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Narrador Voz Voz e perspectiva , re- Nem todos os tedricos distinguem voz e perspectiva. He a tanto, vantagem em tratd-las Separadamente, Quanto eee dor pode eleger a primeira pessoa ou a terceira; quanto é eee pode © narrador pode ver os acontecimentos de perto oua distai se fisio- Penetrar na psique das Personagens ou restringir-se a Sean Romias, gestos, acompanhar o¢ acontecimentos no seu efeito fe din iS ~ a i is diversas Vozes ¢ Perspectivas podem combinar-se das maneiras mai na mesma narrativa, Voz do alto meine _ do tinha Primeiro foi a voz das musas, o narrador fingia que n voz com wot YO% era 56 delas, vor de Outros tempos, outra Baad dev 2S, voz do alto, do distante mundo Palavras e frases estranh ses. O narrado; c 4 er Digitalizado com CamScanni NARRADOR 27 O narrador de romances aparece sem musas. O mundo divino se distanciou. Auditérios para seduzir j4 ndo os hd. O narrador nao fala, escreve. O texto sai da soliddo dele para a soliddo dos leitores. Passando a escrever na lingua de toda gente sobre os conflitos de ca- da um, 0 autor ¢ agora verdadeiramente um auctor, um fundador. Um novo mundo sai de suas maos, o mundo dos tempos modernos. Conscientemente ou no, o autor o ajuda a criar. Dele é a epopéia da modernidade, 0 romance. Mesmo sem musas, 0 narrador pode continuar a narrar a ma- neira dos cantadores épicos, como se a voz no fosse dele, como se fosse de um que tivesse o dom da onipresenca. Todas as portas Ihe estando abertas, nada obsta que surpreenda os sentimentos intimos mais secretos. Comporta-se, por vezes, como um deus sem corpo ¢ sem culto ¢ autoritariamente exige f€ no seu testemunho. Visto que o romance brasileiro nasceu depois da independéncia do Brasil, coube aos romancistas a tarefa de ajudar a construir o pais. José de Alencar teve plena consciéncia dessa responsabilidade. Criou personagens: fez do indio herdi nacional e comecou a esbocar tipos regionais como 0 gaticho e o sertanejo, dando-Ihes costumes e lingua peculiares. Substituindo as musas pela patria, quis que a voz dela, nas imagens, no vocabulario ¢ na sintaxe soasse através da voz dele, cultivada na gramatica e na retérica portuguesas. Génios Abandonados pelos deuses, os prdprios autores passaram a se deificar. Os romanticos se consideravam génios e disso persuadiram os criticos. Estes, na esteira de Sainte-Beuve, acreditavam que o mis- tério da obra de arte poderia ser esclarecido, conhecendo-se a perso- nalidade genial do autor. Consideravam a genialidade consistente como as rochas. Interessava-lhes ndo sé a biografia do autor como também 0 momento exato em que a obra genial teria sido escrita. Passada a febre romantica, descobriu-se que nao hd personali- dades geniais. Ao cardter no convém a resisténcia dos sdlidos, Con- Vertida em mascara, a personalidade ficou reduzida aos papéis sociais ue representamos ¢ que, espelhados nos outros, construimos. Per- sonalidades sao textos cuja consisténcia ¢ unidade nado excedem a da ¢scrita. Se hoje nos preocupamos com a natureza do texto, é porque | sabemos que nada nos redime do emaranhado textual em que todos estamos enredados. Digitalizado com CamScanner Eu narrador ‘ Escrever em primeira pessoa poderia ser decisio orgulhosa: mostrou-se, entretanto, nos casos de sucesso, gesto de humildade. 