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FERDINAND DE SAUSSURE CURSO DE LINGUISTICA GERAL Organizado por Cuarves BALLy e ALBERT SECHEHAYE com a colaboragio de ALBERT RIEDLINGER Prefacio 4 edicao brasileira: Isaac Nicotau SALuM (da Universidade de S. Paulo) > EDITORA CULTRIX So Paulo Titulo original: Cours de Linguistique Générale. Publicado por Payot, Paris. Tradugao de Ant6nio Chelini, José Paulo Paes ¢ Izidoro Blikstcin. Dados Internacionais de Catalogagio na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Saussure, Ferdinand de, 1857-1913. Curso de lingitistica geral / Ferdinand de Saussure ; organizado por Charles Bally, Albert Sechehaye ; com a colaboragao de Albert Riedlinger ; prefacio da edicfo brasileira Isaac Nicolau Satum ; tradugdo de Anténio Chelini, José Paulo Paes, Izidoro Blikstein. -- 27. Ed. -- Sdo Paulo : Cultrix, 2006. Titulo original : Cours de linguistique générale ISBN 978-85-316-0102-6 1. Linguistica I. Bally, Charles. Il. Sechehaye, Albert. III. Riedlinger, Albert. IV. Salum, Isaac Nicolau. V. Titulo. 06-3514 indices para catélogo sistemitico 1. Lingiistica 410 © primeiro nimero a esquerda indica a edigSo, ou reedigfo, desta obra. A primeira dezena a direita indica o ano em que esta edigfo, ou reedig&o foi publicada. Edigao Ano 28-29-30-31-32-33-34 07-08-09-10-11-12-13 Direitos de tradugdo para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX ETDA. Rua Dr. Mario Vicente, 368 - 04270-000 - Sto Paulo, SP Fone: 6166-9000 ~ Fax: 6166-9008 E-mail: pensamento@ecultrix.com.br http:/Avww.pensamento-cultrix.com.br que se reserva a propriedade literdria desta traduso. INDICE PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA XIII Prerdcto A PRIMEIRA EDIGAO. 1 PrerMcio A SEGUNDA EDICAO. 4 PrerAcio A TERCEIRA EDICAO. 5 INTRODUCAO Capfruto I — Visto geral da bistéria da Lingiistica, 7 Capfruto Il — Matéria e tarefa da Lingiiistica; suas relagdes com as ciéncias conexas. 13 Capiruto III — Objeto de Lingdistica. S$ 1. A Mngua; sua definicio. 15 S 2. Lugar da Hngua nos fatos da linguagem. 19 $3. Lugar da Ingua nos fatos humanos. A Semiologia. 23 Cartruto IV — Lingiistica da lingua ¢ lingiltstica da fala. 26 CapituLo V — Elementos internos e elementos externos da lingua. 29 Cariruto VI — Representacao da lingua pela escrita. S 1. Necessidade de estudar este assunto. 33 5 2. Prestigio da escrita: causas de seu predominio sobre a forma falada. 34 $ 3. Os sistemas de escrita, 36 $ 5. Efeitos desse desacordo. 39 Carfruzo VII — A Fonologia. $ 1. Definigao. 42 § 2. A escrita fonoldgica. 4B $ 3. Critica ao testemunho da escrita. 44 VII APENDICE PRINCIPIOS DE FONOLOGIA Carftuto I — As espécies fonoldgicas. $k. $ 2. S 3. Definicgio do fonema. O aparelho vocal e seu funcionamento. Classificagéo dos sons conforme sua atticulacao bucal. Capfruto Lk — O fonema na cadeia falade. wenn wane 1. 2. 3. MO We Necessidade de estudar os sons na cadeia falada. A implosio ¢ a explosio. Combinacdes diversas de exploses e implosies na cadeia, Limite de sflaba ¢ ponto vocilico. Criticeas as teorias de silabacio. Duracio da implosio e da explosio. Os fonemas de quarta abertura. O ditongo. Ques- tdes de gratia. PRIMEIRA PARTE PRINCIPIOS GERAIS Capiruvo. I — Natureza do signo lingiistico. sh § 2. Signo, significado, significante. Primeiro principio: a arbitraiedade do signo. § 3. Segundo princtpio: cardter linear do significante. Capfruto Il — Imutabilidade e¢ mutabilidade do signo. $1. Imutabilidade. § 2. Mutabilidede. CapiruLo HI — A Lingiitstica estdtica e a Lingiilstica cvolutiva. wan A mw Dualidade interna de todas as ciéncias que operam com valores, A dualidade interna e a histéria da Lingiifstica. A dualidade interna ilustrada com exemplos. A diferenca entre as duas otdens ilustrada por com- paragGes. As duas Lingiifsticas opostas em seus métodos e em seus ptincfpios. Lei sincrénica ¢ lei diacrénica. Existe um ponto de vista pancténico? VII it $ 8. Conseqiiénciss da confuséo entre sincrénico e dia- crénico. $ 9. ‘Conchusies. SEGUNDA PARTE LINGUISTICA SINCRONICA Capfruto I — Generalidades. Carfruto Il — As entidades concretas da lingua. § 1. Entidades ¢ unidades. Definicdes. § 2. Métodos de delimitacio. $ 3. Dificuldades priticas da delimitacgo. S$ 4. Conclusio. Capiruto III — Identidade, realidades, valores. Capiruco IV — O valor lingiiistico. $1. A Hogue como pensamento organizado na matéria § 2. ©. lb igsizo considera em teu ape co $3. © nl Iingtize connidersdo sm sou especie te $ 4. © signo considerado na sua totalidade. Capiruto V — Relacdes sintagméticas e relagées associativas. $ 1. Definigdes. S$ 2. Relacdes sintagmaticas § 3. As relagdes associativas. Carfruto VI — Mecanismo da lingue. S 1. As solidatiedades sintagmdticas. § 2. Funcionamento simultineo de duas formas de agru- to pament S$ 3. O arbitrério absoluto ¢ 0 arbitririo relativo. Carfruzto VII — A Gramética e suas subdivisdes. § 4. Definigdes: divisdes tradicionais. § 2. Divisdes racionsis. Carfruto VIII — Papel das entidades absiratas em Gramitica. IX 112 4 7 119 121 122 123 125 130 132 136 139 142 143 145 148 149 152 156 158 160 TERCEIRA PARTE LINGUISTICA DIACRONICA Cariruto I — Generalidades. 163 Capiruco II — As mudangas fonéticas. 187 $ 1, Sua regularidsde absoluta: 167 $ 2. Condigdes das mudangas fonéticas, 168 S 3. Questées de método. 169 $ 4. Causas das mudangas fonéticas. 171 $5. A acio das mudancas fonéticas € ilimitada. Ws Cariruzo Ill — - Conseqiitncias gramaticais da evolucdo fonética. § 1. Ruprura do vinculo gramatical. 178 $ 2. Obliteragio da composicio das palavras. 179 § 3. Nao existem parelhas fonéticas. 180 S$ 4. A alternancia. 182 § 5, As leis de alternancia. 183 S 6. A alternancia ¢ o vinculo gramatical. 185 Carituro IV — A analogia. $ 1. Definigio e exemplos. 187 $ 2. Os fenédmenos analdgicos nfo sio mudancas. 189 S 3. A analogia, principio das criagdes da Mngua. 191 Carfruto V — Analogia e evolugao. § 1. Como uma inovagio analdégica entra na lingua. 1% S 2. As inovagdes analégicas, sintomas de mudangas de interpretagio. 197 $ 3. A analogia, principio de renovasdo ¢ de conserva- So, 199 CapiruLo VI — A etimologia popular. 202 Cariruco VIL — A aglutinagao. $ 1. Definigao. 205 § 2. Aglutinaciio ¢ amalogia. 206 Capituto VIII - Usidades, identidades e realidades diacrénicas. 209 Apéndices. A. ‘Andlise subjetiva e andlise objetiva. 213 B. A andlise subjetiva e a determinagio das subunidades. 215 C. A etimologia. 219 x QUARTA PARTE LINGUISTICA GEOGRAFICA Carituzo I — Da diversidade das linguas. 221 Cariruro Il — Complicagdes da diversidade geogréfica. § 1. Coexisténcia de virias Mnguas num mesmo ponto. 224 S$ 2. Lingua literdria e¢ idioma local. 226 Capfruto III — Causas da diversidade geogrdjica. §$ 1. O tempo, causa essencial. 228 § 2. Acdo do tempo num territério continuo. 230 $ 3. Os dialetos nio tém limites naturais. 233 Capfruto 1V — Propagagéo das ondas lingiiisticas. $ 1. A forga do intercurso e 0 espfrito de campandtio. 238 $ 2. As duas forgas reduzidas a um princfpio unico. 240 § 3. A diferenciagdo lingiifstica em tertitérios separados. 234 QUINTA PARTE QUESTOES DE LINGUISTICA RETROSPECTIVA CONCLUSAO Carituzo 1 — As dues perspectivas da Lingiiistica diacrénica. 247 Capiruto II — A dingua mais antiga e 0 protdtipo. 251 Carfruto II] — As reconstrugées. $ 1. Sua natureza e sua finalidade. 255 § 2. Grau de cetteza das reconstrugies. 257 Cariruto IV — O testemunbo da lingua ent Antropologia ¢ em Pré-Histéria. § 1. Lingua ¢ raca. 260 $ 2. Etnismo. 261 § 3. Paleontologia lingiifstiza. 262 § 4. Tipo lingiiistico ¢ mentalidade do grupo social. 266 Capfruto V — Familias de linguas € tipos lingilsticos. 268 Inpice ANAL{tICo. 273 XI PREFACIO A EDIGAO BRASILEIRA Estas palavras introdutérias 4 edicgao brasileira do Cours de linguistique générale nao pretendem expor ou discutir as doutri- nas lingiiisticas de Ferdinand de Saussure, nem tampouco apre- sentar a versio portuguesa no que ela significa como transposi- g&o do texto francés. Visam a uma tarefa bem mais modesta, mas, talvez, mais util ao leitor brasileiro, estudante de Letras ou simples leigo, interessado em Lingiiistica: fornecer informagoes sobre o famoso lingiiista suigo e sobre a sua obra e indicar algu- mas fontes para estudo das grandes antinomias saussurianas, ainda na ordem do dia, meio século depois da 1.* edigao do Cours, embora provocando ainda hoje didlogos mais ou me- nos calorosos. A 1. edigio do Cours é de 1916, e 6, como se sabe, “obra péstuma”, pois Saussure faleceu a 22 de fevereiro de 1913. A versio portuguesa saj com apenas 54 anos de atraso. Mas nesse ponto néo somos s6 nds que estamos atrasados. O Cours de linguistique générale no foi um best-seller, mas foi em francés mesmo que ¢le se tornou conhecido na Europa e na América. A 1} edicao francesa, de 1916, tinha 337 pdginas; as seguintes, de 1922, 1931, 1949, 1955, 1962... ¢ 1969, tm 331 paginas. No- te-se, porém, como crescem os intervalos entre as edicdes até a 4.2, de 1949, e depois se reduzem a constante de 7 anos, 0 que mostra que até a edigao francesa teve a sua popularidade aumen- tada nestas duas ultimas décadas. Uma vista de olhos sobre as tradugGes é bastante elucidati- va. A primeira foi a versio japonesa de H. Kobayashi, de 1928, reeditada em 1940, 1941 e 1950. Vem depois a alema de H. Lom- mel, em 1931, depois a russa, de H. M. Suhotin, em 1933, Uma divulgou-o no Oriente, ¢ a outra no mundo germ4nico (e nér- dico) e a terceira no mundo eslavo. A versio espanhola, de XII Amado Alonso, enriquecida com um excelente prefacio de 23 pa- ginas, saiu em 1945, sucedendo-se as edigdes de 1955, 1959, 1961, 1965 e 1967, numa cerrada competicgio com as edigdes france- sas, Sao as edigées francesa e espanhola os veiculos de maior divulgago do Cours no mundo romanico, A versdo inglesa de Wade Baskin, saida em Nova Iorque, Toronto e Londres, é de 1959. A polonesa é de 1961, e a hiingara, de 1967, Em 1967 saiu a notavel verso italiana de Tullio De Mauro, tradugio segura e fiel, mas especialmente notdvel pelas 23 pagi- nas introdutérias ¢ por mais 202 paginas que se