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Oy a em Z| do Za eo UERJ Keiior Vice-reitor Coordenadora do Farum de Citncia e Culeura Diretora Editora Fxecntiva Coordenadora de Produgio Consetho Editorial Paulo Alcantara Gomes José Henrique Vilhena de Paiva Myrian Dauelsberg EDITORA UFRJ Heloisa Buarque de Hollanda Lucia Canedo Ana Carteizo Heloisa Buarque de Holanda (Presidente) Carlos Lessa, Fernando Lobo Carneiro, Flora Siissekind, Gilberto Velho, Margarida de Souza Neves. CLIENTELISMO E POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX Richard Graham Editora UFRJ | 1997 — Le ——— SS SSSSSSSSOOeeEOEeEEH 86522 } Copyright © 1990 by the Board of Trustees of the Leland Stanford Junior University. All rightsreserved, ‘Translated and published by arrangement with Stanford University Press. Ficha Catalogrifica elaborada pela Divistio de Processamento Técnico - SIBI/UFRI G141e Graham, Richard Clientetismo e politica no Brasil do século XTX / Richard Grakam, Rio de Janeiro: Editora UFRI, 1997. Tradugio de: Patronage and Politics in Nineteenth-century Brazil S44 p14 X21, 1, Hist6ria Polftica— Brasil, 1822-1889. I. Titulo COD: 981.04 Para Sandra ISBN 85-7108-155-7 Tractegito CelinaBrnat G7) ¢ me ONWERSIOAD M214 504 = BIBLIOTECA = 2 geieA be, 4 $0 Rio pe ste Copa ex Editora UFRJ, adaptada da edie&o americana Preparagio de texto ¢ revistio Alexander Mark Salz Editoragéio eletrinica Janise Duarte Crédito das fotos e charges A fotografia de Lacerda Werneck pertence colepao patticular de Eduardo Silva e foi gentiimente cedida, Todas as outras sio de S.A. Sisson, Galeria dos representantes da naytio (1861) (Rio de Janeiro, 1862). As charges sio da Semana ifustrada: Bleiges violentas, 25 de agosto de 1872; Francisco Belisério Soares de Souza o seu liveo, & de fevereito de 1873. Universidade Federal do Rio de Janeiro Forum de Cigncia ¢ Cultura Editora UFRJ , ‘Ay, Pasteur, 250/sala 106 - Rio de Janeiro . Cep: 2295-900 Tel: (O21) 295 1595 1.1242 126 Fax: (021) 542-3899 Apoi W Furndasio Usiversitirin José Bonitécio Prefacio Comecei a interessar-me pelo papel do clientelismo na vida politica quando era estudante universitétio e conheci, por intermédio de Robert Walcott, meu professor no College of Wooster [Faculdade de Wooster], as obras de Lewis Namier sobre as clientelas na Inglaterra do século XVIII. Anos depois, estudando o papel dos ingleses no Brasil, iniciei um levantamento sobre questdes relacionadas & escravidio. Para tentar explicar a Aboligao, tive que levar em conta a realidade politica no Brasil, a atitude dos proprietarios de escravos ¢ as relagdes entre Estado e sociedade. Ao pesquisar 2 correspondéncia oficial e pessoal de Ifderes politicos — a maior parte da qual jamais havia sido consultada por historiadores —, percebi que sua maior ¢ cons- tante preocupacao era o clientelismo. Daf, este Livro. Para estudar a natureza da politica brasileira no século XIX, recebi recursos da John Simon Guggenheim Foundation ¢ do National Endowment for the Humanities, e atuei como Senior Fulbright-Hayes Research Fellow. A Universidade do Texas, em Austin, por meio do Instituto de Estudos Latino-Americanos ¢ do Departamento de Historia, também contribuiu para o financiamento da viagem que precisei fazer para consulta aos arquivos brasileiros. Particularmente, William Glade, diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos, e Standish Meacham, chefe do Departamento de Histéria, apoiaram as varias fases dessa pesquisa. VITE CLIENTELISMO £ POL[TICA NO BRSIL DO SECULO XIX No Brasil, beneficiei-me, como tantos outros, do dedicado trabalho de arquivistas e bibliotecdrios. Os arquivos que consultei estao listados nas Referéncias, e estendo meus agradecimentos aos seus funciondrios, especialmente ao pessoal do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e do Instituto Histérico ¢ Geografico Brasileiro. Leslie Bethell, Warren Dean, Joan Meznar e Fernando Novais leram partes de primeiras vers6es deste livro e deram sugestécs para melhord-lo. As vezes nfo aceitei seus conselhos, mas sempre achei valioso examind-los. E, acima de tudo, desfrutei do sentido de um empreendimento compastilhado, resultado do estimulo intelectual, da critica provocativa, de sugestdes crileriosas e da participagio generosa de Sandra Lauderdale Graham. Richard Graham Prefacio & Edicdo Brasileira Um livro sempre se escreve para um certo publico. No presente caso, escrevi pensando no leitor norte-americano. e expliquei muitas coisas que so evidentes a um leitor brasileiro. Nao penso agora em escrever novo livro. Aqui est4 meramente uma tradugfo; quase tudo vai como no original. Minha pesquisa sobre o clientelismo no Império se estendcu por muitos anos. Assim mesmo, pude descobrir no meu fichdrio as palavras originais de quase todas as citagées textuais que aparecem neste livro, sofrendo apenas uma atualizagao orto- grafica. Em pouquissimos casos — 14 de um total de 946 — niio pude encontrar a ficha original. Nestes, as notas trazem a indicagio “traduzido do inglés”, Mantive a grafia original apenas onde cra impossivel atualizd-la, ou seja, nos t{tulos das obras publicadas. Em todos os outros casos (citagdes, onomastica etc.) usou-se a grafia atual. Sumario indice de Quadros indice de Tustragées Introdugio Parte Um As Estruturas DA Potitica 1 Familias, Clientes ¢ Controle Social 2 Quem Retinha o Poder? 3 Eleicdes e Clientelismo Parte Dois A ATUAGAO POLITICA 4 O Teatro das Eleigées 5 Lideranga, Fraude e Forca 6 Facgao e Partido 7 Reforma Eleitoral PARTE TRES A PRATICA DO CLIENTELISMO 8 Padrdes Clientelisticos 9 Ligagées Ansiosas Epilogo Notas Referéncias Indice Remissivo 12 13 1S 27 67 103 139 165 195 239 271 301 339 351 495 519 12 Indice de Quadros Le oe FS SP 10. il. 12. Mobilidade Geografica dos Nascidos Livres, Par6quias Selecionadas, 1872 Porcentagem de Homens Livres de 21 Anos Registrados para Votar por Regiao ¢ Provincia, Infcio da Década de 1870 Cargos Solicitados Cargos Judiciais Solicitados Cargos Administrativos Solicitados Preferéncias dos Pretendentes a Cargos por Area Preferéncias dos Pretendentes a Cargos por Nivel Administrativo Relagées Declaradas Entre Patrdes e Clientes Relagées dos Missivistas com os Pretendentes a Cargos por Nivel Administrativo do Posto Solicitado Relagdes dos Missivistas com os Destinatérios e Pretendentes a Cargos por Posigao do Missivista Relagdes dos Missivistas com os Pretendentes a Cargos por Posicio do Pretendente Razdes Alegadas pelos Missivistas em prol de Candidatos a Posigdes ou Favores. 57 148 284 284 285 298 298 306 308 3H 312 331 Indice de Lustragdes Francisco Peixoto de Lacerda Werncck, bario de Pati do Alferes (1824-61), c. 1855 Manuel Pinto de Souza Dantas (1831-94), 1861 José ‘Tomas Nabuco de Aratijo (1813-78), 1861 Eleigdes Violentas, 1872 Jo&o Lustosa da Cunha Paranagué (1821-1912), 1861 Joao José de Oliveira Junqueira Jinior (1822-88), 1861 Jo%o Mauricio Wanderley, bario de Cotegipe (1815-89), 1861 José Maria da Silva Paranhos (pai; 1819-80), 1861 Francisco Belisério Soares de Souza (1839-89) e seu livro, 1873 José Ant6nio Saraiva (1823-95), 1861 O Fluxo da Clientela Joao Alfredo Correia de Oliveira (1835-1919), 1861 31 36 14 188 203 215 216 228 247 257 280 334 Introdugao O CLIENTELISMO constitufa a trama de ligagao da politica no Brasil do século XIX e sustentaya virtualmente todo ato politico. A vit6ria eleitoral dependia sobretudo de seu uso competente. Meu objetivo aqui € investigar o modo especffico como a concessio de protegio, cargas oficiais e outros favores, em troca de lealdade politica e pessoal, funcionava para beneficiar especialmente os interesses dos ricos. Detalhar a natureza e os mecanismos das relagdes patriio/cliente serve nao apenas para ampliar nossa compreensio da historia polftica do Brasil, mas também para esclarecer 0 vinculo entre elites sociais e 0 exercicio do poder. Talvez. possa também nos ajudar a entender relagdes de autoridade em toda a América Latina e, talvez, no mundo mediterrénco de um modo geral. Sem diivida, as técnicas pelas quais aquceles que deveriam ser controlados aparentemente