9 narrador que diz eu esta limitado. Falta-Ihe a mobilidade andnima Nao Ihe é dado antecipar 0 futuro. Mais seguro Ihe é falar de si mes. mo. A meméria Ihe é auxiliar valioso. Mesmo no estreito espaco de si mesmo, ha limites. A mem6ria falha. Recordar fatos nao significa compreendé-los. Lingiiistas e psicanalistas recentes ensinam que no dominio do discurso estamos sempre em presen¢a de enunciados. Nao se confun- da, nem fora da ficcao, sujeito da enunciagao (enunciador) ¢ sujeito 0. Tomemos um exemplo banal: “‘Joao disse: — Quero um copo de gua’. Jodo éo enunciador, ‘‘Quero um copo de agua” é0 enunciado. Do enunciado nao podemos deduzir o que vai na mente do enunciador. Jodo pode ter motivos para iludir o destinatario. Co- mo saber se realmente esté com sede? Se Jodo se encontra numa sala de aula, pode propor o enunciado para esclarecer aspectos de lingua- gem. Nesta hipotese, entre enunciador e sujeito do enunciado nao ha identidade. Importa o momento em que 0 enunciado foi proferido. Como saber se Joao ainda estd com sede, se ao falar realmente esteve do enunciad com sede? Voltemos ao romance. Seria incorreto identificar o eu narrador (incorporado ao romance e, como tal, sujeito do enunciado) com 0 autor (sujeito da enunciagdo). O autor de romances pode ser também autor de cartas, de ensaios, de poemas, de crénicas, de pegas de tea- tro, assumindo em cada uma dessas modalidades comportamento ade- quado. Cada obra aparecida em uma dessas modalidades esté a0 nivel o enunciados. O autor, excedendo todas as obras, nao se mostra con- ae delas. O autor também exerce outras fung6es: ceeue aie ah recebe ordens, compra, vende, ama, odeia. Os tos papéis eareee . eee o autor. Ser autor é um dos oe 6 em esquivan a los pelo enunciador, que se esquiva e com 0 qui Ease conseguimos conviver. . €cujas caracteristicas textos dentre os quais uma categoria € fiecional advém nos romances eerie estamos tentando descrever. O narrador Tamente textual, "° Swieito do enunciado, de natureza intel- A técni i antecipada ar aera Personagens de parte da narraca0 foi 10S, aventuras de der ange yo seias Ulisses narra, em varios can- 0S no mar ignoto. Digitalizado com CamScanner enema NARRADOW 29 nn ARRADON 39 Romance de momérias Ao enveredar para os romances narrados em primeira pessoa, Machado deriva forga precisamente dos limites que sujeitam o narra- dor. Em Memdrias pdstumas de Brds Cubas', 0 eu narrador assume © papel de um que nado sabe, mas se empenha a fundo em saber. Por nao saber, ousa questionar os que pensam saber. Aparece armado com 0 vigor da ironia socratica, alavanca Posta no corpo de sistemas solidos para mover as pedras que os sustentam. O narrador se dimi- nui para poder atacar melhor, minando a empafia alheia sem poupar a si proprio. Falar de si mesmo é tendéncia natural de quem se apresenta co- mo sujeito da enunciacdo, Ninguém nos conhece melhor do que nés nos conhecemos a nés mesmos. Assim se pensava antes de Freud. Es- colados pela psicandlise, sabemos que somos mistério até para nds mesmos. Procuramos conhecer-nos através do outro, através da lin- guagem de outros, através de textos que pretendem inutilmente de- volver-nos 0 que de nds se perdeu. A suspeita de que somos estranhos a nds mesmos insinuou-se em textos de ficcionistas antes da psicand- lise. O desencanto de Bentinho origina-se da impossibilidade de ava- liar com acerto os seus préprios sentimentos e de conhecer realmente as pessoas de sua diuturna convivéncia. Envolvido pelo infranquea- vel tecido de palavras e de gestos, o narrador é corroido pela suspeita de que o nao percebido retém verdades que invalidam o oferecido aos olhos ¢ aos ouvidos. Os recursos a servigo da comunicagiio nao serao elaboradas artimanhas para esconder o essencial? As palavras, o re- curso do narrador para expor, mostram-se instrumento falido. A pa- gina converte-se em campo de batalha em que narrador e palavras se defrontam como adversarios. Reescrever a vida no decifra o enig- ma, substituir umas palavras por outras aprofunda o abismo. Memorial de Aires* serena o conflito. Em prosa mansa, o nar- rador se rende as insignificdncias do dia-a-dia sem considerd-las pa- tedes erguidas sobre auséncias. O Memorial, ocupagao de aposentado sem feitos luzentes a recordar ¢ sem ambigdes, também aposenta o narrador como decifrador. José Lins do Rego revigora o romance de memérias em Menino de engenho.’ O eu narrador, indeciso entre o menino e o engenho, Op. cit * MacHAbo DE Assis, J. M. (1908). Rio de Janeiro, Aguilar, 1962. Yaron ves Sena eer re Digitalizado com CamScanner surpreende em um ¢ outro o individuo e a sociedade Pattiarcal, rey: vendo os solavancos da alma verde desde a visto do corpo ensan i tado da mae, abatida pela insfinia do pai, até as primeiras turbuléna da adolescéncia prematura, Acompanhamos a aprendizagem py amarga feita em contato direto com a vida, longe das letras as quais como crianga ndo se afeigoa, Anelos de um passado extinto misturam. se com o reviver de paixdes, alegrias ¢ temores, presos a histérias de assombracdo, animais, jaguncos, senhores de engenho, senhoras, mo. leques e molecas. E no retorno ao passado o narrador vacila na am. bigiiidade de identificar-se com o menino ¢ de manter a distancia que a visio adulta determina, Como romance de memérias, Memdrias sentimentais de Jodo Miramar‘ comportaria aproximagao ao Em busca do tempo perdi- do, de Proust’. As diferencas salientam-se, porém, tanto no tama- nho como na elaboragao, Os periodos amplos de Proust contraem-se a segmentos incisivos e despojados. Propositadamente lacunosos, so- licitam a colaboracdo do leitor a quem fica também o encargo de pro- duzir a ligaco entre um enunciado e outro. Contra o impressionismo proustiano de fluxo espontaneo age o texto calculado e fragmenta- do, desencadeador de discursos apenas sugeridos. Frutos da inteli- géncia, os fragmentos obedecem a disposicao cronolégica, elididos 0s nexos causais entre um,e outro. Uma coisa vem depois da outta, separadas por cortes temporais de variada duragdo, ndo sujeitas 20 movimento associativo do fluir da consciéncia. Como nada tem rele- vo, Perdida estd a nocdo de fungdes nucleares. O sentido, tendo se acomo negacdo, deixa esse desfilar neutro de estilhacos ie a sonoros oe onan dino subtrai técnicas de persuasao, ms a boraténe wen a ares. O olhar por ele privilegiado ¢ 0 a organizar’o todo ae ‘@ montar os elementos das unidades 0 Ee resiste a0 trabalho dena o® Oswald, 0 mundo das essncias m2? 20 ea famfia, Se Peay Processo dissolvente agride @ ee Pos, Miramar sugere o pititin 2 Batista, no vestibulo dos nove a exclusivista. ——_——. : case Onvala de. Op. cit, ’ Trad. de Mério Quintana et ali. Porto Alegre, Globo, 1953- - Digitalizado com CamScanner Epistolografia romanesca Os romances em primeira pessoa podem assumir forma episto- lar. Através da carta, 0 narrador se dirige a um destinatdrio distante, o que Ihe impde comportamento peculiar: controle dos sentimentos, dosagem das informagées, declaragdes sem resposta imediata, obser- vagao dos efeitos a provocar — arte que no século XVIII deu renome a Samuel Richardson. Em Jodo Miramar, Oswald de Andrade mos- tra a degenerescéncia da epistolografia.