seguem ao texto, de maior rendimento, em virtude do corpo do tipo usado, osten- tando extraordindria riqueza de informag6es sobre Saussure € sobre a sorte do Cours, com 305 notas ao texto e uma bibliogra- fia de 15 paginas (cerca de 400 titulos) (1). Tullio De Mauro por essa edigdo se torna credor da gratiddo de todos os que se interessam pela Lingiiistica moderna (?). Mas a freqiiéncia das reedigdes e tradugdes do Cours nesta década de 60 que acaba de expirar mostra que jd era tempo de fazer sair uma versio portuguesa dessa obra cujo interesse cresce com o extraordindrio impulso que vém tomando os estudos lin- gitisticos entre nés e em todo o mundo, Ja se tem dito, e com razZo, que a Lingiiistica é hoje a “vedette” das ciéncias huma- nas. Acresce que o desenvolvimento dos curriculos do nosso es- tudo médio nestes ultimos anos impede que uma boa percentagem de colegiais e estudantes do curso superior possam ler Saussure em francés, Verdade é que restaria ainda a versio espanhola, que é excelente, pelo prélogo luminoso de Amado Alonso, Mas, agora, o interesse piiblico em Saussure cresce, e uma edigao por- tuguésa se faz necessdria para atender 4 demanda das universi- dades brasileiras. (1) Ferdinand de Saussure, Corso di linguistica generale — Intro- duzione, traduzione e commento di Tullio De Mauro, Editori Laterza, Bari, 1967, pp. XXIII +488 pp. (2) As pp. V-XXIII dio uma boa introdugio, ¢ as pp. 3-282 tra- zem o texto, numa vetsao muito fiel. Da p. 285 a 335 vém informactes abundantes sobre Saussure ¢ sobre o Curso; da p. 356 4 360 se exami- nam as relagdes entre Noreen ¢ Saussure. Seguem-se, pp. 363-452, 305 notas, algumas longas. As pp. 455-470 trazem cerca de 400 titulos bi- bliogrdficos, alguns gerais, outros especialmente ligados a Saussure ¢ 20 Cours, As demais so de indices. XIV Se é verdade que a Lingijistica moderna vive um momento de franca ebulig&o, quando corifeus de teorias lingiiisticas numa evolugdo répida de pensamento e investigacdes se vao superan- do a si mesmos, quando nfo s4o “superados” pelos seus discipu- los, o Cours de linguistique générale € um livro classico. Nao é uma “biblia” da Lingiiistica moderna, que dé a Gltima palavra sobre os fatos, mas é ainda o ponto de partida de uma proble- matica que continua na ordem do dia. Nunca Saussure esteve mais presente do que nesta década, em que ele é As vezes declarado “superado”, S6 h4, porém, um meio honesto de superd-lo: é lé-lo, repensar com outros os pro- blemas que ele propés, nas suas célebres dicotomias: lingua ¢ fala, diacronia e sincronia, significante e significado, relagao as- sociativa (= paradigmdtica) e sintagmdtica, identidade e opo- sigdo etc. E bem certo que a Lingiiistica americana moderna surgiu sem especial contribuigao de Saussure; nao deixa, porém, de causar espécie a onda de siléncio da quase totalidade dos lin- giistas americanos com relagaéo ao Cours. Bloomfield, fazendo em 1922 a recensio da Language de Sapir, chama o Cours “um fundamento teérico da mais recente tendéncia dos estudos lin- giiisticos”, repete esse juizo ao fazer a recensio do préprio Cours, em 1924, fala em 1926, do seu “débito ideal” a Sapir e a Saus- sure, mas nao inclui o Cours na bibliografia de sua Language, em 1933 (3). Como a Lingiiistica norte-americana teve desenvolvimento proprio, isso se entende. Mas é conveniente que numa edigio brasileira do Curso se note o fato, para que nossos estudantes nao sejam tentados a “superd-lo” sem té-lo lido diretamente. E verdade que entre nés o que parece ter acontecido é uma (3) GE. De Mmuroy Corso, p. 339. De Mauro lembra algumas exce- goes -(1) “um dos. melhores. enssios de conjunto sobre Saussure é de R. S. Wells, "De Saussure’s System of Linguistics", in Word, IU, 1947, pp. 1-31: -(2) J. T. ‘Waterman, “Ferdinand de Saussure, Forerunner of Modern Structuralism”, in Modern Language Journal, 40 (1956), pp. ors -G) Chomsky, “Current Tesues in Linguistic Theory”, in J. Fodar, J. J. Katz, The Structure of Language. Readings in Philo peri ize, Englewood Cliffs, N. J., 1964, pp. 52, 53, 39 ¢€ ss. © 86. (Ver orto, pp. 339-340, ¢ Bibl., pp. 470 ¢ a. XV supervalorizacio do Cours, transformado.em fonte de “pesquisa”. As vezes 4 pergunta feita a estudantes que j4 onseguiram apro- vagio em Lingiiistica se j4 leram Saussure, obtemos a resposta sincera de que apenas “fizeram pesquisa” nele. E a pergunta sobre o que querem dizer com a expressio “pesquisa em Saus- sure”, respondem que assim dizem porque apenas leram o que ele traz sobre lingua ¢ fala! Entretanto, hoje nZo se pode deixar de reconhecer que 0 Cours levanta uma série intérmina de problemas. Porque, no que toca a eles, Saussure — como Sécrates e Jesus — é rece- bido “de segunda mao”. Conhecemos Sécrates pelo que Xeno- fonte e Plato escreveram como sendo dele. © primeiro era muito pouco filésofo para entendé-lo, € o segundo, filésofo de- mais para no ir além deie, ambos distorcendo-o, Jesus nada es- creveu sen3o na areia: seus ensinos so os que nos transmitiram os seus discipulos, alguns dos quais nao foram testemunhas oculares, Dé-se o mesmo com o Gours de Saussure. Para comegar, foram trés os Cursos de Lingiistica Geral que ele ministrou na Universidade de Genebra: 1" curso — De 16 de janeiro a 3 de julho de 1907, com 6 alunos matriculados, entre os quais A. Riedlinger e Louis Caille. A matéria fundamental deste curso foi: “Fonolo- gia, isto é, fonética fisiolégica (Lautphysiologie), Lin- giiistica evolutiva, alteragdes fonéticas e analdgicas, rela- ¢&o entre as unidades percebidas pelo falante na sincro- nia (anélise subjetiva) e as raizes, sufixes e outras unida- des jsoladas da gramAtica histérica (andlise objetiva), etimologia popular, problemas de reconstrugio”, que os editores puseram em apéndices e nos capitulos finais. 2.¢ curso —- Da 1.* semana de novembro de 1908 a 24 de julho de 1909, com onze alunos matriculados, entre os quais A. Riedlinger, Léopold Gautier, F. Bouchardy, E. Constantin. A matéria deste foi a “relacdo entre teo- ria do signo e a teoria’ da lingua, definigdes de sistema, unidade, identidade e de valor lingitistico. Daf se deduz a existéncia de duas perspectivas metodoldgicas diversas dentro das quais colocou o estudo dos fatos lingiiisticos; a descrigZo sincrénica e a diacrénica”. Saussure varias XVI vezes se mostra insatisfeito com os pontos de vista a que tinha chegado, 3.7 curso — De 28 de outubro de 1910 a 4 de julho de 1911, com doze alunos matriculados, entre os quais G. Dé- gallier, F. Joseph, Mme, Sechehaye, E. Constantin e Paul-F. Regard. Como matéria, “integra na ordem de- dutiva do segundo curso a riqueza analitica do primeiro”. No inicio se desenvolve o tema “das linguas”, isto é, a Lingiiistica externa: parte-se das linguas para chegar & “Jingua”, na sua universalidade e, dai, ao “exercicio e faculdade da linguagem nos individuos” (4). Os editores do Cours — Charles Bally, Albert Sechehaye, com a colaboracao de A, Riedlinger — sé tiveram em mios as anotagées de L. Caille, L, Gautier, Paul Regard, Mme. A. Se- chehaye, George Dégallier, Francis Joseph, e as notas de A. Riedlinger (5), E, tal qual ele foi editado, com a sistematizagao € organizacZo dos trés ilustres discipulos de Saussure, apresenta varios problemas criticos, 1.° — Saussure nfo estava contente com o desenvolvimento da matéria, Nao s6 tinha que incluir matéria ligada as nguas indo-européias por necessidade de obedecer ao programa (*), mas também ele proprio: se sentia limitado pela compreensio dos estudantes e por no sentir como definitivas as suas idéias. Eis o que ele diz a L, Gautier: “Vejo-me diante de um dilema: ou expor o assunto em toda a sua complexidade e confessar todas as minhas dividas, 0 que nZo pode convir para um curso que deve ser matéria de exame, ou fazer algo simplificado, melhor (4) Nao tendo tido acesso direto a obra de R. Godel, Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale de Ferdinand de Saussure, Genebra — Paris, Droz, 1957, resumo 0 apanhado daf faz De Mauro, no Corso, pp. 320-321, ¢ o que diz o ptéprio R. em Cabiers Fer- dinand de Saussure, no. 16 (1958-1959), pp. 22-23. (5) Cf. “Préface de la premiére edition”, p. 8 (3.° ed.), 3° pa régrafo, (6) CE. Préface, p. 7. 1° pardgrafo (fim). XVII adaptado a um auditério de estudantes que no sao lin- gilistas, Mas a cada passo me vejo retido por escri- pulos (1).” 2.2 — Os apontamentos dificilmente corresponderiam ipsis verbis &s palavras do mestre, Como nota R. Godel, “sdo no- tas de estudantes, e essas notas sio apenas um reflexo mais ou menos claro da exposigao oral” (*). 4.2 — Sobre essas duas deformagdes do pensamento de Saussure — a que ele fazia para ser simples para os estudan- tes e a que eles faziam no anotar aproximadamente — soma- -se a da organizagio da matéria por dois discipulos, ilustres, mas que declaram nao terem estado presentes aos cursos (*). Ajunte-se coma trago anedético, que a frase final do Cours tdo citada — @ Lingilistica tem por iinico e verdadeiro objeto a Ungua encarada em si mesma e por si mesma — nao é de Saussure, mas dos editores (1°). Ai esti um problema critico com triptice complicagio. Problema critico grave como o da _exegese platénica ou o problema sinético dos Evangelhos, Naturalmente, as notas dos discipulos de Saussure foram apanhadas ao vivo na hora, como cada um podia anotar. Os editores esperavam muito dos apontamentos de Saus- sure. Mme Saussure no Ihes negou acesso a estes. Mas “grande foi a sua decepgdo: nada, ou quase nada, encontra- ram que correspondesse as anotagdes dos seus discipulos, pois Saussure destruia os seus rascunhos apressados em que ia tra- gando dia a dia o esbogo da sua exposigao” (14), Além disso, embora tivessem reunido apontamentos de sete ou oito discipulos, escaparam-lhes outros que foram depois editados por Robert Godel em mimeros sucessivos dos Cahiers (7) Les sources manuscrites, p. 30, apud De Mauro, Corso, p. 321. (8) Cabiers Ferdinand de Saussure, n* 15 (1957), p. 3. (9) CE. Préface, p. 8, 2.