vieram a consentir — ¢ talvez algumas vezes até mesmo a apro- var — o sistema de seu préprio controle sao relevantes para outros perfodos e lugares. A natureza e 0 significado de eleigdes manipuladas constituem temas de particular importéncia para todo latino-amcricanista, como também as questdes dos partidos que se formam ¢ reformam com programas imprecisos, a constante procura por vagas © sinecuras e as transagdes que surgem dos relacionamentos pessoais dentro de uma ordem politica ostensivamente impessoal. Mas como é apenas na prética concreta do clientelismo, dentro de determinadas instituigdes 16 CLIENTELISMO E POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX politicas, que se pode realmente apreender seus funcionamentos e importancia, optei por focalizar o Brasil de 1840 a 1889, isto é, durante o reinado de Pedro U1. Homens abastados dominavam o Estado brasileiro no século XIX. Os contempordneos entenderam bem esta questio, e 0§ que escreviam sobre esses assuntos de um modo geral niio consideravam is marxistas posteriormente tenham destacado isso, outros se esforgaram para negar essa dominagao, fosse atribuindo uma qualidade democrdtica ao Brasil do século XIX, fosse considerando que a maior parte do poder residia em outros 0 ruim. Talvez porque alguns historiadores grupos que no a oligarquia agraria. Minha intengio nio é preencher um vazio ideolégico, mas sim entender como a politica aparecia Aqueles que a exerciam, 0 que pretendiam, e como suas ansiedades e medos traduziam-se na acao politica. Evitar que conflitos sociais eclodissem em desordem e destrufssem um modo de vida que favorecia os donos de terras foi uma consideragao predominante na formagio do sistema politico brasileiro, como provavelmente foi e ainda ¢ em outros lugares. Nesse sentido, minha tarefa nfo é levantar uma nova questao, mas explorar em detalhes uma antiga, rastreando 0 modo como © clientelismo vinculava-se as estruturas sociais e econdmicas. Clientelismo significava tanto © preenchimento de cargos governamentais quanto a protegdo de pessoas humildes, mesmo os trabalhadores agricolas sem terra. Neste livro, mostro como no Brasil do século XIX esses dois tipos de clientelismo entrelagavam-se através das eleigdes. Os dois niveis de clientelismo — o local c 0 nacional — tém sido estudados, em geral, separados, tipicamente por antropdlogos, de um lado, ¢ cientistas politicos, do outro, Os historiadores geralmente t¢m ignorado as eleigées nas vilas e cidades do Brasil do século XIX, nao as considerando importantes, pelo fato de a composigio do Congresso no depender delas. Mas, se nao tinham importincia, por que pessoas em todo o Brasil, até mesmo em seus mais Introdugito 17 remotos confins, ficavam tao perturbadas por causa delas, ao ponto de arriscar suas vidas, em nome da vitoria nas urnas? Meu argumento é que as eleigdes testavam e ostentavam a lideranga do chefe local. Através de um sistema de cleigdes indiretas de dois turnos, os yotantes escolhiam as figuras mais proeminentes do local para formar os colégios eleitorais, os quais, por sua vez, escolheriam deputados para 0 Congre: sol. A famflia ¢ a unidade doméstica constitufam os fundamentos de uma estrutura de poder socialmente articulada, ¢ 0 lider local e seus seguidores trabalhavam para ampliar essa rede de dependéncia. Numa sociedade predominantemente rural, um grande proprietério de terras contava com a lealdade dos scus trabalhadores livres, dos sitiantes das redondezas ¢ dos pequenos comerciantes da vila, lealdade que seria demonstrada por varias maneiras, nao menos pelo apoio nas eleigdes. Uma parcela muito maior de brasileiros do que se tem reconhecido até agora atuava nas eleicdes, aumentando assim o ntimero de participantes nos atos cleitorais, que demonstravam publicamente a supe oridade “natural” de uns sobre os outros. Alguém que desafiasse a lideranga de um potentado local tinha de arrebanhar um séquito pessoal; exibir seu poderio levave facilmente ao uso da violéncia direta para derrubar o principal chefe anterior. Por conscguinte, eleigdes ¢ violéncia caminhavam juntas. Em nivel nacional, o resultado das eleigdes era quase inteiramente previs{vel, mas localmente, para alguns, tudo dependia do resultado. Indicagdes para cargos oficiais ajudavam a ampliar o cfrculo de um chefe, © esse fato impelia-o a fazer pedidos as autoridades provinciais, aos membros do Congresso nacional, a ministros de Gabinete e até ao presidente do Conselho de Ministros. Para demonstrar seu mérito para tais indicacdes, tinha de vencer nas elei¢des, de forma que, de uma maneira circular, mas real, ele era uma lideranga por ganhar a eleigio, e ganhava por ser uma lideranga. Por conseguinte, o préprio chefe local estava enredado num sistema que o fazia cliente de 18 CLIENTELISMO E POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX outra pessoa, a qual também dependia de outras, numa série de ligagSes que iam até a capital nacional. Os Gabinctes nao exerciam sua autoridade contra as liderangas locais, mas através delas, e esses chefes agrérios, por sua vez, procuravam nio se opor ao governo, mas sim participar dele. Esse ponto, essencial para a compreensio da polftica do Brasil do século XIX, diminui enormemente a importincia de uma oposigiio hipotética entre poder publico ¢ poder privado. Este livro focaliza a polftica interna do Brasil. Nisso contrasta com obras, entre as quais uma das minhas, que se dedicaram principalmente 4 economia brasileira de exportagio. Embora eu partilhe da opinigo de Fernando Henrique Cardoso, de que no Brasil as relagdes politicas e de classe entrelagam-se com as exigéncias da economia internacional, concentro minha atengéio na polftica, e no na economia, ou seja, mais na rede de clientelismo do que na de produgio ¢ troca. Ao invés de acentuar a dependéncia internacional, enfatizo como as relagdes de classe no Brasil criaram a dependéncia pessoal de clientes em relagdio a patrdes e deste modo modelaram a politica interna do pais”. Durante muito tempo, e até certo ponto mesmo atualmente, a hist6ria politica do Brasil do século XIX foi tratada como a histéria de gabinetes e reis. Mesmo os melhores autores, come¢ando com Joaquim Nabuco, em 1897, e incluindo Sérgio Buarque de Hollanda, em 1972, fizeram pouco esforgo para compreender os mecanismos internos da ago polftica, ou para relacionar essa ago & sociedade*. Além disso, a maioria dos historiadores do século XX vé o Império com nostalgia, usando suas descrigdes do periodo para criticar — algumas vezes sutilmente, outras nao — os regimes brasilciros subseqiientes, republicanos ou ditatoriais. Ao fazerem isso, deram indevida énfase a figura de Pedro If ou, na melhor das hipGteses, as de alguns de seus conselheiros. No presente livro, dedico pouca atengao As agées particulates do Imperador, ja que ele de- sempenhava apenas uma fung&o limitada nas praticas politicas Tntroducto 19 colidianas, cujo sentido para os contemporaneos procuro entender. E muitas das caracterfsticas da vida politica brasileira posterior, depreciadas por observadores brasileiros © estrangeiros, estavam tao presentes no Império como em qualquer outro perfodo. Os historiadores tém divergido sobre se o Estado brasileiro do século XIX servia basicamente aos interesses de uma classe dominante de latifundidrios ¢ donos de escravos, ou se possufa vida e objetivos inteiramente proprios. A controvérsia tem implicagdes nao apenas para a condigio brasileira atual, mas também para a teoria do Estado. Na década de 1930, Caio Prado Jdnior sustentava, como varios historiadores que o seguiram, que Gnico problema real na histéria brasileira era determinar quem constitufa a classe dominante — se proprictdrios de terra ou comerciantes; o governo refletiria inevitavelmente suas vontades. Em seu livro Evolugdo politica do Brasil — que originalmente trazia o subtitulo interpretagdo dialética da histéria brasilei- ra —, ele argumentou que o rompimento do Brasil com Portugal, em 1822, originou-se do desejo da classe proprictéria de terras de libertar-se de uma metrépole colonial