® Insere cartas redigidas por membros de uma classe decadente, alheia a exigéncias basicas do idio- ma que os deveria conservar no topo. A carta mais conhecida da lite- ratura brasileira é a ‘‘Carta pras Icamiabas’’, do Macunatma. Nela Mario de Andrade parodia a formagao apressada, a ostentacdo balo- fa, a observacdo incorreta, a sedugao do brilho, o engodo, a explora- io, a empafia dos que assimilam canhestramente linguagem erudita para se darem ares de importancia. Retomando a tradicdo séria da epistolografia romanesca, Lu- cio Cardoso, em Crénica da casa assassinada, através de diarios, nar- rativas, confissdes e cartas, devassa o interior morbido da chacara dos Meneses. Entre as cartas, destacam-se as de Nina, retrato dolo- roso de uma mulher carente de afeto que carrega, atordoada por in- jurias, indiferenga, 6dio ¢ paixdes, 0 seu destino de erros ¢ de enganos. Mondlogo O mondlogo, no caminho aberto por Joyce ao registrar o fluir da consciéncia de Molly Bloom em Ulisses’, trouxe a possibilidade de apanhar fragmentos de idéias na desordem do nascedouro, antes de sofrerem a ingeréncia da razdo ordenadora. Michel Butor recusa © fechamento do mondlogo interior. Segundo ele, a consciéncia so poderia ser redimida na presenca de uma segunda pessoa a quem 0 discurso se dirigisse. O romancista nao consegue, entretanto, fugir do fechamento antes denunciado em A modificacao’, romance em que a acao é sistematicamente atribuida a segunda pessoa. Outros meios se oferecem ao romancista para sair das indefini- sdes ¢ da desordem interior. Mediante 0 discurso semidireto, 0 nar- "Op. cit. = Tanaira Civilizacda Rrasileira. 1966. Digitalizado com CamScanner son pn rador penetra no interior das criagdes romanescas, Assumindo-the pontos de vista ¢ o pitoresco da linguagem como ocorre em Vidas cas, evitando a atmosfera doente ¢ sombria de outro romance deg ciliano, Angustia®, em que 0 mondlogo interior é praticady Por acertadas que sejam as comparacées de Grande Sertio: ye. redas com 0 Ulisses, a presenga do silencioso interlocutor confere a0 mondlogo de Riobaldo um arranjo que se afasta muito da ‘composi. go do monologo interior. O mondlogo se revigora com o Sargento Getillio, de Joao Ubal- do Ribeiro.'° Agora o narrador é um homem rude, escravizado por crendices ¢ por ideologias politicas mal compreendidas, Nao dialoga nem quando se dirige ao companheiro. Tem as suas convicgdes ¢ as afirma sem admitir que sejam questionadas. A sua fala ininterrupta, Por ignorar quem 0 ouve, envereda para 0 mondlogo interior. Tem uma misséo a cumprir e, sem refletir sobre 0 acerto dos seus atos, leva-a obstinadamente até ao fim. Nos seus piedosos desacertos, lan- a, sem o saber, um vigoroso libelo contra a sociedade que o defor- mou. Denunciados ficam os crimes que se cometem no cego cumprimento do dever. Missao e destino sobrevivem como hedionda caricatura. Na solidao de um apartamento sem a presenca de interlocutor, Clarice Lispector em A paixdo segundo G. H. cria um mondlogo lu- cidamente racional. Ja 0 titulo indica a perplexidade da narradora. Em vez do nome, que identificaria a personagem, temos iniciais que Suscitam duivida confirmada pela fala: n “~~ estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. 2 tando dar a alguém o que vivi ¢ no sei a quem, mas ndo quero com o que vivi,"! wel O interlocutor, embora ausente, é ao menos suposto como Lees fa a a © pdlo Precariamente organizador do discurs0. a fragmentésin nada e ndo pode dar porque as visdes da narra pa Oque rene Perdeu algo de essencial, isto é, a esséncia se ans 640 © sem desire 4 2888640 de fluxo sem possibilidade de or ae chado para a A lei imanente, o destino, ainda invocado ee ugar 20 provavel ie ‘car a coeréncia hipotética da existéncia, ce onde. “NSS'4'9 momento que passa sem de onde nem para 7, (19360. R f 1 9 de Janei : ony, Rio de sane: ese Olvmaio, 1953, Janeiro, Ed. do Autor 1968, eed Digitalizado com CamScanner NARRADOR 33 