° pardgtafo. (10) Cours, p. 317. R. Godel, Les sources manuscrites, pp. 119 e 181, apud De Mauro, Corso, p. 451 (nota 305 in initio). (11) Cours, Préface, pp. 7-8. XVIV Ferdinand de Saussure e, depois, na publicagio atras citada — Les sources manuscrités du Cours de linguistique générale de Ferdinand de Saussure — a que Benveniste, em conferén- cia pronunciada em Genebra a 22 de fevereiro de 1963, em comemoragao ao cingiientendrio da morte de Saussure, cha- mou “obra bela e importante” (14), Os Cahiers Ferdinand de Saussure comegaram a ser pu- blicados em 1941. Mas a publicagio de inéditos de Saussure e de outras fontes do Cours s6 comegaram a aparecer, ali, em 1954, a partir do n.* 12, publicadas por Robert Godel: 1) “Notes inédites de Ferdinand de Saussure”. Sao 23 notas curtas anteriores ao ano de 1900 (Cahiers n.° 12 (1954), pp. 49-71). So as que se mencionam no Préface do Cours, nas pp. 7-8. 2) “Cours de linguistique générale (1908-1909): Intro- duction” (Cahiers n.° 15 (1957), pp. 3-103). Usaram-se trés manuscritos; o de A. Riedleger (119 pp.), © de F. Bouchardy e 6 de Léopold Gautier (estes. dois ultimos mais breves). Nesse ano, antes do n.° 15, j4 tinham saido como livro, publicado por Robert Godel: Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale, Genebra, Droz, e Paris, Minard, 1957, com 263 pp. 3) “Nouveaux documents saussuriens: les cahiers E. Constantin” (Cahiers n° 16 (1958-1959), pp. 23-32). 4) “Inventaire des manuscrits de F. de Saussure remis a la Bibliothéque publique et universitaire de Ge- néve” (Cahiers n° 17 (1960), pp. 5-11). SZo manuscritos numerados de 3951 a 3969, de assuntos varios, lingiiisticos ¢ filolégicos. Publica-se apenas a relacio dos assuntos e outras informagdes. O ms, 3951 traz notas sobre a Lingiiistica Geral. O ms. 3952, sobre as linguas indo- -européias, o 3953 sobre acentuagao lituana, o 3954, no- (12) Cf. E. Benveniste, “Saussure aprés um demi-sitcle”, cap. IIL de Problémes de linguistigue générale, Gallimard, 1966, p. 32. Infeliz- mente, néo pudemos ainda ter em miaos Les sources manuscrites... XIX tas diversas, 0 3955 traz notas e rascunhos de artigos publi- cados, 0 3956 nomes de lugares ¢ patuds romanos. O ms. 3957 traz documentos varios entre os quais um Caderno de Recordagses — 0 nico cujo texto é publicado logo a seguir (pp. 12-25), e rascunhos de cartas e cartas recebidas. Os ms. 3958-3959 constam de 18 cadernos de estudos dos Niebelungen, os ms. 3690-3692 tratam de métrica védica e do verso saturnino (46 cadernos), Os ms, 3963-3969 trazem os estudos sobre os anagramas ou hipogramas (99 cadernos), sobre os quais Jean Starobinski publicou dois estudos em 1964 e 1967 3). Os Souvenirs de F. de Saussure concernant sa jeunesse et ses études atras mencionados (Ms. fr. 3957) so ricos de in- formagées acerca das suas relagdes com os lingiiistas alemdes e sobre a famosa Mémoire sur le systéme primitif des voyelles dans les langues indo-européenes, Leipzig, Teubner, 1879, 302 pp., escrita aos 21 anos. 5) A essas quatro publicagdes de R. Godel juntem-se as “Lettres de Ferdinand de Saussure a Antoine Meillet”, publicadas por Emile Benveniste (Cahiers n° 21 (1964), pp. 89-135). Se a isso se acrescentar o conjunto de obras editadas em 1922 por Charles Bally © Léopold Gautier sob o titulo de Recueil des publications scientifiques de Ferdinand de Saussure, num grosso volume de VIII + 641 pp. (%*), teremos tudo o (13) J. Starobinski, “Les anagrammes de Ferdinand de Saussure, tex- tes inédits”, Mercure de France, fevt. 1964, pp. 243-262; idem, “Les mots sous les mots: textes inédits des cahiers d’anagrammes de Fetdinand de Saussure”, in To Honor Roman Jakobson: Essays on the Occasion of his Seventieth Birthday, 11-10-1966, vol. III, Mouton, Haia, Paris, 1967, pp. 1906-1917, R. Godel nio se mostra muito entusiasta com essas pesqui- sas. Eis o que le diz: "Na época em que Saussure se ocupava de mi- tologia germinica, apaixonou-se também por pesquisas singulares. (...) Os e os quadros cm que ele consignou os resultados dessa lon- sa estéril investigacio formam « perte mais considerdvel dos manus- critos que ele deixou” (Cabiers, n° 17 (1960), p. 6). (14) Bditions Sonor de Genebra e Karl Winter de Heidelberg. E curioso notar que Tullio De Mauro, tio rico de i Ges, © que cita ¢ usa tanto o Recueil como Les souces manuscrites, ndo os tenha incluido no seu inventério bibliogrifico final, de cerca de 400 titulos. XX que Saussure publicou ou esbogou ou escreveu. Apesar, po- rém, do valor excepcional da Mémoire, 0 que consagrou real- mente o seu nome é 0 Cours de linguistique générale, que — a julgar pelas palavras suas atras citadas dirigidas a L. Gau- tier — ele, se vivesse, nao permitiria que fosse editado. Mas foi a publicagdo de todos esses documentos — espe- cialmente a de Les sources manuscrites — que acentuou o sen- timento da necessidade duma edigao critica do Cours. Alias, © Préface de Ch, Bally © A. Sechehaye denuncia uma espécie de insatisfagio com a edicao, tal qual a fizeram, mas que era @ modo mais sensato de editar anotagdes de aula. E nés ain- da hoje devemos ser-lhes gratos. Apesar de tudo, porém, era desejavel uma edigfo critica. O estudo sincrénico dum estado atual de lingua, especial- mente na sua manifestagio oral, atenua, quase dispensando, o trabalho filolégico. Mas, paradoxalmente, a obra do lingitis- ta que insistiu na sincronia constitui-se agora um notavel problema filolégico: o do estabelecimento do seu texto, A edig&o critica saiu em 1968 (5), num primeiro volu- me de grande formato, 31 x 22 cm, e de 515 + 515 Paginas. uma edicdo sinética, que da as fontes lado a lado em 6 colu. nas. A primeira coluna reproduz o texto do Cours, da 1.2 edi- Gao de i916, com as variantes introduzidas na 22 e na 3% edigdes (de 1922 © 1931). As colunas 2, 3 e 4 trazem as fontes usadas por Charles Bally e Albert Sechehaye, As colunas 5 © 6 trazem as fontes descobertas e publicadas por Robert Godel em disposi¢ao sinética. E evidente que nao é uma edicio de facil manejo. Ain- da aqui, o Cours de Saussure apresenta semelhanga com o problema sinético dos Evangelhos. Nessa edigio critica, de formato um pouce maior que a Synopsis Quattuor Evange- forum de Kurt Aland, com o texto grego, ou que a Synopse (13) Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale, Edition critique par Rudolf Engler, tome I, 1967, Otto Harressowitz, Wiesbaden. Um vol. de 31x22 cm, de 515 +515 péginas. (Nio tendo tide oca sido de ver o volume, resumo as informagdes de Mons. Gardette na ré- pida recensio que faz da edicio em Revue de Linguistique Romane, to- mo 33, nos. 129-130 de jan-junho de 1969, pp. 170-171). XXI des quatre évangiles en frangais de Benoit e Boismard, o fa- moso livro de Saussure, que ele nao escreveu, poderd ter também o seu interesse pedagdgico: sera uma fotografia fiel.de como é apreendido diversamente aquilo que é trans- mitido por via oral. Mas essa renovacio de interesse no Cours de linguistique générale, especialmente a partir da década de 50 — que é quando se aceleram as edigdes e tradugdes ¢ quando Robert Godel comega a aprofundar a critica de fontes — € a garan- tia de que, ainda que novas solugGes se oferegam para as opo- sigdes saussurianas, Saussure esta longe de vir a ser superado. A edigdo a ser oferecida a um publico mais amplo sé pode ser a que consagrou a obra: a edi¢do critica, de leitura pesada, serd obra de consulta de grande utilidade para os es- pecialistas e para os mais aficionados, Seria também de interesse ajuntar a essas informagdes uma enumeracao de estudos de anilise e critica do Cours para orien- tagdio do leitor brasileiro. Mas éste prefacio jA se alongou de- mais, Além disso, os trabalhos-de andlise da Lingitistica moderna como Les grands courants de la linguistique moderne, de Le- roy (18), Les nouvelles tendances de la linguistique, de Malm- berg (""), Lingiiistica Romdnica, de Iorgu lordan, em versao espanhola de Manuel Alvar (pp. 509-601), os estudos de Meillet em Linguistique historique et linguistique générale Il (pp. 174-183) e no Bulletin de la Société de Linguistique de Paris (#*), 9 de Benveniste em Problémes de linguistique géné- vale (pp. 32-45), o de Lepschy, em La linguistique structurale (pp. 45-56), 0 prélogo da edigao de Amado Alonso (pp. 7-30), a excelente edicgo de Tullio De Mauro, atras mencionada — especialmente nas pp, V-XXIII e 285-470 — sio guias de grande valor para o interessado. A_ estes acrescente-se 0 ex- celente trabalho de divulgacdo de Georges Mounin, Saussure ou le structuraliste sans le savotr — présentation, choix de tex- (16) Edigio brasileira: As Grandes Correntes da Lingiiistica Mo. derna, S. Paulo, Cultrix: Editora da USP, 1971. (17} Edigao brasileira: As Novas Tendéncias da Lingiitstica, S. Paulo, Cia. Editora Nacional-Editora da USP, 1971. {18} Transcrito por Georges Mounin, in Saussure ow le structura: liste sans-le savoir, ed. Seghers, 1968, pp. 161-168. XXIE tes, bibliographic (**), que, a nosso ver, tem defeituoso apenas © titulo, pois Saussure foi antes “estruturalista antes do termo”, que Mounin poderia dizer a francesa le structuraliste avant ta lettre. Ficam assim fornecidas ao leitor algumas das informa- ges fundamentais para que ele possa melhor compreender o texto do lingiiista genebrino, Acrescentaremos apenas um qua- dro dos principais fatos na vida de Ferdinand de Saussure, Isaac Nicotau Satum (19) Edigio brasileira em preparacao. XXIII QUADRO BIOGRAFICO 26-11-1857 — Seu nascimento em Genebra. 1867 — Contacto com Adolphe Pictet, autor das Origenes Indo-européenes (1859-1863). 1875 — Estudos de Fisica e Quimica na Univ. de Genebra. 1876 — Membro da Soc. Ling, de Paris, 1876 — Em Leipzig. 1877 — Quatro memérias lidas na Soc. Ling. de Paris, especialmente Essai d’une distinction des diffé- rents a indo-européens. 1877-1878 — Mémoire sur les voyelles indo-européenes (pu- blicada em dezembro de 1878 em Leipzig). 1880 —- Fevereiro — Tese de doutorado: De l'emploi du genitif absolu en sanskrit, Viagem 4 Litua- nia, Em Paris segue os cursos de Bréal. 