dominada por comerciantes. Os proprictérios de terra construfram entao um sistema politico que pudessem controlar, e sé quando uma nova ¢ progressista burguesia de comerciantes e banqueiros desafiou seu poder agrario o sistema enfraqueceu, entrando em colapso em 1889, com a derrubada do Império*. Eu também vejo os ricos usando uma estrutura de governo que eles préprios criaram para promover seus interesses. Mas nilo yejo esses interesses levando tao diretamente a adogao dessa ou daquela politica, como soja uma lei de impostos, regulamentagio tarifaria ou decretos trabalhistas. Eu os vejo antes em sua influéncia sobre os préprios conceitos do bem ¢ da verdade, a conduta devidamente obseqiiente em uma estrutura social hierarquica, a lealdade aos patrdes e 0 cuidado com os clientes. Em suma, embora houvesse algumas questdes polfticas em torno das quais as classes convergiam ou divergiam, entendo 20 CLIENTELISMO £ POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX que, mais freqiientemente, os interesses classistas eram mediados através da ideologia, uma ideologia demonstrada ¢ fortalecida pela acao politica. Tempouco acredito que comerciantes ¢ proprietdrios de terra, como tais, colidissem uns com os outros, pois penso que muitos ou cram a mesma pessoa ou cram intimamente relacionados, ¢ que as divisdes se davam segundo oulras linhas. Por fim. nao vejo que o fim do Império tenha sido causado pela ascensao de uma nova classe com uma ideologia distinta, Tanto os proprietérios de terra do comego quanto os do fim do século XIX sentiram a presséo da economia mundial capitalista, tendo todos desenvolvido relagdes senhoriais com seus trabalhadores ¢ dependentes. Por i: o € que a procura de cargos ptblicos por parte da autoridade local continuou a caracterizar a Reptiblica, como ocorrera durante © Império. Uma corrente historiogréfica alternativa enfatiza os fatores culturais e a busca de states como determinantes das caracte- risticas politicas brasilciras. Nestor Duarte declarou em 1939, por exemplo, que o poder no Brasil sempre se manteve na esfera privada da famflia, uma instituigéo que nutria profunda hostili- dade para com o Estado. Mesmo admitindo que por famflia se referia & da “casa-grande”, isto é, 4 do grande proprictério rural, ele recusou-se a focalizar os interesses ccondmicos, ou a maneira como 0 governo os atendia. Para cle, “a casa-grande (...) 6 0 maior indice de uma organizagéio social extra-estatal que ignora o Estado, que dele prescinde ¢ contra ele Iutara”5, Oliveira Viana desenvolveu um argumento semelhante, embora de outra petspectiva, em uma série de estudos que comegaram na década de 1920, mas tiveram sua formulagéo mais clara em 1949. Ele reconheceu, como reconhego, o peder dos grandes latifundidrios sobre seus dependentes, e sabia que cada proprictario tinha relagGes de alianga com outros, por meio de lagos familiares. Mas os via atuando sob uma oposig&o determinada de um Estado que procurava restringir sua influéncia, dominé-los, discipliné- los, A introdugao de eleigdes ¢ a aparéncia de democracia, dizia, complicou ¢ retardou grandemente esse esforgo construtivo do Introdugéo 21 Estado, j4 que os latifundidrios controlavam os votos dentro de seu feudo®, Neste livro, os leitores encontrarao muitas provas de eleigdes controladas e influéncia familiar, mas rejeito a separagio implicita entre o Estado — mesmo o Estado central — e 0s chefes agrdrios. E certamente nio sugiro, como ele, que aumentar 0 poder de um Estado autoritario, para ser exercido sobre um povo que de outro modo seria predestinado & anarquia, era uma meta que deveria ser ardentemente desejada. Mais ainda, para mim a cultura é formada e conformada; ela prdpria € um processo, nao apenas um dado, e nesse processo privilegiam-se os interesses de alguns ¢ negligenciam-se os de outros. No Brasil do século XIX, cultura ¢ tradigio favoreciam o lugar dos poucos, o dos proprictérios. Classe e starus entrelagavam-se. Uma obra mais recente, e bastante influente, de Raymundo Faoro, significativamente intitulada Os donos do poder, argumenta com muita verve e forga literdria que toda a histéria. luso-brasilcira, desde 1385, pode ser entendida como uma tentativa do “estamento burocratico” de ganhar ascendéncia sobre 0 resto da sociedade: sob o imperador Pedro II, sua luta parecia vitoriosa, visto que o Partido Conservador em geral vencia os liberais, os quais (ele diz) representavam os donos de terras; a criagio da Repiblica, em 1889, inverteu momentanea- mente 0 quadro e colocou os fazendeiros no poder’, Discordo de Faoro em quase todos os pontos, mas sobretudo no tocante ao Estado. Nao o vejo tio autOnomo e¢ livre de seu contexto social e econémico, nem creio que politicos, juizes e outras autoridades representassem apenas os interesses de um Estado reificado, assim que atravessassem os portdes de uma agéncia governamental. Ocupantes de cargos, em diferentes niveis do governo, chocavam-se freqiientemente uns com os outros, tanto que as autoridades centrais algumas vezes lutavam contra os donos do poder local, mas, nos dois extremos e em todo o sistema politico, fosse qual fosse seu partido, as autoridades eram extremamente sensiveis aos interesses agrérios, quando nao eram elas préprias proprietérias de terra. 22 cur LISMO B POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX Todos csses enfoques impéem categorias atuais a atores histéricos que n&o necessariamente as reconheciam; contudo, os historiadores deduzem dessas categorias 0 que os atores pretendiam, e atribuem-lhes papéis que talyez nfo tivessem escolhido. Em contraste, desejo aqui focalizar os significados que eles préprios deram as suas agdes, considerando os individuos, seja dentro ou fora do governo, como pessoas completas, com miultiplos compromissos, algumes vezes em conflito, outras em dtivida. O que almejavam? Os politicos, por exemplo, preocupavam-se sobretudo em promover os interesses econémicos particulares dos proprictérios de terra © dos comerciantes, ou concentravam-se principalmente no fortalecimento dos nervos do poder central? Minha conclusio é que nao faziam nenhuma das duas coisas. Como revela sua correspondéncia, gastavam a maior parte de sua energia na formagio de redes de clientelismo, ampliando seu séquito ou encontrando um protetor poderoso para suas fortunas politi Os politicos do século XIX preocupavam-se predominantemente (embora nao exclusivamente) com o clientelismo, fo: concedendo favores ou buscando-os (muito freqiientemente. duas coisas a0 mesmo tempo). Nessa preocupagao, e através das agdes que a exprimiam, eles de fato legilimavam a estrutura social existente, em cujo topo situavam-sc os proprietarios. Os politicos efctivamente trabalhavam para este fim, mas nao apenas, ou sobretudo, perseguindo politicas governamentais especificas de seu estilo ¢ pritica de vida. Finalmente, ao mesmo tempo cm que a ideologia do clientelismo servia aos interesses da clite econOmica, também im vez disso, atingia-se esse objetivo na amplitude fornecia um parametro segundo o qual se podia medir e verificar © comportamento daquela classe dominante. Por isso, seus membros s6 violavam o cédigo do sistema com muita cautela. Por esta razao, esse padrio de conduta era aceito por mais gente do que se poderia esperar. Suas rafzes aprofundavam em um sistema social antigo, baseado no final das contas em relaciona- Introdugio 23 mentos familiares e interpessoais construfdos ao longo de muito tempo. N&o o vejo como um estagio a ser substituido pela vitéria inevitével de uma burocracia “racional”, impessoal ¢ universa- lista, nem penso que o clientelismo era uma circunstancia patold- gica. O clientelismo funcionava a favor de alguns, e nfo de outros, ¢ preservou uma estrutura que s6 uma revolugao poderia ter destrufdo. PARTE UM AS ESTRUTURAS DA POLITICA Familias, Clientes e Controle Social Quanpo o Principe REGENTE DE PORTUGAL, que depois seria coroado como Joao VI, chegou ao Brasil, em 1808, expulso da Europa pelo Exército de Napoleao Bonaparte, nio estabeleceu apenas uma corte no exilio, mas o aparato completo