Narrador ausente Ja ndo estamos habituados a ser conduzidos. Assim nos senti- mos quando lemos Manuel Anténio de Almeida. Era 0 habito do sé- culo passado. Machado ironiza o processo. Nao fala sério quando manda saltar capitulos. As ninharias que fala com os leitores imagi- narios levam a refletir sobre 0 que elas ocultam. Os narradores do século XX costumam retirar-se. Fingem-se ausentes. E como se 0 ro- mance se narrasse a si mesmo. Isso nao quer dizer que 0 narrador como ocorre em A montanha magica, de Thomas do dar a narrativa um cardter lendario, algo que tempo, recorre ao narrador como um mago O mondlogo interior, distribuido entre diver- sas personagens ou a cargo de uma sé, nao o conduziria a0 objetivo que tinha em mira. O mondlogo interior ressuscita o que ja se per- deu, e Mann. necessitava de uma acao completamente passada. A pri- meira Grande Guerra abriu um sulco profundo na consciéncia euro- péia, de tamanhas propor¢des que 0 que acontecera antes dela per- tencia a uma época transata, 20s velhos tempos. A intervencdo do narrador deveria garantir a distancia. nado possa retornar Mann.” Pretenden ja se passou ha muito que evoca 0 pretérito. Vozes miltiplas formada do narrador soa ntrola todas as informa=) ica Latina? Se a voz de os em que a VOZ bem in! falsa. Pode-se admiti-la quando a censura co! ¢des como ocorre freqiientemente na Améri uma tinica personagem nao da conta da complexidade, 0 autor pod ampliar o ntimero de narradores. Assim procede Anténio Callado em Reflexos do baile'*. Os fatos se revelam num diario, em n bilhetes. Por faltar 0 narrador como centro unificador, a narra desdobra-se em mosaico. Cabe a0 eitor fazer dos fragmentos u) do inteligivel. Em Viva 0 povo brasileiro" pessoa, narragao em ter didlogo, linguagem cul e em duas vozes gerals Ha moment 4, a multiplicidade de vores ceira pessoa, mondlo Ita e popular, 2 ¢4o em primeira s: a voz dos de terior, discurso solene, e moderna) distribuem-s« 1 (1924), Trad. de Herbert Caro, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. "Rio de Janeiro, Paz e Terra 1976. j Riseino, Joao Ubaldo (1984). Rio de Janeiro, No exrvensrosee wl aes Digitalizado com CamScanner M_AHONIA DO ROMANCE dores ¢ a vor dos dominados. As vozes se conjugam COMO Mase, que alternadamente encobrem 0 narrador, hostilizam. sem aa silencle a outra, O romance de Jodo Ubaldo Ribeiro Tepresenta i 0 discurso carnavalesco descrito por Mikhail Bakhtin, 0 discursg aa nolitico, monoldgico, autoritdrio solapado pela ir bilidade, a movimento, pela liberdade, pela invengiio, pela novi lade, pelo im. previsto. O narrador, sendo uma pega do romance, se inventae tein. venta como tudo no universo romanesco. Procurar 0 narrador antes do romance nio conduziria a resultado promissor. Perspectiva Mediante a perspectiva, o narrador escolhe o an- gulo de observacao, distancia-se ¢ aproxima-se do objeto. Impossivel revelou-se a Pretensdo realista de reproduzir no texto a realidade objetiva, nao deformada pela visio. Veja-se como Mario de Andrade enfoca Personagem e ambiente no final do primeiro quadro em Amar, verbo intransitivo: Elza viu ele abrir a porta da pensto. Pam... Entrou de novo no quarto ainda agitado pela presenga do estranho. Lhe deu um olhar de confian- 98. Tudo fol sossegando pouco a pouco. Penca de livros sobre a eset vaninha, um plano. O retrato de Wagner. O retrato de Bismarck Tem-se no principio a visio ampla da pensao. Sousa Costa abre @ porta ¢ sai. O narrador acompanha o olhar de Elza, que volta a familiarizar-se com 0 seu quarto, ha pouco perturbado com a pre- senga do estranho. A atencio fixa-se em detalhes