1881 — “Maftre de conférences” na Ecole Pratique des Hautes Etudes com 24 anos, 1882 — Secretério adjunto da Soc, Ling, de Paris e di- retor de publicagao das Memérias. Fica conhe- cendo Baudoin de Courtenay. 1890-1891 — Retoma os cursos da Ecole Pratique des Hautes Etudes, 1891-1896 — Professor extraordindrio em Genebra, 1996 — Professor titular em Genebra. 1907 — 1.° Curso de Lingiiistica Geral. 1908 — Seus discipulos de Paris e de Genebra oferecem- -lhe uma Miscelénea comemorativa do 30.* ani- versirio da Meméria sobre as vogais. 1908-1909 — 2.° Curso de Lingiiistica Geral. 1910-1911 — 3.%Curso de Lingiiistica Geral. 27- 2-1913 —- Seu falecimento em Genebra, PREFACIO A PRIMEIRA EDIGAO Repetidas vezes ouvimos Ferdinand de Saussure deplorar a insuficiéncia dos principios e dos métodos que caracterizavam a Lingitistica em cujo ambiente seu génio se desenvolveu, e ao longo de toda a sua vida pesquisou ele, obstinadamente, as leis diretrizes que the poderiam orientar' o pensamento através des- se caos. Mas foi somente. em 1906 que, sucedendo a Joseph Wertheimer na Universidade de Genebra, péde ele dar a co- nhecer as idéias pessoais que amadurecera durante tantos anos. Lecionou trés cursos de Lingiifstica Geral, em 1906-1907, 1908-1909 ¢ 1910-1911; é verdade que as necessidades do pro- grama o obrigaram a consagrar a metade de cada um desses cursos a uma exposigGo relativa as linguas indo-européias, sua historia e sua descrigdo, pelo que a parte essencial do seu te- ma ficou singularmente reduzida. Todos quantos tiveram o privilégio de acompanhar tao fecundo ensino deploraram que dele nao tivesse surgido um livro, Apés a morte do mestre, esperdvamos encontrar-lhe nos manuscritos, cortesmente postos d@ nossa disposigdo por Mme de Saussure, a imagem fiel ou pelo menos suficientemente fiel de suas geniais ligdes; entreviamos a possibilidade de uma publi- cagao fundada num simples arranjo de anotagées pessoais de Ferdinand de Saussure, combinadas com as notas de estudan- tes. Grande foi a nossa decepedo; nao encontramos nada ou quase nada que correspondesse aos cadernos de seus discipulos; F, de Saussure ia destruindo os borradores provisérios em que tragava, a cada dia, o esbogo de sua exposigao! As gavetas de sua secretdria néo nos proporcionaram mais que esbogos assaz antigos, certamente nao destituidos de valor, mas que era im- possivel utilizar e combinar com a matéria dos trés cursos, Essa verificagéo nos decepcionou tanto mais quanto obriga- ges profissionais nos haviam impedido quase completamente de nos aproveitarmos de seus derradeiros ensinamentos, que as- sinalam, na carreira de Ferdinand de Saussure, uma etapa tao brilhante quanto aquela, jd longingua, em que tinha aparecido a Mémoire sur les voyelles. Cumpria, pois, recorrer ds anotagées feitas pelos estudan- tes ao longo dessas trés séries de conferéncias. Cadernos bas- tante completos nos foram enviados pelos Srs. Louis Caille, Léo- fold Gautier, Paul Regard e Albert Riedlinger, no que respei- ta aos dois primeiros cursos; quanto ao terceiro, 0 mais impor- tante, pela Sra, Albert Sechehaye ¢ pelos Srs. George Dégallier e Francis Joseph. Devemos ao Sr. Louis Briitsch notas acerca de um ponto especial; fazem todos jus a nossa sincera gratidéo. Exprimimos também nossos mais vivos agradectmentos ao Sr. Jules Ronjat, 0 eminente romanista, que teve a bondade de rever 0 manuscrito antes da impressio ¢ cujos conselhos nos foram preciosos. Que irtamos fazer desse material? Um trabalho critico preliminar se impunha: era mister, para cada curso, e para cada pormenor de curso, comparando todas as versées, chegar até o pensamento do qual tinhamos apenas ecos, por vezes discordan- tes. Para os dois primeiros cursos, recorremos a colaboragao do Sr, A, Riedlinger, um dos discipulos que acompanharam o pen- samento do mestre com o maior interesse; seu trabalho, nesse ponto, nos foi muito util. No que respeita ao terceiro curso, A, Sechehaye levou a cabo 9 mesmo trabalho minucioso de co- lagdo € arranjo. Mas e depois? A forma de ensino oral, amitde em con- tradigdo com o livro, ‘nos reservava as maiores dificuldades. E, ademais, F. de Saussure era um desses homens que se reno- vam sem cessar; seu pensamento evoluia em todas as diregées, sem com isso entrar em contradigéo consigo proprio. Publicar tudo na sua forma original era imposstvel; as repetigoes ine- vitdveis numa exposigao livre, os encavalamentos, as formula- ges varidveis teriam dado, a uma publicagao que tal, um as- pecto heterdclito. Limitar-se a um sé curso — ¢ qual? — seria -empobrecer o livro, roubando-o de todas as riquezas abun- dantemente espalhadas nos dois outros; mesmo o terceiro, o 2 mais definitivo, nao teria podido, por si sé, dar uma idéia com- pleta das teorias e dos métodos de F. de Saussure. Foi-nos sugerido que reproduztssemos fielmente certos tre- chos particularmente originats; tal idéia nos agradou, a prin- cipio, mas logo se evidenciou que prejudicaria o pensamento de nosso mestre se apresentdssemos apenas fragmentos de uma construgao cujo valor sé aparece no conjunto. Decidimo-nos por uma solugdo mais audaciosa, mas tam- bém, acreditamos, mais racional: tentar uma reconstituiggo, uma sintese, com base no terceiro curso, utilizando todos os mate- riais de que disptinhamos, inclusive as notas pessoais de F. de Saussure, Tratava-se, pois, de uma recriagdo, tanto mais drdua quanto devia ser inteiramente objetiva; em cada ponto, pene- trando até o fundo de cada pensamento especifico, cumpria, @ luz do sistema todo, tentar ver tal pensamento em sua forma definitive, isentado das variagoes, das flutuagées inerentes @ ligdo falada, depois encaixd-lo em seu meio natural, apresen- tando-lhe todas as partes numa ordem conforme a intengdo do autor, mesmo quando semelhante intengao fosse mais adivi- nhada que manifestada. Desse trabatho de assimilagao ¢ reconstituigéo, nasceu o livro que ora apresentamos, nao sem apreensio, ao piblico eru- dito e a todos os amigos da Lingiiistica, Nossa idéia orientadora foi a de tragar um todo orgdénico sem negligenciar nada que pudesse contribuir para a impressiio de conjunto. Mas é precisamente por isso que incorremos tal- vez numa dupla critica, Em primeiro lugar, podem dizer-nos que esse “conjunto” é incompleto: o ensino do mestre jamais teve a pretenséo de abordar todas as partes da Lingilistica, nem de projetar sobre todas uma luz igualmente vive; materialmente, néo o poderia fazer. Sua preocupagdo era, alids, bem outra. Guiado por al- guns principios fundamentais, pessoais, que encontramos em todas as partes de sua obra, ¢ que formam a trama desse teci- do tao sdélido quanto variado, ele trabalha em profundidade ¢ 56 se estende em superficie quando tais principios encontram Gplicagées particularmente frisantes, bem como quando se fur- tam a qualquer teoria que os pudesse comprometer, Assim se explica que certas disciplinas mal tenham sido afloradas, a semantice, por exemplo. Ndo nos parece que essas lacunas prejudiquem a arquitetura geral, A auséncia de uma “Lingiiistica da fala” é¢ mais senstvel. Prometida cos ouvintes do terceiro curso, esse estudo teria tido, sem divida, lugar de honra nos seguintes; sabe-se muito bem por que tal promessa nao péde ser cumprida. Limitamo-nos a recolher e a situar em seu lugar natural as indicagées fugitivas desse programa apenas esbogado; ndo poderiamos ir mats longe. Inversamente, censurar-nos-Go talvez fror termos reprodu- zido desenvolvimentos relativos a pontos jd adquiridos antes de F. de Saussure. Nem tudo pode ser novo numa exposigéo as- sim vasta; entretanto, se principios jé conhecidos sao necessd- rios pata a compreensde do conjunto, querer-se-d censurar-nos por nao havé-los suprimido? Dessarte, o capitulo acerca das mudangas fondticas encerra coisas jd ditas, e quigd de maneira mais definitiva; todavia, além do fato de que essa parte oculte numerosos pormenores originais e preciosos, uma leitura mesmo superficial mostrard o que @ sua supressio acarretaria, por con- traste, para a compreensao dos principios sobre os quais F. de Saussure assenta seu sistema de Lingiiistica estdtica. Sentimos toda a responsabilidede que assumimos perante a critica, perante o préprio autor, que no teria talvez autori- zado a publicagao destas péginas. Aceitamos integralmente semethante responsabilidade ¢ queremos ser os tinicos a casregd-la, Saberd a critica distinguir entre o mestre e seus intérpretes? Ficar-lhe-lamos gratos se dirigisse contra nés os golpes com que seria injusto oprimir uma meméria que nos é querida, Genebra, junho de 1918. Cu, Batty, Avs. SecHEHAYE PREFACIO 4 SEGUNDA EDIGAO Esta segunda edigdo néo introduz nenhuma modificagdo essencial no texto da primeira, Os editores se limitaram a 4 modificagdes de pormenor, destinadas a tornar a redagdo mais clara € mais precisa em certos pontos, Cu. B. Aus, S, PREFACIO A TERCEIRA EDIGAO Salvo por algumas corregbes de pormenor, esta edig&o estd conforme a anterior, Cu. B. Aus. S. INTRODUGAO capiruLo 1 VISAO GERAL DA HISTORIA DA LINGUISTICA A ciéncia que se constituiu em torno dos fatos da lingua Passou por trés fases sucessivas antes de reconhecer qual é o seu verdadeiro e tinico objeto. Comegou-se por fazer o que se chamava de “Gramética”. Esse estudo, inaugurado pelos gregos, ¢ continuado principal- mente pelos franceses, é baseado na légica e est& desprovide de qualquer visio cientifica e desinteressada da propria lingua; visa unicamente a formular regras para distinguir as formas Corretas das incorretas; é uma disciplina normativa, muito afas- tada da pura observagie e cujo ponto de vista ¢ forgosamente estreito, A seguir, apareceu a Filologia, Ja em Alexandria havia uma escola “filolégica”, mas esse termo se vinculou sabretudo ao movimento criado por Friedrich August Wolf a partir de 1777 © que prossegue até nossos dias. A lingua nao é o tnico objeto da Filologia, que quer, antes de tudo, fixar, interpretar, comentar os textos; este primeiro estudo a leva a se ocupar também da histéria liter4ria, dos costumes, das instituigdes, etc.; em toda parte ela usa seu método proprio, que é a critica. Se aborda questées lingijisticas, {4-lo sobretudo