de seu governo. Evidentemente, gostou do Brasil, ¢ mesmo a derrota de Napoledio nao o persuadiu a regressar para Portugal. So o fez, relutantemente, em 1820, quando as recém-criadas Cortes Portuguesas assim o exigiram, e ameagaram seu trono se ele permanecesse além-mar. O Brasil caminhou entdo, inexora- velmente, para a independéncia, formalmente declarada em 1822 por seu proprio filho, que se coroou Imperador Pedro I. Os prasileiros comecaram entao a claborar as instituigdes formais de seu novo governo, o que levou outros vinte anos. Esse processo completou-se nos primeiros anos do longo reinado de Pedro IL (1840-89), e 0 capitulo seguinte examinard tais instituigdes, que permaneceram mais ou menos inalteradas por quase meio século, Outras instituigdes, menos formais, foram herdadas dos tempos coloniais, e ninguém pensou em crid-las ou modificd-las: existiam. Em todas as partes do pats se pedia verificar 0 peso da familia e da casa, a tensio latente entre pobres e ricos, um udo senso de hicrarquia social c a pratica constante de prestar favores em troca de obediéncia. Esses padrées sociais influenciavam enormemeate a politica ce davam as estruturas de governo um significado particular, brasileiro. 28 CLIENTELISMO B POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX Regides Antes de passarmos aquelas persistentes realidades que possibilitavam a todos os brasileiros se compreenderem uns aos outros, precisamos reconhecer uma outra, que provocava Ses: a forga do regionalismo. Os homens sentiam-se fortemente presos ao lugar, talvez precisamente por causa dos lagos familiares e dos vinculos de protegio, mas também, para alguns, pela propriedade da terra. As atividades agricolas e de gio de gado, sobretudo para exportagao, definiam zonas distintas com lagos polfticos, e 0 primeiro passo para uma interpretagiio da vida politica brasileira é identificar os vinculos regionais. Historiadores do Brasi] novecentista j4 delimitaram nitidamente suas economias regionais, cada uma concentrada num tnico produto. Café, agticar e algoddo encabegavam a lista das exportagGes, e a criagdo de gado também era lucrativa, cada produto caracterizava uma regifo distinta, Suas rivalidades muitas vezes revelavam-se probleméaticas para o sistema politico, contribuindo até mesmo para solapar o Império — substituido por uma Reptiblica em 1889. Assim, este estudo comegard tratando das divisées regionais nessa imensa terra, ainda que, no final das contas, elementos de unidade tenham prevalecido. A 4rea de assentamento mais antigo dedicou-se durante muito tempo a produgiio de aguicar, com mao-de-obra escrava, para o mercado internacional, Uma faixa estreita de 80 a 160 quilémetros de largura, caracterizada por chuvas abundantes ¢ solo rico, estendia-se ao longo da costa, desde a extremidade que aponta para 0 Atlantico, no Rio Grande do Norte, até o Sul, logo além da cidade de Salvador. Quase todo o agticar exportado pelo Brasil saia dessa regio nordestina e de um pequeno centro de cultivo de agticar perio de Campos, na provincia do Rio de Janciro. © Brasil ha muito perdera a posigao, que desfrutara no século XVII, de quase monop6lio na produgéo mundial, mas seus fazendeiros continuaram prosperando até a década de 1870, e mesmo depois podiam contar com um mercado interno que se expandia gradualmente'. Entretanto, de 1840 em diante, os Familias, Clientes e Controle Social 29 cafeicultores do Sul assumiram a dianteira, e os Ifderes nordes- tinos sentiram profundamente a perda de sua predominancia econ6mica e polftica no Brasil. Flo GRANDE 89 NORTE AMAZONAS Boers, plo OF JANEIRO \ Sperdnate ig de senses 9250 5001000 Mapa do Brasil Politica e economicamente, a regiio cafecira constitufa o outro polo da atividade brasileira. Por volta de 1840, o café re- presentava aproximadamente metade das exportagdes brasileiras, e seus lucros propulsionaram um crescimento sem precedentes na riqueza c nas receitas do Brasil. Tipos de solo, altitude ¢ clima favoreciam o café no Sudeste brasileiro, e a partir de 1820 seu cultivo espalhou-se rapidamente pelo vale montanhoso do rio Paraiba do Sul, ao longo da faixa paralela a costa que ele percorre. Por volta de 1850, 0 café também se tornou a principal lavoura a oeste da cidadé de Sao Paulo, embora essa drea nova nao tenha desafiado a antiga até a década de 18807. 0 CHENTELISMO E POLL NO BRASIL DO SECULO XIX Numerosos fazendciros amealharam fortunas substanciais com © café, Mas 0 sucesso de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck (1795-1861) — que recebeu o tftulo de barao de Pati do Alferes em 1852 — excedeu © da maioria deles, e a extensa correspondéncia que ele deixou, bem como sua proeminéncia politica local, o tornam digno de atengio especial como membro da classe agrétia. Seu pai, um imigrante das ilhas dos Agores, casara-se numa famflia que possufa alguma riqueza, acumulada no comércio do século XVIII na entéo préspera regiado da mineragio de ouro (cerca de 480 quilémetros ao norte do Rio de Janeiro). A uma sesmaria que a mae de Francisco ja recebera ilho tinico, scu pai acrescentou outra, no vale do Paraiba do Sul. Francisco herdou as duas ¢ passou a plantar café. Scu proprio s de café, casamento, numa importante famflia de comissé ajudou-o ainda mais, ¢ ele acabou proprietirio de sete fazendas, com cerca de mil cscravos. Suas terras principais localizavam- se no municfpio de Vassouras, mas ele possufa propriedades rurais ¢ urbanas cm outros lugares, entre elas uma casa na capital, de onde safa em uma carruagem deslumbrante para participar dos eventos de gala na corte do imperador. Ele tinha um forte nleresse nos negdcios de toda a economia cafevira. Em 1847, quando seu filho, recém-chegado dos estudos na Europa, herdou uma fazenda através da prépria mulher, Francisco escreveu uma famosaMeméria, reeditada muitas vezcs, sobre como estabelecer uma fazenda, cuidar dos pés de café, organizar a produgao ¢ administrar os escrayos*. Como muitos outros contemporaneos, 0 agrario dinamico cle deve ser compreendido como um empre: ¢ progressista, interessado tanto no lucro quanto no poder. Terei mais a di Nenhum produto marcou t&o nitidamente uma regiao, do ponto de vista da diregio da lealdade politica, como fizeram o agucar e o café. Em primeiro lugar, nenhum outro correspondia a mais de um décimo das exportagdes brasileiras na década de rer sobre seu papel politico c o de sua familia. 1840, A maior parte da produgao de algodao de fibra longa — natural do Bro il —- concentrava-se nas regides ligeiramente Familias, Clientes e Controle Social 31 mais altas ¢ menos tmidas do Nordeste, distantes da costa uns 50 a 150 quilémetros. Nessa area, predominavam os pequenos donos de terras, embora alguns homens fossem proprictirios de grandes fazendas. O algodio permaneceu um item de pouca importancia para os plantadores brasilciros, apesar do breve ¢ alvotogado interesse por sua produgio na provincia de Sao Paulo, provocado pela Guerra Civil dos EUA‘. O tabaco predominava na regido em redor da cidade de Cachoeira, na provincia da Bahia, do outro lado da bafa, defronte a Salvador, Também costumava ser produzido em pequenas propriedades, cujos donos linham pouca influéncia politica. A regiio do rio Amazonas produzia ¢ ue borracha, coletados da drvores que cre um naturalmente na floresta, mas sé no final do Império a riqueza Francisco Feixoto de Lacerda Werneck, harito de Pati do Alferes (1824-61), ¢. 