sem registrar mint clas desnecessérias. Os livros e o piano indicam uma das ocupavdes de Elza, ela é professora e acaba de ser contratada como tal. O bee to de pensio sugere a outra profissdo de Elza: a profissional do ane B Os dois retratos falam de suas inclinagdes: a arte ea politica. Se 7 ner ¢ Bismarck esto separados por um ponto, é porque a Seiad ‘¢ uM a Outro estd bloqueada na psique da personagem. Elza po Mostrar-se pratica e sonhadora sem conseguir conciliar as duas Encias. Viverd interiormente rompida até o fim. sta, 0 Quando, mais tarde, Elza chega ao casardo de Sousa er lor a acompanha até os seus aposentos e contempla com 0S 1927). Belo Horizonte, Itatiaia, 1984, Digitalizado com CamScanner dela a paisagem vista da janela, A riqueza da casa e do balrro afeta vs plANUAS do jardin e os veleulos da rua, A casa éo centro, O narra } dor abandona @ personagem © elreula pelo corredor, pela sala para ; apresentar as erlangas Que serdo confiadas aos culdados de Liza : Mario de Andrade, que adotou no romance téenicas de narratl ya cinematografica, Move 6 foeo Narrative como se fosse UMA chma- sa, Nos objetos enfocados @ nos Cortes feltos, o romance Incorpora | jeonica narradiva propria do cinema, : Clarice Lispector escapa por outra via da tradigho realista, Por } variadas que sejam as manifestagdes do realismo, tém isto em comum; a certera da realidade objetiva e material, Balzac acreditava poder deserever os objetos sem desvios determinados pela perspectiva, Cla rice Lispeetor recusa O mundo balzaquiano, anterior ¢ independente da percepgdo sensorial, Isso jd se percebe em Perto do coragdo selva- gem, seu romance de estréia, O romance comega assim: A maquina do papal batla tag:tac,,, tacstac-tac.,. © reldgio acor dou em tindien sem pooira, O reldgio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa diela © Qué? rouparoUparoupa, NAO nao. Entre o reldgio, a maquina eo silénelo havia uma orelha A esouta, grande, corde-rosa 6 morta. Os (rs sons estavam ligados pela luz do dla @ pelo ranger das folhinhas da Arvore que se esfregavam umas nas outras radiantes."” \s coisas no comparecem como objetivamente so, Existem como som porque ha uma orelha a escuta, Os sons adquirem a mes- ma densidade da luz do dia que os liga, Nao importa o que som ¢ lue objetivamente sejam, na experiéncia da personagem eles se con- fundem, Os sentidos recriam © que percebem. Viver é um continuo criar e destruir no travado por nenhum prinefpio objetivo. Com- precide-se que a realidade sensorialmente reconstruida se mova flui- “a, inconsistente, A técnica realista do inventario fixava os objetos, Procurava aprisiond-los nas palavras de modo que o leitor pud © num mundo cotidiano, sdlido, Joan: at \lastavase aos poucos daquela zona onde “'estas, onde tudo tem um nome “undava na regido liquida, quieta & r80n ‘2988 © frescas como as da madrugada, ' Percebe-se a busea ansiosa dé “ude de sua natureza liquida, p (1944). Rio de Janeiro, Sabid, ‘amScanner yLORIA DO ma, As palavras, instrumentos inadequados para ; seja, derramamese abundantes, arrastaday pelo rj imobilizar. No romance de Clarice, a realidade | perspectiva do narrador. me missos com as leis da objetividade ja estavam pr chadiana. Em Memdrias postumas de Brds Ci aescrever, desfeitos todos os vinculos com a vid dobra além da sepultura, perspectiva do n dor, é um ponto de vista externo Aexisténcia. A ruptura com a com o modo estabelecido de narrd-la o torna disponivel para a vencao. A invengao leva ao que ainda nao existe, ao que ainda esté escrito em livro, A morte estd na génese da inven¢ao, Jogo notivel de perspectivas nos