social da propriedade no Cédigo Civil de 2002, insta, de inicio, trazer a colagao 0 art. 1228, in verbis: Art, 1228 - O proprietério tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, ¢ 0 direito de reavé-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, § 1° - O direito de propriedade deve ser exercido em consoniincia com as suas finalidades econdmicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com 0 estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, 0 equilibrio ecolégico ¢ 0 patrim6nio histérico ¢ artistico, bem como evitada a poluigdo do ar ¢ das guas. IV ~- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raga, sexo, cor, idade © quaisquer outras formas de discriminagio. © Bstabelecia 0 revogado Cédigo Civil de 1916, em seu art. $24 Art. $24 ~ A lei assegura a0 proprietirio 0 direito de usar, gozar e dispor de seus bens, ¢ 0 direito de reavé-los do poder de quem quer que injustamente a possua. O dispositive era amplo, quase absoluto. O Cédigo Civil de 2002 uouxe o art. 1228, caput, como equivalente do antigo art. 524, mas acrescentou cinco parigrafos todos com a concepcio da fungio social da propriedade. ® KRAEMER, Eduardo, Algumas anotagdes sobre os direitos reais no nove Cédigo Civil. Ix: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O novo Cédigo Civil e a Constituigio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, 201 © Idem, p.201. ® Nesse sentido: VARELA, Laura Beck Varela. Das propriedades @ propriedade. In: MARTINS COSTA, Judith (org.). A Reconstrugdo do Direito Privado. Sio Paulo: RT, 2002. Também: VARELA. Laura Beck Varela; LUDWIG, Marcos de Campos. Da propriedade as propriedades. In: MARTINS COSTA, Judith (org.). A Reconstrucda do Direito Privado, Sao Paulo: RT, 2002 ™ MARTINS COSTA, Judith. Diretrizes tedricas no nove Cédigo Civil brasileiro. Sao Paulo: Saraiva, 2002, p. 145-156. 30 § 2° - Si0 defesos os atos que nfo trazem ao proprietétio qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intencao de prejudicar outrem, §3°- O proprietirio pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriagio, por necessidade ou utilidade piblica ow interesse social, bem como no de requisigao, em caso de petigo publico iminente, § 4° - O proprietario também pode ser privado da coisa se © imével reivindicado consistir em extensa rea, na posse ininterrupta ¢ de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerdvel mémero de pessoas, ¢ estas nela houverem, realizado, em conjunto ou separadamente, obras ¢ servigos considerados pelo juiz de interesse social ¢ econdmico relevante § 5° - No caso do parigrafo antecedente, o juiz fixaré a justa indenizagio devida 20 proprietério; pago 0 prego, valerd a sentenga como titulo para o registro do imével em nome dos possuidores. O §1° do referido artigo, que determina que o dieito de propriedade deve ser exercido em consonancia com as finalidades econémicas e sociais e de modo que sejam preservados a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilibrio ecolégico, o patriménio ecolégico, histérico ou artistico, bem como evilada a poluigao do ar e das dguas, de acordo com o estabelecido em lei especial, explicita a necessidade de uso da propriedade de forma a preservar 0 meio ambiente, incorporando 0 principio fundamental do meio ambiente sadio e equilibrado insculpido no art. 225 da Constituigao Federal. A relagao existente entre tutela ambiental e direito de propriedade € ressaltada por Antonio Hermann Benjamin™ [..1 os problemas ambientais de hoje sio conseqiiéncia, em grande medida, da utilizagéo (ou mé utilizagio), no passado, do direito de propriedade, tendéncia essa que alcanga patamares inimagingveis (..). No Ambito do sistema jurfdico, por conseguinte, observa-se uma irrefutvel ligagio umbilical entre o tratamento dado a propriedade, enquanto instituto de direito, e aquele que orienta a solugo dos chamados conflitos ambientais. A norma do § 2° do art, 1228 estipula a proibigdo de atos que nao tenham utilidade ou comodidade a0 proprietétio e que tenham a finalidade de prejudicar a ® BENJAMIN, Anténio Hermann, Reflexdes sobre a hipertrofia do direito de propriedade na rutela da reserva legal e das dreas de preservagio permanente. In: Anais do 2° Congresso Internacional