para comparar tex- tos de diferentes épocas, determinar a lingua peculiar de cada autor, decifrar e explicar inscrigdes redigidas numa lingua ar- 7 caica ou obscura. Sem diivida, essas pesquisas prepararam a Lingiiistica histérica: os trabalhos de Ritschl acerca de Plauto podem ser chamados lingiiisticos; mas nesse dominio a critica filolégica é falha num particular: apega-se muito servilmente & lingua escrita e esquece a lingua falada; alids, a Antiguidade grega e latina a absorve quase completamente. O terceiro periodo comegou quando se descobriu que as linguas podiam ser comparadas entre si. Tal foi a origem da Filologia comparativa ou da “Gramdtica comparada”. Em 1816, numa obra intitulada Sistema da Conjugagdo do Sans- crito, Franz Bopp estudou as relagdes que unem o sAnscrito ao germanico, ao grego, ao latim, etc. Bopp nao era o primei- ro a assinalar tais afinidades e a admitir que todas essas linguas pertencem a uma tnica familia; isso tinha sido feito antes dele, no- tadamente pelo orientalista inglés W. Jones (t 1794); algumas afirmagdes isoladas, porém, nao provam que em 1816 j4 houves- sem sido compreendidas, de modo geral, a significagao e a impor- tancia dessa verdade. Bopp nao tem, pois, o mérito da desco- berta de que o sanscrito é parente de certos idiomas da Europa c da Asia, mas foi ele quem compreendeu que as relagGes entre linguas afins podiam tornar-se matéria duma ciéncia auténoma. Esclarecer uma lingua por meio de outra, explicar as formas duma pelas formas de outra, eis o que nZo fora ainda feito. E de duvidar que Bopp tivesse podido criar sua ciéncia — pelo menos tio depressa — sem a descoberta do sAnscrito. Este, como terceiro testemunho ao lado do grega e do latim, for- neceu-lhe uma base de estudo mais larga e mais sélida; tal van- tagem foi acrescida pelo fato de que, por um feliz e inesperado acaso, o sAnscrito estA em condigdes excepcionalmente favord- veis de aclarar semelhante comparagao. Eis um exemplo: considerando-se o paradigma do latim genus (genus, generis, genere, genera, generum, etc.) e o do grego génos (génos, géneos, génei, génes, genéGn, etc.) estas séries nao dizem nada quando tomadas isoladamente ou com- paradas entre si. Mas a situacgao muda quando se lhe aproxi- ma a série correspondente do sAnscrito (ganas, ganasas, ganasi, fanassu, ganasam, etc.). Basta uma rapida observagdo para perceber a relacado existente entre os paradigmas grego e la- tino. Admitindo-se provisoriamente que ganas represente a 8 forma primitiva, pois isso ajuda a explicagao, conclui-se que um s deve ter desaparecido nas formas gregas géne(s)os, etc., cada vez que ele se achasse colocado entre duas vogais. Con- Clui-se logo dai que, nas mesmas condigées, o s se transformou em rem latim, Depois, do ponto de vista gramatical, o para- digma sanscrito d4 precisio A nogdo de radical, visto corres- ponder esse elemento a uma unidade (ganas-) perfeitamente determindvel e fixa. Somente em suas origens conheceram o grego e latim o estado representado pelo sAnscrito. &, entdo, pela conservagdo de todos os ss indo-europeus que o sAnscrito se torna, no caso, instrutive. Nao hé divida que, em outras partes, ele guardou menos bem os caracteres do protétipo: as- sim, transtornou completamente o sistema vocalico. Mas, de modo geral, os elementos origindrios conservados por ele aju- dam a pesquisa de maneira admiravel — e 0 acaso o tornou uma lingua muito prépria para esclarecer as outras num sem: -ntimero de casos, Desde o inicio vé-se surgirem, ao lado de Bopp, lingiiistas eminentes: Jacob Grimm, o fundador dos estudos germnicos (sua Gramdtica Alemd foi publicada de 1822 a 1836); Pott, Cujas pesquisas etimoldgicas colocaram uma quantidade con- siderdvel de materiais ao dispor dos lingiiistas; Kuhn, cujos trabalhos se ocuparam, ao mesmo tempo, da Lingitistica e da Mitologia comparada; os indianistas Benfey e.Aufrecht, etc. Por fim, entre os ultimos representantes dessa escola, me- recem citagéo particular Max Miller, G. Curtius e August Schleicher. Os trés, dé modos diferentes, fizeram muito pe- los estudos comparativos. Max Miiller os popularizou com suas brilhantes conferéncias (Ligdes Sobre a Ciéncia da Lin- guagem, 1816, em inglés) ; nao pecou, porém, por excesso de consciéncia. Curtius, filélogo notdvel, conhecido scbretudo por seus Principios de Etimologia Grega (1879), foi um dos primeiros a reconciliar a Gramdtica comparada com a Filologia classica, Esta acompanhara com desconfianga os progressos da nova ciéncia e tal desconfianga se tinha tornado reciproca. Schleicher, enfim, foi o primeiro a tentar codificar os resulta- dos das pesquisas parciais. Seu Brevidrio de Gramdtica Com- parada das Linguas Indo-Germénicas (1816) & uma espécie de sistematizagio da ciéncia fundada por Bopp. Esse livro, que durante longo tempo prestou grandes services, evoca melhor 9 que qualquer outro a fisionomia dessa escola comparatista que constitui o primeiro periodo da Lingiiistica indo-européia. Tal escola, porém, que teve o mérito incontestavel de abrir um campo novo e fecundo, nao chegou a constituir a verdadei- ra ciéncia da Lingiiistica. Jamais se preocupou em determinar a natureza do seu objeto de estudo. Ora, sem essa operagao elementar, uma ciéncia é incapaz de estabelecer um método para si prépria. © primeiro erro, que contém em germe todos os outros, é que nas investigaces, limitadas alids As linguas indo-européias, a Gramatica comparada jamais se perguntou a que levavam as comparacgées que fazia, que significavam as analogias que descobria. Foi exclusivamente comparativa, em vez de hist6- rica. Sem davida, a comparago constitui condig&o necessdria dé toda reconstituigio histérica, Mas por si s6 nao permite concluir nada, A conclus%o escapava tanto mais a esses com- paratistas quanto consideravam o desenvolvimento de duas lin- guas como um naturalista o crescimento de dois vegetais. Schleicher, por exemplo, que nos convida sempre a partir do indo-europeu, que parece portanto ser, num certo sentido, deveras historiador, no hesita em dizer que em grego ¢ ¢ o sao dois “graus” (Stufen) do vocalismo, & que o s4nscrito apre- senta um sistema de alternfncias vocdlicas que sugere essa idéia de graus. Supondo, pois, que tais graus devessem ser venci- dos separada e paralelamente em cada lingua, como vegetais da mesma espécie passam, independentemente uns dos outros, pelas mesmas fases de desenvolvimento, Schleicher via no o grego um grau reforcado do ¢ como via no d sanscrito um reforgo de 4. De fato, trata-se de uma alternancia indo-euro- péia, que se reflete de modo diferente em grego e em sAnscri- to, sem que haja nisso qualquer igualdade necessdria entre os efeitos gramaticais que ela desenvolve numa e noutra lin- gua (ver p. 189 ss.). Esse método exclusivamente comparativo acarreta todo um conjunto de conceitos err6éneos, que nao correspondem a nada na realidade e que sao estranhos as verdadeiras condi- ges de toda linguagem. Considetava-se a lingua como uma esfera & parte, um quarto reino da Natureza; dai certos modos de raciocinar que teriam causado espanto em outra ciéncia. 10 Hoje nao se podem mais ler oito ou dez linhas dessa época sem se ficar surpreendido pelas excentricidades do pensamen- to e dos termos empregados para justificdlas, Do ponto de vista metodolégico, porém, ha certo interesse em conhecer ésses erros: os erros duma ciéncia que principia constituem a imagem ampliada daqueles que cometem os indi- viduos empenhados nas primeiras pesquisas cientificas; teremos ocasiao de assinalar varios deles no decorrer de nossa exposi¢ao. Somente em 1870 aproximadamente foi que se indagou quais seriam as condigdes de vida das linguas, Percebeu-se en- t8o que as correspondéncias que as unem nao passam de um dos aspectos do fenémeno lingiifstico, que a comparagZo nao é senio um meio, um método para reconstituir os fatos, A Lingiifstica propriamente dita, que deu & comparagio © lugar que exatamente lhe cabe, nasceu do estudo das linguas romanicas e das linguas germanicas. Os estudos romAnicos, inaugurados por Diez — sua Gramdtica das Linguas Romé- nicas data de 1836-1838 —, contribuiram particularmente para aproximar a Lingijistica do seu verdadeiro objeto. Os roma- nistas se achavam em condigdes privilegiadas, desconhecidas dos indo-europeistas; conhecia-se o ‘atim, protétipo das linguas rom4nicas; além disso, a abundancia de documentos permitia acompanhar pormenorizadamente a evolugio dos idiomas, Es- sas duas circunsténcias limitavam o campo das conjecturas e davam a toda a pesquisa uma fisionomia particularmente con- creta. Os germanistas se achavam em situagao idéntica; sem davida, 0 protogerm&nico nfo é conhecido diretamente, mas a histéria das linguas que dele derivam pode ser acompanha- da com a ajuda de numerosos documentos, através de uma Jonga seqiiéncia de séculos, Também os germanistas, mais pré- ximos da realidade, chegaram 2 concepgoes diferentes das dos primeiros indo-europeistas. Um primeiro impulso foi dado pelo norte-americano Whitney, autor de A Vida da Linguagem (1875). Logo apés se formou uma nova escola, a dos neogramaticos (Junggram- matiker) cujos fundadores eram todos alemaes: K. Brugmann, H. Osthoff, os germanistas W. Braune, E. Sievers, H. Paul, o eslavista Leskien etc. Seu mérito consistiu em colocar em pers- pectiva histérica todos os resultados da comparacdo e por ela VW encadear os fatos em sua ordem natural. Gragas aos neogra- mAticos, nao se viu mais na lingua um organismo que se desen- yolve por si, mas um produto do espirito coletivo dos grupos lingiiisticos. Ao mesmo tempo, compreende-se quo erréneas e insuficientes eram as idéias da Filologia e da Gramatica com- parada.! Entretanto, por grandes que sejam os servigos pres- tados por essa escola, nao se pode dizer que tenha esclarecido a totalidade da questdo, e, ainda hoje, os problemas fundamen- tais da Lingiistica Geral aguardam uma solugao. (1) A nova escola, cingindo-se mais a realidade, fez guetta 4 termi- nologia dos comparatistas e notadamente as metdforas ilégicas de que se servia, Desde