1855 32. CLIENTELISMO E POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX da regiio proporcionou uma base para desafiar (mesmo assim, apenas ligeiramente) o dom{nio politico dos plantadores de agticar ¢ café. Na verdade, muitas liderangas na Amazénia sonhavam plantar cana-de-agticar na regidio, lamentando a tendéncia contraria dos trabalhadores, que penetravam a csmo na floresta para coletar borracha’, A criagdo de gado estabelecen algumas regides com certa importancia politica. Observadores estrangeiros descreveram trés economias pecuérias distintas, cada uma com sua cultura propria. Nos trechos fridos do Nordeste, distantes da faixa costeira produtora de agticar ¢ a oeste das dreas intermediarias de algodio, a criagio de gado era uma ocupa¢io principal desde o século XVI, Secas ocasionais devastavam esse sertao, mas o gado € os vaquciros retornavam sempre com as primeiras chuvas. Mais ao Sul, os habitantes de Minas Gerais concentravam sua economia na produgio de gado de corte, com resultados mais regulares. Dessa regiao de planicies ondulantes, e cerrados, os vaqueiros conduziam seu gado para o Rio de Janeiro, onde a demanda por carne fresca aumentava macigamente, enquanto a cidade crescia cm dimens6es ¢ riqueza, com as crescentes exportagdes de café. Contudo, de todos os estancieiros do Brasil do século XIX, os do Rio Grande do Sul emergiram como os mais présperos poderosos, Os pastos suavemente ondulados € as ricas planfcies da regido favoreciam especialmente a pecudria, e por volta de 1863 a provincia exportava aproximadamente 70% do couro brasileiro. Também produzia carne salgada ou charque para consumo dos escravos nas plantagées de agticar ¢ café. Nessa, a mais meridional das provincias, uma cultura distinta ¢ uma intensa lealdade regional desafiavam continuamente as tendéncias centralizadoras de politicos no Rio de Janeiro’. Fatores de Unidade Os brasileiros permaneciam predominantemente rurais. Com excegio do Rio de Janeiro — 206.000 pessoas em 1849, 229,000 em 1872 —, as cidades tendiam a ser pequenas. Se Familias, Clientes ¢ Controle Social 33 considerarmos as sete maiores cidades do Brasil em 1872, a lista inclui uma com apenas 11.730 habitantes, ¢ as sete juntas correspondiam a apenas 617.428 pessoas, cm uma populagéo de cerca de 10 milhoes, ou seja, 6% do total. Sem diivida, as cidades cresceram rapidamente: em 1890, 0 Rio de Janeiro possufa uma populaggo de 430.000, e 11% dos brasileiros ivi cidades com mais de 10.000 habitantes’. Os principais lideres polfticos sempre viviam nas cidades, pelo menos enquanto o Congresso se reunia, ¢ esse fate imprimia uma patina urbana & agiio politica, Mas, sendo este o caso de uma sociedade predominantemente rural, a verdadeira base da vida politica assentava-se no campo, nas -fazendas e estincias Além do baixo nivel de urbanizagio, varias outras caracterfsticas da sociedade brasileira abrangiam todas as regides. Primeiro, fosse nas cidades ou nas plantagGes, a maior | parte do trabalho fisico era feita por escravos negros, Embora praticamente todo tipo de atividade agricola (assim como a criagio de gado) dependesse de escravos, eles concentravam-se nas regidcs produtoras de agticar e de café do Nordeste do Sudeste, respectivamente. Os escrayos também trabalhavam como artesaos e criados domésticos, nfo apenas nas fazendas, mas nas vilas ¢ cidades. Os 2 milhdes e 500 mil escravos do Brasil representavam entre um quarto e um tergo da populagao cm meados do século XIX. Muitos donos tinham s6 um escravo ou um pequeno lote de dois ou trés, ¢ a extensa difuséo da escravidao assegurava, deste modo, um amplo apoio entre os livres para a sobrevivéncia da institvigao, Alguns fazendeiros, contudo, possufam centenas, as vezes milhares, fazendo do Brasil um lugar onde a riqueza media-se em grande parte por seres humanos, O Congresso s6 aboliu a escravatura em 1888, ¢ os escravos continuaram trabalhando até aquela data, embora o fim efetivo do comércio de escravos, em 1850, ¢ a aprovacao da Lei do Ventre Livre em 1871, libertando, desde ent&o, todas criangas nascidas de mulheres escravas, tivessem sinalizado que a cscraviddo, mesmo que tardiamente, acabaria. Apés 1850, um ENTELISMO E POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX comércio interno de escravos do Nordeste para o Sudeste havia separado aos poucos algumas regides de outras, pclo menos até certo ponto’, Ainda menos influenciados por diferengas regionais do que na questo da escravidao, os conceitos de casa e familia afetavam profundamente a natureza da politica, A importancia dessas instituigdes, como unidades basicas da ordem politica, exige que nos estendamos um pouco em sua discussao, tanto mais porque esses elementos culturais mostraram-se par- ticularmente resistentes 1 mudanga. Embora na realidade fami- lias e unidades domésticas aparecessem de varias formas, 0 ideal partilhado universalmente tomava como certo que fossem chefiadas por um homem. O pai exereia autoridade legal sobre toda a unidade doméstica, ¢ a lei delegava a ele o dircito de punir seus membros, fosse esposa, filho, criado ou escravo. Um pai podia, legalmente, encarcerar os filhos de qualquer idade que vivessem com ele, ¢ o fazia para “castigar e puni-los de mas manhas ¢ costumes”. A lei considerava a propriedade dos filhos vivends com a familia, também independentemente de sua idade, como pertencente ao pai?. Quando a Constituigéo proibiu que um adulto vivendo com o pai (filho-famflia) votasse, tentando com egurar que cada familia dispusesse de apenas um voto, reconheceu a autoridade paterna; pois, como explicou um comen- tarista de leis a respeito de filhos morando com a familia: “sua vontade & ainda dependente da de sevs pais”, Os legisladores, disse um jornalista, queriam assegurar que 0 votante nao estivesse “para com outros numa dependéncia pessoal muito estreita, como os filhos-famflia, as mulheres casadas, os famulos e os que vivem de es sexo (...) nfio permite que se presuma nas mulheres, ainda que iolas”. E certamente, acrescentou, “a fraqueza do maiores, solteiras ou vitivas, independéncia de vontade”!®, O termo “pai de familia” (paierfamilias) implicava nao apenas cuidado, mas autoridade. Um dicionatio do século XIX definiu a expresso como “cabega do casal” e “chefe da familia”!!, Familias, Clientes e Controle Social 35 O Estado dava protegio especial 4 familia. A lei proibia uma pessoa de legar a maior parte de sua propriedade a qualquer um que nfo fosse da familia, protegendo-a assim dos caprichos do interesse individual. Contudo, algumas exceges a essa regra sio indicativas: um filho podia ser deserdado por insultar publicamente o pai, ou uma filha por se casar sem o consentimento dele — a nao ser que, ao fazé-lo, ela subisse de posigio social!2, Os funcionérios pablicos levavam muito a sério sua responsabilidade em relagio a famflias particulares. Diplomatas e policiais consideraram seu dever informar a um padeiro que sua filha casada abandonara o marido por outro homem; sua desobedi€ncia ao marido tornava-se respon- abilidade do pai e um assunto de interesse oficial. Era freqiiente a correspondéncia governamental aparecer com uma tarja preta, indicando a morte de um parente do missivista ¢ simbolizando a centralidade dos lagos familiares. Assim, ac adotar papel como esse para toda sua correspondéncia, duranic um ano inteiro apés o falecimento de seu “prime e cunhado”, o ministro da Guerra chamava a atengio para 0 relacionamento pessoal, e acentuava sua importancia e relevaneia para a agio piiblica, As familias representavam importante fonte de capital politico, Naturalmente, como em outros lugares, clas dedicavam- se a aumentar sua propriedade, e, ao longo de varias geragées sucessivas, famflias bem-sucedidas acumularam recursos significativos. Os vinculos que levavam homens a cargos oficiais ¢ ao dom{nio local constitufam parte importante desses recursos c, através da politica, familias lutayam para preserva-los, muitas yezes contra outras familias. Nao por acaso, um jornal, louyando um falecido fazendeiro de café, justapds as duas quulidades: “chefe de uma importante familia, tendo exercido os mais clevados cargos municipais”. Na busca de seus interesses politicos, as familias em geral yotavam juntas: “Votou [no candidato] mais um cunhado meu que era cleitor ¢ todos os meus yenros © meu filho qua se achavam no Colégio [Eleitoral] 36 CLIENTELISMO E POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX trabalharam dedicadamente por ele”, escreveu um politico na Bahia. De uma par6équia rural no Rio Grande do Sul, um cabo cleitoral listou “os Conservadores daqui em quem mais se deve confiar, além dos membros da minha familia”. O presidente do Conselho Liberal, em 1885, queixou-se amargamente que um candidato Liberal “nenhum auxilio teve dos Ledes”, que cle evidentemente esperava agissem unidos!4, Manuel Pinto de Souza Dantas (1831-94), 186! As familias nem sempre permaneciam unidas, mas 0 nao fazé-lo merecia comentarios. No Pard, por exemplo, ‘hé um grupo de homens que se odeiam de morte e nem o parentesco préximo de alguns os contém”. Na Bahia, em 1856, Manuel Pinto de Souza Dantas, jovem candidato ao Congresso, desejava Familias, Clientes e Controle Social 37 que seus dois tios 0 apoiassem, mas reconhecia que um deles ajudaria o préprio filho, “Mcu [outro] tic José Dantas, por maior (esejo que tenha em auxiliar-me, nao entraré em guerra com meu lio Joo” ¢, de qualquer modo, acrescentava Manuel, nao seria correto “plantar a intriga entre eles”. Manuel relatou mais tarde, contudo, gue seu primo, n&o tio escrupuloso, dera “um passo que talyez possa ser gualificado de imprudente, porque arrasta consigo a quebra de um princfpio [importante], qual o da unidio entre as familias”. Membros de uma familia as vezes lutavam uns com os outros, mas ta] pratica provocava surpresa, condenagio, ou pelo menos preocupagio!’