de Direito Ambiental. $0 Paulo: Imprensa Oficial, 1997, p. 14 a1 outrem, como por exemplo, a construgo de um muro alto somente para tirar a visio pela janela da residéncia vizinha. O exemplo pode parecer risrio, mas, gize-se, abusos de direito fundados em rixas de vizinhanga s4o extremamente comuns. Pode-se pensar, também na hipétese de um lindeiro executar uma obra ocupando parte do terreno do vizinho, € este opta por destruir a benfeitoria ao invés de pleitear indenizagao correspondente. Sob a idéia de interpretagio do sistema jurfdico, 0 descumprimento da proibi¢do do §1° ensejaria a aplicag4o das normas de responsabilidade civil, em especial do disposto nos arts. 186” ¢ 187" do Cédigo Civil. Pronunciando-se sobre o tema, pondera Silvio Rodrigues” que “ha abuso de direito quando ele nao é exercido de acordo com a finalidade social para a qual foi conferido, pois [...] os direitos sao conferidos ao homem para serem usados de uma forma que se acomode ao interesse coletivo, obedecendo & sua finalidade, segundo o espirito da instituigao”. No §3° do art. 1228 encontram-se previstas formas de intervengao do Estado na propriedade privada — desapropriagao ¢ requisigao —, que dizem com o jus disponendi, faculdade intrinseca da propriedade. Fosse absoluto o direito de propriedade, o proprietério somente perderia © bem por ato de manifestagio de vontade (venda, doagdo, remincia ou abandono). A presenga desse dispositive no Cédigo Civil, além de estar respaldada pelos inc. XXIV ¢ XXV do art. 5° da Constituigao Federal, reafirma, agora sob o viés civilista, que o interesse piblico prepondera sobre o particular. J& os parégrafos 4° © S° do art. 1228 agregaram a atribuicdo de poderes ao magistrado para a conversio de cio petitéria, de carter real, em expropriatria/indenizatéria. Sobre a natureza juridica desse novo instituto, debate-se a doutrina, defendendo tratar-se de espécie de usucapido coletivo, forma de desapropriagio judicial, instituto novo chamado posse-trabalho, contra-direito processual, ou forma de desapropriago especial, como se passa @ examinar. ‘Na obra de Washington de Barros Monteiro”, atualizada por Carlos Adalberto Dabus Maluf, o instituto é visto como uma forma de perda do direito de propriedade: 0 * Ant 186 - Aquele que, por ago ou omissZo voluntéria, negligéncia ou imprudéncia, violar direito © causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilfcito. ™ ant 187 — Também comete ato ilicito o titular de um direito que, a0 exercé-lo, excede manifestamente 0s limites impostos pelo seu fim econémico ou social, pela boa-f6 ou pelos bons costumes. RODRIGUES, Silvio, Direito Civil - Parte geval, v.1, Sio Paulo: Saraiva, 1998, p314, ™ MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, v3: diteito das coisas. 37° ed, Revista ¢ atualizada por Carlos Adalberto Dabus Maluf. Sao Paulo: Saraiva, 2003, p.87. usucapiao coletivo. Esse instituto, todavia, nao se coaduna com o usucapiio coletivo”. Este € uma forma de aquisigio de propriedade gratuita, nfo ensejando énus a0 adquirente; a estrutura da posse ensejadora do usucapio é relativa a determinado individuo, com carster de pessoalidade, ¢ nao tem requisitos como a realizagao de obras ou servigos, mas sim, o decurso do tempo como um fato jurfdico a ensejar a aquisicao da propriedade. H4, por outro lado, semelhangas com deste instituto com 0 usucapiio especial rural e urbano (arts. 1239 e 1240 do Cédigo Civil) J4 Maria Helena Diniz” diz tratar-se de posse-trabalho, afirmando: Trata-se, como nos ensina Miguel Reale, de uma inovagio substancial do Cédigo Civil, fundada na fungao social da proptiedade, que da protecao especial & posse-trabalho, isto 6, a posse traduzida em trabalho criador, quer se concretize na construgio de uma morada, quer se manifeste em investimentos de carter produtivo ou cultural. Essa posse qualificada é enriquecida pelo valor laborativo, pela tealizagio de obras ou servigos produtivos ¢ pela construgao de uma residéncia, A opinifo de Maria Helena Diniz é diametralmente oposta aquela expressa na teoria anterior, especialmente no que diz respeito & finalidade social da norma, Com efeito, observe-se esse trecho: "© usucapito coletive foi introduzido na legislaco brasileira pelo Estatuto