entio, nao mais se ousa dizer: “a Mngua faz isto ou aquilo” nem falar da “vida da lingua” etc., pois a lingua nao € mais uma entidade nfo existe senio nos que a falam. Nio seria, portanto, necessério ir muito longe ¢ basta entender-se. Existem certas imagens das quais nao se pode prescindir. Exigir que se usem apenas termos correspondentes a realidade da linguagem é pretender que essas realidades nado tém nade de obscuro para nés. Falta’ muito, porém, para isso; também nio hesita- taremos em empregar, quando se ofereca a ocasido, algumas das expresses que foram reprovadas na época. J2 caPiTULo MATERIA E TAREFA DA LINGUISTICA; SUAS RELAQOES COM AS CIENCIAS CONEXAS A matéria da Lingijistica é constituida inicialmente por todas as manifestagdes da linguagem humana, quer ser trate de povos selvagens ou de nagées civilizadas, de épocas arcaicas, classicas ou de decadéncia, considerando-se em cada periode nao 86 a linguagem correta e a “bela Jinguagem”, mas todas as formas de expressio. Isso no é tudo: como a linguagem escapa as Mais das vezes 4 observacao, o lingiiista deverd ter em conta os textos escritos, pois somente eles lhe farao conhecer os idiomas passados ou distantes. A tarefa da Lingiiistica sera: a) fazer a descrigago e a historia de todas as linguas que puder abranger, o que quer dizer: fazer a histéria das familias de linguas e reconstituir, na medida do possivel, as linguas-maes de cada familia; * 6) procurar as forgas que estao em jogo, de modo perma- nente e universal, em todas as linguas e deduzir as leis gerais As quais se possam referir todos os fendmenos pe- culiares da histéria; ¢) delimitar-se e definir-se a si propria. A Lingiiistica tem relagdes bastante estreitas com outras ciéncias, que tanto lhe tomam emprestados como lhe fornecem dados. Os limites que a separam das outras ciéncias nao apa- recem sempre nitidamente. Por exemplo, a Lingiiistica deve 13 ser cuidadosamente distinguida da Etnografia e da Pré-Histé- ria, onde a lingua nao intervém senao a titulo de documento; distingue-se também da Antropologia, que estuda o homem so- mente do ponto de vista da espécie, enquanto a linguagem é um fato social. Dever-se-ia, ent&o, incorpord-la 4 Sociologia? Que relagdes existem entre a Lingiiistica e a Psicologia social? Na realidade, tudo é psicolégico na lingua, inclusive suas ma- nifestagdes materiais ¢ mecanicas, como a troca de sons; e ja que a Lingiiistica fornece A Psicologia social tao preciosos da- dos, nao faria um todo com ela? Sao questdes que apenas mencionamos aqui para retomé-las mais adiante. As relagdes da Lingijistica com a Fisiologia n&o sao tao difi- ceis de discernir: a relagdo é unilateral, no sentido de que o estu- do das linguas pede esclarecimentos 4 Fisiologia dos sons, mas nao Ihe fornece nenhum. Em todo caso, a confusdo entre as duas disciplinas se torna impossivel: o essencial da lingua, como veremos, é estranho ao carter fénico do signo lingiiistico. Quanto a Filologia, j4 nos definimos: ela se distingue ni- tidamente da Lingiiistica, malgrado os pontos de contato das duas ciéncias e os servicos mtituos que se prestam. Qual é, enfim, a utilidade da Lingiiistica? Bem’ poucas pessoas tém a respeito idéias claras: nao cabe fixd-las aqui. Mas é evidente, por exemplo, que as questées lingiiisticas interessam a todos — historiadores, filélogos etc. — que tenham de ma- nejar textos. Mais evidente ainda é a sua importancia para a cultura geral: na vida dos individuos e das sociedades, a lin- guagem constitui fator mais importante que qualquer outro. Seria inadmissivel que seu estudo se tornasse exclusivo de al- guns especialistas; de fato, toda a gente dela se ocupa pouco ou muito; mas — conseqiéncia paradoxal do interesse que suscita — nao ha dominio onde tenha germinado idéias tio absurdas, preconceitos, miragens, ficgdes. Do ponto de vista psicolégico, esses erros nao sao despreziveis; a tarefa do lin- giista, porém, ¢, antes de tudo, denuncid-los e dissipd-los to completamente quanto possivel, M4 caPiruLo ut OBJETO DA LINGUISTICA $1. A Lincua: SUA DEFINIGAO. Qual é © objeto, ao mesmo tempo integral € concreto, da Lingiistica? A quest&o é particularmente dificil: veremos mais tarde por qué. Limitemo-nos, aqui, a esclarecer a di- ficuldade. Outras ciéncias trabalham com objetos dados previamen- te e que se podem considerar, em seguida, de vArios pontos de vista; em nosso campo, nada de semelhante ocorre. Alguém pronuncia a palavra nu: um observador superficial sera tenta- do a ver nela um objeto lingiiistico concreto; um exame mais atento, porém, nos levard a encontrar no caso, uma apés outra, trés ou quatro coisas perfeitamente diferentes, conforme a ma- neira pela qual consideramos a palavra: como som, como ex- pressio duma idéia, como correspondente ao latim niidum etc. Bem longe de dizer que 0 objeto precede 0 ponto de vista, dirfa- mos que é 0 ponto de vista que cria o objeto; alids, nada nos diz de antem&o que uma dessas maneiras de considerar 0 fato em questZo seja anterior ou superior 4s outras. Além disso, seja qual for a que se adote, o fenémeno lin- giiistico apresenta perpetuamente duas faces que se correspon- dem e das quais uma njo vale senZo pela outra. Por exemplo: 1° As silabas que se articulam sdo impressdes acisticas percebidas pelo ouvido, mas os sons nao existiriam sem os ér- S4os vocais; assim, um n existe somente pela correspondéncia desses dois aspectos. Nao se pode reduzir entdéo a lingua ao is som, nem separar o som da articulagdo vocal; reciprocamente, nJo se podem definir os movimentos dos érgios vocais se se fizer abstracgio da impressdo acistica (ver p. 49 ss.). 2.2 Mas admitamos que o som seja uma coisa simples: é ele quem faz a linguagem? Nao, nao passa de instrumento do pensamento e nio existe por si mesmo. Surge dai uma nova e temivel correspondéncia: o som, unidade complexa acistico- -vocal, forma por sua vez, com a idéia, uma unidade complexa, fisiolégica e mental. E ainda mais: 3.2 A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impoisivel conceber um sem o outro, Finalmente: 4° A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tem- po um sistema estabelecido e€ uma evolug’o: a cada instante, ela é uma instituigao atual e um produto do passado, Parece facil, & primeira vista,.distinguir entre esses sistemas e sua his- téria, entre aquilo que ele é e o que foi; na realidade, a relagéo que une ambas as coisas é tio intima que se faz dificil sepa- ra-las. Seria a questéo mais simples se se considerasse o fené- mene lingitistico em suas origens; se, por exemplo, comegdssemos por estudar a linguagem das criangas? Nao, pois é uma idéia bastante falsa crer que em matéria de linguagem o problema das origens difira do das condigées permanentes; nio se saird mais do circulo vicioso, entZo. Dessarte, qualquer que seja o lado por que se aborda a ques- tZo, em nenhuma parte se nos oferece integral o objeto da Lingiiis- tica. Sempre encontramos o dilema: ou nos aplicamos a um lado apenas de cada problema e nos arriscamos a nao perceber as dualidades assinaladas acima, ou, se estudarmos a linguagem sob varios aspectos ao mesmo tempo, o objeto da Lingiiistica nos aparecer4 como um aglomerado confuso de coisas heterécli- tas, sem liame entre si. Quando se procede assim, abre-se a porta a v4rias ciéncias —- Psicologia, Antropologia, Gramatica normativa, Filologia etc. —, que separamos claramente da Lin- gilistica, mas que, por culpa de um método incorreto, poderiam reivindicar a linguagem como um de seus objetos. Ha, segundo nos parece, uma solugio para todas essas dificuldades: ¢ necessdrio colocar-se primeiramente no terreno da lingua e tomd-la como norma de todas as outras manifesta- is ¢6es da linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somen- te a lingua parece suscetivel duma definigéo auténoma e for- nece um ponto de apoio satisfatério para o espirito. Mas o que é a lingua? Para nés, ela nao se confunde com a linguagem; € somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente, £, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convengGes necess4- vias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercicio dessa faculdade nos individuos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heterédclita; o cavaleiro de diferentes dominios, ao mesmo tempo fisica, fisiolégica ¢ psiquica, ela pertence além disso ao dominio individual e ao dominio social; nao se deixa classificar cm nenhuma categoria de fatos humanos, pois nao se sabe como inferir sua unidade. A lingua, ao contrério, é um todo por si e um principio de classificagao, Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num con- junto que ndo se presta a nenhuma outra classificagao. A esse principio de classificagZo poder-se-ia objetar que o exercicio da linguagem repousa numa faculdade que nos é dada pela Natureza, ao passo que a lingua constitui algo adquirido e convencional, que deveria subordinar-se ao instinto natural em vez de adiantar-se a ele. Eis o que pode se responder. Inicialmente, nao esta provado que a fung3o da lingua- gem, tal como ela se manifesta quando falamos, seja inteira- mente natural, isto é: que nosso aparelho vocal tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas para andar. Os lin- giiistas estio longe de concordar nesse ponto. Assim, para Whitney, que considera a lingua uma instituigdo social da mes- ma espécie que todas as outras, é por acaso e por simples ra- z6es de comodidade que nos servimos do aparelho vocal como instrumento da lingua; os homens poderiam também ter esco- lhido o gesto e empregar imagens visuais em lugar de imagens acisticas. Sem diivida, esta tese é demasiado absoluta; a lin- gua nao é uma instituigao social semelhante 4s outras em to- dos og pontos (ver pp. 88 € 90) ; além disso, Whitney vai longe de- mais quando diz que nossa escolha recaiu por acaso nos drgaos 7 vocais; de certo modo, ja nos haviam sido impostas pela Na- tureza. No ponto essencial, porém, o lingiista norte-americano Nos parece ter razao: a lingua é uma convengio e a natureza do signo convencional é indiferente. A quest&o do aparelho vocal se revela, pois, secund4ria no problema da linguagem, Certa definigfo do que se chama de linguagem articulada poderia confirmar esta idéia. Em latim, articulus significa “membro, parte, subdivisio numa série de coisas”; em maté-. ria de linguagem, a articulacgio pode designar nao sé a diviséo da cadeia falada em silabas, como a subdivisio da cadeia de significages em unidades significativas; é neste sentido que se diz em alemao gegliederte Sprache. Apegando-se a esta segun- da: definigao, poder-se-ia dizer que no é a linguagem que é natural ao homem, 1nas a faculdade de constituir uma lingua, vale dizer: um sistema de signos distintos correspondentes a idéias distintas. Broca descobriu que a faculdade de falar se localiza na terceira circunvolugdo frontal esquerda; também nisso se apoia- ram alguns para atribuir 4 linguagem um carater natural, Mas sabe-se que essa localizagio foi comprovada por tudo quanto se relaciona com a linguagem, inclusive a escrita, e essas verifica- ges, unidas 4s observacies feitas sobre as diversas formas de afasia por lesio desses centros de localizagZo, parecem indicar: 1.