. Os limites de uma familia iam muito além do pai, da mae ¢ dos filhos. A proteg&io em troca de lealdade, imposta pelos vinculos familiares, estendia-se primeiramente a uma ampla gama de relacionamentos consangiifneos e, em seguida, a um niimero igualmente grande de ligagGes por meio de casamento, Embora um pouco mais t@nues, os lagos de parentesco ritual também cram importantes. Ser padrinho, afilhado, compadre ou comadre no Brasil, como em outras culturas ibéricas, envolyia obrigagSes religiosas e materiais importantes, e portanto de influéncia ¢ até mesmo de autoridade. Todos esses lagos familiares implicavam obrigagdes matuas de ajuda nas eleigdes ou na garantia de cargos no governo, de tal modo que, por extensiio, muitas vezes alguém se referia de forma figurada a um protegido como afilhado, e a scu protector como padrinho. Qualquer distingéo entre familia e unidade doméstica permanecia vaga na percep¢ao dos contemporaneos, Eles usavam neia a palavra “familia” para incluir varias pessoas com freqi nio relacionadas por sangue nem por casamento ou compadrio. No caso de uma fazenda, 0 termo podia indicar escravos, cmpregados, arrendatarios, compadres, afilhedos, parentes alastados @ préximos. Em suma, todos os que viviam na ou da propriedade. Deste modo, um chefe de familia expandia 0 circulo daqueles que, como dependentes, reconheciam sua autoridade!’. Muitas vezes os documentos descreviam uma pessoa livre como 38 CLIENTELISMO £ POLITICA NO BRASIL DO sScULO XIX um “agregado & minha familia” ou como um “morador nas minhas terras”, abreviados na prética como agregado e morador. Um agregado ou morador dependia de outra pessoa, especialmente para ter casa, ou pelo menos um espago onde viver e, mais importante, um lugar social. Podia até ser um mem- bro da familia, mesmo um parente respeitado, irma ou irmao desprovidos de uma fonte de renda independente!?: com mais freqiiéncia, 0 agregado era um trabalhador agricola pobre, livre, mas provavelmente preto ou mulato, a quem o dono da terra concedia o direito de cultivar colheitas de subsisténcia, em algum pedago da grande propriedade. Em troca, os agregados ofereciam sua alianga em tempos de luta armada contra donos de terra vizinhos, ¢ lealdade nas disputas eleitorais!®. Como um engenheiro descreveu a situagao em 1879, nas fazendas de café grande parte da terra nao era usada pelo cafeicultor ou seus escravos; na “grande drea restante, (...) nota-se um grande a0 do senhor das terras, ou fazendciros, e que sao denominados numero de individuos que af se estabelecem, com a permi: agregados. Lsses agregados, em numero muitas vezes superior ao dos escravos, so cidadios pobres (...) Pela dependéncia em que se achat dos proprietérios, constituem aqueles agregados uma classe escravizada, que, se bem niio estejam sujeitos x tribute algum de dinheiro ou trabalho, (...) est#o-no, entretanto, pelo imposto eleitoral [isto é, 0 voto], que em ocasiao oportuna pagam & boca do cofre, sob pena de expulsio”!®. No Nordeste, na regido de cultivo de algodio e alimentos, entre a costa produtora de agticar e o interior de criagdo de gado, os senhores de terra — proprietdrios de extensdes agrérias menores ¢ menos présperas do que na costa— muitas vezes nao possufam nenhum escravo ¢ povoavam suas propriedades quase inteiramente com moradores”, Ali, como em qualquer canto do pais, do ponto de vista da elite, o que dominava o relacionamento era, porum lado, a assisténcia do protetor, e por outro, a lealdade ou o servigo prestado; os agregados provavelmente tinham outras idéias, mas, com raras excegdes, guardavam-nas para si mesmos. Familias, Clientes e Controle Social 39 Alguns chefes de famflia lideravam um grupo ainda maior composto de outros pais de familia, que Ihes deviam favores ou 1 os quais os primeiros podiam representar uma ameaca. “Os , dizia um contemporfneo, “vivem & sombra das yrandes” familias latifundidrias © escravocratas”!. Os pequenos sabiam que o caminho mais sabio era buscar a protegdo des mais podcrosos. Comerciantes de pequenas cidades ¢ proprietatios de vendas turais também dependiam dessas grandes familias, pois mesmo quando membros destas deviam dinheiro a um comerciante, o eventual pagamento dependia da boa vontade do devedor, a nao ser que o dono da loja encoutrasse um magnata ainda mais poderoso para defender seus interesses. Da familia, membros da casa, agregados e outros dependentes, um fazendeiro formava seu séquito, ou clicntela, Os clientes dependiam de seu chefe, ¢ em retribuigao ofereciam- Ihe lealdade, Para isso, nao tinha a menor importancia se o caso um patrao espec/fico pertencia a esfera politica ou & econdmic: podcria tanto oferecer emprego como proteger seus dependentes de quaisquer reivindicagées de autoridade alegadas por outras”?. A palavra patro passou a significar sobretudo empregador. Esse emprego nem sempre precisava ser licito. Um administrador provincial na Bahia qucixava-se de que “os chefes mandoes (...) fornceem carne e farinha (...) aqueles yadios ¢ malfeitores que eseolheram por seu Gnico modo de vida servir de guarda-cos- tas ou, como aqui sao denominados, ‘peitos-largos’ — e os defendem quando a Justiga os quer perseguir por sua criminosa conduta”. Mesmo escraves fugitives podiam receber essa protegio de um escravocrata. Em troca, 0 chefe assumia a responsabilidade pelas agGes daqueles que chefiava, Quando o dono de uma loja queixou-se de um fazendeiro, que protegia um “mulato, no muito claro, seco de corpo, com calga azul, jaqueta branca, um chapéu de palha, (...) munido de uma faca de arrasto © uma espingarda”, que “tinha atirado alguns carogos de chumbo #rosso” na venda do qyzixoso, a policia em vez de prender 0 delingiiente solicitou ao fazendeiro que assinasse um “termo de 40 CLIENTELISMO & POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX bem-viver”, responsabilizando-o, assim, pelo comportamento de seus protegidos’*, Se o chefe de uma unidade doméstica exer- cesse com sucesso autoridade sobre seus membros, podia esperar que outras instituicdes do Estado reconhecessem a sua jurisdigao; por conseguinte, em geral exigia obediéncia estrita dentro dos limites de scu dominio. © tamanho da clientela era a medida de um homem. A posse de yasta quantidade de terra e, quando necessdrio, a propriedade de cscravos — demonstrava sucesso e ajudava enormemente a ampliagio do séquito de uma pessoa, mas 0 recurso crucial continuava sendo a lealdade de outros. Com 0 apoio desse grande séquito, um chefe rural podia exercer bastante influéncia sobre jufzes e agentes de polfcia (ou assegurar tais indicagSes para si mesmo), a fim de oferecer protegio e garantia de favores a pessoas respeitaveis, aumentando portdnto o nimero de scus amigos, asscgurando a lealdade de uma crescente clientela pela gratidao, quando nao pela forga. Por esse motivo, cada homem buscava um patrao para protegé-lo, e cada um se esforgava para arrebanhar seu préprio grupo de