oferece José Lins do Rego, Fogo morto."” A visio externa nos vem através do olhar do narrador onisciente, Conflitos interiores exprimem-se nas miultiplas incidén- cias do mondlogo interior e nos didlogos. A imagem de cada per sonagem se refrata na visio das demais. As perspectivas se alter- nam e se repelem, coincidentes apenas na dissolugado inexordvel da sociedade patriarcal e escravocrata, metaforicamente traduzida pelo titulo. dora thes ar o que quer que nio conseguem rece na instive Os compro! pidos na prosa ma o narrador se poe Oterritério que se desi O narrador como leitor 0 narrador dirige-se ao leit ae primeiro leitor é 0 proprio abe endo o narrador o seu primeiro leitor, é também o seu prin critico. O leitor que cada narrador tem em si mesmo 1 i ti ene ‘ aa Palavras, eliminar capitulos, introduzir outros, lor certas personagens, ree: io de Janeiro, + José Olympi pio, 1943, Digitalizado com CamScanner NARRADOR _37 _ ancia das invengOes literdrias. A escrita as sustenta e justifica. Fla- rab a proeminéncia da escrita em Joyce, no Novo Romance fran- ores Clarice Lispector, em Osman Lins. Teéricos como Jacques Jada forneceram 0 apoio tedrico ao privilégio da escrita ao reque- Perm para o significante a dignidade de produtor do significado. E os narradores se tornaram leitores. Antes de narrar, o narra- dor leu outros textos. Foram estes que o levaram a escrever, e € com estes que continuamente dialoga. A antiga preocupacao pelas influén- cias literdrias reduz-se a isso. Na verdade, ninguém copia de ninguém. Por mais literal que a copia pretenda ser, nunca lograra reproduzir o original. O original, por ser original, nao se deixa reproduzir, e a cépia serd sempre cépia. E o que ensina, em conto exemplar, Jorge Luis Borges. O trabalho do narrador Autor e narrador nao se confun- dem. O autor é o fundador do mundo romanesco ao qual o narrador pertence. Sao pertinentes as distincdes que Pierre Macherey faz entre cria- ¢40 e produgdo. Concepgées anteriores, derivadas do criacionismo, colocavam o artista na dependéncia do Criador, elevando-o, de certa forma, acima do trabalho operdrio. Ao colocar o fazer artistico no dominio da produgdo, Macherey acentua o trabalho modestamente operario do autor, inserido no processo geral de transformacao. As obras ndo surgem, como vimos, em momentos geniais. Blas so resultado de lenta elabofacdo que pode prolongar-se por meses anos. A producao se estende num afanoso fazer, desfazer e refazer. O produto final perde, por vezes, toda semelhanga com 0 projeto ini- Clal, Flaubert esté entre os artesdos meticulosos da palavra. Cost mava submeter cada pagina, cada linha a cuidadosa revisao. ta ee inclinados a admitir o autor como operario, a Distancia aa humana "* oferece elucidativas contrib mana em cee ee Karl Mang) Hannah Arendt divide a a as ativan cateeorias: labor, trabalho ¢ agdo. Eni Decesch igadas 4 preservacdo da vida. O labor, cessidade de sobreviver, ndo deixa nada atras "noe “or. Hannah (1958). Rio de Janeiro, For Digitalizado com CamScanner € Criativamente Os he On ‘arrador perdey auditérig atento e passiy, £40 das musas, Ao Cantar, rear; binagdes Previs ° improviso, Omens, i nner Digitalizado com CamScai Benjamin Addata Junior Samira Yousset Campedeiti Proparagto de texto Wany Picasso Batista io de composi Neide Hiromi Toyota Dirce Ribeiro de Araujo Edigao de arte (mioio) Milton. Takeda Divina Rocha Corte Capa vayme Leao 'SBN 85 08 03292 7 1989 Todos os direitos reservados Atica S.A. — Rua Bardo de | Pi Al — Caixa End. Taecanea “Bomlivro” — igitalizado com CamScanner

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