*, que as perturbagGes diversas da linguagem oral est&o enca- deadas de muitos modos As da linguagem escrita; 2.°, que, em todos os casos de afasia ou de agrafia, é atingida menos a facul- dade de proferir estes ou aqueles sons ou de tragar estes ou aqueles signos que a de evocar por um instrumento, seja qual for, os signos duma linguagem regular, Tudo isso nos leva a crer que, acima desses diversos érgaos, existe uma faculdade mais geral, a que comanda os signos e que seria a faculdade lin- gilistica por exceléncia, E somos assim conduzidos 4 mesma conclusio de antes, Para atribuir 4 lingua o primeiro lugar no estudo da lin- guagem, pode-se, enfim, fazer valer o argumento de que a fa-" culdade — natural ou nao — de articular palavras nao se exerce senio com ajuda de instrumento criado e fornecido pela coletividade; nao é, entio, ilusério dizer que é a lingua que faz a unidade da linguagem. 1g § 2. Lugar pA LINGUA NOs FATOS DA LINGUAGEM. Para achar, no conjunto da linguagem, a esfera que corres- ponde A lingua, necessdrio se faz colocarmo-nos diante do ato individual que permite reconstituir 0 circuito da fala, Este ato supde pelo menos dois individuos; é o minimo exigivel para que o circuito seja completo, Suponhamos, entio, duas pessoas, A e B, que conversam. © ponto de partida do circuito se situa no cérebro de uma delas, por exemplo A, onde os fatos de consciéncia, a que cha- maremos conceitos, se acham associados as representagdes dos sig- nos lingiifsticos ou imagens aciisticas que servem para exprimi- -los. Suponhamos que um dado conceito suscite no cérebro uma imagem actstica correspondente: é um fenémeno inteira- mente psiquico, seguido, por sua vez, de um processe fisiolégico: o cérebro transmite aos érgios da fonagdo um impulso correla- tivo da imagem; depois, as ondas sonoras se propagam da boca de A até o ouvido de B: processo puramente fisico. Em segui- da, © circuito se prolonga em B numa ordem inversa: do ouvi- do ao cérebro, transmissao fisiolégica da imagem acistica; no cérebro, associagio psiquica dessa imagem com o conceito cor- respondente. Se B, por sua vez, fala, esse novo ato seguira — de seu cérebro ao de A — exatamente o mesmo curso do pri- meiro e passarA pelas mesmas fases sucessivas, que representa- remos como segue: 19 Audigao Fonagao C= Conceito D=Imagem acistica Fonagao Audigao Esta andlise nZo pretende ser completa; poder-se-iam distin- guir ainda: a sensagao actstica pura, a identificagio desta sen- sagdo com a imagem acistica latente, a imagem muscular da fonagao etc. Nao levamos em conta senZo os elementos julga- dos essenciais; mas nossa figura permite distinguir sem dificul- dade as partes fisicas (ondas sonoras) das fisiolégicas (fonagio e audicio) e psiquicas (imagens verbais e conceitos). De fato, é fundamental observar que a imagem verbal nio se confunde com © préprio som e que é psiquica, do mesmo modo que c conceito que Ihe esté associado, © circuito, tal como o representamos, pode dividir-se ainda: a) numa parte exterior (vibragZo dos sons indo da boca ao ouvido) e uma parte interior, que compreende to- do o resto; 6) uma parte psiquica e outra ndo-psiquica, incluindo a segunda também os fatos fisiol6gicos, dos quais os ér- gaos sfo a sede, e os fatos fisicos exteriores ao in- dividuo; ¢) numa parte ativa e outra passiva; é ativo tudo o que vai do centro de associagio duma das pessoas ao ouvi- do da outra, e passivo tudo que vai do ouvido desta ao seu centro de associag3o; finalmente, na parte psiquica localizada no cérebro, pode- -se chamar executivo tudo o que é ativo (c —> #)e receptivo tudo o que é passivo (i > c). : Cumpre acrescentar uma faculdade de associagio e de co- ordenagiio que se manifesta desde que no se trate mais de sig- nos isolados; ¢ essa faculdade que desempenha o principal pa- pel na organizagao da lingua enquanto sistema (ver p. 142 ss.). Para bem compreender tal papel, no entanto, impGe-se sair do ato individual,‘que nao é senéo o embrido da linguagem, e abordar o fato social. Entre todos os individuos assim unidos pela linguagem, es- tabelecer-se-4 uma espécie de meio-termo; todos reproduzirao —— nao exatamente, sem divida, mas aproximadamente — 08 mesmos signos unidos aos mesmos conceitos, Qual a origem dessa cristalizagao social? Qual das partes do circuito pode estar em causa? Pois é bem provavel que to- dos nZo tomem parte nela de igual modo. A parte fisica pode ser posta de lado desde logo. Quando ouvimos falar uma lingua que desconhecemos, percebemos bem os sons, mas devide & nossa incompreensao, ficamos alheios ao fato social. A parte psiquica nao entra tampouco totalmente em jogo: © lado executivo fica de fora, pois a sua execugao jamais ¢ feita pela massa; € sempre individual e dela o individuo é sempre senhor; nés a chamaremos fala (parole). Pelo funcionamento das faculdades receptiva e coordena- tiva, nos individuos falantes, é que se formam as marcas que chegam a ser sensivelmente a’ mesmas em todos. De que ma- neira se deve representar esse produto social para que a lingua aparega perfeitamente desembaragada do restante? Se pudés- semos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os individuos, atingiriamos 0 liame social que consti- tui a lingua. Trata-se de um tesouro depositado pela pratica da fala em todos os individuos pertencentes 4 mesma comu- nidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em ca- da cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de individuos, pois a lingua nZo esté completa em nenhum, e 36 na massa ela existe de modo completo. 2 Com 0 separar a lingua da fala, separa-se ao mesmo tempo: 1%, © que & social do que é individual; 2.°, o que é essencial do que é acess6rio e mais ou menos acidental, A lingua nio constitui, pois, uma fungSo do falante: € © produto que o individuo registra passivamente; nao supde jamais premeditagao, e a reflexdo nela intervém somente para a atividade de classificagao, da qual trataremos na p. 142 ss. A fala é, ao contrario, um ato individual de vontade e in- teligéncia, no qual convém distinguir: 1.°, as combinagdes pelas quais o falante realiza o cédigo da lingua no propé- sito de exprimir seu pensamento pessoal; 2.°, 0 mecanismo psico- -fisico que the permite exteriorizar essas combinagées. Cumpre notar que definimos as coisas e no os termos; as distingdes estabelecidas nada tém a recear, portanto, de cer- tos termos ambiguos, que nao tém correspondéncia entre duas linguas. Assim, em alemio, Sprache quer dizer “Ingua” e “linguagem”; Rede corresponde aproximadamente a “palavra”, mas acrescentando-lhe o sentido especial de “discurso”. Em latim, sermo significa antes “linguagem” e “fala”, enquanto lingua significa a lingua, e assim por diante, Nenhum termo corresponde exatamente a uma das nogdes fikadas acima; eis porque toda definigio a propésito de um termo é va; é um mau método partir dos termos para definir as coisas. Recapitulemos os caracteres da lingua: 1.8 Ela é um objeto bem definido no conjunto heterécli- to dos fatos da linguagem, Pode-se localizd-la na porgao deter- minada do circuito em que uma imagem auditiva vem asso- ciar-se a um conceito, Ela é a parte social da linguagem, ex- terior ao individuo, que, por si sé, nao pode nem crié-la nem modificd-la; ela nao existe senio em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade. Por outro lado, o individuo tem necessidade de uma aprendiza- gem para conhecer-lhe o funcionamento; somente pouco a pou- co a crianca a assimila. A lingua é uma coisa de tal modo dis- tinta que um homem privado do uso da fala conserva a lingua, contanto que compreenda os signos vocais que ouve. 2. A lingua, distinta da fala, é um objeto que se pode estudar separadamente.’ Nao falamos mais as lnguas mortas, 22 mas podemos muito bem assimilar-lhes o organismo linglifstico, Nao s6 pode a ciéncia da lingua prescindir de outros elemen- tos da linguagem como 3 se toma possivel quando tais elemen- tos nao estio misturados. 3.2 Enquanto a linguagem é heterogénea, a lingua assim delimitada € de natureza homogénea: conititui-se num sistema de signos onde, de essencial, s6 existe a unido do sentido ¢ da imagem acistica, e onde as duas partes do signo sao igualmen- te psiquicas. 4.