da Cidade (Lei n* 10.257/01), cujo artigo 10 dispae, in verbis Art, 10. As areas urbanas com mais de duzentos e cinglienta metros quadradas, ocupadas por populacio de baixa ronda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente ¢ sem oposisio, onde no for possivel identificar os terrenos acupados por cada possuidor, sio suscepliveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores nao sejam proprietarios de outro imével urbano ou rural. § £0 possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse a de seu antecessor, contanto que ambas sejam continuas, § 2 A usucapito especial coletiva de imével urbano ser4 declarada pelo juiz, mediante sentenga, a qual servird de titulo para registro no cartério de registro de iméveis. § ¥ Na sentenga, 0 juiz atribuiré igual fragio ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensao do terreno que cada um ocupe, salvo hipétese de acordo escrito entre os condéminos, estabelecendo fragées ideais diferenciadas. § 40 condominio especial constituido é indivisivel, nio sendo passivel de extingio, salvo deliberagio favorivel tomada por, no minimo, dois tergos dos condéminos, no caso de execugao de urbanizaca0 posterior & constituigso do condominio, § 5# As deliberagdes relativas @ administragao do condomfnio especial serao tomadas por maioria de votos dos condéminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes. ™ DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. S40 Paulo: Saraiva, 17'ed., p.178. Deveras, 0 que se poderia fazer nas reivindicatérias dos proprietarios contra os que de boa {é possuiram Areas extensas loteando-as, nelas instalando sua residéncia ou empresa ou nelas investindo economicamente? Poder-se- ia destruir suas vidas © uma economia familiar? O proprietério, vencedor da demanda, nao receberd de volta bem de raiz, mas sim o justo prego do imével, sem nele computar 0 valor das benfeitorias, por serem produto do trabalho alheio, Justifica-se dada a relevancia dos interesses sociais em jogo, que a restituigo da coisa seja convertida pelo érgio judicante em justa indenizagao. De modo que o proprietério reivindicante, em vez de reaver a coisa, diante do interesse social, receberd, em dinheiro, 0 seu justo valor. Pago o prego, a sentenga valeré como titulo para a transcrigdo do imével. Hipstese em que se da a0 Poder Judicidrio o exercicio do poder expropriatério em casos concretos. Nao se pode aceitar essa teoria que define o instituto em questo como posse- trabalho. Isso porque nfo se pode condensar nessas duas palavras toda a estrutura de requisitos imaginada pelo legislador, mormente, quando se observa que a condigao de validade priméria para que ocorra a aquisigZo ndo é propriamente a de posse, nem tampouco 0 trabalho (caracterizado pela realizagdo de obras e servigos), mas sim o pagamento do prego, sem o que a sentenga no teré validade como titulo para o registro do imével. Segundo Miguel Reale”, “a norma cria a desapropriagao judicial, considerada uma inovagio do mais alto alcance, inspirada no sentido social do direito de propriedade, implicando nao s6 novo conceito desta, mas também novo conceito de posse, que se poderia qualificar como sendo de posse-trabalho”. Nelson Nery Jiinior e Rosa Maria de Andrade Nery", assim como Teori Albino Zavascki®’, identificam o instituto como uma forma de desapropriagao judicial, em que 4 perda compulséria da propriedade, motivada por razdes de ordem social, com justa indenizagao ao proprietétio expropriado. A norma dos §§ 4° ¢ 5°, do artigo 1.228 do Cédigo Civil, realmente se aproxima do instituto da desapropriagao, que vem a ser, de igual forma, uma forma de perda compulséria da propriedade, motivada por razdes de ” Exposigdo de motivos ao Ministro da Justica, Diério do Congresso Nacional, Sego I, suplemento B a0 p. 61, 13,6.1975,n, 27 ¢,p. 121. " NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade, Novo Cédiga Civil e Legislagdo Extravagante Anotados, Ed. RT, Sao Paulo, 2002, p. 419) “'ZAVASCKI, Teori Albino. A Tutela da Posse na Constituigio ¢ no Projeto do Cédigo Civil. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A Reconstrucdo do Direito Privado. So Paulo: RT, 2002, p 853-854.

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