seguidores. Enquanto os clientes eram de fato beneficiados o buscavam ativamente patrdes, eram os latifundidrios que modelavam a sociedade de forma a que isso se tornasse necessario®’, O sistema fundidrio, por exemplo, era um poderoso estimulo a pratica do clientelismo. Sesmarias sobrepostas umas 4s outras, ¢ os direitos tradicionais de possciros, junto A virtual auséncia de agrimensura, ou registros tertitoriais, criavam um sistema ca6tico de reivindicagdes potencialmente conflitantes, que sacrificava o fraco e premiava a forga, fosse esta medida em riqueza, homens armados ou influéncia politica*®. Como explicou o filho do bario de Pati do Alferes, na medida que, tipicamente, uma sesmaria implicava salvaguardar as reivindicagdes de possfvcis bencficidrios anteriores, ¢ sé podia ser legalmente valida se a propricdade recebesse melhorias dentro de alguns anos, alguém que fizesse uma contra-reivindicagao podia, muito tempo depois, contestar a legitimidade da posse por qualquer um Familias, Clientes e Conzrole Social 41 desscs motivos. Seria entao diffcil encontrar um juiz imparcial pura avaliar depoimentos conflitantes. Ao vender terra, o yendedor indicava que o fazia “tais como as ‘adquiriu”, nao assumindo nenhuma responsabilidade pela validade do titulo. Poucos agrimensavam suas terras e cada proprietério via na imprecisiio de seus limites uma oportunidade de aumentar seus hens. Decerto, quando uma regido jé se achava ocupada por um hom perfodo de tempo, com a associagao clara de algumas terras 1 determinadas familias, esses conflitos deviam diminuir, entao, 1 cqiiidade dos julgamentos de processos judiciais significaria apenas uma legitimagao da lideranga politica exercida pelas lumflias estabelecidas. Mas quando as circunstancias promoviam ‘i ulilizag&o até ent@o inédita de certos recursos agrfcolas, em regiées econémicas até entéo praticamente inexploradas, clevando muitissimo seu valor, os conflitos rompiam as relagdes consuctudindrias, e s6 um bom grupo de sequazes assegurava a propricdade da terra, Por outro lado, os agregados sé eram airaidos pelos que possufam terra, O jovem Lacerda Werneck observou que esse fato fazia com que a propriedade da terra adquirisse mais importarcia que seu uso, de modo que, “como © eho, na fabula de La Fontaine, eles néo a aproveitam, mas (ambém no permitem que outros a aproveitem”. Sem dtivida, (oda a evidéncia é de que poucos retinham a maior parte da terra, io passo que a maioria dos trabalhadores rurais permanecia sem 1, A forga polftica do chefe rural se originava sobretudo ¢ fato. Os clientes o procuravam por causa de sua riqueza aygrdria e ele era capaz de conservar e estender suas propriedades porque os comandava?!, ter dess Controle Social O objetivo da agio politica, das eleigdes e das nomeagoes para cargos ptiblicos originaya-se das diretrizes da organizagao social brasileira, duas em particular: primeira, pratica e prédica infundiam constantemrate a idéia de que todas as relages sociais consistiam de uma troca de protegio por lealdade, beneffcios por 42 CLISNTELISMO E POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX obediéne: , & que a recalcitrancia merecia punicao; segunda, to- da instituigao servia virtualmente para acentuar a hierarquia so- cial, insistindo em que para cada individuo havia um lugar bem determinado, embora a mais importante distingao fosse entre os ticos ¢ os pobres. Por causa dos obstéculos & imposigao do con- trole social no Brasil — particularmente a mobilidade geografica dos sem terra livres — , medidas que buscassem esse controle cram muito necessarias. Mais importante ainda era o problema universal de que os que deviam ser controlados tinham vontade propria. A politica tanto contribuia para fortalecer essas preo- cupagGes sociais maiores como eaxtrafa delas sua razao de ser, O paradigma familiar orientava as relagGes sociais entre liderangas ¢ liderados, e em seu interior mesclavam-se forga ¢ benevoléncia**. Obediéncia e lealdade compravam favores. Obediéncia e lealdade permitiam ao dependente escapar ao uso da forga pelo patrfo, Obediéncia e lealdade asseguravam assist€ncia protetora ¢ por conseguinte criavam uma importante defesa contra a forga que outros possfveis Iideres empregassem. Como conseqiiéncia inevitavel, a falta de obediéncia ou lealdade submetia o individuo a punigao do patrao e o deixava exposto, de forma vulnerdvel, 4 exploragao de outros. Nao havia qualquer dicotomia entre forga e benevoléncia; uma extrafa seu sentido da outra. Representavam apenas dois aspectos da mesma técnica para controlar os outros. Na familia figurayam os dois. Do mesmo modo que um pai escrevia “abraga e abencoa por mim todos os nossos filhos. [Que] eles se lembrem também de mim fazendo tudo o que devem fazer, para merecerem a minha amizade”, um ex-escravocrata também podia declarar que um fazendeiro devia “tratar do liberto como trata scus filhos: com bondade ¢ energia, "29 A ameaca de punigdo e a promessa de benevoléncia descreviam as vidas de esposas ¢ filhos, escravos, » vilas e outros isto é, com amor’ agregados, pequenos proprietarios, comerciantes d seguidores do patrao, envolvendo-os numa poderosa rede de obrigagdes devidas e doagdes esperadas, Essas realidades também tingiam todas as outras relagGes de poder, sobretudo as Familias, Clientes e Controle Social 43 trancamente politicas, Todos eram enredados num processo cons- tante de roca mtitua, embora desigual. Em suma, aelite mantinha 4 ordem social por meio de uma visio (geralmente compar- tilhada) de que a obediéneia fazia juz & protegdo*?. E preciso examinar ainda com mais detalhe a barganha ticila, uma técnica de dominagao que permeava a politica e a sociedade como um todo. O senador José Tomas Nabuco de Aratijo a observou, quando se teferiu aos moradores de engenhos de agticar no Nordeste: “que desde tempos imemoriais tém considerado aos senhores de tais propriedades como seus sustentéculos e protetores, que sempre tém tido para com estes um justo respeito reverencial, come para aqueles que lhes dao (crras para lavrar ¢ caga para comer; que nado pagam por isso a inenor retribuigéo pecunidria, 0 menor servigo pessoal, a menor prestagao em g&neros, nem fazem o menor beneffcio As terras. (...) Uniam-se aos senhores de engenho pela forga do habito, pela influéncia dos costumes antigos, pelos lagos de gratidao”. Contudo, quando esses moradores votaram contra os candidatos dos senhores de engenho, supostamente persuadidos pelo uso da ‘a, “destruiu-se assim a justa relagdo que existia entre os lorg proprietérios dos engenhos e os seus moradores, alterou-[se] os costumes e s6 se produziu males, porque tais homens nao podem mais ficar nos engenhos que atraigoaram de certo modo”. ‘Tumbém na regiao do café, o filho de Lacerda Werneck notou que © direito do agregado em relagdo 4 seguranga era ténue, e cle podia ser despejado ao bel-prazer do proprietdrio*!, Como numa familia, a concessio de protegio e benevoléncia por parte do patrio implicava também no direito de castigar. A gencrosidade para com os pobres era constantemente louyada, pois os proprietérios de terra em geral reconheciam que i Los legitimavam a troca implicita e preservavam a correta estrulura da sociedade. Um padre, em um enterra, teve o cuidado de mencionar que o falecido mantinha “a bolsa sempre aberta ao venerando anciao”. Ovtro orador de funeral, em 1860, enfati- zou o “auxilio da esmola” que 0 morto generosamente garantira: 44 CLIENTELISMO E POLITICA NO BRASIL DO SBCULO XIX “a sua casa, a sua estima, e 0 seu dinheiro, eram tesouros da po- breza”. Nao importa muito se o rico era realmente tio generoso, mas sim a insist@ncia em relagio a isso como uma virtude maior, Aqui temos uma celebragio de valores clientelistas, E até certo ponto, os membros de familias de classe alta internalizavam © valores: numa carta particular, 0 bardo de Pati do Alferes escreveu que “acodir a uma familia desgragada, ser um anjo da guarda e dar a mio ao infeliz (...) € das almas grandes, é, enfim, proprio do homem [de] circunstancias independentes’*?, Essas técnicas de controle — premiar a obediéncia com bencvoléncia ¢ usar a forga para punir a desobediéncia — foram elaboradas de modo especffico para os escravos. O escravocrata, mais do que qualquer um, embora da mesma forma que todos aqueles que pertenciam as camadas superiores, enfrentava o problema fundamental de como fazer os outros agirem de acordo com a sua vontade ¢ nao segundo a deles mesmos, Com a finalidade, os senhores combinavam a disciplina rigida ao trans- gressor com favores ao décil ¢ obediente. A gentileza do patrao, vale repetir, adquiria sentido conquanto acompanhada de seu direito de exercer forga m4xima, Muitos fazendeiros ou seus feitores nao hesitavam em usar o chicote, o tronco ou outros castigos para conseguir dezesseis ou até dezoito horas de trabalho diério daqueles que comandavam. Outros escravocratas, contudo, como 0 bardo de Pati do Alferes, percebiam que o controle total também exigia cuidado: “o extremo aperreamento desseca-lhes © coragio, endurece-os ¢ inclina-os para o mal. O senhor deve ser severo, justiceiro e humano”. Sem diivida os escravos domésticos, bem como os artesaos, desfrutavam de comida e roupas melhores do que os escravos da lavoura, e sobretudo tinham maiores possibilidades de serem libertados por servicos de excepciona! lealdade; mas com igual facilidade podiam ser rebaixados ao trabalho agricola. Tais relagSvs entre senhores e escravos simplesmente exageravam os controles que os pais exerciam sobre suas familias © unidades domésticas, e assim a familia fornecia a linguagem da escravidao. O filho do barao de Familias, Clientes ¢ Controle Social 45 Pai do Alferes declarou: “A solicitude paternal pela sorte dos avos, acompanham a boa disciplina ¢ o regime [ordeiro]”. Im troca dessa solicitude, o senhor esperava lealdade. Ao morter, louvou-se um fazendeiro por conseguir boa conduta: “Foi sempre um senhor humano, e por isso mesmo era querido pelos escravos ) Como os velhos patriarcas bfblicos, yiveu sempre no meio 2934 de scus servos € famulos cercado de todos os respeitos € afetos Por conseguinte, o relacionamento de senhores ¢ escravos refletia a familia, embora de maneira distorcida. Como meio de controle isso nem sempre funcionava: os escravos resistiam de varias formas, desde trabalhar “indolentemente” a fugir, da sabotagem ’ revolta, do infanticidio ao suicidio, e no € meu propésito sugerir outra coisa*’. Mas o objetivo essencial dos senhores era, sem dtivida, 0 exercfcio da autoridade. A alforria dos escravos, por exemplo, estimulava 0 bom comportamento, pois comprovava que a lealdade ¢ a obediéncia cram premiadas. A freqiiéncia com que os escravocratas oittorgavam liberdade a eseraves individualmente surpreendia os visitantes estrangciros no século XIX, ¢ a sociedade manifestava aprovagaio aqueles que o faziam. A proporgaio dos livres entre hegros © mulatos no Brasil chegou a 74% em 1872, 0 que correspondia a 44% da populagio total’, Mas a libertagao dos escravos dependia de sinais de que aceitavam os valores daqueles que os emancipavam. Embora incomum aa sua particularidade, © exemplo seguinte ilustra aquela regra mais geral: quando um prupo de magons enterrava um dos seus, numa cerimG6nia assistida por “muitos da mais elevada posigao social”, eles libertaram “uma preta escrava que apareceu a porta do ediffcio, deprecando os sentimentos magGnicos em memédria do nosso inmiio finado”. Pode-se ter certeza de que pouces que desafiassem os valores de hierarquia ¢ deferéncia seriam premiados com a alforria, © os senhores, logicamente, contavam que a lealdade dos libertos continuasse, mesmo depois da alforria, Algumas vezes, eles alforriavam 1m escravo sob a condigao espectfica de «que continuasse trabalhando lealmente durante um certo nimero 46 CLIENTELISMO E POLITICA NO BRASIL DO SECULO XIX de anos, ou até a morte do dono, ¢ a lei permitia que a alforria pudesse ser revogada em caso de ingratidio, como insultar o antigo dono*®. Visto que a liberdade era um presente do superior para o inferior, e nfo resultado de um acordo entre iguais, ela bem exemplifica a troca ou barganha desigual que caracterizava a maioria das relagées, fossem sociais ou, como mostrarei nos préximos capitulos, politicas. Para lidar com os pobres livres, a elite também contava com a ameaga de punigao. A conscrigao servia bem a este fim. O recrutamento forgado parecia uma resposta apropriada aos delitos considerados menores. Como relatou sobre um jovem o chefe de policia do Rio de Janciro: “estando convencido de que ele tenha roubado a uma francesa, na, rua dos Ourives, duas ‘ pegas de seda (...) tomei a deliberagio de mandar assentar-lhe praca por nao haverem as necessarias provas de seus crimes para se lhe instaurar um processo”. Outros viam-se “presos por desor- deiros” ¢ recrutados “para fazé-los corrigir seus vicios”. José Muniz, levado preso por deflorar uma crianga de sete anos, “nunca trabalha, por ter uma conduta irregular, e mora com a mée, que € quem o sustenta”, relatou um oficial de policia na Bahi, visto [que] a mae da menor decididamente recusa que ele [se] ; “acho bom que V.S. mande-o para o Exército ou Marinha, case com sua filha”, Um juiz municipal na Bahia mandou assentar praga trés recrutas. Um deles, um mulato, “tem por varias vezes querido matar o sogro, ¢ dado algumas facadas no mesmo, além de ter posto fogo em algumas casas de palha, ¢ [no] canavial de um seu compadre, por nao 0 poder matar, segundo a voz ptiblica”. O segundo, um negro, “usava de andar armado com uma espingarda, ¢ por qualquer coisa prometia tiros ¢ por varias vezes escondeu escravos alheios na casa onde morava, também [de acordo com a] voz publica’. Quanto ao terceiro, um mulato “sem oficio, valente, quando Ihe cerquei a casa, carregou uma espingarda e declarou de dentro que resistia”. Um oficial de polfcia julgou que diversos homens eram os “que se achavam nas circunstancias de serem recrutados por serem reconhecidos Familias, Clientes e Controle Social 47 capoeiras e capangas”. Por crimes como esses, mandavam-se ( para o Exército homens que niio haviam sido julgados*’. Como demonstram alguns desses exemplos, obrigar homens ao trabalho era um dos propésitos do recrutamento militar, A justificativa para a convocagao podia residir no fato de que “[ele] nunca trabalha”, ou é um homem “sem offcio”. Como relatou um nordestino, “muitos proprietérios rurais (...) querendo tirar proveito” do recrutamento, “os acolhem e prote- cm, para o fim de se servirem de seu trabalho gratuito, mediante comida e roupa”. Mais tarde, quando o Congresso Lentou substituir o recrutamento forgado pelo sorteio, um membro da Sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco observou que “antes da lei de recrutamento por sorteio, aqueles que nao trabalhavam, e nao tinham meio algum de vida, cram mandados para o exército; tendo-se extinto esse meio de corrigir os que nfo (rabalham, muito necessdrio sera [agora] uma lei que torne 0 trabalho obrigatério”. O sorteio, contudo, tornou-se letra morta, © 0 recrutamento forgado continuou — sem dtivida com a mesma finalidade. Obediéncia ¢ lealdade significavam antes de tudo trabalho, e os que desafiavam as regras terminavam recrutados*®, Os observadores freqiientemente descreviam os alistados como negros ou mulatos, ¢ por isso pode-se concluir que eram pobres, Jé que, além de recorrer a um patrao para obter protegao, um alistado podia legalmente comprar sua isengdo do servigo militar, como fez um pai para o filho em 1859, os mais ricos safavam-se. O autor de um editorial jornalfstico manifestou-se em nome “daqueles cuja extrema pobreza impedia-os de pagar quinze mil-réis para isentar seus filhos do recrutamento, ou daqueles cuja sorte era ser um morador de um patrao que nio pertencia ao partido governante™. Urn’ viajante inglés talvez tenha errado quando supés solidariedade racial, mas identificou corretamente a origem de classe daqueles recrutas, ao argumentar | cravos, © resultado | que “se ocorresse uma insurreigio de poderia proyar-se desastroso, ja que a maior parte dos pragas no |

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