° A lingua, nao menos que a fala, é um objeto de na- tureza concreta, o que oferece grande vantagem para o seu estudo. Os signos lingiiisticos, embora sendo essencialmente Ptiquicos, nao sao abstragdes; as associagées, ratificadas pelo con- sentimento coletivo e cujo conjunto constitui a lingua, sio rea- lidades que tém sua sede no cérebro. Além disso, os signos da lingua s4o, por assim dizer, tangiveis; a escrita pode fixa-los em imagens convencionais, ao passo que. seria impossivel foto- grafar em todos os seus pormenores os atos da fala; a fonacgao duma palavra, por pequena que seja, representa uma infini- dade de movimentos musculares extremamente dificeis de dis- tinguir e representar. Na lingua, ao contrario, nao existe se~ ‘ndo a imagem acustica e esta pode traduzir-se numa imagem visual constante. Pois se se faz abstragao dessa infinidade de movimentos necesédrios para realizd-la na fala, cada imagem acistica nao passa, conforme logo veremos, da soma dum nime- ro limitado de elementos ou fonemas, suscetiveis, por sua vez, de serem evocados por um nimero correspondente de signos na escrita. E esta possibjlidade de fixar as coisas relativas 4 lin- gua que faz com que um diciondrio e uma gramdtica possam representd-la fielmente, sendo ela o depésito das imagens acisti- cas, e a escrita a forma tangivel dessas imagens. $3. Lucar pa LINGUA NOs FATOS HUMANOS. A SemroLosia. Essas caracteristicas nos levam a descobrir uma outra mais importante. A lingua, assim delimitada no conjunto dos fatos de linguagem, é classificdvel entre os fatos humanos, enquanto que a linguagem nao o é. 23 Acabamos de ver que a lingua constitui uma instituigao social, mas ela se distingue por varios tragos das outras institui- gées politicas, juridicas etc. Para compreender sua natureza peculiar, cumpre fazer intervir uma nova ordem de fatos, A lingua € um sistema de signos que exprimem idéias, e é comparavel, por isso, 4 escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbélicos, as formas de polidez, aos sinais milita- res etc., etc. Ela é apenas o principal desses sistemas. Pode-se, entio, conceber uma ciéncia que estude a vida dos signos no seio da vida social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia geral; cha- mé-la-emos de Semiologia’ (do grego sémefon, “signo”). Ela nos ensinard em que consistem os signos, que leis os regem. Como tal ciéncia nao existe ainda, no se pode dizer o que sera; ela tem direito, porém, a existéncia; seu lugar esté determina- do de antemao. A Lingitistica nio é sendo uma parte dessa ciéncia_geral; as leis que a Semiologia descobrir serio aplic4- veis & Lingiiistica e esta se achard dessarte vinculada a um do- minio bem definido no conjunto dos fatos humanos. Cabe ao psicélogo determinar o lugar exato da Semiologia ?; a tarefa do lingiiista é definir o que faz da lingua um sistema es- Pecial no conjunto dos fatos semiolégicos. A questao ser4 reto- mada mais adiante; guardaremos, neste ponto, apenas uma coi- sa: se, pela primeira vez, pudemos assinalar A Lingiifstica um lugar entre as ciéncias foi porque a relacionamos com a Se- miologia. Por que nao é esta ainda reconhecida como ciéncia auté- noma, tendo, como qualquer outra, seu objeto proprio? £ que rodamos em circulo; dum lado, nada mais adequado que a lingua para fazer-nos compreender a natureza do problema se- miolégico; mas para formuld-lo convenientemente, necessdrio se faz estudar a lingua em si; ora, até agora a lingua sempre (1) Deve-se cuidar de néo confundir a Semiologia com a Seméntica, que estuda as alteragdes de significado e da qual F. de S. ndo fez uma ex- posigéo metédica; achar-se-4, porém, o principio fundamental formulado na p. 89 (Urg.). (2) Cf. Ap, NaviLte, Classification des sciences, 2° ed., p. 104. 24 foi abordada em fungao de outra coisa, sob outros pontos de vista. Ha, inicialmente, a concepgio superficial do grande pi- blico: ele vé na lingua somente uma nomenclatura {ver p. 79), © que suprime toda pesquisa acerca de sua verdadeira natureza. A seguir, ha o ponto de vista do psicélogo, o qual estuda © mecanismo do signo no individuo; € 0 método mais facil, mas n&o ultrapassa a execugao individual, nao atinge o signo, que é social por natureza, : Ou ainda, quando se percebe que o signo deve ser estuda- de socialmente, retém-se apenas os caracteres da lingua que a vinculam as outras instituigdes, As que dependem mais ou me- nos de nossa vontade; desse modo, deixa-se de atingir a meta, negligenciando-se as caracteristicas que pertencem somente aos sistemas semiolégicos em geral e 4 Iingua em particular, O sig- no escapa sempre, em certa medida, 4 vontade individual ou social, estando nisso o seu cardter essencial; é, porém, o que menos aparece 4 primeira vista. Por conseguinte, tal cardter s6 aparece bem na lingua; mani- festase, porém, nas coisas que sio menos estudadas e, por outro lado, no se percebe bem a necessidade ou utilidade particular duma ciéncia semiolégica. Para nés, ao contrério, o problema lingiiistico é, antes de tudo, semiolégico, e todos os nossos de- scnvolvimentos emprestam significagdo a este fato importante. Se se quiser descobrir a verdadeira natureza da lingua, sera mister considera-la inicialmente no que ela tem de comum com todos os outros sistemas da mesma ordem; e fatores lingijisti- cos que aparecem, 4 primeira vista, como muito importantes {por exemplo: o funcionamento do aparelhp vocal), devem ser considerados de secundéria importincia quando sirvam somente Para distinguir a lingua dos outros sistemas. Com isso, nao apenas se esclarecera o problema lingiistico, mas acreditamos que, considerando os ritos, os costumes etc. como signos, esses fatos aparecerio sob outra luz, e sentir-te-4 a necessidade de agrupé-los na Semiologia e de explicd-los pelas leis da ciéncia. 25 caPiruULO Iv LINGUISTICA DA LINGUA E LINGUISTICA DA FALA Com outorgar a ciéncia da lingua seu verdadeiro lugar no conjunto do estudo da linguagem, situamos ao mesmo tempo toda a Lingilistica. Todos os outros elementos da linguagem, que constituem a fala, vém por si mesmos subordinar-se a esta primeira ciéncia e & gragas a tal subordinagao que todas as partes da Lingijistica encontram seu lugar natural. Consideremos, por exemplo, a produgao dos sons necessd- rios A fala: os 6rgaos vocais so to exteriores 4 lingua como os aparelhos elétricos que servem para transcrever o alfabeto Morse sao estranhos a esse alfabeto; e a fonag&o, vale dizer, a execugSo das imagens acusticas, em nada afeta o sistema em si. Sob esse aspecto, pode-se comparar a lingua a uma sinfonia, cuja realidade independe da maneira por que é executada; os er- ros que podem cometer os musicos que a executam nao com- prometem em nada tal realidade. A essa separacgio da fonagao e da lingua se oporio, talvez, as transformagées fonéticas, as alteragées de sons que se produ- zem na fala, e que exercem influéncia tio profunda nos desti- nos da propria lingua. Teremos, de fato, 0 direito de preten- der que esta exista independentemente de tais fenédmenos? Sim, pois eles no atingem mais que a substincia material das pa- lavras. Se atacam a lingua enquanto sistema de signos, fazem- “No apenas indiretamente, pela mudanga de interpretagdo que dai resulta; ora, esse fendmeno nada tem de fonético (ver p. 100 s.). Pode ser interessante pesquisar as causas de tais mu- dangas e 0 estudo dos sons nos ajudar4 nisso; todavia, nio é 26 coisa essencial: para a ciéncia da lingua bastard sempre com- provar as transformagées dos sons e calcular-lhes os eteitos. E o que dizemos da fonacdo ser4 verdadeiro no tocante ® todas as outras partes da fala. A atividade de quem fala deve ser estudada num conjunto de disciplinas que somente por sua relagéo com a lingua tém lugar na Lingilistica, O estudo da linguagem comporta, portanto, duas partes: uma, essencial, tem por objeto a lingua, que é social em sua esséncia e independente do individuo; esse estudo é unicamente psiquico; outra, secundéria, tem por objete a parte individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonagio e é psico- -lisica, Sem divida, esses dois objetos esto estreitamente ligados e se implicam mutuamente; a lingua é necesséria para que a fala seja inteligivel e produza todos os seus efeitos; mas esta & necessfria para que a lingua se estabeleca; historicamente, o fato da fala vem sempre antes, Como se imaginaria associar uma idéia a uma imagem verbal se nfo se surpreendesse de inicio esta associagéo num ato de fala? Por outro lado, é ou- vindo os outros que aprendemos a lingua materna; ela se de- posita em nosso cérebro somente apés intimeras experiéncias. Enfim, é a fala que faz evoluir a lingua: sio as impressdes re- cebidas ao ouvir os outros que modificam nossos hdbitos lin- gilisticos. Existe, pois, interdependéncia da lingua e da fala; aquela € ao mesmo tempo o instrumento e o produto desta. Tudo isso, porém, nao impede que sejam duas coisas absoluta- mente distintas. A lingua existe na coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um diciondrio cujos exemplares, todos idénticos, fossem repartidos entre os individuos (ver p. 21), Trata-se, pois, de algo que esté em cada um deles, embora seja comum a todos e indepen- da da vontade dos depositdérios. Esse modo de existéncia da lingua pode ser representado pela férmula: 1+ 1+ 1+ 1... =I (padrao coletivo) De que maneira a fala est4 presente nessa mesma coleti- vidade? E£ a soma do que as pessoas dizem, e compreende: 27 a) combinagées individuais, dependentes da vontade dos que falam; 6) atos de fonagdo igualmente voluntérios, necess4rios para a execugao dessas combinagoes. Nada existe, portanto, de coletivo na fala; suas manifesta- gSes sio individuais e momentaneas. No caso, nao ha mais que a soma de casos particulares segundo a férmula: Gere erry Por todas essas razées, seria ilusério reunir, sob o mesmo ponto de vista, a lingua e a fala. O conjunto global da lingua- gem € incognoscivel, j4 que nZo é homogéneo, ao passo que a diferenciagao e subordinagZo propostas esclarecem tudo. Essa é a primeira bifurcagdo que se encontra quando se procura estabelecer a teoria da linguagem. Cumpre escolher entre dois caminhos impossiveis de trilhar ao mesmo tempo; devem ser seguidos separadamente. Pode-se, a rigor, conservar o nome de Lingiiistica para cada uma dessas duas disciplinas e falar duma Lingiiistica da fala. Serd, porém, necessério nZo confundi-la com a Lingiiis- tica propriamente dita, aquela cujo tinico objeto é a lingua. Unicamente desta ultima é que cuidaremos, e se por acaso, no decurso de nossas demonstragdes, pedirmos luzes ao estudo da fala, esforgar-nos-emos para jamais transpor os limites que separam os dois dominios. 28

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